Resumo: O presente artigo possui como objetivo principal a análise da aplicação da lei penal no espaço nos crimes de informática. Apresenta-se estruturado em dois núcleos. No primeiro, busca-se delimitar e investigar as principais teorias e princípios de aplicação da lei penal no espaço presentes no Código Penal nacional e de outros países. Traça-se um paralelo entre o Direito Penal Internacional, os princípios de aplicação da lei penal no espaço e as teorias de delimitação do local do crime. Como foco, analisa-se os princípios da territorialidade, da personalidade, da defesa e da universalidade, suas aplicações e incidência na legislação nacional. Subsidiariamente, estuda-se as principais teorias de delimitação do locus commissi delicti, abordando as teorias da intenção, do efeito, da atividade, do efeito intermediário, da longa mão e da ubiquidade. No segundo núcleo, analisa-se e como a jurisprudência tem aplicado os princípios e teorias da lei penal no espaço quando do conflito de jurisdição nos crimes de informática.
Palavras-Chave: Lei penal no espaço. Princípios de aplicação da lei penal no espaço. Lugar do crime. Crimes de informática. Conflito de jurisdição.
Abstract: This article has as main objective the analysis of the application of criminal law in space in computer crimes. It presents structured into two nuclei. At first, we seek to define and investigate the main theories and principles of application of criminal law in space present in the national criminal code. Draws a parallel between the international criminal law, principles of criminal law enforcement in the theories of space and definition of the crime scene. As a focus, we analyze the principles of territoriality, personality, defense and universality, its applications and impact on national legislation. Alternative, we study the major theories of delimiting the locus commissi delicti, addressing the theorie of intention, the theorie of effect, the theorie of activity, the theorie of intermediate effect, the theorie of long hand and the theorie of ubiquity. In the second core, analyzes how the case law has applied the principles and theories of criminal law in space in the conflict of jurisdiction for computer crimes.
Keywords: criminal law in space. Principles of application of criminal law in space. Place of crime. Computer crimes. Conflict of jurisdiction
Sumário: I – Introdução; II – A Lei Penal no Espaço; III – Do conflito de jurisdição nos crimes de informática; IV – Conclusão.
I – introdução
Nos últimos 20 anos, a revolução da informática e os consequentes avanços no setor exigiram o envolvimento (e desenvolvimento), a fim de se adequarem a essa nova realidade, de inúmeras empresas e setores da sociedade[1]. O computador, aliado ao acesso à internet, passou a ser acessório imprescindível na vida de grande parte da população. A internet engessou-se como fenômeno essencial na cultura e sociedade, influenciando as trocas de informações e pesquisas[2]. Entretanto, o acesso à internet, local no qual há teórica privacidade e impossibilidade de ser reconhecido por outros indivíduos, se confunde muitas vezes, com a sensação de poder ilimitado e a possibilidade de realizar ações no ambiente online da rede que seriam condenadas se praticadas no mundo físico. O medo gerado pelas chamadas “ruas inseguras” de Bauman[3], estimula que as pessoas expressem seus pensamentos na internet ao invés de fazê-los “publicamente”.
Essa aparente liberdade na Internet desinibe seus usuários, estimulando contatos entre estranhos, como na definição de Richard Sennett ao caracterizar a modernidade dos centros urbanos. Desta forma, podemos transportar ao ambiente eletrônico a construção sociológica de Bauman acerca dos espaços urbanos, no qual aquele, devido a sua relativa privacidade, possibilita que estranhos se encontrem em sua condição de estranhos, sofrendo, entretanto, os efeitos desse “desencontro”, qual seja, de um evento sem passado nem futuro[4]. Essa aparente falta de perspectivas propicia a sensação de estar em um “não-lugar”[5], aumentando vertiginosamente o desrespeito entre os seus usuários.
Nesse contexto, a informatização crescente inseriu novos modus operandi aos indivíduos infratores, cujos instrumentos, pelo surgimento reiterado de novas modalidades, ainda não foram clara e precisamente avaliados pelo Estado[6]. Os ataques perpetrados pelos denominados hackers, no âmbito da criminalidade informática, tendem a assumir efeitos internacionais, caracterizando esses delitos em crimes transnacionais por excelência[7]. Em decorrência da grande possibilidade de os efeitos de um crime de informática perpetrado em um Estado repercutir em outro, o presente artigo pretende expor os critérios de delimitação da lei penal no espaço e dos conceitos de jurisdição e competência no processo penal, assim como a análise de alguns julgados, com o objetivo de demonstrar com a atual solução adotada pela jurisprudência nacional quando da análise do conlito de jurisdição nos crimes de informáticas.
