Resumo: Os direitos fundamentais foram, originariamente, concebidos apenas como salvaguardas de proteção ao arbítrio do Estado. Todavia, na medida em que ocorreu o desenvolvimento da sociedade, passaram a existir novos atores sociais capazes de representar grandes ameaças aos direitos primários dos indivíduos. Dessa forma, a doutrina começou a aceitar a possibilidade de particulares também constarem no polo passivo de lides que envolviam os direitos fundamentais. Entretanto, vislumbrou-se, quando da incidência desses direitos nas relações privadas contratuais, uma grave dificuldade: a ampla probabilidade de colisão entre os direitos fundamentais de um particular e a autonomia privada do outro. Nesse artigo, analisar-se-á a tensão que envolve ambas as partes, especificamente, nas relações privadas de consumo, pois nelas se evidencia a capacidade de alguns particulares ferirem os direitos fundamentais de outros. Isso acontece porque a relação de consumo é desigual, uma vez que o fornecedor é quem comumente detém a superioridade econômica, jurídica e técnica e, em razão disso, não raro ofende os direitos da parte contratante. Como um possível método de solução para o embate, apresentar-se-á o princípio da proporcionalidade, por meio de uma abordagem teórica (doutrinária) e prática (jurisprudencial).
Palavras-chave: Autonomia privada. Direitos fundamentais. Conflitos intersubjetivos. Princípio da proporcionalidade.
Abstract: The fundamental rights were, originally, conceived just as safeguards to protect the State’s will. However, along with society’s development, came into existence new social actors capable of representing great threats to the primary individual rights. Therefore, the doctrine started to accept the possibility of private persons to be also included in the passive pole of demands that involved fundamental rights. Nevertheless, it was noticed a grave difficulty when those rights began to incident on private contractual relations: the wide probability of collision between the fundamental rights of a particular person and the private autonomy of another one. In this monograph, it will be analyzed the tension that involves both party, specifically, regarding the private consumption’s relations, because, through them, is evidenced the capacity that some individuals have to harm the fundamental rights of others. It happens because this kind of relation is unequal, once the supplier is the one that, usually, detains economical, juridical and technical superiority and, for this reason, might offends the rights of the contracting party. Therefore, it is accentuated the need of the fundamental rights to be applied in these relations and, subsequently, to be resolved the conflict existent between them and the private autonomy, an essential point of the inter-subjective relationships. As a possible method to solve the situation, it will be presented the principle of proportionality, by means of a theoretical (doctrinaire) and practical (jurisprudential) approach.
Keywords: Private autonomy. Fundamental rights. Inter-subjective conflicts. Principle of proportionality.
Sumário: Introdução. 1. Direitos Fundamentais e Autonomia Privada: Tutela constitucional e formas de incidência nas relações jurídicas intersubjetivas. 1.1. Autonomia privada: considerações acerca de sua tutela constitucional. 1.2. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas intersubjetivas. 2. Conflitos de Direitos Fundamentais em sentido amplo e limites da autonomia privada nas relações privadas de consumo: o princípio da proporcionalidade como método prático de resolução. 2.1. Autonomia privada x direitos fundamentais nas relações intersubjetivas de consumo: o Princípio da Proporcionalidade como método de resolução. 2.2. Possibilidade de aplicação prática do Princípio da Proporcionalidade: análise crítica do Recurso Especial n. 1.312.887. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar a tensão existente entre os Direitos Fundamentais e a autonomia privada nas relações intersubjetivas consumeristas, bem como a utilização do princípio da proporcionalidade como um instrumento de solução para o referido conflito.
Para tanto, o presente trabalho será desenvolvido da seguinte forma: abordar-se-á, primeiramente, a tutela constitucional da autonomia privada, bem como serão apresentadas as principais teorias referentes à eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas compostas por particulares. Em um segundo momento, será explicitado o princípio da proporcionalidade como método de solução de conflitos de direitos fundamentais em sentido amplo nas relações consumeristas e irá se avaliar a aplicação prática deste princípio por meio da análise do Recurso Especial n. 1.312.887.
Destaca-se, por fim, que o método de abordagem desse estudo é o dedutivo; o método de procedimento é o histórico e a técnica de pesquisa é a documentação indireta.
1. Direitos Fundamentais e Autonomia Privada: Tutela constitucional e formas de incidência nas relações jurídicas intersubjetivas.
1.1. Autonomia privada: considerações acerca de sua tutela constitucional.
Como forma de possibilitar um melhor entendimento acerca do presente estudo, cumpre-se, primeiramente, determinar o atual conceito da autonomia privada e analisar a sua tutela constitucional.
Segundo a lição do professor Paulo Mota Pinto, a autonomia privada consiste na “possibilidade de os sujeitos jurídicos privados livremente governarem a sua esfera jurídica, conformando as suas relações jurídicas e exercendo as posições ativas reconhecidas pela ordem jurídica” [1].
Isto é, por esta concepção, a autonomia privada pode ser compreendida como um poder atribuído aos particulares de autodeterminação e coordenação de suas relações jurídicas.
Neste mesmo sentido, aduz Wilson Steinmetz[2] que a autonomia privada pode ser definida como o poder conferido pela lei aos particulares para que, livres e soberanamente, autorregulamentem os próprios interesses (direitos, bens, fins, pretensões). A autonomia privada, deste modo, manifesta-se como um poder de autodeterminação e de autovinculação dos particulares e que, no seu exercício, os particulares tornam-se legisladores dos próprios interesses, seja para criar direitos ou deveres.
Parte da doutrina comumente utiliza o conceito de autonomia privada para definir os conceitos de liberdade jurídica, autonomia da vontade e autonomia negocial, o que, entretanto, não se mostra de todo adequado, pois tais institutos possuem suas características próprias, conforme será verificado a partir da fixação conceitual de cada um deles.
