Sumário: 1- Apresentação; 2- O Estado Democrático de Direito. A relevância do qualificativo “democrático”; 3- Posição sistemática do Ministério Público face às sucessivas ordens constitucionais brasileiras; 4- A natureza da função ministerial e a sua “independência institucional”; 5- Do tratamento jurisprudencial dispensado pelo STF acerca do Promotor Natural; 5.1- Algumas linhas a mais sobre o julgamento emblemático do HC 67759-RJ pelo Plenário do STF; 6- Dos fundamentos constitucionais do Princípio do Promotor Natural; 6.1- Princípios da Legalidade e Finalidade; 6.2- Princípios da Impessoalidade e da Igualdade; 6.3- Independência e Inamovibilidade; 6.4- Inciso LIII, do art. 5º, da Constituição Federal; 7- O Princípio do Promotor Natural, a LOMP (Lei 8625/93) e a LC 75/93. Brevíssimas anotações; 8- Conclusão.
1- Apresentação.
O presente trabalho busca enfatizar o sediamento constitucional do Princípio do Promotor Natural sem ostentar a aspiração de esgotar o tema em toda a sua plenitude.
Deixo de abordar questões relevantes de aplicação concreta do Princípio como se dá nos casos, por exemplo, da legitimidade para contra-arrazoar o recurso criminal (art. 600, parágrafo 4º do CPP), ou de eventuais implicações emanadas através da EC nº 45.
Atenho-me apenas em apontar que o Princípio tem sede constitucional e de manifestar o meu modesto inconformismo com a solução adotada na extração do voto médio, pelo STF, quando do julgamento mais importante acerca do tema, a saber, o HC 67759-2-RJ, que embora tenha reconhecido sede constitucional ao princípio, contraditoriamente, exigiu-lhe interpositio legislatoris para que vigesse de forma plena.
Tento também defender que a doutrina, ao esforçar-se para salvar da eiva de inconstitucionalidade, as disposições normativas veiculadas em artigos como os do art. 10, IX, f e g, art. 24 da Lei 8625/93, bem como o art. 57, XIII, da LC 75/93, abandona o critério do rigor científico para acomodar-se ao argumento de autoridade imposto pelo STF.
Com o perdão pelas possíveis impropriedades aqui lançadas, deixo por conta e risco do eventual leitor, o exercício do direito de pôr à prova a sua capacidade de tolerância e paciência.
2- O Estado Democrático de Direito. A relevância do qualificativo “democrático”.
A Constituição Federal Da República, no caput do seu primeiro artigo, proclama que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Não apenas em Estado de Direito.
A distinção, embora sutil, e não tão encarecida quanto deveria, contamina toda a leitura do Direito Brasileiro a partir da CF/88.
Qualificar um estado apenas como de direito, pouco se diz.
Se em sua formulação originária, “estado de direito”, concebia noções úteis à realização do Princípio Democrático, tais como a reverência à Legalidade, à separação de poderes e à consagração de direitos e garantias fundamentais, logo ao depois pôde servir, dada a fluidez plurissignificativa de seu título, às mais diversas concepções de organizações de poder.
Em seu “Curso de Direito Constitucional Positivo”, obra de caráter introdutório, porém absolutamente imprescindível ao iniciante no estudo da Ciência do Direito Constitucional, JOSÉ AFONSO DA SILVA, destaca a relevância da distinção entre as duas expressões, apontando que em “estado de direito” “seu significado depende da própria idéia que se tem do Direito”. Acresce, ainda, o enfoque de CARL SCHIMITT ao afirmar que “a expressão ‘Estado de Direito’ pode ter tantos significados distintos como a própria palavra ‘Direito’ e designar tantas organizações quanto as que se aplica a palavra ‘Estado’’” 1 .
Logo em seguida, o mesmo autor demonstra que a expressão “Estado de Direito” serviu de fundamento para a concepção dos tipos de Estados totalitários, a exemplo do Estado Facista.
Como anota UADÍ LAMMEGO BULOS, a CF/88 ao utilizar-se da expressão “Estado Democrático de Direito” “fê-lo acertadamente, porque quis reforçar a idéia segundo a qual Estado de Direito e democracia, bem como democracia e Estado de Direito, não são noções tautológicas, pleonásticas”, destarte, “devem por isto vir juntas e não separadas uma da outra, pois visam reforçar a concepção de que o Estado Democrático de Direito surge em oposição ao Estado de Polícia – aquele autoritário, que apregoa o repúdio às liberdades públicas, no sentido mais vasto e completo que esta expressão possa ensejar”2.
Assim sendo é de se ter em conta a importância da inscrição do Princípio Democrático como Princípio Fundamental.
UADÍ anota ainda que “o qualificativo, fundamentais, dá a idéia de algo necessário, sem o qual inexistiria alicerce, base ou suporte.” E mais, que “os princípios fundamentais, além de assegurarem a unidade sistemática da constituição, atuam como vetores para soluções interpretativas e, por isso, dirigem-se ao Poder Público por intermédio de seus Órgãos Legislativo, Executivo e Judiciário”3.
Esta última observação do Professor UADÍ é de crucial importância para que se compreenda bem a verdadeira compostura principiológica da Ordem Democrática a alcançar, inclusive o Ministério Público. E, alcança-o – desde a fixação de suas atribuições até a atuação dos seus membros em casos concretos.