De acordo com o princípio da territorialidade, ensina Nelson Hungria, independentemente da nacionalidade do autor do fato delituoso, será aplicada a lei do Estado onde a ação ocorreu[8]. Baseando-se no princípio de direito internacional da soberania do Estado, cada país possui a legitimidade de aplicação do seu direito penal interno a todos os delitos que forem praticados dentro do respectivo território, sem distinguir a nacionalidade do agente[9]. Dentre os princípios a serem elencados, o princípio da territorialidade é dominante nas legislações penais, em decorrência da regra ubi facinus perpetravit, ibi poena reddita, ou seja, a pena deve ser atribuída ao local onde o fato danoso foi prático[10].
Ao tratarmos da aplicação da lei penal no espaço e do princípio da territorialidade, importante ter em mente o conceito de território, pois será ele o principal responsável de delimitação do âmbito de aplicabilidade da lei penal de um país (leges non obligant extra territorium[11]). O atual Código Penal não tratou de conceituar o significado de território, entendendo-se ele doutrinariamente, entretanto, como a “medida espacial da eficácia do ordenamento do Estado”. Desta forma, insere-se nele a superfície terrestre, o subsolo, o mar territorial e o espaço aéreo delimitados pelas fronteias. Por extensão, também consistem o território nacional as embarcações e as aeronaves[12].
A existência de vários Estados soberanos, cada um com seu ordenamento jurídico próprio, permite estabelecer os limites fronteiriços de aplicabilidade da lei penal no espaço pertinente ao exercício de cada um desses direitos dentro do seu próprio território. Em função disso, o princípio da territorialidade se legitima pelo fato de os diversos Estados não terem interesse nem necessidade em tutelarem bens jurídicos que estejam fora de seu âmbito territorial – salvo exceções – ou punir ações perpetradas em outros territórios[13].
Pode-se invocar, ainda, como fundamento de defesa do princípio da territorialidade, uma questão de ordem processual[14]. É de interesse de uma efetiva e célere investigação que a punição do crime e o seu julgamento sejam realizados no território jurisdicional onde o fato foi praticado, por maior facilidade de acesso à prova e de maior simplicidade do processo e julgamento[15].
A lei penal brasileira acolhe o princípio da territorialidade de forma temperada e atenuada em seu artigo 5º, caput, do Código Penal: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional”.
O princípio da personalidade, também chamado de princípio da nacionalidade, corresponde à contraposição do princípio da territorialidade. O Estado arroga o exercício de sua jurisdição sobre seus nacionais no exterior[16], possibilitando-lhe a punição do agente infrator onde quer que ele tenha praticado o delito. Considera-se, como único critério de análise, de acordo com esse princípio, a nacionalidade do autor do delito, e não o local da infração[17]. A legitimação para a aplicação desse princípio se encontra no poder que o Estado possui em submeter o seu nacional ao direito interno mesmo que esse se encontre fora o território do país[18].
Dividi-se o princípio da personalidade em ativo e passivo. Pelo primeiro, aplicar-se-á a lei penal do país de origem do sujeito que comete a infração em outro Estado, independente da origem do bem jurídico lesado. Enquanto que, pelo princípio da personalidade passiva, aplicar-se-á a lei penal nacional às ações que recaiam sobre delitos que atingem bens jurídicos do próprio Estado ou seus cidadãos[19].
No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da personalidade está previsto no artigo 7º, inciso II, alínea “b”, do Código Penal: ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes praticados por brasileiro[20].