Para Rose Melo Vencelau Meireles, a liberdade jurídica “corresponde a toda manifestação de liberdade tutelada pelo ordenamento jurídico”[3]. Ser livre juridicamente é ter a faculdade de agir dentro dos limites da lei. Esta também é a concepção compartilhada por Antônio Álvares da Silva, consoante o qual a “liberdade jurídica consiste numa relação entre o que a norma ordena, proíbe ou permite e o espaço que deixa livre para o cidadão agir sem limitação”[4].
A autonomia privada corresponde a uma parte deste instituto, conforme explica Francisco Amaral, ao asseverar que a liberdade jurídica é o poder que têm os indivíduos de atuarem com eficácia jurídica, a qual se concretiza, sob o prisma dos sujeitos, no poder de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas e, sob o ponto de vista objetivo, é o poder de regular juridicamente estas relações. Assim, “a esfera da liberdade de que o agente dispõe no âmbito do direito privado, chama-se autonomia, direito de reger suas próprias leis”[5]. Portanto, a autonomia privada corresponde à expressão da liberdade jurídica nas relações intersubjetivas, mas não a ela em sua integralidade.
Também não se pode confundir autonomia privada com autonomia da vontade. Nesse sentido, sintetiza Amaral que a “autonomia da vontade dá relevo à vontade subjetiva, psicológica, enquanto que a tese da autonomia privada destaca a vontade objetiva, que resulta da declaração ou manifestação de vontade, fonte de efeitos jurídicos”[6]. Tal distinção também é defendida por Luigi Ferri[7], para o qual a autonomia da vontade traduz a vontade real ou psicológica dos sujeitos e a autonomia privada seria o poder dos sujeitos privados de criarem normas. Nesse passo, como mencionado, constata-se que a autonomia da vontade é figura distinta da autonomia privada, pois aquela corresponde ao querer interno dos indivíduos e esta ao poder atribuído pela lei às partes para autorregulamentarem as suas relações jurídicas privadas.
Por fim, cumpre-se destacar as distinções entre autonomia negocial e autonomia privada, para tanto se traz à baila os ensinamentos de Rose Melo Vencelau Meireles[8]: “É comum a definição de autonomia privada como o poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento jurídico para regular seus próprios interesses. A autonomia, desse modo, constitui, modifica ou extingue efeitos jurídicos para o próprio declarante da vontade. Partindo dessa premissa, não é unânime a concepção de negócio jurídico como expressão unicamente da autonomia privada.”
E utilizando-se das lições de Pietro Perlingieri, a autora define autonomia negocial como “o poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento ao sujeito de direito privado ou público, de regular com a própria manifestação de vontade interesses privados ou públicos, porém não necessariamente próprios”[9].
Nesse sentido, a autonomia negocial diferencia-se da autonomia privada na medida em que esta envolve só interesses próprios e aquela poderá envolver tanto interesses próprios como alheios. Sob esta visão, o negócio jurídico poderia ser considerado um instrumento da autonomia, porém não somente da autonomia privada.
A atual Constituição Federal Brasileira, embora não preveja expressamente a autonomia privada em seu texto, a protege. Tal compreensão, na ótica de Wilson Steinmetz[10]: “[…] resulta do argumento cujas premissas são o direito geral de liberdade (CF, art. 5º, caput), o princípio da livre iniciativa (CF, art.1º, IV e art. 170, caput), o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 5º, XIII), o direito de propriedade (CF, art. 5º caput e XXII), o direito de herança (CF, art. 5º, XXX), o princípio da proteção da família, do casamento e da união estável (CF, art.226, caput, § de 1º a 4º) e cuja conclusão é o poder geral de autodeterminação e autovinculação das pessoas tutelado pela Constituição. Se todos esses princípios e direitos constitucionais mencionados contêm um conteúdo básico de autodeterminação e autovinculação da pessoa, então a autonomia privada – que é um poder geral de autodeterminação e autovinculação – também é constitucionalmente protegida ou tutelada. Dizendo, ainda, de outro modo, a tutela constitucional da autonomia privada deflui desses princípios e direitos expressos no texto constitucional.”
Ou seja, se os direitos elencados acima se constituem em partes por um poder de autodeterminação e autovinculação, então estes direitos se constituem em partes pela autonomia privada, uma vez que esta, como mencionado, é um poder de autodeterminação e autovinculação. Assim, se a Carta Magna protege tais direitos, protege também a autonomia privada, pois esta corresponde a um dos conteúdos presentes neles.
Por outro lado, afirma o autor que a tutela constitucional da autonomia privada pode ainda ser deduzida por outras duas previsões constitucionais: o direito de propriedade (CF, art. 5º, caput, e XXII) e o princípio da livre iniciativa (CF, arts. 1º, IV, e 170, caput) [11].
No que se refere à primeira delas, assevera Steinmetz, que uma de suas faculdades basilares é a possibilidade de os indivíduos livremente disporem da propriedade e que este exercício se viabiliza concreta e instrumentalmente através do contrato. “A autonomia privada – aqui, particularizada na liberdade contratual – é o princípio fundamental do direito contratual. Logo, se a Constituição tutela a propriedade […], então ela também tutela a autonomia privada.”[12] Em outras palavras, se para o exercício do direito de propriedade é necessário o instituto do contrato e, se tal instituto possui como princípio fundamental a autonomia privada e, se a Carta Magna tutela o direito de propriedade, então esta também tutela a autonomia privada.
No tangível à livre iniciativa, destaca o autor que a Constituição a elegeu como um princípio fundamental não só da ordem econômica (CF, art. 170, caput), mas também da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, IV)[13]. Assim sendo “lógica e faticamente impensável e impraticável a livre iniciativa sem a autonomia privada. Logo, ao eleger a livre iniciativa como princípio constitucional fundamental, a Constituição também tutelou a autonomia privada.”[14]
Nesse sentido, pode-se compreender que o constituinte, ao relacionar livre iniciativa e autonomia privada, criou um caminho para conferir dignidade constitucional a esta última, apresentando-lhe uma garantia indireta[15].
