Sumário: Introdução; 1. Disregard of Legal Entity. 1.1 Aspectos Materiais; 1.2 Aspectos Processuais; 2. Desconsideração da Personalidade da Pessoa Física; 3. A responsabilidade do art. 135 do CTN – o alcance da norma; 4. A Disregard of Legal Entity nos débitos fiscais não-tributários; 5. Aplicação retrospectiva da desconsideração da personalidade jurídica nas sociedades empresárias; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Não resta dúvida que o Direito, como ciência ética de regulação de conduta, tem por uma de suas principais finalidades a de distribuir responsabilidades, notadamente quando ocorre invasão prejudicial e não desejada na esfera jurídica de outrem, alvo do âmbito de proteção da própria lei.
E como a ciência jurídica é uma só, o princípio que dela emerge também é único, qual seja, surgida uma não-prestação surge com esta a sanção, diga-se com conteúdo proporcional de justiça real aristotélica, sendo esse o meio ético mais adequado aplicado pelos ordenamentos jurídicos, em destaque os evoluídos.
Para que não se torne inócuo o referido princípio surge a necessidade da adoção de instrumentos bastantes a assegurá-lo, mantendo vivo o espírito da lei de modo que o mesmo seja aplicado, não de maneira absoluta, mas tão-somente aonde interessa à própria lei. É dizer, o princípio da proporcionalidade é permeável a todos os princípios jurídicos, bem como a si mesmo.
Já no século XIX, na Alemanha e na Itália, há alguns indícios de aplicação da desconsideração da pessoa jurídica. No entanto foi no common low norte-americano que a doutrina ganhou maior notoriedade, daí nossa insistência em conservar o termo inglês que o indica, para homenagear suas origens.
A despeito de ensejar várias discussões em torno do que seja Disregard of Legal Entity, algo é salutar: cuida a doutrina de responsabilizar pessoa ou pessoas que usam direitos da personalidade de outrem para ferir a esfera jurídica de terceiros.
1. DISREGARD OF LEGAL ENTITY
Não é incomum no Direito Comercial falar-se em teoria maior e teoria menor de desconsideração da personalidade jurídica. Ora, nada tem de dificuldade em diferenciar ambas as teorias, apenas impondo dizer que a teoria maior exige, para autorizar a referida despersonalização, o dolo como integrante das relações entre o credor e o devedor, por seu representante e que a teoria menor não o exige.
Desconsiderar a personalidade jurídica é responsabilizar um terceiro por ato jurídico ou ato material realizado exclusivamente por outrem, pouco importando se aquele participou do inquinado ato, não querendo dizer com isso que a teoria em comento autoriza responsabilizar qualquer indivíduo pela dívida em questão, visto que a Disregard of Legal Entity é permeada pelo princípio mor da proporcionalidade, como já mencionado, sob pena de ser ilegítima sua aplicação, por óbvio.
1.1. ASPECTOS MATERIAIS
É farta a jurisprudência nacional nos exemplos de desconsideração da personalidade jurídica das empresas para responsabilizar os sócios nas relações trabalhistas, tributárias, consumeiristas, comercial, previdenciárias, ambientais, civis strito sensu, etc. Deve ser dito, ainda, que a doutrina em comento deve ser utilizada em caráter subsidiário e complementar, para, de fato, imperar a proporcionalidade constitucional, tanto quando há confusão fraudulenta do patrimônio, quanto ao abuso da lei ou estatuto social.
Quando o juiz desconsidera a personalidade jurídica não ocorre a extinção da pessoa jurídica. Há quem entenda que ocorre suspensão da personalidade jurídica durante o processo pelo órgão judiciário.
No entanto, entendemos que não ocorre qualquer mudança no estado da personalidade jurídica da empresa, posto que esta continua apta a exercer direitos da personalidade, inclusive os mesmos utilizados para figurar como parte processual, salvo na hipótese de dissolução irregular, em que a pessoa jurídica deixou de apresentar documentos obrigatórios às repartições competentes e por essa razão, a despeito de existir no mundo do direito, não existe no mundo dos fatos, havendo, nesse caso, suspensão da personalidade jurídica.
1.2 ASPECTOS PROCESSUAIS
O juiz brasileiro, quando presentes os requisitos que entender autorizadores para desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa, para que o quantum debeatur possa alcançar o patrimônio dos sócios, é imprescindível para dar efetividade ao mandamento constitucional de que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal, devendo o juiz do feito, mandar lançar o CPF do sócio no sistema da distribuição, intimando-o da decisão que o incluiu no pólo passivo da ação executiva ou ainda que seja no processo de conhecimento, na condição de litisconsorte ulterior, o que, aliás, o legitima a interpor agravo de instrumento, muito embora haja entendimento contrário.