De acordo com o princípio da defesa, também chamado de real ou da segurança nacional, o Estado apropria-se do exercício de punição do autor do fato delituoso sempre que o bem jurídico lesado pelo crime for nacional.[21] I.e., independentemente do lugar do crime e da nacionalidade do agente infrator, será aplicada a lei penal do país a qual pertence o bem jurídico lesado[22]. O que determina a aplicação da lei penal é a nacionalidade do bem jurídico atingido, não importando onde nem quem tenha efetuado o crime[23]. Seu fundamento é a defesa da independência política do Estado, a sua integridade territorial e a sua segurança interna ou externa, ainda que o crime tenha sido praticado do exterior[24].
Por fim, o princípio da universalidade (princípio da justiça universal) corresponde à aplicação da lei penal nacional a qualquer delito, independente do bem jurídico lesado, do lugar do crime e da nacionalidade do agente infrator[25], bastando apenas que o autor do crime esteja em território nacional, para “que o Estado cumpra o dever de puni-lo, como membro da comunidade internacional”[26]. Fundamenta-se na “colaboração recíproca dos Estados em reprimir crimes e atos atentatórios aos princípios éticos da própria humanidade”[27] e na união de consciência universal do Direito dos povos[28].
Explica Jescheck que uma aplicação absoluta do princípio da justiça universal implicaria “científicamente insostenible y prácticamente irrealizable”, pois assim “el poder punitivo del Estado no tendría frontera alguna”. Para o autor, apenas estaria justificada a aplicação universal de um Direito, assim como o seu reconhecimento frente aos Estados e a comunidade internacional, se o delito atente contra bens jurídicos supranacionais “en cuya salvaguarda existe un interés común de todos los Estados”[29].
Desta forma, não importa em qual lugar o homem se encontra, sabe-se que há na consciência coletiva uma norma incriminadora que pune fatos lesivos ao interesse da sociedade[30], como, v.g., a pirataria, o tráfico de pessoas, de escravos, o genocídio[31] e o tráfico de drogas[32]. Razão pela qual o agente infrator poderá ser punido no lugar em que se encontra[33].
Exemplo de incidência do princípio da universalidade no ordenamento jurídico brasileiro é o artigo 7º, inciso II, alínea “a”, do Código Penal: ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir[34]. Pode-se encontrar esse princípio, ainda, no artigo 2º da lei de tortura, que expõe: “O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira”.
Dos princípios expostos, importante salientar que em nenhuma legislação há a adoção exclusiva de apenas um princípio delimitador da aplicação da lei penal no espaço[35]. O que se evidencia é combinação de cada princípio a casos específicos. Entretanto, nem sempre será simples a análise de delimitação do local do crime[36], nem a determinação do país competente para o julgamento de determinado delito.
Em função disso, várias são as teorias que buscam solucionar a questão do locus commissi delicti[37], v.g., teoria da intenção, teoria do efeito, teoria da atividade, teoria do efeito intermediário, teoria da longa mão, teoria limitada da ubiquidade e a teoria pura da ubiquidade[38].
Pela teoria da intenção, para determinar o lugar da infração penal, analisa-se o local que, consoante a intenção do agente, deveria ocorrer o resultado[39]. Assim, se um sujeito, querendo matar uma pessoa no Brasil e, nesse país, envenena-o, considerar-se-á ali o local do crime, mesmo que a morte da vítima verifica-se noutro lugar. A sua insuficiência é manifesta, pois não resolve as questões relativas aos crimes culposos e preterdolosos[40]. Nos delitos culposos, “a realização não querida do tipo legal é caracterizada pela desatenção, contrária ao dever, acerca do cuidado exigido no âmbito da relação”. Diferem dos crimes dolosos no que tange à “consciência e vontade acerca dos elementos do tipo objetivo”[41]. Desta forma, a insuficiência da teoria está no fato de ela não abranger em seu raio de delimitação do local do crime os delitos cuja intenção direta do agente está afastada.
A teoria do efeito (Erfolgstheorie) leva em consideração o local onde ocorreu o evento ou o resultado[42], i.e., onde ocorreu a consumação do crime, pouco importando a intenção do agente. Assim, v.g., se um fato delituoso é praticado no Brasil e o seu efeito atinge uma pessoa na Argentina (efeito intermédio), que só vem a consumar-se no Chile, considerar-se-á o lugar do crime apenas o Chile. Para essa teoria, o Estado abdicaria de sua soberania sob o argumento de que o eventus sceleris não ocorreu em seu território nacional. Atualmente essa teoria está desacreditada, pois “não é aceitável que o país onde foi praticada a ação (…) fique inibido de intervir, não obstante a direta violação da sua ordem jurídica com o momento executivo do crime”[43].