Deste modo, pode-se considerar que houve uma recepção implícita da autonomia privada na Constituição Federal, por meio do instituto da liberdade de iniciativa.
A atuação da autonomia privada nas relações jurídicas não é absoluta, uma vez que este instituto encontra limites na lei, em especial nos direitos fundamentais[16], os quais são fontes de obrigação e instrumentos de ajuste das implicações dos atos de autonomia privada quando se apresentam desproporcionais[17]. Isto é, os direitos fundamentais atuam como limitadores da autonomia privada, fornecendo equilíbrio às relações intersubjetivas.
No intuito de se possibilitar a análise dessa limitação realizada pelos direitos fundamentais à autonomia privada nas relações jurídicas entre particulares, cumpre-se verificar, primeiramente, de que modo estes direitos tem eficácia nas relações privadas.
1.2 A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas intersubjetivas.
Neste item, tem-se como tarefa apresentar uma breve descrição das principais teorias existentes sobre a forma de vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Todavia, para se possibilitar uma melhor compreensão sobre o tema a ser exposto, compete-se, inicialmente, fazer uma breve elucidação acerca do que a doutrina moderna entende por direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais, segundo a lição de George Marmelstein[18], podem ser conceituados como: “[…] normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico.”
Ou, nos dizeres de José Afonso da Silva[19]: “[…]aquelas prerrogativas e instituições que ele [o direito positivo] concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes nem mesmo sobrevive […].”
Portanto, a partir destas definições, pode-se compreender os direitos fundamentais como o conjunto de direitos positivados na esfera constitucional de um Estado, que visam garantir ao ser humano o respeito à liberdade, à igualdade e à dignidade.
Estes direitos, originariamente, foram concebidos apenas como salvaguardas de proteção ao arbítrio estatal, até então havido como seu maior (e único) transgressor[20]. Deste modo, era pacífico o entendimento de que as normas de direitos fundamentais possuíam como sujeito passivo unicamente o Estado.
Todavia, na medida em que ocorreu o desenvolvimento da sociedade, passaram a existir novos atores com força social, jurídica, econômica e política, capazes de representar grandes ameaças aos direitos primários dos indivíduos. Ou seja, as drásticas mudanças sociais operadas no mundo ‘globalizado’ e ‘pós-moderno’ permitiram aos poderes privados usurpar do Estado à condição de maior fonte potencial de ameaças à concretização dos direitos fundamentais[21].
Tendo-se em vista isso, no contexto atual, “poucos são os publicistas que ainda restringem a aplicação dos direitos fundamentais apenas às relações entre os indivíduos e o Estado (relação vertical)”[22]. A maioria deles admite a incidência desses direitos nas lides compostas exclusivamente por particulares.
Portanto, a maior questão que se apresenta não é se os direitos fundamentais incidem nas relações intersubjetivas, mas sim de que forma esta incidência ocorre.
Como resposta a tal questionamento surgiram várias teorias, dentre as quais se destacam, basicamente, duas: (i) a teoria da eficácia mediata e (ii) a teoria da eficácia imediata.
(i) A teoria da eficácia mediata ou indireta dos direitos fundamentais foi inicialmente formulada na doutrina germânica por Günter Dürig (1956), e ganhou maior notoriedade ao ser seguida pelo Tribunal Constitucional alemão no Caso Lüth (1958), sendo atualmente seguida pela maior parte dos juristas alemães, bem como pela Corte Constitucional alemã[23].
Esta teoria pode se apresentar sob quatro matizes. Pelo primeiro deles, se um direito fundamental não tiver sido previsto na legislação privada, não vinculará os particulares.[24]
Pela segunda matização, “a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares deve ser protagonizada, preferentemente, pelo legislador” [25]; todavia, no caso de ausência de previsão legislativa infraconstitucional dos direitos fundamentais, o juiz e os tribunais devem aplicar ao caso concreto norma de direito privado, porém interpretadas conforme os direitos fundamentais ou então aplicar cláusulas gerais do direito privado “preenchidas” com valores que defluem de normas de direitos fundamentais. Caso seja inviável uma solução adequada por estas vias, então os direitos fundamentais em questão não serão aplicáveis aos particulares.
A terceira matização pode ser assim resumida: a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares deve ser preferencialmente realizada por meio da interferência legislativa; entretanto, em não havendo tal hipótese, competirá ao juiz solucionar o caso concreto através de cláusulas gerais de direito privado “’preenchidas’ pelo conteúdo valorativo dos direitos fundamentais em jogo”[26]. Em não sendo possível resolver o caso concreto por esta última proposta, o magistrado deverá, excepcionalmente, quando houver na hipótese uma desigualdade de poder entre os sujeitos privados, aplicar diretamente os direitos fundamentais.
Finalmente, pela última matização, na ausência de previsão legislativa infraconstitucional dos direitos fundamentais e na inviabilidade de se solucionar o caso pelas cláusulas gerais, aplica-se, independentemente de haver ou não uma desigualdade de poder entre as partes, diretamente os direitos fundamentais.
(ii) A teoria da eficácia imediata ou direta foi, originariamente, concebida na Alemanha, por Hans Carl Nipperdey, a partir do começo década de 50. Todavia, não logrou grande aceitação perante a comunidade germânica. Contudo, atualmente, em outros países como Itália, Portugal e Espanha esta doutrina tem ganhado cada vez mais relevo[27].