Se o Princípio Democrático é Princípio Fundamental (art.1º, caput, da CF) e o curador primacial de tal princípio é o Ministério Público (art.127, caput, da mesma CF) a ele não há negar-se total submissão a este princípio.
Aí está o vetor essencial de sua atuação. A “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. (art.127, caput, da CF). Com meu grifo.
Constituir-se, pois, em Estado Democrático de Direito, e não meramente em Estado de Direito, significa que este estado “se funda no princípio da soberania popular”, na “garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana”, “no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais” (JOSÉ AFONSO DA SILVA), bem como “serve para abranger os valores que informam a República (…)”, “(…)dentre os quais (…) do devido processo legal (em toda a sua extensão), da igualdade de todos perante a lei(…)”, (UADÍ LAMMEGO BULOS)4/5. Com meus grifos.
Sendo o Ministério Público, por expressa destinação constitucional (art. 127, caput, da CF), o curador do regime democrático, bem como da ordem jurídica, cumpre-lhe orientar-se pelos vetores vertidos na fonte primeira da ordem jurídica, vale dizer, a Constituição Federal.
Se deve o parquet promover a defesa de tais vetores, deve, antes obedecê-los. Põe-se uma relação de suposto a pressuposto. Não se pode conceber uma instituição constitucionalmente competente para promover a defesa de uma ordem e que, ao mesmo tempo, considere-se ela própria à margem daquela ordem a que se lhe incumbe defender.
3- Posição sistemática do Ministério Público face às sucessivas ordens constitucionais brasileiras.
Perquirir das origens remotas do Ministério Público, talvez implique num distanciamento indesejável e inútil aos objetivos do presente estudo.
Para os modestos fins aqui propostos, parece suficiente pesquisar, de forma breve, a evolução do seu enquadramento face ao ordenamento jurídico brasileiro.
Imagino que a definição de seu verdadeiro status diante dos demais entes que compõem a estrutura de poder constitucionalmente traçada, pode ajudar na exata compreensão dos termos em que se põe a questão da independência funcional.
Pois bem, nota –se que a Constituição Imperial de 1824 consagrou, apenas, a figura do Procurador da Coroa e da Soberania Nacional (art.48), atribuindo-lhe aquela acusação não pertinente à Câmara dos Deputados. Apenas e tão somente. Sem fazer qualquer referência institucional ao Ministério Público, e sem inserir dado algum que permitisse qualquer comparação do tal Procurador da Coroa com o que hoje se tem por Ministério Público6.
Tais Procuradores da Coroa eram agentes do Imperador que não possuíam quaisquer garantia ou autonomia. Apenas o Código de Processo de 1832 exigia-lhe a qualidade de “bacharel idôneo” para que pudesse desempenhar a função7 .
Com o advento da Constituição republicana de 1891, também, ainda, não fez menção expressa ao Ministério Público institucionalmente, senão para determinar-lhe que o Procurador-Geral fosse escolhido dentre um dos membros do Supremo (art. 58, parágrafo 2º) 8 e 9 .
JOSÉ AFONSO DA SILVA, aponta a Lei 1030 de 1890 como sendo a primeira norma positivada a organizar o Parquet como instituição10. Já POLASTRI aponta o Decreto 848 de 1890 como sendo a primeira consagração normativa do Ministério Público como instituição11.
O fato é que somente com o advento da Carta de 1934 é que o Ministério Público foi constitucionalmente institucionalizado de forma expressa e específica como sendo um dos órgãos de cooperação das atividades governamentais (arts. 95 a 98) 12/13. Nesta ocasião estabeleceu-se a necessidade de aprovação pelo Senado do nomeado ao cargo de Procurador-Geral da República, além de se estabelecer, ainda, os Ministérios Públicos Militar e Eleitoral 14.
Por ocasião do governo do “Pai dos Pobres” (Getúlio Vargas, a saber – por sinal não só pai dos pobres, mas também de toda produção normativa basilar em matéria criminal do país, a exemplo do nosso Código Penal bem como do nosso “primoroso” Código de Processo Penal, que absurdamente vigem até hoje), produziu-se em nível constitucional um nítido retrocesso do Ministério Público no país.
Nesta Constituição de 1937, o Ministério Público deixou de ser tratado de forma específica e expressa para ser abordado de forma esparsa e difusa, retirando-lhe, nitidamente, a força institucional que ganhara com o tratamento que lhe fora dispensado pela Carta anterior.
Em 1946 com a promulgação de outro Texto Constitucional, já este, de cunho democrático restabelece-se a sua força institucional, destinando-lhe capítulo próprio (arts. 125 a 128) a tratar da organização, ingresso na carreira por concurso público, além das garantias de estabilidade e inamovibilidade, bem como os critérios de escolha do Procurador-Geral que tinha legitimidade para a “representação de inconstitucionalidade”15/16 e foro especial nos crimes de responsabilidade e comuns, além de já prever o quinto constitucional para a composição dos tribunais17.
A Carta de 1967, posterior à “revolução”de 1964, em seu texto originário, embora tendo alocado o Ministério Público para a secção do Poder Judiciário (arts.137 a 139) não retrocedeu nos avanços promovidos pela Constituição de 1946.
Todavia, logo ao depois, este Texto foi radicalmente modificado por Emenda Constitucional (nº.1). Tal alteração foi tão expressiva que chegou a ser apelidada de “Carta de 1969”. Já então o Parquet passou a figurar na estrutura do Executivo tendo seu Procurador-Geral demissível ad nutum o que traduzia a imposição institucionalizada de sua submissão àquele poder. Sem embargo, esta emenda aumentou os poderes do Chefe da Instituição 18/19.