Uma vez passado o prazo de interposição do recurso que desafia decisão interlocutória, o que deve ser certificado nos autos, acaso se trate de processo de execução, os eventuais embargos do por parte do mesmo, devem ser à execução e não de terceiro, posto que, agora é parte no feito.
Registrando, desse modo, ser desnecessário um novo processo de conhecimento para fazer com que o sócio venha a fazer parte do título executivo judicial ou extra-judicial, eis que garantido ao sócio o direito de defesa no prazo de lei, seja qual for o procedimento, e ademais, sob pena de transformar o processo em algo que não nasceu para ser, ou seja, distante da realidade.
Conste, por fim, que no caso do título executivo já formado por sentença, não há empecilho para desconsideração da pessoa jurídica na fase de execução, salvo se objeto da própria parte dispositiva do julgado, que assim, tenha sido alcançada pela coisa julgada material. Tratar-se-ia, na verdade, de alcance subjetivo do dispositivo da sentença, dentro do limite da coisa julgada.
2. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE DA PESSOA FÍSICA
Apesar de o assunto ser praticamente escasso na doutrina brasileira sobre esse tema e com esse ponto de vista, não é impossível falar-se na possibilidade de aplicação da disregard doctrine quanto às pessoas físicas, daí nosso entendimento sobre a sua aplicação no âmbito do processo de conhecimento, como, por exemplo, no caso de uma pessoa utilizar fraudulentamente os documentos de outra, o que na prática tornou-se conhecida como “laranja” para adquirir dívidas, inclusive advindas de crimes tributários.
Ademais, imaginemos um caso em que um determinado empregado doméstico, ao assinar vários formulários necessários à sua contratação, também assine aquisições de ações, utilizadas para lavagem de dinheiro. Ora, não aplicar a doctrine desregard nesses casos seria, na verdade, tornar inoperante tanto os processos de conhecimento, quanto de execução, visto que os atos processuais estarão formalmente concentrados em uma pessoa que nada tem com a fraude e que o verdadeiro devedor encontra-se longe do processo judicial.
3. A RESPONSABILIDADE DO ART. 135 DO CTN
É de grande importância a análise do conteúdo da norma esposado no art.135 do Código Tributário Nacional em razão de seu largo uso pelas Fazendas Públicas, para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, principalmente, em se tratando dos executivos fiscais.
O dispositivo está topograficamente localizado no capítulo V ( Responsabilidade Tributária), dentro da Seção III (Responsabilidade de Terceiros) do Código Tributário Nacional.
O Capítulo trata da responsabilidade tributária, sendo conveniente destacar o que vem a ser a acepção dos termos. Ora, “responsabilidade” é o termo utilizado para atribuir ao agente da relação jurídica a obrigação de arcar com a prestação, de dar, de fazer ou de permitir que se faça. A expressão “tributária” refere-se não somente ao tributo, mas também a obrigações que com eles estão conexas.
Pois bem, tangente à responsabilidade de terceiros, prevista na Seção III do Código, são dispostas as hipóteses em que alguém, alheio à titularidade da sujeição passiva, tem responsabilidade tributária para com a Fazenda Pública.
Tem as normas dos artigos 134 e 135 naturezas jurídicas materiais de Direito Tributário, cujo fundamento constitucional está assentado no art. 146 da Constituição Federal de 1988.
Diz o art. 135 do CTN:
“são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração à lei, contrato ou estatutos:
I- as pessoas referidas no artigo anterior;
II- os mandatários, prepostos e empregados;
III- os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”
No entanto, dentro dessas normas, a discussão mais movimentada gira em torno do inciso III, acima mencionado.
Atualmente, a jurisprudência do STJ pacificou o entendimento que o mero inadimplemento da obrigação tributária, desprovida de abuso de poder, fraude, de dissolução irregular da empresa ou confusão patrimonial, não enseja, por si só, a aplicação da disregard doctrine. Ademais, entendeu-se que a falência é modo regular de dissolução da pessoa jurídica.
Cabe ao interessado demonstrar os requisitos autorizadores da desconsideração da personalidade, mesmo no processo de execução.
Mas algo é salutar dizer: que a execução fiscal abrange os débitos inscritos em dívida ativa, sejam eles tributários ou não tributários, assim definidos em lei. De forma que, o presente dispositivo não pode fundamentar a desconsideração da personalidade jurídica com supedâneo no art. 135, III do CTN nas execuções de débitos não tributários, tal como ocorre nas multas trabalhistas e de FGTS, eis que o dispositivo menciona apenas “obrigações tributárias”.