Segundo esta teoria os direitos fundamentais são aplicáveis diretamente às relações intersubjetivas, sem a necessidade de normas de direito privado que os regulamentem ou da atuação judiciária que aplique o direito privado conforme os direitos fundamentais. Ou, conforme aduz Tássia Aparecida Gervasoni, pela “eficácia direta, os direitos fundamentais não carecem de qualquer transformação para serem aplicados no âmbito das relações jurídico-privadas, ou seja, como a própria nomeação da corrente anuncia, aplicam-se tais direitos diretamente às relações entre particulares”[28]
No centro de todas estas controvérsias sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações intersubjetivas situa-se o problema de como compatibilizar tais direitos quando das suas incidências nas relações contratuais privadas com a autonomia privada, que é a base destas relações, tema do qual se ocupará o próximo tópico desta pesquisa.
2. Conflitos de Direitos Fundamentais em sentido amplo e limites da autonomia privada nas relações privadas de consumo: o princípio da proporcionalidade como método prático de resolução.
2.1. Autonomia privada x direitos fundamentais nas relações intersubjetivas de consumo: o Princípio da Proporcionalidade como método de resolução.
No tópico anterior verificaram-se as duas principais possibilidades apresentadas pela doutrina de incidência dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas. Nesse, analisar-se-á uma problemática recorrente quando da ocorrência de qualquer dessas hipóteses em uma relação contratual privada: a colisão entre direitos fundamentais e autonomia privada. Segundo aduz Virgílio Afonso da Silva[29], esse é o ponto nevrálgico de toda discussão que permeia a eficácia dos direitos fundamentais nas relações intersubjetivas pelo fato destes direitos, nestas relações, tenderem a sufocar a autonomia privada caso não haja uma forma de compreender ambos em harmonia.
Nesse trabalho, visa-se analisar esta tensão entre direitos fundamentais e autonomia privada, especificamente, nas relações privadas de consumo.
Nessa senda, destaca-se, consoante o professor Marcelo Schenk Duque, que os contratos privados, onde se situam as relações de consumo[30], não raro “constituem-se em instrumentos capazes de lesar direitos fundamentais dos contratantes, na condição de parte mais fraca da relação” [31].
Como anteriormente mencionado, o Estado não é o único sujeito capaz de ferir os direitos fundamentais dos indivíduos. Nas relações horizontais também se pode verificar a capacidade de alguns atores privados possuidores de determinada superioridade ferirem os direitos fundamentais de outros. Nos contratos de consumo, esta situação pode ser claramente identificada, uma vez que a relação de consumo é uma relação desigual, na qual o fornecedor é quem comumente detém a superioridade[32].
Nesse sentido, destaca Cláudia Lima Marques que “o consumidor é a parte mais fraca ou vulnerável na relação com o empresário ou fornecedor de produtos e serviços, o expert”[33].
Esta vulnerabilidade, segundo Bruno Miragem[34]: “[…] desenvolveu-se a partir de três grandes espécies: técnica, jurídica e fática. A vulnerabilidade técnica é a falta de conhecimentos técnicos específicos sobre o objeto (produto ou serviço) da relação de consumo, da qual o consumidor é parte; a vulnerabilidade jurídica consiste na falta de conhecimento pelo consumidor, acerca dos seus direitos e das repercussões da relação jurídica estabelecida; e a vulnerabilidade fática, espécie residual, abrangendo uma série de circunstâncias em que por falta de condições econômicas, físicas ou psicológicas do consumidor, este se coloca em posição de debilidade relativamente ao fornecedor.”
Tal posição de superioridade do fornecedor em relação ao consumidor facilita a concreção de lesões aos direitos fundamentais deste último, como membro vulnerável da relação[35].
Em vista disso, seria imperioso que o particular lesado pudesse opor o seu direito fundamental ofendido perante o outro contratante.
Todavia, como referido, ao se considerar a realização desta oponibilidade dos direitos fundamentais de um particular perante outro, tais direitos tendem a se conflitar com a autonomia privada – pedra angular das relações intersubjetivas.
Como uma possível solução a esta questão, apresentar-se-á o Princípio da Proporcionalidade. Para se compreender a validade desta proposta, no entanto, cumpre-se, primeiramente, realizar, com base na teoria dos princípios de Alexy[36], a análise de duas premissas sobre as quais ela se assenta, quais sejam: (i) a estrutura principiológica dos direitos fundamentais; e (ii) a colisão entre autonomia privada e direitos fundamentais como colisão de direitos fundamentais em sentido amplo. Antes, contudo, compete esclarecer que este trabalho não se dedicará a uma ampla apreciação acerca da teoria dos princípios, o que por si requereria um estudo apartado. O proveito desta teoria para a presente pesquisa corresponde apenas ao fornecimento de estruturas teóricas que permitam abordar com validez as colisões entre direitos fundamentais nas relações jurídicas de consumo compostas por particulares e uma possível solução adequada. Feitas tais considerações, passa-se à análise das proposições.
De acordo com Jane Reis Gonçalves Pereira[37], os direitos fundamentais, ainda quando proferidos por meio de formulações precisas, estabelecem princípios. Desse modo, as antinomias envolvendo normas de direito fundamental são colisões de princípios.
Este caráter principial das normas jusfundamentais deriva do denso conteúdo axiológico que estas carregam, bem como de sua abertura semântica[38]. Segundo George Marmelstein[39], tais normas, assim como os demais dispositivos constitucionais, são potencialmente contraditórias, pois revelam uma multiplicidade ideológica característica de qualquer Estado Democrático de Direito. Não é de se estranhar, assim, que elas comumente, no momento aplicativo, entrem em ‘rota de colisão’, a qual ocorre quando dois ou mais direitos entram em contradição no caso concreto.
Esta situação conflituosa quando sucede com direitos fundamentais, segundo Alexy[40], pode ocorrer de duas maneiras: em sentido amplo ou restrito. Pela formulação estreita, as colisões são aquelas em que figuram apenas direitos fundamentais em contradição, as quais, por sua vez, podem ocorrer entre direitos fundamentais idênticos (v.g. vida versus vida) ou distintos (v.g. liberdade de opinião versus honra/imagem)[41]. Já do ponto de vista amplo, também se chamam colisões de direitos fundamentais aquelas em que colidem direitos fundamentais com bens tutelados pela Constituição.
