Resumo: Considerando que a Emenda Constitucional, promulgada pelo Congresso Nacional em 13 de julho de 2010, proporcionou a dissolução do casamento pelo divórcio imediato, independente de culpa, motivação ou da prévia separação judicial, é correto afirmar que ocasionou um avanço nas relações familiares, face à impossibilidade de interferência estatal na autonomia de vontade privada e o pleno respeito à dignidade da pessoa humana. Contudo, esta Monografia tem como objetivo demonstrar a extinção do instituto da separação judicial antigamente previsto no art. 226, §6° da Carta Magna de 1988, realizando uma análise sobre a interferência mínima do Estado no Direito Matrimonial face ao direito de liberdade previsto no ordenamento jurídico pátrio, como um direito fundamental a todo e qualquer ser humano. Diante de todo exposto, objetiva-se analisar a controvérsia e complexidade da questão com base em levantamento bibliográfico de doutrinadores e renomados trabalhos nacionais publicados via internet, bem como uma breve pesquisa jurisprudencial sobre esta problemática, tendo em vista a discussão de um tema contemporâneo.
Palavras- Chave: Divórcio. Relações Familiares. Dignidade da Pessoa Humana. Direitos Fundamentais. Liberdade. Estado.
Abstract: Whereas the Constitutional Amendment, enacted by Congress on July 13, 2010, provided the dissolution of marriage by divorce immediately, regardless of fault, motivation or prior judicial separation, it is fair to say that caused a breakthrough in family relationships, given the failure to state interference in the autonomy of private will and full respect for human dignity. However, this monograph aims to demonstrate the extinction of the ancient institution of legal separation under art.226, § 6 of the 1988 Constitution. Search also perform an analysis of the minimal state interference in Matrimonial Law against the right of freedom in the legal parental rights as a fundamental right to every human being. With all the above, the objective is to analyze the controversy and complexity of the issue based on bibliographic research scholars and renowned national studies published over the Internet, as well as a brief survey of jurisprudence on this issue in order to discuss a contemporary theme.
Keywords: Divorce. Family Relations. Dignity of the Person Human. Fundamental Rights. Freedom. state
Sumário: Introdução – 1. Noções conceituais – 1.1. Acepções de família – 1.2. Conceito de divórcio – 1.3. O afeto nas relações matrimoniais – 2. Dissolução do casamento: antes e depois da emenda constitucional n. 66/2010 – 2.1. A lei n.6.515/77 e sua aplicabilidade – 2.2. As inovações da ec 66/2010 – 2.2.1. A extinção do instituto da separação do ordenamento – 2.2.2. Controvérsias doutrinárias – 3. Dignidade da pessoa humana e suas influências na emenda do divórcio – 3.1. A dignidade da pessoa humana como núcleo existencial – 3.1.1. Acepções de dignidade da pessoa humana – 3.2. Influências na emenda do divórcio – 3.3. Princípio da privacidade e da intimidade – 3.4. A extinção da culpa no casamento – 4. A interferência mínima do estado no direito matrimonial – 4.1. O direito de liberdade como direito fundamental – 4.2. O estado democrático de direito e a não intervenção do estado – conclusão.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa científica, sob a ótica do cenário moderno, no que concerne ao Direito de Família, observou que cada vez mais se torna necessária uma tutela jurídica que respeite a liberdade individual, manutenção e dissolução da relação denominada família como direito da pessoa humana. Assim, o respeito com os direitos fundamentais, inclusive os direitos individuais de liberdade, privacidade e intimidade, inclusive o sentimento de afeto recíproco não podem ser perturbados pelo prevalecimento de interesses patrimoniais que tem atingido a repersonalização das relações familiares.
O objetivo geral desta monografia é traçar as modificações implementadas pela EC n. 66/10 e seus efeitos à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e, ainda, da Intervenção Mínima do Estado na vida dos que tem o desejo de dissolver o casamento. Tem-se, ainda, como objetivo principal da pesquisa: conceituar família e arrazoar sobre a dissolução do vínculo conjugal; demonstrar a heterogeneidade de interpretação a respeito da Emenda do Divórcio, inclusive no que se refere à exclusão do instituto da separação judicial; e, por fim, compreender a evolução legislativa do ordenamento pátrio baseada no princípio da interferência mínima do Estado a fim de respeitar a dignidade da pessoa humana de cada um.
O método de abordagem dedutivo utilizado foi o que traçou a pesquisa bibliográfica antiga e contemporânea e, ainda, a jurisprudência pátria, apesar de escassa, também foi priorizada através das técnicas de Documentação Indireta.
Por conseguinte, o presente ramo do Direito Civil, compreende o estudo dessa inovação jurídica com a Emenda Constitucional n. 66/2010, que possibilitou a celeridade e economia processual dos jurisdicionados. Além disso, nos faz compreender o verdadeiro sentido da família no decorrer do tempo no âmbito jurídico. E, ainda, suas várias formas, até mesmo já refletidas em texto normativos como o Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Civil de 2002 e nossa Carta Magna de 1988.
Assim, naquilo que é foco do presente trabalho, a interferência no mundo jurídico da dignidade da pessoa humana na Emenda do Divórcio, atentando-se para o afeto, o mais novo elemento, considerando e analisando sua imperativa importância no âmbito familiar. E é sobre este enfoque que se debruça a pesquisa que se segue.
É de suma importância iniciar esse trabalho abordando as noções iniciais das relações familiares dentre elas: o conceito de família, sua evolução histórica até a formação e dissolução da família contemporânea. O Direito de Família, contingente com a vida, está longe de ser estático, o que caso contrário traria como resultado de um imobilismo que contraria a evolução da civilização e da sociedade. A família, dessa forma, é o guia de todo esse estudo.
Doutrinariamente há várias acepções para o conceito de Família, já que a Constituição Federal de 1988, ou mesmo as anteriores, não a conceituou expressamente em seu texto constitucional.
A família é o lócus básico de estruturação dos indivíduos, ensinando-lhes valores, formando-o para as futuras relações com a sociedade, impactando-o de forma positiva ou negativa, mas definitivamente influenciando a sua constituição enquanto pessoa é importante refletir sobre como mudanças/reformas legislativas têm impactado nas relações que são estabelecidas entre seus membros.
Inicialmente, o conceito de família pode ser interpretado como um grupo de pessoas ligadas por descendência (demonstrada ou estipulada) a partir de um ancestral comum, matrimônio ou adoção, ou até mesmo por vínculo afetivo[1].
Sob um enfoque histórico, o termo família é derivado do latim famulus, que significa escravo doméstico. Este termo foi criado na Roma Antiga para designar um novo grupo social que surgiu entre as tribos latinas, ao serem introduzidas à agricultura e também escravidão legalizada.
No direito romano clássico a família natural cresce de importância – esta família é baseada no casamento e no vínculo de sangue. A família natural é o agrupamento constituído apenas dos cônjuges e de seus filhos. A família natural tem por base o casamento e as relações jurídicas dele resultantes, entre os cônjuges, e pais e filhos. Se nesta época predominava uma estrutura familiar patriarcal em que um vasto leque de pessoas se encontrava sob a autoridade do mesmo chefe, nos tempos medievais (Idade Média), as pessoas começaram a estar ligadas por vínculos matrimoniais, formando novas famílias. E, dessas novas famílias fazia também parte a descendência gerada que, assim, tinha duas famílias, a paterna e a materna.
Com a Revolução Francesa surgiram os casamentos laicos no Ocidente e, com a Revolução Industrial, tornaram-se frequentes os movimentos migratórios para cidades maiores, construídas em redor dos complexos industriais. Estas mudanças demográficas originaram o estreitamento dos laços familiares e as pequenas famílias, num cenário similar ao que existe hoje em dia. As mulheres saem de casa, integrando a população activa, e a educação dos filhos é partilhada com as escolas. Os idosos deixam também de poder contar com o apoio direto dos familiares nos moldes pré-Revoluções Francesa e Industrial, sendo entregues aos cuidados de instituições de assistência. Na altura, a família era definida como um “agregado doméstico (…) composto por pessoas unidas por vínculos de aliança, consanguinidade ou outros laços sociais, podendo ser restrita ou alargada”.[2]
Nesta definição, nota-se a ambiguidade motivada pela transição entre o período anterior às revoluções, representada pelas referências à família alargada, com a tendência reducionista que começava a instalar-se reflectida pelos vínculos de aliança matrimonial.
Na cultura ocidental, uma família é definida especificamente como um grupo de pessoas de mesmo sangue, ou unidas legalmente (como no casamento e na adoção). Muitos etnólogos argumentam que a noção de sangue como elemento de unificação familiar deve ser entendida metaforicamente. A família poderia, assim, se constituir de uma instituição normalizada por uma série de regulamentos de afiliação e aliança, aceitos pelos membros.
Engels faz uma ligação da família com a produção material, utilizando do materialismo-hitórico-dialético, relacionou a monogamia como "propriedade privada da mulher".[3]
Em uma trajetória mais contemporânea, de acordo com Caio Mário, família em sentido genérico e biológico “é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum; em senso estrito, a família se restringe ao grupo formado pelos pais e filhos; e em
sentido universal é considerada a célula social por excelência”. [4]
Monteiro entende que o que identifica a família:
“(…) é um afeto especial, com o qual se constitui a diferença específica que define a entidade familiar. È o sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio diuturno, em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum, que conjuga suas vidas tão intimamente, que as torna cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua afeição, até mesmo gerando efeitos patrimoniais, seja de patrimônio moral, seja de patrimônio econômico. Este é o afeto que define a família: é o afeto conjugal.”[5]
Já Gonçalves traz a acepção de família de uma forma abrangente como “todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral comum, bem como unidas pela afinidade e pela adoção”. E também de uma forma mais específica como, “parentes consanguíneos em linha reta e aos colaterais até o quarto grau”. [6]
Todavia, a família vem-se transformando através dos tempos, acompanhando as mudanças religiosas, econômicas e sócio-culturais do contexto em que se encontram inseridas. Esta é um espaço sócio-cultural que deve ser continuamente renovado e reconstruído; o conceito de próximo encontra-se realizado mais que em outro espaço social qualquer, e deve ser visto como um espaço político de natureza criativa e inspiradora.