Adveio, então, a Emenda nº 7, em 1977, a prever lei complementar a fim de que se estabelecessem normas gerais para os Ministérios Públicos estaduais, que foi editada em 1981 (LC nº 40) onde se dava a primeira definição legal da atividade que lhe era afeta, bem como regras sobre organização, princípios institucionais, foro por prerrogativa de função, organização da carreira, vedação ao promotor ad hoc etc 20.
Com a promulgação da Constituição de 1988, coloquialmente adjetivada de Constituição “Cidadã”, o Ministério Público recebeu um tratamento privilegiado ao comparar-se com as edições normativas anteriores. A nova feição que lhe foi dada e a importância que se lhe outorgou foi tamanha que mais parece ter-se criado uma nova instituição, diversas das anteriormente concebidas, eventualmente, sob o mesmo rótulo. A nova roupagem que lhe foi atribuída, principalmente no que concerne às garantias institucionais, fez-lhe instituição pública sem paralelo, inclusive, no direito comparado.
Considerando a particularidade inaugurada pela Carta de 1988 cumpre considerar tal tratamento em tópico apartado.
3.1- O Ministério Público na Constituição federal de 1988.
A feição outorgada pela Carta de 88 ao Ministério Público foi de tal maneira generosa a ponto de levar um autor da envergadura de um HUGO NIGRO MAZZILLI a chegar ao ponto de afirmar que esta fê-lo “quase erigindo-o a um quarto poder”21.
É evidente que o grande Professor fez uma tal assertiva valendo-se de uma figura de linguagem. Embora a evidência dos termos literais com que se pôs tal dizer, não faltou quem atribuísse ao Professor a pecha de ter afirmado que a partir de então o Ministério Público constituía-se num quarto poder.
Ora, primeiro, não foi isto o que disse o professor MAZZILLI, segundo, embora lhe tenha, a Constituição, conferido-lhe uma feição relevantíssima, não chegou ao ponto de colocá-lo como um dos poderes da República. Antes, situou-o como Função Essencial à Justiça de par com a Advocacia Pública e Privada, bem como à Defensoria Pública.
Tal discussão chega a merecer o qualificativo de cerebrina.
Do ponto de vista topográfico alocou-o em lugar distinto e próprio em relação aos demais poderes.
Imcumbiu-lhe, no art. 127, caput, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Outorgou-lhe a preciosíssima independência funcional, bem como a unidade e indivisibilidade enquanto princípios institucionais. (pf. 1º, do art. 127).
Assegurou-lhe a autonomia funcional e administrativa com legitimidade para tomar a iniciativa legislativa para a criação e extinção de cargos e serviços auxiliares, a serem providos mediante concurso público, e da sua política remuneratória e planos de carreira. (pf. 2º, art. 127).
Não lhe conferiu, todavia, legitimidade para a iniciativa legislativa da proposta orçamentária que deve, a seu turno, integrar-se ao orçamento geral (pf. 3º, art. 127).
Outorgou-lhe, ainda as garantias da vitaliciedade (não, apenas, a mera estabilidade), a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídio (art. 128, I, a, b, e c, respectivamente). Também as vedações decorrentes do inciso II constituem-se em garantia: a saber, garantia da imparcialidade no dizer preciso de JOSÉ AFONSO DA SILVA22.
Discrepa do objetivo do presente trabalho a minudenciação de todos os aspectos constitucionais atribuídos ao Ministério Público. Neste ponto, apenas me ative a enunciar, sem qualquer aprofundamento, àqueles aspectos que me parecem inegavelmente imbricados com a questão do Promotor Natural. Muitos destes aspectos, inevitavelmente, voltarão à baila.
4- A natureza da função ministerial e a sua “independência institucional”.
Embora não encartado expressamente em qualquer dos poderes da República, parece inegável que a atuação ministerial só encontra classificação razoável em sede administrativa.
Sintetiza-se o que aqui se quer afirmar no dizer magistral do Professor UADÍ: “Como prover a execução das leis não é atividade legislativa, nem tampouco jurisdicional, o critério residual obriga-nos a concluir que resta ao Parquet enquadrar –se no bojo da função administrativa. Nesse contexto encontra a razão de ser, sua independência e liberdade”23.
Na mesma toada segue JOSÉ AFONSO DA SILVA “(…) suas atribuições mesmo ampliadas aos níveis acima apontados são ontologicamente de natureza executiva, sendo, pois uma instituição vinculada ao Poder Executivo, funcionalmente independente, cujos membros integram a categoria dos agentes políticos, e, como tal ‘hão de atuar com plena liberdade funcional’(…)”24 .
Destes dizeres extrai-se de logo uma advertência: não é por sua função ser de natureza administrativa que se lhe aplica o Princípio da Hierarquia em toda a sua plenitude. Na verdade o que lhe peculiariza é oposto: a independência funcional, que mitiga o princípio da hierarquia. É de notar que os dois autores citados, logo após identificarem a natureza da função ministerial como sendo administrativa, ressalvam-lhe a sua nota essencialmente distintiva – a independência funcional.
“(…). Isto, contudo, não lhe subtrai a condição de instituição vinculada ao Poder Executivo, o que jamais significa depreciar a sua independência. Ao contrário seus membros integram a categoria dos agentes políticos. Atuam sem ingerências externas, porque possuem responsabilidades constitucionais próprias, além de outras previstas em lei” 25.Com meu grifo.