Conforme a teoria da atividade (Tätigkeitstheorie), também chamada de teoria da ação (Handlungstheorie), o lugar do delito será o local no qual o agente pratica a ação ou realiza a omissão[44]. A crítica que é direcionada a essa teoria consiste “na exclusão da atuação do Estado em que o bem jurídico tutelado foi atingido” e, consequentemente, onde os resultados provocados pela conduta do agente infrator são maiores[45]. Desta forma, no exemplo acima formulado, não poderia a Argentina e o Chile exercer a sua pretensão punitiva contra o agente delituoso, pois nenhum ato executivo do delito foi praticado dentro do seu território.
Pela teoria do efeito intermédio (Zwischenwirkungstheorie), será o local do crime o lugar no qual a energia posta em movimento pelo agente infrator atinge a vítima ou o bem jurídico tutelado[46]. Assim, pelo exemplo anteriormente exposto, considerar-se-á como o lugar do crime apenas a Argentina, excluindo do Brasil e do Chile a possibilidade do exercício da pretensão punitiva do agente infrator.
Já a teoria da longa mão (Langhandstheorie) é a combinação da teoria da atividade e da teoria do efeito intermédio, i.e., o lugar do crime será tanto aquele onde o agente exerceu sua atividade executiva, como onde ocorreu o efeito intermédio. Exclui-se, portanto, o lugar onde ocorreu a consumação do resultado típico[47].
A legislação brasileira adotou a chamada teoria pura da ubiquidade, dispondo, no artigo 6º do Código Penal, o seguinte: “Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou a omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”. A redação do atual diploma legal, aliás, difere quanto à expressão “ação ou omissão” do que anteriormente dispunha o artigo 4º do Código Penal de 1940, que se referia apenas ao “crime cometido”: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido, no todo ou em parte, no território nacional, ou que nele, embora parcialmente, produziu ou devia produzir seu resultado”.
Pela referida teoria pura da ubiquidade (reine Ubiquitätstheorie), também chamada de mista ou unitária, o lugar do delito será tanto o da ação, o do resultado ou do efeito intermédio[48]. Assim, conforme o exemplo acima exposto, se um fato delituoso é praticado no Brasil e o seu efeito atinge uma pessoa na Argentina (efeito intermédio), que só vem a consumar-se no Chile, considerar-se-á o lugar do crime os três países[49]. Com relação à participação, considerar-se-á o lugar do crime tanto “el lugar de la acción del partícipe, así como el lugar del hecho principal”[50]. Os atos preparatórios, entretanto, não influenciam na delimitação do locus delicti por ser uma situação atípica no Direito Penal[51].
Com a adoção da teoria pura da ubiquidade, soluciona-se o problema dos chamados crimes a distância (tais quais os crimes de informática), pois bastaria que “uma fração da atividade executiva do agente tenha sido praticada em território nacional ou tenha nele, embora em parte, produzido seu resultado”[52]. Desta forma, se um sujeito envia por e-mail um malware da Argentina, que vem a ser acessado no Brasil, porém o dano ao computador apenas ocorreu em Portugal, considera-se como o local do crime, se tipificado nos três países, tanto a Argentina como o Brasil e Portugal. Entretanto, a fim de se amenizar os efeitos na hipótese de o sujeito ser condenado pelo mesmo fato em vários países (bis in idem), dispõe o artigo 8º do Código Penal que “A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas”.
Ainda, pode-se dizer que a teoria pura da ubiquidade é a menos vulnerável dentre as teorias que buscam delimitar o lugar do crime. Conforme ensina HUNGRIA, a teoria “Não exige transigências de soberania e, se não evita os conflitos positivos de jurisdição, elimina os negativos, conjurando o desconforto de eventual impunidade do agente”. E é especificamente nesse ponto que essa teoria se sobressai sobre as demais. Explicamos: em uma situação hipotética, caso um crime seja praticado em um Estado cuja teoria adotada seja a do efeito, enquanto que o resultado consumado noutro, no qual adote a teoria da atividade, teríamos uma situação na qual nenhum dos dois Estados seria considerado competente para julgá-lo. Doutra banda, pode-se dizer que a teoria pura da ubiquidade aumentaria a incidência de bis in idem, cuja solução, conforme exposto supra, vem disposta no artigo 8º do Código Penal[53].