Assim, a família deverá ser encarada como um todo que integra contextos mais vastos como a comunidade em que se insere. De encontro a esta afirmação, a família é um “sistema de membros interdependentes que possuem dois atributos: comunidade dentro da família e interacção com outros membros”.[7]
Nota-se que, em pesquisa realizada sobre a evolução da família, até o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era extremamente taxativo, pois o Código Civil Brasileiro anterior, datado de 1916, conferia o status de família aqueles grupos originados do instituto do matrimônio, trazendo uma estreita visão de família. Além disso, o modelo único de família era caracterizado como um ente fechado, onde a felicidade pessoal dos seus integrantes, na maioria das vezes, era a única preocupação na manutenção do vínculo familiar a qualquer custo.
Assim, acreditavam que se Deus uniu o homem, não poderia separar; daí porque se proibía o divórcio e se punia severamente o cônjuge tido como culpado pela separação judicial. Eis aqui a grande diferença entre as famílias arcaicas e a família moderna, bem como sua evolução.
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) inovou, em seu art. 5°, II, ao mencionar o conceito de família como “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” [8].
Desse modo, em uma acepção moderna, família pode ser conceituada sobre a ênfase de que tanto o grupo de pessoas com mesmos laços sanguíneos (pais e filhos, e.g.) ou unidos pelo vínculo da afetividade (casamento, união estável, união homoafetiva, e.g.) podem se enquadrar dentro deste instituto. Isso significa dizer que, família é a base de toda sociedade e o Estado, nas suas funções legislativas e jurisdicionais, é quem organiza esses grupos, claro que com respeito aos direitos fundamentais, principalmente a dignidade da pessoa humana.
Dias[9], especialista em Direito de Família e Sucessões e fundadora do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família – sabiamente, enfatiza sobre as transformações sociais que ocorrem nas famílias:
“A família apesar do que muitos dizem, não está em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais. Houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor. Ao Estado, inclusive nas suas funções legislativas e jurisdicionais, foi imposto o dever jurídico de implementar medidas necessárias e indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias”.
Dessa forma se observa que, com a evolução social, o conceito de família evoluiu abolindo seu conceito patriarcal e hierárquico, no intuito de adequar-se aos novos costumes da sociedade, inclusive com as novas formas de casamento e a possibilidade do divórcio, como se verá a seguir.
1.2 CONCEITO DE DIVÓRCIO E FORMAS DE EXTINÇÃO DO VÍNCULO CONJUGAL
Assim como as pessoas possuem a intenção de constituir uma família através do
matrimônio, elas também têm direito a dissolver esse instituto por via do divórcio.
A origem do termo divórcio está ligada a medida dissolutória do vínculo matrimonial válido, importando, por consequência, na extinção de deveres conjugais. Assim, o autor Gagliano conceitua o divórcio vigente no ordenamento jurídico brasileiro como sendo “uma forma voluntária de extinção da relação conjugal, sem causa específica, decorrente de simples manifestação de vontade de um ou de ambos os cônjuges, apta a permitir, consequentemente, a constituição de novos vínculos matrimoniais" [10].
Até o advento da Lei 1.144/1861, que permitiu o casamento de não católicos, o casamento religioso era o único que produzia efeitos nos Brasil. O casamento religioso foi substituído pelo casamento no civil, pelo Decreto 181/1890, que utilizou o termo divórcio no sentido de separação de corpos, mas foi revogado pelo Decreto 11/91. Foi na Constituição Federal de 1934 que criou-se o casamento religioso com efeitos civis, regulada pela Lei 397/37.[11]
Nota-se em pesquisa da legislação anterior que apenas com a Emenda Constitucional 9/77, tornou-se possível a dissolução do vínculo matrimonial através do divórcio, regulamentado pela Lei 6.515/77.
Trinta anos depois, com o advento da Lei 11.441/07, o ordenamento jurídico inovou ainda mais possibilitando a realização do divórcio através dos Cartórios de Notas – via extrajudicial – o que desburocratizou o processo e fez aumentar as separações. E, atualmente, em 2010 com a Emenda Constitucional 66, se possibilitou a extinção da separação judicial para realizar o divórcio diretamente, independente do tempo em que estão separados.
Dessa forma, o próprio Código Civil Brasileiro dispõe em seu artigo 1.571, §1°, que “o casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente”. Dessa forma, o divórcio é a dissolução de um casamento válido, ou seja, a extinção do vínculo matrimonial, que se opera mediante sentença judicial, habilitando as pessoas a realizarem novas núpcias.
Nesse entendimento, Diniz destaca que “o divórcio é uma permissão jurídica colocada à disposição dos consortes, logo, nenhum efeito terá a cláusula, colocada em pacto antenupcial, em que os cônjuges assumam o compromisso de jamais se divorciarem” [12].
E, mais, sob uma visão jurídico-filosófica a autora Moraes, citada por Pereira, destaca que “a relação de casamento é, juridicamente, uma relação simétrica e solúvel entre pessoas iguais. Se, por circunstancias que não cabe ao direito investigar, não está ocorrendo o que se espera de uma relação conjugal, a solução é a sua dissolução. Assim, a separação do casal em virtude da ruptura da vida em comum é o único remédio razoável, servindo como meio apaziguador do conflito” [13].
Vale concluir que a premissa da qual partimos para o estudo do instituto do divórcio é o casamento válido, pois, se não o for, o desate da questão será na seara das nulidades, e afigura-se juridicamente impossível o pedido de divórcio em face de um casamento inválido.
1.3 O AFETO NAS RELAÇÕES MATRIMONIAIS
Entre as tribos, na origem do povo romano, a atração natural de um indivíduo a outro se dizia affectio ou affectus, que traduzem a ideia de ser feito um para o outro. Mas, é possível notar que a família, atualmente, vem se modificando e, conforme o pensamento de Paulo Lôbo:
“Como a crise é sempre perda dos fundamentos de um paradigma em virtude de outro, a família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida”[14].
Assim, no direito de família, como sendo um instituto mutável e que pode se transformar atendendo aos anseios sociais, a família contemporânea é função essencial á afetividade. Dessa forma, a constituição ou a dissolução de uma família não depende somente de leis organizadas pelo Estado de Direito, mas da vontade das partes envolvidas, como forma de autonomia da vontade e da garantia do direito fundamental de liberdade individual.
Destarte, conforme ensinamento de Leonardo Barreto:
“Sem dúvida alguma, é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CRFB/88) o principal marco de mudança do paradigma da família. A partir dele, tal ente passa a ser considerado um meio de promoção pessoal dos seus componentes. Por isso, o único requisito para a sua constituição não é mais jurídico e sim fático: o afeto. Nessa esteira, observa-se que a entidade familiar ultrapassa os limites da previsão jurídica (casamento, união estável e família monoparental) para abarcar todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o elemento afeto (affectio familiae). Em outras palavras, o ordenamento jurídico deverá sempre reconhecer como família todo e qualquer grupo no qual os seus membros enxergam uns aos outros como seu familiar”[15].
Em resumo ao entendimento do autor nota-se que a família atual é regida, principalmente, pelo afeto existente entre os seus membros e isso implica dizer que, independente de leis ou normas, o mais importante é que enquanto houver afeto sempre existirá o instituto da família – sempre existirá amor, pois ele quem move o vínculo conjugal.
II. DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010.
Como já dizia Maria Helena Diniz: “Todo mundo quer acreditar que o amor é para sempre. Mas não adianta, é infinito enquanto dura”.[16]
No princípio era o desquite. A partir de 26 de dezembro de 1977, com a Lei do Divórcio sancionada pelo Presidente Ernesto Geisel em plena ditadura militar, sob pressão popular, todos os casais que não quisessem mais ficar juntos podiam manifestar seu desejo perante um juiz. Dessa forma, a lei atendeu a uma demanda crescente de homens e, principalmente, de mulheres insatisfeitas com suas escolhas sentimentais. Mas foi, ao mesmo tempo, o avanço para uma das maiores mudanças de comportamento do brasileiro [17]. Vinte e três anos depois, a Emenda Constitucional 66/2010 vêm trazer mais uma inovação no ordenamento jurídico em busca da celeridade processual, que é a extinção da separação judicial, possibilitando o divórcio direto.
2.1 A LEI N. 6.515/1977 E SUA APLICABILIDADE
Para compreender efetivamente o instituto do divórcio na atualidade – após Emenda Constitucional – é preciso entender como se deu a sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que um longo caminho foi percorrido para chegar ao ponto atual.
Gagliano sabiamente vislumbra quatro fases da evolução histórica do divórcio no Brasil: ausência de divórcio; possibilidade jurídica do divórcio, como requisito prévio a separação judicial; ampliação da possibilidade do divórcio, seja pela separação judicial seja pelo divórcio direto; e, o divórcio como direito potestativo.[18]
Antes da Lei do Divórcio, a ausência de divórcio e a grande resistência jurídica à extinção do vínculo conjugal pairavam sobre o ordenamento, somente admitindo no caso de morte ou reconhecimento de nulidade do matrimônio[19]. Esse fato ocorreu tendo em vista a forte influencia da Igreja Católica sob a legislação brasileira da época. Mas, nota-se que atualmente a nossa Carta Magna de 1988 adotou o estado laico, ou seja, a liberdade de crença e religião individual de cada um.