A colisão de direitos fundamentais, consoante Wilson Steinmetz[42], seja em sentido amplo, seja em sentido estrito, devido à natureza principial desses direitos, será sempre uma colisão de princípios. Nesse mesmo sentido, advoga George Marmelstein ao aduzir que “este fenômeno – a colisão de direitos fundamentais – decorre da natureza principiológica dos direitos fundamentais, que são enunciados quase sempre através de princípios” [43].
Dessa forma, tendo-se em vista que a autonomia privada corresponde a um bem constitucionalmente protegido, verifica-se que quando este instituto entra em choque com um direito fundamental, estar-se-á diante de uma colisão de direitos fundamentais em sentido amplo e, por conseguinte, de uma colisão de princípios.
A problemática da colisão entre princípios apresenta uma solução diferenciada daquela que é destinada para resolver o conflito de regras, em face das diferenças que estes dois tipos de preceitos jurídicos possuem. As regras, conforme doutrina Alexy[44], são taxativas no sentido de que podem ser cumpridas ou não. Em decorrência disso, um eventual conflito entre elas poderá ser solucionado apenas de duas maneiras: com a introdução de uma cláusula de exceção em uma das regras, ou, em não sendo viável esta possibilidade, com a declaração de invalidade de ao menos uma delas.
Os princípios, por sua vez, constituem-se como mandamentos de otimização, uma vez que ordenam que algo seja efetuado na maior medida do possível, dentro das possibilidades existentes. Nesse sentido, consoante George Marmelstein[45], os princípios, ao contrário das regras, em vez de proferirem comandos definitivos, estipulam diversas obrigações (dever de respeito, proteção e promoção) que são cumpridas em diferentes graus. Por conseguinte, não são absolutos, uma vez que o seu grau de aplicabilidade dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas que se oferecerem concretamente.
Assim, verifica-se que em não sendo os direitos fundamentais princípios absolutos, estes são passíveis de restrições recíprocas; possibilidade esta até mesmo já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do mandado de segurança[46] número 23.452 , nos seguintes termos: “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria constituição.”
Em consonância com o entendimento esposado, destaca-se, ainda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a qual, em seu art. 29 assevera que: “Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.”
Desse modo, nota-se que esses valores, embora ocupem o ponto mais alto da hierarquia jurídica, podem e, muitas vezes, devem ser limitados. Isso não significa, entretanto, permitir que os direitos fundamentais sejam suprimidos abusivamente, pois são normas jurídicas e, portanto, de observância obrigatória[47].
Nesse sentido, adverte George Marmelstein que qualquer restrição a direitos fundamentais deve ser considerada suspeita e, em razão disso, deve se submeter a uma análise constitucional mais rigorosa, competindo ao Judiciário determinar a demonstração de que a limitação se justifica diante de um interesse mais importante [48]. E completa o autor: “é nesse ponto que entra em cena o mais importante princípio de interpretação dos direitos fundamentais, que é o princípio da proporcionalidade” [49].
Tendo-se isso em vista, passa-se à apreciação da resolução dos conflitos entre direitos fundamentais.
Todos os princípios, segundo Alexy[50], possuem, em abstrato, igual peso e valor. Assim, colidindo dois ou mais princípios, cumpre ser analisado no caso concreto qual deles deve prevalecer para que se tenha uma decisão justa. Não se soluciona o conflito por meio de uma regra geral, pela qual um princípio prevalece em relação ao outro, nem tampouco se estabelece uma regra de exceção. Não existe uma precedência absoluta de um princípio diante de outro, mas sim uma precedência condicionada.
Nesse sentido, leciona Wilson Steinmetz, que é “com base nas circunstâncias relevantes do caso – são elas que determinam o peso relativo de cada um dos princípios no caso – que um dos princípios precede o outro, ou, o que é dizer o mesmo, um princípio cede ante outro” [51]. A solução da colisão, portanto, como mencionado, baseia-se na análise da relação de precedência condicionada entre os princípios no caso concreto, a qual consiste em, ao se examinar as peculiaridades de uma determinada situação fática, indicar as condições sob as quais um princípio prefere ao outro.
A relação de precedência condicionada é o resultado de uma ponderação, a qual se opera por meio do Princípio da Proporcionalidade[52], ponto principal deste estudo, o qual se passa a analisar mais detalhadamente. Cumpre-se, anteriormente, porém, destacar que, conforme Lenio Luiz Streck[53]: “[…] os princípios são, para Alexy, mandados de otimização e possuem, por isso, uma estrutura alargada de dever-ser. Essa estrutura, que é dada prima facie, tensiona os princípios, fazendo-os colidir. A valoração é uma momento subsequente – ou seja, posterior à colisão – que incorpora o procedimento da ponderação. O mais paradoxal nesse sincretismo teórico é que Alexy elabora sua teoria exatamente para ‘racionalizar’ a ponderação de valores, ao passo que, no Brasil, os pressupostos formais – racionalizadores – são praticamente desconsiderados, retornando às estratégias de fundamentação da jurisprudência da valoração. O direito constitucional, nessa medida, foi tomado pelas teorias da argumentação jurídica […]. Na maior parte das vezes, os adeptos da ponderação não levam em conta a relevante circunstância de que é impossível fazer uma ponderação que resolva diretamente o caso. A ponderação – nos termos propalados por seu criados , Robert Alexy – não é uma operação em que se colocam os dois princípios em uma balança e se aponta para aquele que ‘pesa mais’ (sic), algo do tipo ‘entre dois princípios que colidem, o intérprete escolhe um’ (sic). Importante notar que, no Brasil, os tribunais, no uso descriterioso da teoria alexyana, transformaram a regra da ponderação em um princípio. Com efeito, se na formatação proposta por Alexy, a ponderação conduz à formação de uma regra – que será aplicada ao caso por subsunção –, os tribunais brasileiros utilizam esse conceito como se fosse um enunciado performático, uma espécie de álibi teórico capaz de fundamentar os posicionamentos mais diversos […].”