Recentemente a 2ª Turma do STJ enfrentou a questão e decidiu:
AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 800.192 – PR (2005/0196642-3) RELATORA : MINISTRA ELIANA CALMON. AGRAVANTE : FAZENDA NACIONAL. PROCURADOR : RODRIGO PEREIRA DA SILVA FRANK E OUTRO(S). AGRAVADO : LAPALU E COMPANHIA LTDA. ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS. EMENTA. TRIBUTÁRIO – AGRAVO REGIMENTAL – RECURSO ESPECIAL – AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO (SÚMULA 282/STF) – EXECUÇÃO FISCAL PARA COBRANÇA DE MULTA POR INFRAÇÃO À CLT – REDIRECIONAMENTO CONTRA O SÓCIO DA EMPRESA: IMPOSSIBILIDADE – ART. 135 DO CTN: INAPLICABILIDADE. 1. Aplicável a Súmula 282/STF quando o Tribunal de origem não emite juízo de valor sobre a tese apresentada no recurso especial. 2. Em se tratando de execução fiscal para cobrança de débito não-tributário, não tem aplicação o art. 135, III, do CTN. 3. Agravo regimental não provido.
4. A DISREGARD OF LEGAL ENTITY NOS DÉBITOS FISCAIS NÃO-TRIBUTÁRIOS
Tudo indica que o art. 135, III, CTN foi fonte de inspiração para a construção do art. 50 do Código Civil.
Para os casos de aplicação da disregard doctrine quanto aos débitos não tributários, deve a decisão que o efetivar estar fundamentada no art. 50, do Código Civil, o qual reclama, inclusive o requerimento da parte, em homenagem ao princípio dispositivo do art. 2º, CPC.
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Quando da elaboração desse dispositivo, o projeto de lei a ele relativo, teve a preocupação de manter os objetivos vislumbrados pela teoria alienígena, permitindo ao Juiz, ainda que sem a necessidade de exame profundo do dolo, visto imperar a boa-fé objetiva nas respectivas relações, levantar o véu da independência da empresa.
Cabe dizer que, o abuso da personalidade jurídica se caracteriza por qualquer de uma dessas condutas, quais sejam, desvio de finalidade e confusão patrimonial.
Assim, desvio de finalidade significa dizer que a empresa praticou ato não previsto nas finalidades de seu contrato ou contrário à lei (com proporcionalidade) e confusão patrimonial, quando a empresa foi utilizada para proteger o patrimônio do sócio, ou seja, quando este aproveita-se da personalidade daquela para tornar impuníveis atos prejudiciais praticados por ele enquanto ente autônomo.
5. APLICAÇÃO RETROSPECTIVA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica nasceu com um propósito, ou seja, de evitar que a autonomia e independência da personalidade de um ente, sirva como escudo impunível de práticas ilícitas de outros.
Destarte, fundamenta a disregard doctrine, para os casos em que o sócio, na qualidade de particular ou ainda que seja como responsável em outra empresa, reste com seu passivo a descoberto, a possibilidade de se levantar o véu protetivo da personalidade da empresa da qual aquele é sócio e com esta possui patrimônio.
No entanto, se aquele for devedor, na mera qualidade de pessoa física, em por exemplo, indenizações por danos materiais advindas em razão de acidente de trânsito, ou dívidas do empregado doméstico, não há necessidade de se comprovar os requisitos exigidos pelos artigos 135 do CTN ou do art. 50 do CC, eis que, na peculiar situação, não há proporcionalidade constitucional para estas exigências, tendo em vista que as cotas que o sócio devedor possui junto ao ente serão tidas como meros bens de valores econômicos penhoráveis.
Apenas, deverá ficar intimado o representante da empresa, cujas cotas estarão em constrição, nomeando como depositário o próprio proprietário das mesmas, para que surtam os efeitos legais, garantindo-se aos demais sócios o direito de preferência sobre as mesmas para eventual arrematação.
CONCLUSÃO
Por ter conseguido, na prática, a efetivação de justiça ética e proporcional na satisfação das obrigações jurídicas, a disregard doctrine, desde sua origem, tem formado adeptos em vários ordenamentos jurídicos.
À medida em que evoluem as relações jurídicas, também devem evoluir os instrumentos de igual natureza que os efetivam. O que hoje se vê sobre a disregard doctrine é apenas o crescimento de um instituto plantado anos atrás, e que não se sabe até onde poderá crescer.
Procurador da Fazenda Nacional
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