A segunda fase histórica, dimensionada por Gagliano, começa com o vigor da Lei 6.515/77 que ocorreu em 26 de dezembro de 1977, antes mesmo da atual Constituição da República Federativa do Brasil, disciplinando a separação judicial, a guarda dos filhos, a isonomia da filiação e o uso do nome, substituindo assim todos os dispositivos relacionados a esse tema referente ao Código Civil de 1916.
Gagliano, ainda, remonta que “a separação judicial, forma de extinção da sociedade conjugal sem dissolução do vínculo matrimonial, passou a constituir um requisito para o exercício do chamado divórcio indireto (divórcio por conversão)”[20], passando a requisito necessário e prévio, para o pedido posterior de divórcio, um prazo de 03 (três) anos, tendo em vista que a Constituição vigente na época era de 1967.
Mesmo antes da Lei 6.515/77, a sociedade matrimonial já se distanciava do modelo do outro século e, aos poucos, a universalidade de comunhão de bens cedeu espaço pela parcialidade de comunhão patrimonial, fato que se ocorreu, enfim, pela Lei do divórcio. Dessa forma, veio esta Lei alterar o regime legal unicamente adotado, mas não deixando de existir, caso os nubentes optassem pelo regime da comunhão universal, antes da celebração, por meio de pacto antenupcial. (BRASIL, 1977).
A terceira fase da evolução do dívórcio tem como ponto principal a promulgação da Carta Magna de 1988, vigente atualmente, que possibilitou o divórcio direto sem impedir o anterior. Isso significa que, após a CF/88, com a separação de corpos (separação de fato) dos cônjuges por pelo menos 02 (dois) anos, possibilitaria intentar o divórcio diretamente, sem a necessidade de propor a separação judicial primeiro para a posteriori ser convertida em divórcio.[21]
Com a inovação da Lei do Divórcio, lembra Amorim e Oliveira:
“Sua introdução no sistema jurídico brasileiro deu-se com a Emenda Constitucional n. 9, de 28 de junho de 1977, que alterou o art. 175 da Constituição Federal de 1969 (Emenda n.1), rompendo a antiga tradição do casamento indissolúvel. Veio de maneira tímida, possibilitando apenas a conversão do divórcio de separação judicial há mais de três anos, e o divórcio direto para os casos transitórios de separação de fato há mais de cinco anos.”[22]
Pereira, sabiamente, nos ensina em que constitui a separação de fato entendendo que ela
“(…) ocorre quando os cônjuges fazem cessar a vida em comum, por mútuo acordo ou decisão unilateral, sem que haja a intenção do Poder Judiciário para dissolver a sociedade ou o vínculo conjugal. Por configurar uma situação em que os cônjuges se colocam com frequência, merece a devida atenção, principalmente no que se refere aos reflexos que opera nos deveres conjugais”[23].
Nota-se que, após um grande movimento da sociedade para acabar com a indissolubilidade do casamento, a Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) instituiu o sistema dualista no ordenamento jurídico brasileiro, passando a coexistir a separação judicial (antigo “desquite”) e o divórcio. No entanto, para dissolver o vínculo matrimonial era necessário que a pessoa, primeiramente, se separasse judicialmente para só então, após transcorrido o lapso temporal exigido por lei, pudesse obter o divórcio.
Enfim, esse sistema durou até a entrada em vigor da EC n. 66/10 – Emenda Constitucional do Divórcio – o que Gagliano denominou de “simples exercício de um direito potestativo”[24] a qual é fruto dessa pesquisa e conforme veremos em seguida, no tópico posterior.
2.2 AS INOVAÇÕES DA EC N. 66/2010
Uma Emenda Constitucional é a modificação de certos pontos cuja estabilidade o legislador constituinte não considerou tão grande quanto outros mais valiosos, se bem que submetida a obstáculos e formalidades mais difíceis que os exigidos para a alteração das leis ordinárias. A rigidez e, portanto, a supremacia da constituição repousa na técnica de sua reforma, que importa em estruturar um procedimento mais dificultoso, para modificá-la.[25]
A Emenda Constitucional n. 66/2010 (Projeto de Emenda Constitucional n. 28, de 2009), a anteriormente denominada “PEC do Divórcio”, modificou o §6° do art. 226 da Constituição Federal de 1.988, passando a ter a seguinte redação: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, determinando uma verdadeira revolução na disciplina do Divórcio no Brasil”. (BRASIL, 2010).
A proposta desta Emenda foi sugerida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), entidade que congrega magistrados, advogados, promotores de justiça, psicólogos, psicanalistas, sociólogos e demais profissionais que atuam no âmbito jurídico e social das relações de família, bem como na resolução de seus conflitos. Assim, esta Emenda tem dois pontos fundamentais: extinção da separação judicial e inexigibilidade de prazo de separação de fato para a dissolução do vínculo matrimonial.
Com a alteração da norma constitucional, o único modo de dissolver o casamento é por meio do divórcio, quer de forma consensual, quer por meio da ação litigiosa. E, se os cônjuges não tiverem pontos de discordância nem filhos menores, podem obter o divórcio sem a intervenção judicial, pois é possível levá-lo perante um Cartório de Notas (via extrajudicial) de todo o País e lavrar escritura pública de divórcio, conforme o Código de Processo Civil Brasileiro dispõe em seu artigo 1.124-A. Dessa forma, ainda que permaneça no Código Civil (art.1.571 a 1.578, CC) o instituto da separação judicial, fica claro que a separação desapareceu do ordenamento jurídico.
De consequência, tem por revogados os artigos 1.572 a 1.578, do Código Civil, que tratam das formas de separação judicial e seus efeitos, também o artigo 1.580, que trata da conversão da separação em divórcio e do divórcio direto. A revogação dos artigos 1.572 a 1.578 é evidente, pois desaparecendo a separação judicial, não há mais que se falar nas hipóteses em que tinha cabimento, tampouco nos respectivos efeitos. (BRASIL, 2002).
No que tange ao artigo 1.580 do Código Civil, ainda que trate do divórcio, também deve ser tido por revogado, eis que refere especificamente aos prazos para o divórcio direto e indireto (por conversão da separação judicial), estabelecidos na própria norma constitucional objeto da emenda. (BRASIL, 2002).
Suprimida a separação judicial e consolidando-se o divórcio como a única possibilidade de dissolução voluntária do casamento, deixam de existir as figuras do divórcio por conversão e do divórcio direto, não havendo, pois, que se estabelecer regras ou prazos diferenciados para uma ou outra situação.
Outra significativa mudança, operada pela EC n. 66/10, foi quanto à supressão do prazo de separação de fato para efeitos de divórcio direto. Vale salientar que o divórcio passa a caracterizar-se como um direito potestativo a ser exercido por qualquer dos cônjuges, independendo de prazo para caracterizar a falência da vida em comum, ou seja, é um direito subjetivo que impede qualquer contestação.
Novo aspecto benéfico da norma é sua incidência no âmbito processual, a celeridade que traz para o sistema é notável, embora, o que decide o tempo da tramitação em maior parte seja a complexidade intrínseca da ação particular, filhos, partilha do patrimônio familiar, alimentos, definem a extensão do decorrer da lide, mas ressalte-se que nem todas são tão complexas e para estas o procedimento correrá como deveria de ser, rápido, com a resposta pronta ao interesse em tempo razoável, respeitando o disposto na Emenda 45/2004.
Nascimento e Cardozo, que elogiam a mudança, haveria economia patrimonial e moral:
“Além de desburocratizar a desconstituição do enlace matrimonial, a mudança vai gerar grande economia para o brasileiro, que não mais terá que gastar por duas vezes com despesas processuais, cartorárias e honorários de advogado. Ophir Cavalcante, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), destacou essa vantagem dizendo que: "Não há sentido algum que o cidadão tenha que despender custos com a separação judicial e depois gastos adicionais com o divórcio em si. É como se o Estado cartorializasse uma relação que já poderia ter sido encerrada em um primeiro momento". A economia também é moral, pois o divórcio imediato evitará dor e sofrimento para as partes e para os filhos, os maiores prejudicados com a situação”.[26]
O resultado ao Judiciário é que se livrará de uma parcela de trabalho que o paralisa, pois estes dois mundos, o social e o jurídico, devem seguir concomitantemente as linhas traçadas pelo outro.
Por fim, o beneficio a que sua visão teleológica tenha passado despercebida, a maturação de uma sociedade que carece de responsabilidade e se despir de dogmas e preconceitos. O rompimento de preconceitos é uma constante histórica e continua viva em relação a falência do casamento, prova de tal argumento são as criticas contra a emenda 66/2010 de fundamentação religiosa e social.
A relativização de tal preconceito é alvo da norma, uma vez que seu propósito é atender a demanda social e ratificar a tolerância com novos tipos de constituição familiar que são produto e tendência contemporânea. A responsabilidade enquanto facilidade para o desfazimento do vínculo matrimonial suscitará com o tempo reflexão sobre o ato que uma vez executado, não há mais arrependimento, estará feito – ao contrário do que acontecia na separação, que permitia através de simples petição o retorno ao status quo como casados.
Posteriormente, somente novo casamento irá restabelecer o vínculo, gerando gastos pecuniários, da intimidade, e gastos, geram ponderação, embora num primeiro momento, o efeito possa ser mesmo uma avalanche de divórcios, reforçado ainda pela conversão dos processos que ainda tramitam pela separação e que irão demonstrar a efetividade do novo preceito, numa escala que tende com o tempo a restabelecer-se e fluir estavelmente. Todavia, caso se elevarem os índices de divórcios que concomitante acompanhe o índice de satisfação pessoal e da felicidade do povo, que a essência implícita se concretizara.
Contudo, observamos que a Emenda 66/2010 proporcionou a dissolução do casamento pelo divórcio imediato, independente de culpa, motivação ou da prévia separação judicial, ocasionando, assim, um avanço nas relações familiares, face à impossibilidade de interferência estatal na autonomia de vontade privada e o pleno respeito à dignidade da pessoa humana.