Nesse viés, inicialmente, impõe-se realizar uma breve distinção entre o termo que é usado para denominar o princípio em análise – proporcionalidade – e outro que com frequência é empregado como seu sinônimo: a razoabilidade.
A similaridade dos significados das expressões que nomeiam os princípios em tela é um elemento que facilita o seu uso de modo equivalente. No entanto, esta utilização dos princípios como unívocos não se mostra adequada, porquanto existem elementos diferenciais entre a razoabilidade e a proporcionalidade que não podem ser desconsiderados. [54]
Assim, ressalta-se que a proporcionalidade distingue-se da razoabilidade, primeiramente, no que diz respeito a sua gênese, pois enquanto esta se origina na Carta Magna de 1215, na Inglaterra, tendo obtido sua consagração no direito norte-americano (Suprema-Corte), aquela foi projetada pelo direito alemão[55].
Ademais, destaca-se que estes dois princípios nasceram em famílias jurídicas diversas: a proporcionalidade surgiu no Civil Law, já a razoabilidade foi desenvolvida no Common Law[56].
Por fim, salienta-se que a proporcionalidade diferencia-se da razoabilidade pela sua estrutura, o que, por conseguinte, gera uma forma distinta de utilização no caso concreto. A averiguação da razoabilidade não se pauta em métodos específicos; consiste apenas em se examinar de uma forma mais “livre” e subjetiva se determinada medida não é excessiva. Por sua vez, o exame da proporcionalidade, devido à composição objetiva e sofisticada deste princípio, permite a utilização de parâmetros mais claros para a análise de certa medida restritiva. Na proporcionalidade averíguam-se a necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito dos meios escolhidos para os fins pretendidos (incluindo-se cogitação dos resultados)[57].
Realizada referida diferenciação, ingressa-se na análise da aplicação do princípio em voga como método de solução da problemática anunciada no início deste tópico.
A utilização do Princípio da Proporcionalidade como técnica de solução de colisões entre direitos fundamentais – neste trabalho, mais especificamente analisada para aplicação em conflitos entre direitos fundamentais e a autonomia privada nas relações de consumo –, ocorre por meio da apreciação sucessiva de cada um de seus subprincípios, que são: a) a adequação (geeignetheit), b) a necessidade (erforderlichkeit) e c) a proporcionalidade em sentido estrito (verhältnismässigkeit) [58].
O primeiro deles – o subprincípio da adequação, por vezes também denominado princípio da idoneidade ou princípio da conformidade[59] – determina que se investigue no caso concreto se a decisão normativa restritiva (o meio, a medida) do direito fundamental proporciona a conquista da finalidade almejada. Trata-se de perquirir se o meio é apto, útil, idôneo ou apropriado para atingir ou promover o objetivo desejado[60]. Será avaliada a relação meio-fim, isto é, se o meio selecionado contribui para a obtenção do fim almejado. Ou, conforme dispõe Alexy[61], o princípio da adequação diz que se determinada ação não é adequada para realizar a concretização de um determinado princípio, mas o é para restringir outro, então está proibida em relação a ambos os princípios. Aqui, a pergunta que deve ser respondida para se verificar se a medida limitadora é adequada ou não, é a seguinte: “o meio escolhido foi adequado e pertinente para atingir o resultado almejado?”[62]. Segundo George Marmelstein[63], caso a resposta seja notoriamente negativa, isto é, se for possível comprovar que o meio optado não é apto a obter o resultado pretendido, então é admissível a sua anulação pelo Poder Judiciário, com fulcro no princípio da proporcionalidade.
Ainda, ressalta-se que a medida não necessita realizar por completo a finalidade buscada, basta que a fomente, para que seja considerada válida[64].
Por fim, constata-se que a apreciação da adequação da relação meio-fim possui caráter empírico. Indaga-se se o meio utilizado é adequado, empírica e faticamente, para alcançar ou promover o objetivo pretendido[65].
O segundo – subprincípio da necessidade ou da exigibilidade –, por sua vez, exige que se analise se, entre os meios de restrição disponíveis e igualmente eficazes para atingir ou promover o fim pretendido, o selecionado é o menos restritivo ao(s) direito (s) fundamental (is) em debate[66].
Na exigibilidade ou necessidade, deste modo, será analisada a imprescindibilidade da medida e se há outro meio menos ofensivo de onde se possa obter igual eficácia, esses são os núcleos desse princípio. Por outro lado, apenas será possível mensurar a necessidade ou exigibilidade de determinada decisão judicial, de acordo com a análise do caso concreto, no qual será realisticamente avaliado o meio eleito para a perseguição do fim visado da norma e dá-se tanto qualitativamente quanto quantitativamente. [67] A questão que se impõe responder aqui é: “o meio escolhido foi o ‘mais suave’ ou o menos oneroso entre as opções existentes e, ao mesmo tempo, suficiente para proteger o direito fundamental em jogo?” [68]. Se a resposta for evidentemente negativa, ou seja, se for possível demonstrar que existem outras opções menos prejudiciais, a medida pode ser anulada pelo Judiciário[69]. Trata-se, portanto, de um exame comparativo, que aceita um ato estatal como necessário quando este se apresenta como o menos restritivo de determinado direito fundamental quando comparado com medidas igualmente hábeis a lograr a mesma finalidade[70].