Se o princípio da hierarquia aplica-se-lhe de forma mitigada de modo a jamais interferir com a independência funcional (ainda que indiretamente), por suas vezes, os princípios do caput do art. 37 da CF/88, notadamente os da Legalidade, Impessoalidade e Moralidade, incidem contundentemente.
Não há supor-se atividade administrativa à revelia da prescrição principiológica consagrada no art. 37 da Constituição.
Esta submissão do Ministério Público ao caput do art. 37 relaciona-se de forma incisiva com o objeto do estudo aqui proposto.
Como excelente exemplo disso tem-se a fala do Professor MAZZILLI: “(…). A não ser assim, seria possível a manipulação de distribuição de casos concretos (inquéritos civis, inquéritos policiais e processos judiciais), com sérios danos à impessoalidade da administração”26. Grifei.
À frente, pretende-se abordar de maneira mais pormenorizada acerca de como se dá a incidência de tais princípios sobre o atuar ministerial. Neste momento, busca-se, apenas, demonstrar que a atuação do Ministério Público, por ser de natureza administrativa, não pode arredar-se do quanto prescrito no caput do art. 37.
Acerca das falas dos Professores UADÍ e AFONSO devo acrescentar que não vejo como discordar de que a atuação do Ministério Público seja de natureza administrativa. Entretanto, não posso acompanhar a assertiva segundo à qual se trate de órgão “vinculado ao Poder Executivo”.
O exercício de função administrativa nunca foi exclusividade do Poder Executivo. Tanto o Poder Legislativo, quanto o Judiciário, desempenham tais funções, e, nem por isso se pretende encartá-los no Poder Executivo.
A Constituição diante das funções e princípios institucionais particularmente atribuídos ao Parquet parece desautorizar uma tal conclusão.
O escopo de atuação dos órgãos do Executivo não parece ser, exatamente, o mesmo que o do Ministério Público. Embora ambos atuem com a finalidade de “promover a execução das leis”, cada um o fará de acordo com o seu perfil de atuação conforme estabelecido na Constituição.
Se ao Executivo cabe a “promover execução das leis”, o é no sentido de elaborar e efetivar um programa de decisões de governo – sem desbordar da bitola constitucional; ao Ministério Público, “promover a execução das leis”, quer dizer velar pela correta aplicação das leis, pela higidez da ordem jurídica etc. Se ao Ministério Público cabe zelar pela efetivação de uma decisão política fundamental, o é no sentido de fazer prevalecer os princípios democrático, republicano; os princípios, direitos e garantias fundamentais etc.
Vale dizer, se a ambos incumbe “promover a execução das leis”, o sentido em que isto se efetivará não será idêntico.
E tanto é assim que a própria CF/88 alocou o parquet fora do Poder Executivo. Esta particularidade não pode ser desprezada.
Deste modo é de se entender que a natureza da função ministerial é, sim, de natureza administrativa, entretanto não é mais possível sustentar-se que o Ministério Público encontre-se “vinculado ao Executivo”.
Nem mesmo a limitação do parágrafo 3º, do art. 127, mostra-se suficiente para arredar tal conclusão. Parece que, no particular, o que preponderará para demonstrar a “independência institucional” do Ministério Público é a sua destinação constitucional, bem como os princípios informadores do seu atuar.
Entretanto o que se pretende encarecer neste tópico é que o Ministério Público deve total reverência aos princípios administrativos sediados no art. 37, caput, da CF/88. Aliás, no meu modesto entender, todo e qualquer agente público, pertença a qualquer dos poderes, exerça qualquer das três funções, está invariavelmente alcançado pelo caput, do art. 37.
Entendo que o art. 37, caput reporta-se não só à Administração no sentido estrito dos exercentes de função executiva, mas como norma geral aplicável a todo àquele a que caiba o exercício de qualquer múnus público. E, na voz do Professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, onde há função não há autonomia da vontade, pelo contrário, “há adscrição a uma finalidade previamente estabelecida, e, no caso da função pública, há submissão da vontade ao escopo pré-traçado na Constituição ou na lei”27.
E, ainda, ROGERIO LAURIA TUCCI: “Finalidade pública opõe-se a interesse subalterno, seja de pessoas ou de instituições, ainda que estatais”28.
5- Do tratamento jurisprudencial dispensado pelo STF acerca do Promotor Natural.
A primeira manifestação do STF em torno do Promotor Natural foi no sentido de negá-lo.
Este entendimento foi vertido no julgamento do RHC 48.728-SP, à égide da Constituição de 1967/69.
Embora não tenha se constituído na tese vencedora, naquela ocasião o Ministro ANTONIO NEDER lançou, pela primeira vez, as sementes do que haveria de ser parte da fundamentação constitucional do Princípio do Promotor Natural.
Ali, buscava o eminente Ministro, fundamentá-lo como sendo uma extensão do Juiz Natural, e uma decorrência da Legalidade e do Devido Processo Legal.
Àquela época o membro do Ministério Público não gozava de vitaliciedade, mas de estabilidade. Defendia, o Min. NEDER, que a estabilidade, garantia não só o cargo, mas, também, as atribuições legais. Neste passo, tentou estabelecer um paralelo entre a inamovibilidade, atribuída ao juiz, e a estabilidade, atinente ao promotor. Ali dizia que do mesmo modo que “a inamovibilidade do juiz abrange o cargo e a jurisdição, de igual modo a estabilidade do componente do MP abrange o seu cargo e o conjunto de suas atribuições, pois retirar uma destas constitui forma de oblíqua de torná-lo instável com ofensa à Constituição”. Grifei.