2.2.1 A extinção do instituto da separação do ordenamento
Uma análise mais detida do tema revela que separação e divórcio são institutos jurídicos que têm objetos diversos. Cabe então aqui demonstrar doutrinariamente o objeto da separação judicial.
Segundo a observação de Câmara:
“O procedimento de separação consensual pode ser definido como o procedimento adequado para os casos em que os cônjuges pretendam obter a homologação de um negócio jurídico bilateral, destinado a desfazer a sociedade conjugal, mantendo-se íntegro, porém, o vínculo matrimonial. Modifica a relação jurídica matrimonial (mas não a extingue), pondo fim aos deveres de coabitação e de fidelidade recíproca, bem como ao regime de bens do casamento”[27].
Nas palavras de Gagliano:
“A separação judicial é instituto menos profundo do que o divórcio. Com ela, dissolve-se, tão-somente, a sociedade conjugal, ou seja, põe-se fim a determinados deveres decorrentes do casamento como o de coabitação e o de fidelidade recíproca, facultando-se também, em seu bojo, realizar-se a partilha patrimonial.”[28]
De uma forma mais específica, Montenegro Filho entende que
“A separação judicial tem por escopo pôr fim à sociedade conjugal, originando as consequências previstas nos arts. 1.575 e 1.576 do CC, a saber: (a) separação de corpos; (b) partilha de bens; (c) afastamento dos deveres de co-habitação; (d) afastamento do dever de fidelidade recíproca; (e) término do regime de bens, remanescendo o vínculo matrimonial, o dever de guarda e de educação dos filhos.”[29]
Com as acepções de separação judicial e com o advento da EC n. 66/10 suprimiu-se o requisito anteriormente vigente de que se observasse uma separação judicial, por mais de um ano, ou uma separação de fato, por mais de dois anos, para que possa o casamento ser dissolvido pelo divórcio. A justificativa do respectivo Projeto de Emenda Constitucional fazia referência a uma intenção de se extinguir totalmente os processos de separação judicial.
Todavia, instalou-se uma relevante controvérsia doutrinária, no que diz respeito à possibilidade jurídica de se formular em juízo um pedido de simples separação e não de divórcio.
Assim, com a referida Emenda, houve doutrinadores que entenderam que a reforma constitucional em questão revogou completamente os dispositivos legais que tratavam por volta da separação judicial. Em contrapartida, passou-se a defender a ideia de que seria juridicamente impossível e desnecessário o pedido de separação judicial. E, dentre essas correntes, há aquela na defesa de que a separação permanece, mas se extingue a culpa no âmbito do matrimônio. Veremos a seguir mais detalhadamente.
2.2.2 Controvérsias Doutrinárias
A primeira corrente denominada de abolicionista é a corrente adotada pelos membros do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família)[30] e que defende a posição de eliminação dos requisitos do divórcio e a própria separação judicial, inclusive a imputação da culpa pelo fim do casamento. Justifica-se o posicionamento dessa corrente tendo em vista a inutilidade e desvantagem para os jurisdicionados da manutenção da separação judicial.
Veloso, adepto a essa corrente, salienta que:
“Os juristas de ponta no Brasil sempre criticaram a manutenção dessa via dupla para a obtenção do divórcio, com multiplicação de processos, de burocracia, de despesas, com a reiteração e desencontros, até que se chegasse ao fim do caminho. Era um verdadeiro calvário”.[31]
Gagliano também demonstra o seu posicionamento, entendendo que:
“Sob o prisma jurídico, com o divórcio, não apenas a sociedade conjugal é desfeita, mas também o próprio vínculo matrimonial, permitindo-se novo casamento. Evita-se a duplicidade de processos – e o strectus fori – porquanto pode o casal partir imediatamente para o divórcio; e, finalmente, sob a ótica econômica, o fim da separação é salutar, já que, com isso, evitam-se gastos judiciais dês necessários por conta da duplicidade de procedimentos”.[32]
Dias salva em sua publicação
“Enfim, o fim da separação! A partir de agora, qualquer dos cônjuges pode, sem precisar declinar causas ou motivos, e a qualquer tempo, buscar o divórcio. A alteração, quando sancionada, entra imediatamente em vigor, não carecendo de regulamentação. O avanço é significativo e para lá de salutar, pois atende ao princípio da liberdade e respeita a autonomia da vontade. Afinal, se não há prazo para casar, nada justifica a imposição de prazos para o casamento acabar. … Além do proveito a todos, a medida vai produzir significativo desafogo do Poder Judiciário. A mudança provoca uma revisão de paradigmas. Além de acabar com a separação e eliminar os prazos para a concessão do divórcio, espanca definitivamente a culpa do âmbito do direito das famílias (…). Mas, de tudo, o aspecto mais significativo da mudança talvez seja o fato de acabar a injustificável interferência do Estado na vida dos cidadãos. Enfim, passou a ser respeitado o direito de todos de buscar a felicidade, que não se encontra necessariamente na mantença do casamento, mas, muitas vezes, com o seu fim”.[33]
Assis evidencia que a nova ordem constitucional não apenas suprimiu o instituto da "separação judicial", mas, além disso, extinguiu a necessidade de fluência de prazo para o pedido de divórcio. Trata-se de norma constitucional de eficácia plena, que, exatamente por isso, torna desnecessária a edição de qualquer ato normativo de categoria infraconstitucional para que possa produzir efeitos imediatos. [34]
Desse modo, salienta Lôbo
“No que respeita à interpretação sistemática, não se pode estender o que a norma restringiu. Nem se pode interpretar e aplicar a norma desligando-a de seu contexto normativo. Tampouco, podem prevalecer normas do Código Civil ou de outro diploma infraconstitucional, que regulamentavam o que previsto de modo expresso na Constituição e que esta excluiu posteriormente. Inverte-se a hierarquia normativa, quando se pretende que o Código Civil valha mais que a Constituição e que esta não tenha força revocatória suficiente. (…) A nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição qualifica-se como norma-regra, pois seu suporte fático é precisamente determinado: o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, sem qualquer requisito prévio, por exclusivo ato de vontade dos cônjuges. (…) Fins sociais da norma constitucional: permitir sem empeços e sem intervenção estatal na intimidade dos cônjuges, que estes possam exercer com liberdade seu direito de desconstituir a sociedade conjugal, a qualquer tempo e sem precisar declinar os motivos. (…) O resultado da sobrevivência da separação judicial é de palmar inocuidade, além de aberto confronto com os valores que a Constituição passou a exprimir, expurgando os resíduos de quantum despótico: liberdade e autonomia sem interferência estatal. (…) É da tradição de nosso direito o que estabelece o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil: na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. O uso da justiça para punir o outro cônjuge não atende aos fins sociais nem ao bem comum, que devem iluminar a decisão judicial sobre os únicos pontos em litígio, quando os cônjuges sobre eles não transigem: a guarda e a proteção dos filhos menores, os alimentos que sejam devidos, a continuidade ou não do nome de casado e a partilha dos bens comuns. (…) Pode-se indagar se a nova norma constitucional provoca um vazio legislativo, que exija imediata regulamentação legal, tendo em vista que ela leva à revogação de todas as normas infraconstitucionais, principalmente as do Código Civil, relativas à dissolução da sociedade conjugal e seu instrumento, a separação judicial”.[35]
Rodrigues, levando-se em conta a mens legis e a mens legislatoris, haja vista que nos pareceres e exposição de motivos da Emenda Constitucional indigitada mencionou-se
“(…) apertis verbis, que o instituto da separação judicial deixaria de existir, entendemos que foi extinta a separação, judicial e extrajudicial, quer por aqueles motivos acima referidos, quer pela irrazoabilidade/não-recepção Constitucional de sua manutenção”.[36]
Fuhrer sabiamente entende que
“Ao desvincular o divórcio de prazo e condição e ao afastar a lei ordinária da regulamentação, o Constituinte forjou o novo divórcio potestativo, com natureza bem diferente das antigas figuras do direto e por conversão”. A nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal reforçou o princípio pelo qual ninguém está obrigado a permanecer unido a outrem se esta não for a sua vontade. O Constituinte vinculou o divórcio potestativo exclusivamente à vontade do interessado, sem a necessidade do preenchimento de qualquer outra condição ou prazo. Mesmo quando o outro cônjuge for incapaz ou não concordar com a dissolução do casamento, o divórcio não poderá ser obstado. Como se trata de mandamento constitucional, as normas de nível inferior não podem impor qualquer espécie de restrição a este direito puramente de vontade. Ou seja, todas as eventuais restrições ao divórcio existentes na legislação não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional. Repetindo, basta a vontade do interessado. A natureza jurídica do divórcio é de declaração unilateral de vontade, cujos requisitos de validade são exclusivamente aqueles gerais de qualquer ato jurídico ordinário. Isto é, a opinião e a posição eventualmente adotada pelo outro cônjuge são despidas de qualquer relevância jurídica. Ou, por outra, não há possibilidade de contestação”. [37]
A segunda corrente, denominada de eclética, diverge da abolicionista no que concerne ao fim da separação judicial e da culpa no casamento.