Em suma, conforme o exposto no artigo 6º do Código Penal Brasileiro, será aplicável a lei penal brasileira quando: (a) toda a atividade executiva do delito ocorreu no Brasil; (b) toda a atividade ocorreu no estrangeiro, porém o resultado verificou-se em território brasileiro; (c) tendo iniciada no Brasil, a ação continuou no estrangeiro; (d) tendo iniciada em território estrangeiro, continuou no Brasil; ou (e) da tentativa, o resultado deveria produzir os seus efeitos no Brasil[54].
Por fim, pela teoria limitada da ubiquidade (beschränkte Ubiquitätstheorie), considerar-se-á, como lugar do crime, tanto o local onde ocorreu a ação como onde o resultado foi produzido[55]. Segundo Hungria, a teoria limitada da ubiquidade é uma conjunção da teoria da atividade e da teoria do efeito. Conforme figura o autor, em um crime praticado no Brasil, cujo efeito intermédio tenha ocorrido no Uruguai, porém o resultado apenas se consuma na Argentina, consoante a referida teoria, considerar-se-á como o local do crime apenas o Brasil e a Argentina, excluindo o Uruguai. Essa delimitação, entretanto, é insuficiente, pois, assim, estaríamos excluindo o local onde ocorreu o efeito intermédio, sendo que, nesse lugar, em muitos crimes, é onde maior foi o abalo provocado pelo delito[56].
III – Do conflito de jurisdição nos crimes de informática
O termo jurisdição provém do latim jurisdictio e significa literalmente dizer (dictio) o direito (juris). O Exercício da jurisdição é, portanto, “dizer qual é e como é o direito”[57]. Desta forma, a jurisdição é a “função do Estado consistente em fazer atuar, pelos órgãos jurisdicionais”, “o direito objetivo a um caso concreto, obtendo-se a justa composição da lide”[58].
Explica Liebman que o objetivo da jurisdição é a aplicação efetiva da norma jurídica em vigor, impondo, por meio dos órgãos competentes, a regra de Direito que concretamente se aplica a determinada situação jurídica[59]. O juiz, desta forma, ao aplicar o direito objetivo ao caso concreto, substitui os titulares interessados no conflito e age consoante o ordenamento jurídico vigente[60]. Para Aury Lopes Jr, a “jurisdição é um direito fundamental (…) de ser julgado por um juiz, natural (cuja competência está pré-fixada em lei), imparcial e no prazo razoável.”[61]
Por sua vez, o conflito de jurisdição, conforme preceitua o artigo 114 do Código de Processo Penal, pode ocorrer quando: (a) “duas ou mais autoridades judiciárias se considerarem competentes, ou incompetentes, para conhecer do mesmo fato criminoso”; ou (b) “entre elas surgir controvérsia sobre unidade de juízo, junção ou separação de processos”[62].
O conflito positivo de jurisdição ocorre quando “órgãos judiciários reivindicam sua competência”, enquanto que, no conflito negativo de jurisdição, “as autoridades judiciárias se consideram incompetentes para conhecerem do mesmo fato criminoso”[63].
O Superior Tribunal de Justiça, quando da análise do conflito negativo de competência de um crime de publicação de imagens contendo pornografia infantil na internet (art. 241 da Lei 8.069/90), manifestou-se no sentido de que a competência “se firma pelo local da publicação ilícita”. Segundo o entendimento da corte, a consumação do referido crime ocorre “no momento da publicação das imagens, ou seja, aquele em que ocorre o lançamento na Internet das fotografias de conteúdo pornográfico”[64].
No mesmo sentido, em outro julgado de um conflito negativo de competência envolvendo o mesmo crime, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a fixação do juízo competente deverá ser aquele do local da consumação do delito. E, especificamente sobre o delito previsto no artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a consumação “ocorre no ato de publicação das imagens pedófilo-pornográficas”[65].