Fundado no Juiz Natural o Ministro NEDER, entendia que “se não é permitido o julgamento de exceção, obviamente não se pode conceber acusador de exceção”.
Entretanto, venceu a tese capitaneada pelo Min. Relator LUIZ GALLOTTI. Segundo o Relator “O que não se pode escolher é o juiz. O Procurador Pode”. A Constituição seria expressa com relação a vedação ao Tribunal de Exceção, nada tendo “escrito” no que concernia ao acusador de Exceção.
Já no HC 67.759-2-RJ, sob a regência da Carta de 88, o Pleno do STF, sob a Relatoria do Min. CELSO DE MELLO, reconheceu o postulado do Promotor Natural a vedar o acusador de exceção. MARCELO RIBEIRO NAVARRO DANTAS, com razão, diz ser este “o seu mais importante julgado sobre a matéria, o qual pode ser considerado, até hoje, como o referencial básico da posição da nossa Corte Maior sobre o promotor natural”29. Grifei.
Neste julgado o relator identifica como matriz constitucional do postulado as cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade de forma a limitar o poder de designação do Procurador-Geral.
O Relator (CELSO DE MELLO), embora tenha encontrado a sede constitucional do Princípio, foi pela necessidade de interpositio legislatoris a dar conta de sua aplicabilidade plena. SYDNEY SANCHES não reconheceu sua sede constitucional, mas entendeu que a CF, entretanto, não vedava sua instituição por norma infraconstitucional.
Entendiam que a norma seria de aplicabilidade imediata os Mins. SEPÚLVEDA PERTENCE, CARLOS VELLOSO e MARCO AURÉLIO.
De outro lado, PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES rejeitavam integralmente qualquer forma de aplicação do Princípio.
Em sede não mais de Plenário, mas no âmbito da 2ª Turma, no HC 68.966-RJ, relatado por FRANCISCO REZEK, o Princípio foi rejeitado com o voto vencido do Min. MARCO AURÉLIO. Enquanto isso, a 1ª Turma, no HC 68.793-3-DF, o confirmava.
O Pleno do STF voltaria ao tema no HC 69.599-0-RJ, sob a Relatoria do Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, mantendo o reconhecimento de que o Princípio encontrava fundamento na Constituição, mas agora tratava de conciliar o Postulado com a existência de grupos especializados de trabalho. Concluiu-se que o reconhecimento do Princípio não colide com a criação destes grupos especializados na medida em que obedecerão a critérios objetivos de designação.
Neste mesmo sentido o HC 70290-2-RJ.
A partir deste ponto passou o STF a acenar para uma tendência à pacificação de seu entendimento a favor do Princípio do Promotor Natural.
A respeito, veja-se os seguintes julgados:
I) HC 71.429-3-SC, na 1ª Turma, relatado por CELSO DE MELLO, à unanimidade;
II) AGRAG 169.169-8-CE, na 1ª Turma, relatado por ILMAR GALVÃO, à unanimidade;
III) HC 74.052-9-RJ, na 2ª Turma, relatado por MARCO AURÉLIO, também à unanimidade;
IV) HC 77.723-7-RS, na 2ª turma, relatado por NÉRI DA SILVEIRA, então por maioria;
V) RHC 80.476-4-SC, na 1ª turma, relatado por SYDNEY SANCHES, à unanimidade;
VI) HC 81.998-2-GO, na 1ª turma, relatado por SEPULVEDA PERTENCE, à unanimidade.
E, por fim, na contra-mão do que até então vinha pacificado, veio o RE 377974-DF, no âmbito da 2ª Turma, relatado pela Min. ELLEN GRACIE, ressuscitando conclusão similar à do julgamento do RHC 78.428-SP, ao fundamento de que o Princípio do Promotor Natural contradiz o Princípio da Indivisibilidade, ou seja, não só não encontra apoio na CF como é, em verdade, inconstitucional.
Ainda bem que tal disparate foi proferido em sede de Turma e não do Pleno.
Todavia é um retrocesso preocupante.
5.1- Algumas linhas a mais sobre o julgamento emblemático do HC 67.759-2-RJ pelo Plenário do STF.
Como bem disse o Professor MARCELO NAVARRO RIBEIRO DANTAS o julgamento deste Hábeas Corpus constituiu-se no “referencial básico” a espelhar o entendimento do Plenário do STF acerca do tema30.
Em sendo desta maneira parece importante observá-lo mais de perto.
Modestamente entendo como o trecho mais importante de todo o julgado o seguinte:
“A nova disciplina constitucional do Ministério Público redefiniu o sentido e o caráter de sua ação institucional, para que nele se passe, agora, a vislumbrar o instrumento de preservação de um ordenamento democrático”.
Ao que parece este dizer condensa toda a fundamentação teleológica da linha de argumento adotada pelo Ministro.
Para ele o Ministério Público ressurge “deixando de ser o fiscal de qualquer lei, convertendo-se no guardião da ordem jurídica”, de modo a abandonar uma posição de “neutralidade axiológica” “para avaliar criticamente o conteúdo da norma” a fim de “neutralizar o absolutismo formal das regras legais” e, desta forma, realizar o Princípio Democrático.