Dessa forma, para Delgado “a reforma teria eliminado os prazos para o divórcio, mas não eliminado a separação judicial do sistema, que permaneceria inalterado. No mais, não teria havido abrogação tácita do instituto da separação”.[38]
Nos liames do entendimento da corrente eclética, Donizetti adverte que
“(…) pela inteligência do art. 1.571 do CC/02, a separação é direito material (que dissolve a sociedade), sendo alternativa ao divórcio (que rompe o vínculo), conferindo à parte opção entre esta ou aquela medida. Essa norma em nada se confronta com o texto constitucional emendado, que, nesse aspecto, somente autorizou a dissolução imediata do casamento pelo divórcio, sem a necessidade de preenchimento de condições prévias”.[39]
Nessa mesma linha de posicionamento entende Valle
“para quem ainda permanece válida a separação, para quem prefira por ela optar, ainda que não mais como condição para o divórcio: O que se deve refutar é a tese da extinção da separação, diante deste novo cenário, verdadeiramente preocupante, em que já se vislumbra uma possível banalização do casamento e um enfraquecimento das uniões conjugais. A separação deixa de ser um antecedente lógico e necessário da espécie divórcio por conversão. Surge, agora, como uma via judicial disponível para aqueles casais que pretendem interromper momentaneamente a relação conjugal, mas que não estejam seguros da vontade de pôr fim ao casamento e das consequências do rompimento do vínculo conjugal. Para o expressivo segmento da sociedade que não vê com bons olhos a presente alteração do sistema, resta a separação judicial ou extrajudicial (nos cartórios) como via legal capaz de emprestar um fôlego a mais de vida para o casamento nas relações familiares. Um espaço aberto para o diálogo conjugal com a interrupção da sociedade conjugal, mas sem incontinente aniquilação do vínculo do casamento”.[40]
Verifica-se, porém que assiste razão à corrente abolicionista, uma vez que possui argumentos mais sólidos e convincentes acerca da extinção do instituto da separação judicial do ordenamento jurídico brasileiro, à luz da celeridade processual.
Feitas as devidas análises, nota-se que já há manifestação jurisprudencial adotando a corrente abolicionista. De acordo com acórdão extraído do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), a EC n. 66/10 resultou em grande transformação do direito de família, reiterando os argumentos até aqui utilizados pela corrente ora defendida:
“CIVIL. DIVÓRCIO LITIGIOSO. EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. ARTIGO 267, INCISO VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AUSÊNCIA DE TRÂNSITO EM JULGADO DA SEPARAÇÃO JUDICIAL. EC 66/2010. SUPRESSÃO DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO JUDICIAL. APLICAÇÃO IMEDIATA AOS PROCESSOS EM CURSO. A aprovação da PEC 28 de 2009, que alterou a redação do artigo 226 da Constituição Federal, resultou em grande transformação no âmbito do direito de família ao extirpar do mundo jurídico a figura da separação judicial (grifo nosso). A nova ordem constitucional introduzida pela EC 66/2010, além de suprimir o instituto da separação judicial, também eliminou a necessidade de se aguardar o decurso de prazo como requisito para a propositura de ação de divórcio. Tratando-se de norma constitucional de eficácia plena, as alterações introduzidas pela EC 66/2010 tem aplicação imediata, refletindo sobre os feitos de separação em curso. Apelo conhecido e provido”.[41]
Por fim, entendem os abolicionistas que o novo regramento trazido pela Emenda do Divórcio extingue do nosso ordenamento jurídico o instituto da separação judicial, subsistindo o divórcio como forma de romper o vínculo e a sociedade conjugal. Fundamentam-se, em síntese, na inutilidade e desuso do instituto pela interpretação jurídica da Emenda, o que nos parece a corrente mais adequada ao ordenamento jurídico brasileiro.
Desse modo, nota-se uma grande conquista implementada pela Emenda Constitucional nº 66/10, que alterou o art. 226, § 6º da Constituição Federal de 1988, consagrando o divórcio como única modalidade de dissolução do casamento, eliminando a exigência de prazos ou identificação de culpados para sua concessão, abolindo, em conseqüência, o instituto da separação judicial. Mas, as mudanças trazidas pela mesma não foram acolhidas com bons olhos por uma pequena minoria conservadora por entender que a facilitação do divórcio leva à fragilização da família e à banalização do casamento, insistindo em afirmar que a alteração não é autoaplicável, necessitando ser regulamentada por lei infraconstitucional e, portanto, a separação judicial persiste no ordenamento jurídico pátrio.
Todavia, conforme pesquisa na doutrina e jurisprudência pátria, o entendimento majoritário é pela eficácia plena e aplicabilidade imediata da alteração constitucional, por ser essa a interpretação que mais atende à nova realidade social, pois a manutenção da separação judicial como requisito prévio e obrigatório para obtenção do divórcio fere o princípio da dignidade da pessoa humana.
III. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUAS INFLUÊNCIAS NA EMENDA DO DIVÓRCIO
Com o advento da Carta Política de 1988, o Direito de Família passou por profundas mudanças, estando mais preocupado em priorizar a dignidade da pessoa humana.
Sem dúvida que a aprovação da EC n. 66/10, foi uma grande vitória da dignidade da pessoa humana e dos princípios da liberdade e autonomia da vontade de cada ser humano. Dessa forma nota-se que, mais uma vez, a evolução da sociedade e da família pressiona para respostas rápidas e objetivas, quando se busca a proteção do ser humano como objeto principal de proteção do ordenamento jurídico, principalmente quando se trata da dignidade da pessoa humana.
3.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO NÚCLEO EXISTENCIAL
A Emenda Constitucional n. 66/10 é a aplicação do direito na busca da felicidade no âmbito do direito material, em que o legislador enxerga que a felicidade pode estar no fim do casamento e não mais na sua manutenção. Cabe mencionar que embora não expressa no rol dos direitos fundamentais, já foi citada com tal pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI 3300/DF julgada em 03 (três) de fevereiro do ano de 2006.
A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inseparável de todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal. Concepção de que em razão, tão somente, de sua condição humana e independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus semelhantes.
3.1.1. Acepções de dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana é o princípio basal e já no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal de 1988 é elencado como sendo um dos fundamentos da República. A pessoa humana é colocada no centro do ordenamento jurídico, e compõe outros princípios. (BRASIL, 1988).
A dignidade é um predicado tido como inerente a todos os seres humanos e configura-se como um valor próprio que o identifica.
Pode-se trazer à baila a visão antropológica de Oliveira, quando do ultraje da dignidade:
“Nada mais violento que impedir o ser humano de se relacionar com a natureza, com seus semelhantes, com os mais próximos e queridos, consigo mesmo e com Deus. Significa reduzi-lo a um objeto inanimado e morto. Pela participação, ele se torna responsável pelo outro e con-cria continuamente o mundo, como um jogo de relações, como permanente dialogação”.[42]
Carmem Lúcia Antunes Rocha, ao comentar o Art. 1º da Declaração dos Direitos Humanos, o festejado dispositivo que decreta a igualdade de todos os seres humanos em dignidade e direitos, faz as seguintes considerações:
“Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não muda. Muda o invólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria, sente-se igual.”[43]
A ausência de dignidade possibilita a identificação do ser humano como instrumento, coisa, na medida em que viola uma característica própria e delineadora da própria natureza humana. Todo ato que promova o aviltamento da dignidade atinge o cerne da condição humana, promove a desqualificação do ser humano e fere também o princípio da igualdade, posto que é inconcebível a existência de maior dignidade em uns do que em outros.
Pode-se valer da explicação de Silva acerca do conceito de dignidade da pessoa humana, a fim de se entender o significado para além de qualquer conceituação jurídica, posto que a dignidade é, como dito, condição inerente ao ser humano, atributo que o caracteriza como tal: “A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana”.[44]
Dessa forma, nota-se que a explicação de José Afonso da Silva se adere ao entendimento de Sarlet ao informar sobre as dificuldades de uma definição precisa e satisfatória de dignidade da pessoa humana. E como relembra este autor, foi Kant quem definiu o entendimento de que o homem, por ser pessoa, constitui um fim em si mesmo e, então, não pode ser considerado como simples meio, de modo que a instrumentalização do ser humano é vedada. Tal definição tem inspirado os pensamentos filosófico e jurídico na modernidade. A dignidade não pode ser renunciada ou alienada, de tal sorte que não se pode falar na pretensão de uma pessoa de que lhe seja concedida dignidade, posto que o atributo lhe é inerente dada a própria condição humana. [45]
Flávia Piovesan, uma grande estudiosa dos Direito Humanos, salienta que
“todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurídico, incorporam o valor da dignidade humana”.[46]
Porém, as várias tentativas de conceituação de dignidade da pessoa humana se valem, sobretudo, da etimologia do termo dignitas, que significa respeitabilidade, prestígio, consideração, estima ou nobreza. Para uma elucidação mais completa, é necessário oferecer uma brevíssima explicação sobre a conceituação jurídica de dignidade e de como a condição intrínseca da pessoa humana foi incorporada a diversos textos constitucionais contemporâneos e fazer, ainda, uma abordagem sobre a inserção da dignidade, enquanto princípio de hierarquia superior, na Constituição pátria de 1988.[47]
Definição na esfera jurídica que merece destaque é de Sarlet. Para esse autor, dignidade é:
“Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.[48]
O Direito exerce papel fundamental na proteção e promoção da dignidade humana, sobretudo, quando cria mecanismos destinados a coibir eventuais violações. Ressalte-se novamente que a dignidade não existe apenas onde é reconhecida, posto que é um dado prévio. Como expressão da própria condição humana, a dignidade pode e deve ser reconhecida e promovida, mas, não pode ser criada ou concedida.
É um conceito valorativo, um valor constitucional, que se constitui como o pedestal do ordem jurídico-constitucional. Trata-se de um conceito, ao mesmo tempo, definidor de norma constitucional e direito fundamental. A dignidade da pessoa humana deve ser apreciada como conceito de teor positivo, que remete à exclusão de sua apreciação em caráter ponderativo em relação a outros bens e princípios constitucionais.
3.2 INFLUÊNCIAS NA EMENDA DO DIVÓRCIO
A Emenda Constitucional n. 66/10 adotou dois princípios basilares: o princípio de que o casamento é dissolúvel e o princípio de que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio.