Em outro julgado, o STJ decidiu, com relação a um crime no qual a Internet é apenas um meio para a prática da infração, que “a competência para processar e julgar os crimes praticados pela internet, dentre os quais se incluem aqueles provenientes de publicação de textos de cunho racista em sites de relacionamento, é do local de onde são enviadas as mensagens”[66]. No mesmo sentido, em um crime de furto mediante fraude pela internet, decidiu-se que “é competente o Juízo do lugar da consumação do delito de furto, local onde o bem é subtraído da vítima”[67].
Quando, porém, são vários os locais de consumação de um delito praticado na Internet? A solução adotada pelo Superior Tribunal de Justiça foi: “[quando] interligadas as condutas, tendo a prova até então colhida sido obtida a partir de único núcleo, inafastável a existência de conexão probatória a atrair a incidência dos arts. 76, III, e 78, II, ambos do CPP, que disciplinam a competência. 4. Revela-se útil e prioritária a colheita unificada da prova, sob pena de inviabilizar e tornar infrutífera as medidas cautelares indispensáveis à perfeita caracterização do delito, com a identificação de todos os participantes da referida comunidade virtual.”[68] [69]
Decidiu-se, então, que a competência deveria recair sobre o Juízo Federal Paulista pela prevenção, definida no artigo 71 do Código de Processo Penal[70]. Note-se, porém, que em todos os julgados elencados houve a adoção da Teoria da Atividade e do artigo 70 do Código de Processo Penal como critério de definição do juízo competente para o processamento do crime.
Explica Aury Lopes Jr. que, “partindo de uma necessidade probatória, tem-se feito uma ginástica jurídica, criando-se um conceito de ‘consumação’ para o processo penal que não corresponde àquele previsto no Código Penal, adotando-se na prática a teoria da atividade”. Explica o autor que isso ocorreu por uma “necessidade probatória”, haja vista o fato de a maioria dos elementos de prova estarem onde ocorreu a ação do agente infrator, e não onde ocorreu o resultado propriamente[71].
IV – Do conflito de jurisdição nos crimes de informática
Com relação aos crimes de informática, a construção utilizada pela jurisprudência nacional se aplica com bastante razoabilidade. A adoção da Teoria da Ubiquidade em muito ajuda para, conforme exposto, evitar a incidência de um conflito negativo de competência e a desagradável impunidade do agente infrator por nenhuma das jurisdições serem consideradas o local da consumação do fato. Entretanto, ao caso concreto, i.e., faticamente, essa teoria não traz uma concreta e exata solução para a definição do local do crime.
Pela teoria pura da ubiquidade, considera-se como o lugar do crime tanto o local da ação, o do resultado ou o do efeito intermédio. No exemplo de um sujeito que envia por e-mail um malware da Argentina, que vem a ser acessado no Brasil, porém o dano ao sistema informático apenas ocorreu em Portugal, pode-se, pela teoria adotada no Brasil, considerar como o local do crime todos os três países. Entretanto, em uma hipótese de conflito de jurisdição envolvendo o fato, qual a solução que deverá ser adotada? A solução então adotada pela jurisprudência brasileira de aplicar de forma subsidiária à teoria pura da ubiquidade a teoria da atividade, justificando-se em uma maior facilidade de colheita de provas e de investigação, tendo em vista que as ferramentas para a perpetração do delito se encontram no local de sua ação, parece, se comparado às outras teorias, a mais razoável.
A teoria da atividade considera como o lugar do crime o âmbito espacial na qual o agente pratica a ação ou realiza a omissão. Conforme referido, a crítica direcionada a essa teoria consiste na exclusão da pretensão punitiva do Estado onde o bem jurídico foi efetivamente lesado, consequentemente, o local de maior impacto do delito. Entretanto, aplicando-se essa teoria de forma subsidiária à teoria pura da ubiquidade, i.e., verificando-se que ambos os Estados possuem jurisdição para atuar no julgamento do delito, juntamente com os artigos 70 e seguintes do Código de Processo Penal, tem-se uma solução que, em princípio, evitaria o desconforto de um conflito negativo de jurisdição, assim como a negação da pretensão punitiva ao Estado onde o bem jurídico foi lesado.
Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul foi bolsista de iniciação científica na área do direito penal atualmente é especializando em Ciências Penais pela mesma Universidade
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