Neste passo, ressalta que, se outrora a função ministerial satisfazia-se com “o mero e insuficiente controle formal da legalidade”, agora, cumpre-lhe exercitar o “poder de verificação e de tutela sobre a legitimidade ética e política da própria norma de direito”.
Tomando em conta a literalidade do julgado, e para além da fundamentação teleológica, o Ministro encontra sede formal do Princípio, principalmente, a partir das cláusulas da independência e da inamovibilidade.
O Ministro Relator aponta como sendo a gênese do Princípio do Promotor Natural a independência funcional do membro do Ministério Público.
Num só trecho do julgado revelam-se dois pontos essenciais: primeiro a relação de decorrência lógica entre a independência e a inafastável conseqüência do Promotor Natural, e, depois, acerca do alcance do princípio, que se destina a proteção tanto do Promotor, individualmente considerado, quanto da própria coletividade.
Eis o trecho: “(…) trata-se de garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro da Instituição, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente de seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e predeterminados, estabelecidos em lei”. Grifei.
Em momento posterior volta-se para o conteúdo específico do Princípio de maneira que “repugnam interferências ilegítimas da Chefia da Instituição, que rompem, mediante designações casuísticas e arbitrárias, a regular ordem de distribuição dos processos e encargos funcionais”.
Daí já se infere, de logo, o próprio conteúdo do Postulado do Promotor Natural: a vedação às designações arbitrárias.
6- Dos fundamentos constitucionais do Princípio Do Promotor Natural.
“Dos fundamentos”, no plural. Como se tentará demonstrar vários autores (e julgados) apontam fundamentos ao Princípio do promotor Natural através de uma série de preceitos espraiados pelo Texto Constitucional.
Antes de adentrar no cerne do tópico parece proveitoso lembrar, a título de pressuposto introdutório ao tema, o seguinte dizer do Professor LUÍS ROBERTO BARROSO:
“O processo de interpretação constitucional deve ser informado, antes e acima de tudo, pelos princípios constitucionais, que contêm a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica. São os princípios que contêm as decisões políticas fundamentais e que dão unidade ao sistema constitucional, costurando suas diferentes partes e condicionando a atuação dos Poderes Públicos. Eles se irradiam por todo o sistema, indicando o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos pelo intérprete”31.
Acrescenta ainda: “os princípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica”32.
A partir do Ordenamento Constitucional inaugurado pela Carta de 88 a questão dos princípios, se já era importante, passou a ostentar relevo ainda maior. A própria Constituição é pródiga em prescrições principiológicas, notadamente, no seu art. 5º, prescritor dos direitos e garantias individuais. Tal preceito é de tamanha relevância que constitui núcleo pétreo do Texto, conforme art. 60, parágrafo 4º, IV.
6.1-Princípio da Legalidade (e Finalidade).
Primeiramente é de considerar-se os Princípios da Legalidade e da Finalidade.
O princípio da legalidade vem inscrito de forma expressa nos art. 5º, II e 37 da CF.
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, expõe de forma muito clara o seu preciso teor “Nos termos do art. 5º, II, ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Ai não se diz ‘em virtude de’ decreto, regulamento, resolução, portaria ou quejandos. Diz-se em ‘virtude de lei’”33.
E quando aí se diz lei reporta-se a lei em sentido formal, aquela emanada de órgão dotado de legítimo poder legiferante.
No entendimento de BANDEIRA DE MELLO o Princípio da Legalidade é “a submissão do Estado à lei”, e que “a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal”.
E mais, brota como corolário da Legalidade, a Finalidade.
O Professor CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO diz que “o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais do que isso, é uma inerência dele…”34. Pois “(…) é na finalidade da lei que reside o critério norteador de sua correta aplicação, pois é em nome de um dado objetivo que se confere competência aos agentes da Administração”.
Veja-se que embora o ato que fixa a relação dos promotores, individualmente considerados, e em concreto, lotados perante as diversas promotorias, tal e qual ocorre com os juízes, não é lei em sentido formal, e nem por isso é de supor-se que não se encontre bitolado pelos princípios da legalidade nem a finalidade.
Considerando-se o que diz BANDEIRA DE MELLO acerca do critério pautado em “um dado objetivo” para que se possa realizar a correta aplicação da lei, o ato infralegal, vocacionado a complementar, integrar o sentido da norma, in concreto, não pode desbordar dos limites estabelecidos pela própria lei. Ocorre que se os critérios de integração da lei são de ordem subjetiva, como se dá com as designações arbitrárias, resta desatendida a finalidade legal – a pretexto de cumpri-la.
Ademais, conforme ROGERIO LAURIA TUCCI: “Finalidade pública opõe-se a interesse subalterno, seja de pessoas ou de instituições, ainda que estatais”35.
Sendo assim, o Procurador-Geral ao elaborar a lista dos promotores a atuar genericamente, o faz de forma objetiva.
Diversamente, quando designa casuística e arbitrariamente, o faz pautado por critérios de ordem meramente subjetiva, desatendendo o princípio da finalidade, e pois, o da legalidade.
Do ponto de vista da legalidade estrita e literal, o Promotor Natural, como ver-se-á adiante, encontra-se fulcrado no inciso LIII do art. 5º, por conta da expressão “processado”.
Sendo assim, o ato que, ao designar o promotor (ou o juiz), o faz subjetiva e não objetivamente orientado, macula-se de inconstitucionalidade por ferir a estes dois princípios.