Todavia, nota-se, que essa decisão legislativa obteve grande influência do princípio, sem dúvida, mais enfatizado na seara jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, o acolhimento do princípio da dignidade, na maioria das ordens constitucionais contemporâneas dos Estados que detêm a intenção de construir o Estado Democrático de Direito, como no caso brasileiro é, sem dúvida, uma conquista que inaugura um momento ímpar para o Direito, que passa a ser construído pelos paradigmas principiológicos.
O divórcio direto, ou seja, sem o instituto anterior da separação judicial e sem o requisito de prazo mínimo de dois anos de separação de fato, é sem sombra de dúvida uma implementação que prioriza a melhor satisfação das partes na garantia da livre escolha de se separar no momento em que convier oportuno. Assim, nada mais é do que a garantia do direito de ir e vir, de uma vida digna e feliz.
Compreende-se que o indivíduo não existe para o fim precípuo de constituir família e procriar, mas para a busca de sua felicidade e realização pessoal, objetivo no qual a família se insere como instrumento de efetivação do fim pretendido. Nesse contexto, o afeto passa a imperar não só no momento da constituição da entidade familiar, mas também em toda a constância da relação, de modo que cessado o liame afetivo, não há mais a base sólida para a sustentação da família tal como deve ser, sob o aspecto moral: legal, cúmplice, solidária, fraterna, voluntária e responsável.
Destarte, numa perspectiva de promoção da dignidade da pessoa humana, o Estado tem o poder e dever de garantir meios diretos, eficazes e não-burocráticos para que, diante da derrocada emocional do matrimônio, os seus partícipes possam se libertar do vínculo falido, partindo para outros projetos pessoais de felicidade e de vida.
O Código Civil de 2002 é claro, em seu artigo 1.513 ao enfatizar que:"É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família." Neste sentido, a intervenção somente se justifica em casos extremos, devendo a escolha pelo caminho do divórcio ser plenamente respeitada, trajetória esta que foi encurtada pela Emenda Constitucional n. 66, deixando passagem para nova busca da felicidade.
3.3 PRINCÍPIO DA PRIVACIDADE E DA INTIMIDADE
A Constituição declara invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, conforme previsão constitucional do art. 5°, X. (BRASIL, 1988).
Portanto, garantiu expressamente esses valores humanos à condição de direito individual, sendo, assim, um direito conexo ao direito à vida.
Para Silva, a terminologia não é precisa, se utilizando da expressão “direito à privacidade” em sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional consagrou. Tal autor, entende a privacidade como “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”.[49]
Já na esfera de inviolabilidade, é um pouco mais ampla, abrangendo em especial o modo de vida doméstico e as relações familiares e afetivas, inclusive na dissolução das mesmas, que por si só gera grandes constrangimentos.
No que se refere ao direito à intimidade, Silva considera como sinônimo de direito à privacidade, enfatizando que
“Esta é uma terminologia do direito anglo americano (right of privacy), para designar aquele, mais empregada no direito dos povos latinos. Nos termos da Constituição, contudo, é plausível a distinção que estamos fazendo, já que o inciso X do art. 5° separa intimidade de outras manifestações da privacidade: vida privada, honra e imagem das pessoas.”[50]
Neste contexto, René Ariel Dotti salienta que “a intimidade se caracteriza como a esfera secreta da vida do individuo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”.[51] Assim, a intimidade se define como o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão da intervenção de outra.
Destarte, em acordo com valores atuais, sem sombra de dúvida que, com a vigência da Emenda Constitucional n. 66/10 se evitará que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam reveladas e trazidas ao espaço público dos tribunais, com todo o emaranhado de constrangimentos que provocam, contribuindo para agravamento de suas crises e dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas decorrentes da separação.
Não atentou o legislador em que a perquirição da causa da separação vem perdendo prestígio, na maioria dos países desenvolvidos, que autorizam o fim do casamento independentemente da indicação de um responsável pela insuportabilidade da vida em comum. Seja porque é difícil atribuir a um só dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão do Estado na intimidade da vida das pessoas.
Razão assiste a Luiz Edson Fachin, quando afirma que “não tem sentido averiguar a culpa com motivação de ordem íntima e psíquico”, concluindo que a conduta pode ser apenas “sintoma do fim”.[52]
Assim, a violação ao direito à privacidade e à intimidade, constitui afronta ao próprio princípio de respeito à dignidade da pessoa humana, cânone maior das garantias individuais. Desse modo, a ingerência do Estado na vida dos cônjuges, obrigando um a revelar a intimidade do outro, para que imponha o juiz à pecha de culpado ao réu, é de ser qualificada como inconstitucional.
3.4 A EXTINÇÃO DA CULPA NO CASAMENTO
Ao analisar a história recente do direito brasileiro verifica-se que sempre houve duas modalidades de separação, uma por vontade de ambos os cônjuges, quando não era necessário apontar qualquer motivação e outra por vontade de apenas um deles. Nesse último caso era necessária a atribuição de culpa ao outro pelo fim da vida em comum ou a comprovação da ruptura da vida em comum há mais de um ano conforme dispunha o art. 1.572 do Código Civil. (BRASIL, 2002).
Desse modo, o comando normativo, embora não possa mais aludir a separações como providências necessárias e prévias ao pedido de divórcio, conforme EC 66/10, nada impede que, na ausência de lei nova regulamentando o trâmite do processo de divórcio direto, o pedido venha formulado com fundamentação nos fatos que outrora justificavam a separação ruptura, separação remédio e separação culposa.
Nesse contexto, conforme entendimento de Regina Beatriz Tavares da Silva, preocupada com o fato de que a interpretação literal da nova norma constitucional prevista no art. 226, §6°, CF/88, possa subtrair das ações de divórcio a discussão em torno dos temas das denominadas separação remédio e separação culposa, orienta que
“Desburocratização do divórcio não significa, de forma nenhuma considerar que o pedido direto de divórcio elimina a possibilidade de a causa de pedir nessas ações virem fundadas naqueles fatos que a doutrina aglutinou; outrora, sob a nomenclatura de ruptura, remédio e culposa, ensejando aos cônjuges ampla discussão acerca da causa do divórcio e das consequências que a dissolução do vínculo do casamento opera na esfera de cada cônjuge divorciando.”[53]
Se assim não o fosse, o Estado poderia resistir na chancela da vontade de um dos cônjuges. Somente restava ao cônjuge culpado esperar o decurso do tempo para que pudesse pedir a separação.
O debate da culpa, anterior a EC 66/10, permitia que apesar da separação de fato ter ocorrido há mais de dois anos, ainda houvesse participação sucessória se o cônjuge viúvo provasse que a separação de fato se deu por culpa do falecido. O dispositivo sofria fortes críticas doutrinárias por permitir ao cônjuge supérstite que imputasse culpa ao falecido gerando aos herdeiros o ônus de defendê-lo, muitas vezes sem terem conhecimento dos fatos ou sequer saberem os reais motivos da separação de fato.
Quanto aos reflexos da culpa no que se refere ao Direito Sucessório, José Fernando Simão entende que a discussão da culpa, criticada em matéria de direito de família, era absolutamente impertinente em matéria sucessória. Após a EC 66/10 a culpa é abolida também no debate sucessório, pois se é irrelevante o motivo que levou o casamento acabar, e tal motivo sequer pode ser abordado para impedir o fim do vínculo, motivos não há para sua discussão após a morte de um dos cônjuges. Da mesma forma, a norma exigia uma separação de fato por mais de 2 anos para que o cônjuge perdesse a qualidade de herdeiro. [54]
Buscando-se a teleologia da regra, resta claro que tal prazo mantinha estreita relação com o prazo necessário ao divórcio direto (art. 1580, §2°, CC/02). Quem poderia se divorciar em razão da separação de fato, perderia qualidade de herdeiro. (BRASIL, 2002).
Entendendo o divórcio como um direito potestativo e, quanto à extinção do instituto da separação, cabe ressaltar que ainda é possível a figura do divórcio litigioso, no qual, segundo entendimento de Gagliano, somente poderiam ser discutidos os efeitos jurídicos da separação do casal, tais como guarda dos filhos, uso do nome e divisão do patrimônio.
Nesse diapasão, a despeito da redação legislativa das causas da separação, foi reconhecida como desnecessária para a jurisprudência, em acertado momento vez que essa exigência feriria o direito a privacidade e a intimidade, corolários do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse passo cabe trazer à colação ementa de acórdão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema.
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. SEPARAÇÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. PARTILHA DOS BENS. AUSÊNCIA DE CONSENSO.
1. Não há por que falar em violação do art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais.
2. Requerida a separação judicial com fundamento na existência de culpa, é possível ser decretada a separação do casal sem imputação de causa a nenhuma das partes quando não restarem devidamente comprovados os motivos apresentados, mas ficar patente a insustentabilidade da vida em comum.
3. Em razão da ausência de consenso entre as partes, a partilha dos bens não pode ser realizada na sentença que julgou a ação de separação, devendo ser adotado o procedimento determinado pelo § 1º do art. 1.121 do Código de Processo Civil.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e provido”. [55]
A indagação acerca da possibilidade de importação da discussão da culpa para o divórcio encontra variadas respostas em sede doutrinária. Maria Berenice Dias e Pablo Stolze Gagliano são enfáticos ao ressaltarem a impossibilidade de qualquer discussão sobre culpa no bojo da ação de divórcio.