O último subprincípio, por fim – o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito –, determina que os meios eleitos devam manter-se em uma relação razoável com o resultado objetivado[71]. Deste modo, para se aferir a proporcionalidade deve-se contestar a seguinte indagação: “o benefício alcançado com a adoção da medida buscou preservar valores mais importantes do que os protegidos pelo direito que a medida limitou?” Caso seja afirmativa a conclusão de tal questionamento, será legítima a limitação ao direito fundamental[72].
Nesse sentido, cumpre-se trazer à baila o entendimento de Virgílio Afonso da Silva[73]: “Para que uma medida seja reprovada no teste de proporcionalidade em sentido estrito, não é necessário que ela implique a não realização de um direito fundamental. Também não é necessário que a medida atinja o chamado núcleo essencial de algum direito fundamental. Para que ela seja considerada desproporcional em sentido estrito, basta que os motivos que fundamentam a adoção da medida não tenham peso suficiente para justificar a restrição ao direito fundamental atingido. É possível, por exemplo, que essa restrição seja pequena, bem distante de implicar a não realização de algum direito ou de atingir o seu núcleo essencial. Se a importância da realização do direito fundamental, no qual a limitação se baseia, não for suficiente para justificá-la, será ela desproporcional.”
Em suma, depreende-se que a proporcionalidade em sentido estrito proclama pela adequada proporção entre o meio utilizado e o fim cobiçado. O que significa dizer que o ônus imposto ao princípio sacrificado deve ser menor do que os benefícios concedidos ao prevalecente.
A partir do exposto, cumpre-se realizar um estudo acerca de que modo esta aplicação do princípio da proporcionalidade como instrumento de solução da problemática aqui abordada se realiza na prática, objeto do qual se ocupará o próximo ponto desta monografia.
2.2. Possibilidade de aplicação prática do Princípio da Proporcionalidade: análise crítica do Recurso Especial n. 1.312.887.
Neste item visa-se explicitar de que modo à estrutura metodológica adotada na presente pesquisa como possível solução do conflito entre diretos fundamentais e autonomia privada se processa concretamente. Para tanto, elegeu-se um julgado referente a uma colisão de direitos fundamentais em sentido amplo em uma relação jurídica privada de consumo, que, com base nos postulados teóricos desenvolvidos ao longo deste trabalho, será analisada e reconstruída a partir do princípio da proporcionalidade.
O julgado selecionado se trata de um acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em sede do Recurso Especial número 1.312.887/RS, em 05.04.2013 e assim ementado: “RECURSO ESPECIAL. EMPRÉSTIMO BANCÁRIO. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. POSSIBILIDADE. LIMITAÇÃO DA MARGEM DE CONSIGNAÇÃO A 30% DA REMUNERAÇÃO DO DEVEDOR. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. 1. Os descontos em folha de pagamento das prestações do contrato de empréstimo não podem ultrapassar 30% (trinta por cento) da remuneração percebida pelo devedor. 2. Preservação do mínimo existencial, em consonância com o princípio da dignidade humana. 3. Precedentes específicos da Terceira e da Quarta Turma do STJ. 4. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ – Resp. 1.312.887/RS – Órgão Julgador: 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJ 09.04.2013).”
O caso em apreço pode ser descrito desta forma: a demandante R.M.M., integrante das forças armadas, realizou contratos de mútuo feneratício com as instituições financeiras demandadas B.I., B.F., B.B., nos quais ficou pactuado que a requerente iria receber uma determinada quantia em dinheiro, a qual deveria ser restituída aos bancos, acrescida de juros, por meio de descontos em sua folha de pagamento, que somados equivaliam a 69,24% dos seus vencimentos mensais.
Ocorre, todavia, que a demandante começou a sentir que os referidos descontos lhe deixavam com rendimentos muito baixos, que inviabilizavam a sua sobrevivência, razão pela qual ingressou com uma ação judicial, com pedido de antecipação de tutela em face das financeiras contratadas para que as mesmas limitassem os descontos realizados no seu contracheque em 30% dos seus vencimentos líquidos.
O juízo “a quo” indeferiu o pedido de antecipação de tutela, o que deu azo à interposição de agravo de instrumento perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o qual, por sua vez, negou provimento ao recurso.
Tendo-se em vista isso, a requerente interpôs recurso especial junto ao Superior Tribunal de Justiça, o qual foi julgado, monocraticamente, pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Em sua decisão, o ministro asseverou que a demanda deveria ser abordada à luz do direito à dignidade da pessoa humana, relacionando-se com o fenômeno do superendividamento, que tem sido uma preocupação atual do Direito do Consumidor em todo o mundo, decorrente da imensa facilidade do crédito nos dias de hoje.
Discorreu que, embora os contratos financeiros em questão tivessem sido celebrados com a anuência da consumidora, no exercício dos poderes outorgados pela liberdade contratual, a autonomia privada não é absoluta em nosso sistema jurídico, devendo respeito a outros direitos, tais como o da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, considerou que se o desconto consumir parte excessiva da renda do consumidor, colocará em risco a sua subsistência e de sua família, ferindo o direito à dignidade da pessoa humana, o qual deveria prevalecer sobre a autonomia privada neste caso.
Dessa forma, deu provimento ao recurso especial para limitar os descontos referentes à soma dos empréstimos contratados ao percentual de 30% da remuneração da parte autora.
A partir desta breve exposição do caso, passa-se a analisar como este poderia ter sido resolvido caso lhe fosse aplicado como método de solução o princípio da proporcionalidade.
Nesse viés, primeiramente, observa-se que a problemática do caso em análise, embora não claramente mencionada pelo julgador, refere-se a uma colisão de direitos fundamentais em sentido amplo. Senão veja-se.
Consoante o § 3º, do artigo 14 da Medida Provisória nº. 2.215/10, tratando-se de integrante das forças armadas, como é o caso da requerente, é permitida a realização de consignações em sua folha de pagamento, até o limite de 70% de sua remuneração mensal bruta. Com amparo em tal dispositivo legal, as financeiras elaboraram um contrato – expressão de suas autonomias privadas – prevendo descontos na folha de pagamento da autora que, somados, correspondiam a 69,24% da sua renda mensal bruta.