Estas assertivas encontram eco também na doutrina dos Professores UADÍ LAMMEGO BULOS e HUGO NIGRO MAZZILLI.
Segundo o Professor UADÍ LAMMEGO BULOS há de se “propiciar ao acusado o direito de ser acusado por órgão livre e independente, nos moldes do pórtico geral da legalidade (art. 5º, II)”36.
HUGO NIGRO MAZZILLI, em “O Ministério Público no Processo Penal”, assevera que “o poder de designação (ou delegação ou avocação) do Procurador –Geral da Justiça é limitado pela Legalidade do ato”37.
6.2- Princípios da Impessoalidade e da Igualdade.
Em “A defesa dos interesses difusos em juízo”, HUGO NIGRO MAZZILLI38, faz remissão ao seu “Regime Jurídico do Ministério Público”, apontando que na elaboração daquele trabalho buscou conferir-se “verdadeira infra-estrurura administrativa para os agentes do Ministério Público”, o que demonstra da sua preocupação em sublinhar o entendimento de que a natureza da função ministerial é, mesmo, administrativa.
E, sendo administrativa, não há negar-lhe a completa submissão ao Princípio da impessoalidade, insculpido no caput do art. 37, da CF/88.
Por isto, frisa o autor que “Surgiria grande insegurança para os órgãos da instituição e para a coletividade se as atribuições da cada integrante da promotoria não fossem previamente disciplinadas por bem definidos critérios legais. A não ser assim, seria possível a manipulação da distribuição em casos concretos (inquéritos civis, inquéritos policiais, e processos judiciais) com sérios danos à impessoalidade da administração”39.Com meu grifo.
No entender de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO o princípio da impessoalidade implica em que através dele se traduz a idéia de que “a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas”40 .
É de notar que embora BANDEIRA DE MELLO, encareça o princípio sobre a ótica de proteção ao administrado, MAZZILLI o faz sem desprezar as outras valiosas vertentes do princípio: a ótica de proteção à coletividade e aos próprios promotores.
Noutro passo, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO chama atenção para a necessária relação entre a impessoalidade e a igualdade: “assim como ‘todos são iguais perante a lei’ (art. 5º, caput), a fortiori teriam de sê-lo perante a administração”41.
Realmente não há igualdade sem impessoalidade, embora a igualdade não se esgote na impessoalidade.
Na vertente do Processo, uma das manifestações do princípio da Igualdade dá-se através do Princípio do Promotor Natural.
O eminente Ministro do STF, MARCO AURÉLIO DE MELLO, em julgamento de HC, colhido na RTJ 150/123 (pg. 203/204) proclama: “Passaram a ser processadas mediante atuação de Promotor Especial – e entenda-se esta expressão no sentido da escolha -, olvidando-se, com isto a excomunhão, em termos constitucionais, do juízo de exceção, a vinculação a formalidades de caráter abstrato – inc. III – e, ainda mais, a igualdade que é o lastro de uma série de direitos – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição – inc. I do mencionado art. 5º”. Grifei.
Adiante acresce “(…) Discriminou-se, de forma atentatória, o direito das Acusadas de terem o mesmo tratamento deferido àqueles envolvidos nos demais processos em tramitação na referida vara”. Grifo meu.
LUIGI FERRAJOLLI ao tratar do Juiz Natural afirma que “a proibição de juízes especiais e extraordinários é antes uma garantia de igualdade, satisfazendo o direito de todos a ter os mesmos juízes e os mesmos procedimentos”42.
Por óbvio que o raciocínio aplica-se em sua inteireza ao Promotor Natural.
Destarte encontra fundamento também na Igualdade, o Princípio do Promotor Natural.
6.3- Independência e Inamovibilidade.
Quanto à Inamovibilidade, em primeiro lugar, cabe a advertência do Professor PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO, no sentido de que “não deve ser encarada do ponto de vista geográfico (…), mas sim a inamovibilidade na função, ou seja nas respectivas atribuições”43.
Feita esta advertência cabe conceituar a inamovibilidade.Tal garantia protege o membro do Ministério Público contra qualquer investida no sentido de subtrair-lhe as funções. A Constituição só admite-lhe exceção em caso de relevante interesse público assim reconhecido pelo órgão colegiado mediante decisão da maioria absoluta e assegurada a ampla defesa.
Esta a única exceção constitucionalmente admitida pela CF/88.
No entender do supracitado autor a inamovibilidade só encontra razão de existir, na medida em que deva haver um promotor natural para cada processo.
Ao formular uma pergunta dialética, sintetiza, com brilho, seu entendimento: “Caso o Princípio do Promotor Natural não existisse, qual seria a razão de ser da garantia da inamovibilidade?”.
Também, HUGO NIGRO MAZZILLI, tem a inamovibilidade como fundamento do Promotor Natural: “O princípio do promotor natural significa, portanto, a existência de órgão do Ministério Público escolhido por prévios critérios legais e não casuisticamente. Não fosse assim a garantia constitucional da inamovibilidade do órgão ministerial seria uma falácia”44.
Realmente ao garantir a inamovibilidade a CF incorporou o Princípio do Promotor Natural.
Até certo ponto, falar da inamovibilidade e do Promotor Natural é falar da mesma coisa com nomes diversos.
Se a inamovibilidade constitui-se na garantia do promotor de não ser subtraído do exercício de suas funções, o Princípio do Promotor Natural não diz nada diverso. Apenas é garantia mais ampla do que a inamovibilidade na medida em que visa a proteger não só o membro do Ministério Público, mas também o imputado e à coletividade.