Gagliano argumenta que não haveria espaço para se falar em causas objetivas ou subjetivas do divórcio litigioso, que teriam desaparecido com a separação. Segundo ele soaria despropositado que alguém ao provar a conduta culposa de outrem, pudesse obter êxito na dissolução do vínculo matrimonial. Arremata, ainda, ao argumento de que a culpa no Direito de Família estaria relegada a um âmbito próprio que seria o da anulabilidade do casamento. Ressalta que qualquer discussão de culpa no divórcio seria incorreta, até mesmo para a fixação de seus chamados efeitos colaterais, tais como a guarda dos filhos, o uso do nome e o direito a alimentos. [56]
A eminente autora gaucha Dias vai na esteira de pensamento apresentada, com o adendo de que os casos de culpa pelo fim do enlace matrimonial poderiam, a depender do caso, ser objeto de ação autônoma de reparação civil em face do cônjuge autor do dano. Enumera, todavia, que nem todas as violações dos deveres do casamento seriam indenizáveis, tais como o debitum conjugale, já que seria impensável justificar pretensão indenizatória por dano moral pela ausência de contato físico de natureza sexual e ainda a infidelidade, por ser, segundo ela, de difícil fixação a gravidade do descumprimento do dever e do quantum indenizatório.[57]
Quanto aos demais deveres tais como adultério, abandono do lar, condenação criminosa e conduta desonrosa, sua prática por si só não ensejaria a reparação por dano moral, a não ser que reste comprovado que tais condutas foram realizadas de modo público, ferindo a imagem e a dignidade de seu par.
Nesse sentido, cabe trazer à colação trecho de artigo publicado por José Fernando Simão a respeito do tema:
“Não se pode afirmar que caso um dos cônjuges cause danos ao outro, a culpa não poderá ser debatida em ação de indenizatória. Isto porque se houver ofensas físicas ou morais, agressão aos direitos de personalidade, o cônjuge culpado responderá civilmente. O inocente, vítima do dano, terá assegurado seu direito à indenização cabal. Novamente a questão não poderá ser discutida na ação de divórcio (da qual a culpa foi banida) e será objeto de ação indenizatória perante as varas cíveis, o que não impedirá a decretação de segredo de justiça a ser requerido pelas partes. Sim, discute-se a culpa, mas não mais entre cônjuges (presos por um vínculo indesejado) e sim em ações autônomas, entre ex-cônjuges.”[58]
Em posicionamento distinto, Flávio Tartuce, acredita que a melhor solução seria a manutenção de um sistema dualista, na qual seria possível ou não a discussão da culpa no processo de divórcio a depender do caso concreto. Menciona que tal construção atenderia melhor aos diversos anseios da sociedade pós-moderna, identificada pelo pluralismo e pela hipercomplexidade. [59]
Nota-se que por vezes o processo é usado como uma maturação dos problemas pessoais do casal. Ressalte que um sistema monista, sem viabilidade de verificação de culpa, representaria ofensa à liberdade individual e à autonomia privada das partes. Argui se justificar que no caso da dissolução do casamento não seja possível a mitigação de tal direito fundamental.
Sobre a responsabilidade civil decorrente do casamento, Tartuce menciona a análise da culpa é imprescindível já que entende essa como um conceito unitário servindo tanto para indenizar quanto para decretar a dissolução da união. Segundo o autor dispensar a culpa seria ilógico, afirma ser impossível a caracteriza de somente “meia culpa” a embasar somente ação de responsabilidade civil, mas sem repercussões no âmbito da família. [60]
Na esfera jurisprudencial, embora ainda persistam alguns julgados prevendo a possibilidade de discutir a culpa no encerramento do casamento, seja para definir a guarda, alimentos, entre outros, a sua grande maioria, dando especial atenção ao Tribunal gaúcho, não mais permite a discutir um instituto cada vez mais em desuso na atual realidade jurídica brasileira.
“AÇÃO DE DIVÓRCIO DIRETO LITIGIOSO COM PARTILHA DE BENS. RECONVENÇÃO. CULPA NA SEPARAÇÃO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PERDA DO OBJETO. 1. Descabe apelação para atacar decisão que rejeitou a reconvenção, sendo adequado o agravo de instrumento e, como tal, é recebida a irresignação, pela aplicação do principio da fungibilidade recursal. 2. A falência do casamento, pela perda do afeto, justifica plenamente a ruptura, não havendo motivo para se perquerir a culpa, nada justificando manter incólume o casamento quando ele de fato já terminou, de forma inequívoca.3. A questão relativa aos honorários advocatícios restou esvaziada pela manifestação do juízo a quo esclarecendo que foram fizados considerando o valor da causa indicado na inicial. (grifo nosso).[61]
APELAÇÃO CÍVEL. DIVÓRCIO. PARTILHA DE BENS. CULPA. REGIME DE BENS. Descabe debater ou resolver sobre culpa para decretação da separação. Prevalência da teoria da ruptura. Precedentes jurisprudenciais. Adotado pelo casal o regime de comunhão universal, comunicam-se todos os bens presentes e futuros. Ausente qualquer causa de exclusão dos bens da comunhão, partilha-se igualmente os bens entre o casal. (grifo nosso).”[62]
Desse modo, extrai-se do voto do Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“A vitimização de um dos cônjuges não produz qualquer sequela prática, seja quanto à guarda dos filhos, partilha de bens ou alimentos, apenas objetivando a satisfação pessoal, mesmo porque difícil definir o verdadeiro responsável pela deterioração da arquitetura matrimonial, não sendo razoável que o Estado invada a privacidade do casal para apontar aquele que, muitas vezes, nem é o autor da fragilização do afeto. A análise dos restos de um consórcio amoroso, pelo Judiciário, não deve levar à degradação pública de um dos parceiros, pois os fatos íntimos que caracterizam o casamento se abrigam na preservação da dignidade humana, princípio solar que sustenta o ordenamento nacional.”[63]
Nesse contexto, o entendimento jurisprudencial brasileiro vai ao encontro do que assevera Maria Berenice Dias:
“(…) a função estatal deve assumir um papel protetor, não no sentido de invasão da órbita individual do ser humano, (…) porque é absolutamente indevida a intromissão da justiça na intimidade da vida das pessoas”.[64]
Enfim, é verdadeira carta de alforria das relações afetivas, pois impede que se discuta a culpa pela falta de amor, pela negativa de afeto.
Contudo, se enfatiza que a exclusão da culpa da esfera do direito de família não significa que os atos ilícitos praticados durante a Constancia do relacionamento conjugal não possam ser objeto de ressarcimento, mas sim que tais questões devem ser debatidas em momento e seara oportuna, qual seja, a esfera cível.
IV A INTERFERÊNCIA MÍNIMA DO ESTADO NO DIREITO MATRIMONIAL
Todo mundo quer acreditar que o amor é para sempre. Mas não adianta, é infinito enquanto dura. E, quando termina só há um jeito que é acabar com o casamento, definir direitos e deveres com relação aos filhos, partilhar bens. Assim, não há outra maneira de preservar o direito à felicidade.
Ainda assim, de forma injustificável, o Estado resiste em permitir que as pessoas saiam do casamento. Antes o matrimônio era indissolúvel e, depois, mesmo com o advento da Lei do Divórcio, persistia a imposição de prazos, a identificação de culpados e a necessidade de um duplo procedimento. Mesmo havendo consenso, primeiro era preciso separar para depois converter a separação em divórcio, e isso depois do decurso de um ano. A possibilidade de obter o divórcio direto existia somente depois de dois anos da separação de fato. Ou seja, ninguém consegue casar novamente antes de tais prazos. Resta, no caso, uma afronta ao princípio da liberdade, intimidade e, sobretudo, da dignidade da pessoas humana.
Poderia viver em união estável, mas não poderia convertê-la em casamento. Estas verdadeiras cláusulas de barreiras eram impostas sem se questionar sequer se existem filhos ou interesses de ordem patrimonial. Isto é, as pessoas são livres para casar, não para por fim ao casamento ou casar de novo.
Com o advento da EC n. 66/10, fica claro que a interferência do Estado no direito matrimonial, deve ser mínima.
4.1 O DIREITO DE LIBERDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
O princípio da liberdade, intimamente ligado ao princípio do pluralismo democrático, no âmbito das relações familiares, se associa à autonomia privada no segmento da liberdade de escolha de constituição, de manutenção e de extinção da entidade familiar, sem que haja qualquer tipo de imposição externa, sobretudo do Estado e da sociedade.
Sob esse enfoque, orienta Gama que
“Houve um alargamento do Direito de Família em relação ao princípio da liberdade, eis que o modelo patriarcal de família, caracterizado pelo hermetismo, rigidez e forma estática, se fez substituir pelo modelo eudemonista, plural, democrático e, assim, dinâmico. De acordo com a doutrina, o princípio da liberdade na família apresenta, fundamentalmente, duas vertentes essenciais: a liberdade de entidade familiar, diante do Estado e da sociedade, quanto à sua constituição, manutenção e extinção; e, a liberdade de cada familiar diante dos demais integrantes da própria entidade familiar”.[65]
A família é entidade que deve ser preservada de acordo com a Constituição em seu artigo 226, §6°. Todavia, com o reconhecimento de entidades familiares não embasadas no casamento, a continuidade de embaraços ao fim do vínculo matrimonial criava disparidades inexplicáveis. Por vezes obrigava que a nova entidade familiar, formada pela união estável, convivesse com o fantasma do casamento falido do separado de fato ou judicialmente que não podia contrair novas núpcias até o momento de decretação do divórcio.
O princípio da liberdade, sob o enfoque da EC n. 66/2010, é, portanto, o respeito à autonomia da vontade, pois sem amor e felicidade não há porque se manter um casamento. O ato de casar e o de não permanecer casado constituem, por certo, o verso e o reverso da mesma moeda: a liberdade de auto-determinação afetiva.