Todavia, em que pese considere-se legítima a possibilidade das rés no exercício das referidas autonomias, determinarem nos contratos o percentual de desconto mencionado, destaca-se que, consoante o artigo 1º, inc. II, da Lei Maior, é assegurada a dignidade da pessoa humana, representada no litígio em tela na possibilidade da consumidora-requerente em poder dispor de recursos financeiros mínimos para poder manter uma existência digna.
Destarte, como mencionado, está-se diante de uma situação de colisão de direitos, na qual figura de um lado o direito à autonomia privada das financeiras e, de outro, o direito à dignidade da pessoa humana da requerente.
Conforme aludido no subcapítulo anterior, a resolução de um caso como o em pauta através do princípio da proporcionalidade, consiste em verificar se o ato impugnado atende aos subprincípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
Assim, passa-se a analisar a conformidade do ato questionado, o qual, na lide em comento, corresponde ao desconto mensal em folha de pagamento equivalente a quase 70% dos vencimentos da consumidora a título de pagamento da dívida, que esta mantinha com as demandadas, com as referidas elementares do princípio da proporcionalidade.
No que tange à adequação, observa-se que o referido abatimento mensal se encontra em consonância com ela. Tal entendimento deriva da compreensão de que esta ação atende a finalidade pretendida, qual seja o adimplemento das parcelas do débito da autora junto as rés.
No tangível ao segundo subprincípio, o da necessidade, verifica-se que os descontos questionados pela autora não estão em conformidade com ele, pois seria factível as rés adotarem outra atitude que restringisse menos o direito fundamental em voga. Nesse sentido, seria possível, por exemplo, as financeiras aumentarem o número de parcelas da dívida e diminuírem o seu valor mensal.
No que alude ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, por sua vez, constata-se que os descontos, nos percentuais efetuados, também não estão de acordo com ele. Não houve uma proporção entre o meio utilizado e o fim cobiçado, porquanto não se pode cogitar proporcional o adimplemento, na forma como fora pactuado, de uma dívida considerada pequena, para pessoas jurídicas de grande porte como as financeiras em questão, as quais possuem inúmeros outras fontes de renda, à custa da sobrevivência digna de sua devedora.
Assim, verifica-se que, nesta situação fática, o direito fundamental à dignidade da pessoa humana precede à autonomia privada.
A decisão proferida pela Corte em apreço, desse modo, mostrou-se acertada. Todavia, no tangível a sua fundamentação, cumpre-se destacar que nesta não foi contemplada a devida ponderação dos interesses envolvidos, por meio do princípio da proporcionalidade.
Portanto, compreende-se que, embora no acórdão analisado existam pertinentes fundamentações, este poderia, ainda, prever a apreciação pormenorizada do conflito entre direitos fundamentais em sentido amplo presente na lide, bem como a sua resolução através do Princípio da Proporcionalidade.
Dessa forma, ressalta-se que serão oportunos mais debates acerca da utilização do referido princípio, sobretudo como um método de resolução de conflitos entre direitos fundamentais e autonomia privada nas relações consumeristas, porquanto, como explicitado ao longo deste estudo, nestas, tal problemática ganha relevo ante a desigualdade das partes que a compõe.
Conclusão
No presente estudo buscou-se verificar a validade do Princípio da Proporcionalidade como instrumento de solução de conflitos entre direitos fundamentais e autonomia privada nas relações contratuais privadas de consumo.
Da realização desta análise, pôde-se extrair que os direitos fundamentais, inicialmente, possuíam como sujeito passivo unicamente o Estado, uma vez que este era tido como seu único transgressor. Porém, com as transformações sociais ocorridas ao longo do tempo, verificou-se que a violação a estes direitos passaram a se dar tanto pelo próprio aparato estatal quanto por parte de agentes privados e a doutrina começou a defender a possibilidade de incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Destacou-se, dentre as principais teorias que existem para explicar a forma de incidência dos direitos fundamentais nas relações privada, a teoria da eficácia mediata e a teoria da eficácia imediata.
Verificou-se quando da incidência destes direitos fundamentais em relações privadas contratuais, a ampla probabilidade de colisão entre os direitos fundamentais de um particular e a autonomia privada do outro.
Constatou-se que a tensão entre direitos fundamentais e autonomia privada ganha relevo nas relações privadas de consumo, porquanto nestas se evidência a capacidade de alguns particulares ferirem os direitos fundamentais de outros, uma vez que a relação de consumo é uma relação desigual, na qual o fornecedor é quem comumente detém a superioridade econômica, jurídica e técnica e, em razão disso, não raro ofende os direitos fundamentais da outra parte contratante, evidenciando-se, dessa forma, a necessidade da aplicação dos direitos fundamentais nessas relações (eficácia horizontal) e, por conseguinte, a resolução do conflito que se cria entre estes e a autonomia privada, pedra angular das relações intersubjetivas.
Como possível técnica de solução da aludida tensão, apontou-se o princípio da proporcionalidade.
Averiguou-se, por fim, que embora o Princípio da Proporcionalidade apresente-se como um instrumento de grande valia para a orientação do aplicador do direito na busca de um resultado racionalmente justificado, conforme preceitua a Constituição Federal (art. 93, inc. IX, da CF/88), este não foi devidamente prestigiado na decisão analisada nesta pesquisa.
Frente a todo o exposto, espera-se que este trabalho tenha contribuído para demonstrar a importância da utilização do Princípio da Proporcionalidade, especialmente como um método de resolução de conflitos entre direitos fundamentais e autonomia privada nas relações de consumo e, por conseguinte, a necessidade do aprofundamento de estudos acerca desse tema.
Advogada militante professora especialista em Direitos Fundamentais e Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS
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