Segundo Papin
“o novo espírito constitucional, que será corroborado pela promulgação da emenda em comento, rechaça de forma explícita a utilização do Direito como instrumento de punição pelo fim do casamento e privilegia a liberdade individual e a autonomia dos cônjuges, que já as detinham na ocasião do início do relacionamento e agora as conquistarão também no momento de dissolvê-lo. (…) Na perspicácia de SAVATIER, citado por WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ideais são as uniões chamadas “livres”, porquanto a liberdade permite de forma mais pura a manutenção de um relacionamento afetivo, no qual ‘não há fidelidade, obediência, assistência obrigatória. Tudo isso, dado por amor, não deve durar senão enquanto puder durar esse amor’.”[66]
Conforme pontua Assis a separação exigia que depois de superados eventuais dramas e traumas o casal tivesse que se reencontrar para por fim a algo já terminado, reavivando desnecessariamente sofrimentos já vencidos. [67]
O antigo requisito objetivo para a decretação do divórcio, qual seja, separação de fato por mais de dois anos ou lapso de um ano desde a decretação da separação judicial incidia sobremaneira na autonomia privada. Sem sombra de dúvida que são os próprios cônjuges, o indivíduo como detentor do direito de liberdade, e não o Estado, ainda que denominado democrático, o mais habilitado para dizer se há possibilidade ou não de volta à manutenção de uma vida afetiva.
Destarte, para que haja a decretação do fim do casamento não há mais nenhuma condição impeditiva da decretação do vínculo, a conhecida “cláusula de dureza”. Atualmente, vigora o princípio da ruptura do afeto como causa precípua da ruptura, inspirado no Zerrüttungsprinzip do Direito alemão.[68]
Nesse diapasão, Silvio Venosa afirma que mesmo em sua singeleza a emenda constitucional nº 66 foi de um estupendo avanço a utilização do divórcio-remédio e não mais sua modalidade-sanção que, porém, não oferecia solução adequada e socialmente segura.
Gama sabiamente enfatiza que
“No contexto do mundo contemporâneo, a noção de justiça não pode ser considerada sob a ótica individualista, inserindo vários componentes antes não cogitados. Somente com o efetivo implemento do sistema jurídico-constitucional, fundado no existencialismo, no personalismo, no humanismo e no solidarismo, será possível o reconhecimento da presença dos fundamentos da República Federativa do Brasil no contexto de um autentico Estado Democrático e ,Social de Direito, com a garantia da cidadania a todos, fundado na dignidade da pessoa humana, voltado na construção de uma sociedade baseada na liberdade, na justiça e na solidariedade(…)”[69]
Assim, com vistas ao futuro das pessoas, a dignidade da pessoa humana restará efetivamente assegurada ao não expor os indivíduos a exposição acima da necessária em momento tão frágil de suas vidas e que por vezes já gera situações de constrangimento e brigas pela falta de afeto.
Dessa forma, não cabe ao Estado, como ente federal e ente responsável pela organização da democracia, se preocupar com filigranas da vida a dois, que só diz respeito às partes decidir pela ruptura ou manutenção de um casamento falido.
4.2 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A NÃO INTERVENÇÃO DO ESTADO
O preâmbulo da Constituição da República já aponta que da reunião do povo brasileiro em Assembléia Nacional Constituinte foi instituído um Estado Democrático de Direito visando a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, desenvolvimento, bem-estar e justiça como valores supremos. (BRASIL, 1988).
Todavia, esse Estado Democrático de Direito que teve como embrião a Carta Magna de 1988, não pode intervir na sociedade afrontando a dignidade da pessoa humana, tendo em vista a necessidade de atender ao princípio da intervenção mínima.
Em sua nova e moderna perspectiva, o Direito de Família, segundo o princípio da intervenção mínima, desapega-se de amarras anacrônicas do passado, para cunhar um sistema aberto e inclusivo, facilitador do reconhecimento de outras formas de arranjo familiar, incluindo-se as famílias recombinadas (de segundas, terceiras núpcias etc.). Nesse diapasão, portanto, detectado o fim do afeto que unia o casal, não há sentido em se tentar forçar uma relação que não se sustentaria mais.
Desse modo assevera Viegas que “é dever do Estado assegurar as condições necessárias para o pleno exercício da autonomia da vontade das pessoas que, escolhendo por fim no casamento, devem ter a liberdade de fazê-lo sem imposições externas, preservando deste modo a sua privacidade (…)”. [70]
Segundo Chaves & Rosenvald "Infere-se, pois, com tranqüilidade que, tendo em mira o realce na proteção avançada da pessoa humana, o ato de casar e o de não permanecer casado constituem, por certo, o verso e o reverso da mesma moeda: a liberdade de auto-determinação afetiva".[71]
O Direito de Família é a seara em que o princípio da intervenção mínima deve incidir de maneira mais veemente, não devendo ser do interesse do Estado filigranas da vida a dois.
A despeito de toda a argumentação acima tecida, o tratamento do assunto nos diversos Tribunais de Justiça estaduais não é equânime, o que roga a intervenção do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição conforme atribuição expressa do art. 102, I, “a” da Constituição Federal.
Dessa forma, no Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a jurisprudência majoritária é no sentido de que a inovação constitucional é auto-aplicável. Nesse sentido, o Tribunal decidiu que após a edição da emenda as partes do processo de separação devem ser intimadas para se manifestarem sobre a convolação da separação em divórcio.
O Egrégio Tribunal do Rio Grande do Sul, famoso pelo arrojo em suas decisões acompanha o Tribunal Fluminense, deixando claro em um de seus julgados sobre o tema que por se tratar de direito potestativo a citação do cônjuge na ação de divórcio poderia ser feita por edital. Nesse sentido cabe trazer à colação ementa a respeito.
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIVÓRCIO. PARTILHA. CITAÇAO POR EDITAL. O divórcio Caso em que se mostra desnecessário o pleno esgotamento das vias ordinárias para proceder-se à citação da parte ré em ação de divórcio O direito ao divórcio tem natureza potestativa. E em face às recentes mudanças trazidas pela EC 66, não há mais exigência de prazo de separação para sua concessão. Nesse passo, a impugnação ao pedido de divórcio resta esvaziada, de forma que se mostra desproporcional exigir que a parte postulante do divórcio permaneça no estado de casada até que se ultime a busca pela citação real da parte ré. Diante disso, é cabível a citação do réu por edital quando não localizado para ser citado pelos meios ordinários. A partilha. Contudo, no que diz com a citação para a ação de partilha, tratando-se de direito patrimonial, descabe a citação ficta, sem antes se esgotar todos os meios de localização do réu. Nesse contexto, é cabível a citação por edital para a ação de divórcio devendo a parte prosseguir na tentativa de citação do réu para a partilha através dos meios ordinários. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. EM MONOCRÁTICA”.[72]
Ademais, não caberia à lei, ou seja, ao Estado, nem mesmo à religião, estabelecer condições ou requisitos necessários ao fim do casamento, pois apenas aos cônjuges, e a ninguém mais, é dado tomar esta decisão.
Com a pesquisa realizada observou-se que a Emenda Constitucional n. 66/2010 extinguiu os requisitos para a decretação do divórcio e deixou de contemplar o instituto da separação judicial, apesar de alguns autores ainda criticarem essa extinção (Delgado, Donizetti, Valle).
Nesse contexto, a dissolução do casamento passou a ser feita apenas por meio do divórcio, que pode ser promovida a qualquer momento, sem a necessidade de se aguardar qualquer decurso de prazo ou de se submeter a anterior processo de separação judicial, já que, anteriormente, para o decreto do divórcio exigia-se o decurso de um ano da separação judicial ou da liminar de separação de corpos (divórcio conversão) ou o decurso de dois anos da separação de fato do casal (divórcio direto).
Suprimida a separação judicial e consolidando-se o divórcio como a única possibilidade de dissolução voluntária do casamento, deixam de existir as figuras do divórcio por conversão e do divórcio direto, não havendo, pois, que se estabelecer regras ou prazos diferenciados para uma ou outra situação.
Contudo, a alteração promovida com a Emenda Constitucional 66 de 2010 não teve o efeito tão esperado pela comunidade jurídica. Por pecar pela escassez de palavras despertou uma celeuma acerca da sobrevida do instituto da separação judicial no ordenamento jurídico. passou a ser respeitado o direito de todos de buscar a felicidade, que não se encontra, necessariamente, na manutenção do casamento.
Destarte, a nova Emenda abraça a perspectiva socioafetiva do Direito de Família, permitindo que os integrantes de uma relação frustrada possam partir para outros projetos de vida., promovendo uma família reconstruída com base no afeto, decorrente da valorização constante da dignidade da pessoa humana.
Assim, nota-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é um valor inerente a todo e qualquer ser humano, devendo o estado garantir esse direito, permitindo a manutenção da privacidade, intimidade e liberdade de escolha entre as partes no que tange à separação ou mantença de uma sociedade conjugal.
Desse modo, importam menos aos indivíduos as regras sociais, as instituições e os preconceitos, impondo-se não mais a exaltação ao dever e a assunção de obrigações socioculturais, mas a ligação afetiva, o sentimento que deu ensejo à união, que também não precisa ser duradouro, mas feliz enquanto dure. A extinção de prazo para divórcio permite assim a busca da felicidade pessoal dos ex-cônjuges em novos relacionacionamentos.
Assim, no decorrer da pesquisa, sob uma análise legislativa, nota-se que por tais razões, perde sentido o caput do art. 1.571 do Código Civil de 2002, que disciplina as hipóteses de dissolução da sociedade conjugal: morte, invalidade do casamento, separação judicial e divórcio. E, excluindo-se a separação judicial, as demais hipóteses alcançam diretamente a dissolução do vínculo conjugal ou casamento; a morte, a invalidação e o divórcio dissolvem o casamento e consequentemente sociedade conjugal.
Todavia, com base no princípio da intervenção mínima do Estado, o mesmo não teria o direito de intervir em uma decisão que cabe somente aos cônjuges.
Sobretudo, em que pesem as reflexões preliminares e por isso sujeitas à crítica, dúvida não há que assistimos no momento à maior revolução que o direito de família sofreu neste Século XXI e certamente a mais importante verificada desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Graduada em Direito. Pós Graduada em Direito Constitucional. Professora de Direito
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