Autores do porte de UADÍ LAMMEGO BULOS45, SERGIO DEMORO HAMILTON46 , PEDRO LENZA47 confirmam uma tal conclusão.
No que toca à independência a questão salta ainda mais.
Para PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO48 é o mais importante dos fundamentos do Promotor Natural. E, realmente, parece ser assim.
Afirmo isso porque a inamovibilidade parece ser não mais que uma vertente da independência.
O “Princípio maior da instituição”, no dizer do Professor, é por ele definido como aquele “que se traduz no direito de o promotor ou procurador de justiça oficiar livre e fundamentadamente de acordo com a sua consciência e a lei, não estando adstrito, em qualquer hipótese, à orientação de quem quer que seja”49.Grifei.
Ressalta ainda que “esta independência funcional é ilimitada, não estando o membro do parquet sujeito sequer a orientações do Conselho Superior do Ministério Público para o desempenho de suas funções, ainda naqueles casos em que se mostre conveniente a atuação uniforme (…)”50. Grifei.
A única hierarquia admitida em sede de Ministério Público é aquela meramente administrativa, jamais funcional. Tal hierarquia versa apenas sobre o exercício da função do Procurador-Geral no que toca à “direção e organização dos serviços administrativos da instituição (…)”51.
Para MAZZILLI a “independência é o oposto de hierarquia funcional”52.
O Professor UADÍ encarece que “a única hierarquia vislumbrada na configuração constitucional do Ministério Público brasileiro é de ordem administrativa, jamais funcional, partindo da chefia da instituição”53.
Para este autor o Princípio da Independência é de tal importância que “constitui crime de responsabilidade do Presidente da República o cometimento de atos atentatórios ao livre exercício da instituição ministerial (art. 85, II)”54.
ROGERIO LAURIA TUCCI, entende que por ser “um dos postulados institucionais do Ministério Público a independência funcional, dele decorre a imprescindibilidade de predeterminação, por lei, do membro da instituição que deverá atuar em cada, e taxativamente estabelecida, espécie de processo (vale dizer, ‘da existência de um promotor natural para cada causa)”55.
Citando MAZZILLI e NELSON NERY JÚNIOR ele entende que “a pessoa física envolvida na persecutio criminis deve ser não só julgada, mas também acusada, por órgão independente do Estado, previamente indicado em lei (…)”56.
De fato uma das formas de burla a independência funcional é a designação casuística de um promotor para atuar em feito originariamente atribuído a outro. Não há como negar a designação casuística como forma clara de afronta à independência funcional.
Neste sentido o Princípio do Promotor Natural é um dos desdobramentos possíveis da Independência funcional.
Um ponto que chama atenção neste tópico é que alguns tentam esvaziar o conteúdo da Independência funcional dizendo que esta é uma garantia da instituição e não do membro do Ministério Público individualmente considerado.
O Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, no julgamento do HC 67759-2-RJ, aborda esta questão:
“Independência funcional, na temática do Ministério Público, não é expressão de sentido inequívoco.
De fato, numerosos autores a referem, não à liberdade de atuação dos seus membros, em face de sal organização interna, mas à independência da instituição, no tocante às suas atividades-fim, em relação aos vínculos de subordinação aos poderes políticos, particularmente do governo, como também em relação aos órgãos jurisdicionais.
(…)
Não obstante, é certo também que já se tem relacionado a independência funcional ao Ministério Público, individualmente considerado, com o sentido de não estar ele sujeito, na sua atividade funcional, particularmente na sua atuação processual a ordens concretas do Procurador-Geral ou de outro órgão de direção”.
UADÍ LAMMEGO BULOS põe de uma lado as garantias institucionais e de outro as funcionais e diz: “já as garantias funcionais são prerrogativas que os membros do parquet gozam em decorrência das atribuições que exercem”57.
Em “Teoria Geral do Processo”, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO e outros, afirmam: “A Constituição oferece uma série de garantias ao Ministério Público como um todo e aos seus membros (arts. 127-130)”58.
Esta tentativa de esvaziamento do conteúdo da Independência carece de suporte lógico. Dizer que independente é a instituição e não o membro, é, como diria GERALDO ATALIBA, construir uma fortaleza e pôr-lhe portas de papelão.
Como se sustentar esta afirmação de que independente é a instituição e não o órgão, órgão este incumbido de velar pela defesa da ordem jurídica e do regime democrático?
Será que função tão elevada compadece-se com a atuação de órgãos de encomenda?
Ademais, para efeitos funcionais, Ministério Público e seu órgão de execução são a mesma coisa.
AFRÂNIO SILVA JARDIM , assevera que:
“Na verdade, tais órgão de execução não são coisa alguma na relação jurídica processual, mas sim o Ministério Público é que tem a qualidade de parte formal, titular da pretensão punitiva. Em outras palavras: o sujeito da relação processual é o Ministério Público, que se faz presente através de seus vários órgãos. Como disse Pontes de Miranda, os órgãos não representam o sujeito de direito, mas o ‘presentam’”59.Grifei.
Pois bem, o fato é que o Princípio da Independência é também apontado como suporte do Promotor Natural por alguns julgados.
Importantes julgados.
O emblemático HC 67759-2-RJ, no voto do Relator CELSO DE MELLO, serve de exemplo e sintetiza o tópico:
“A exigência de atuação independente do membro do Ministério Público, pautada nos justos valores que devem informar a elaboração do conteúdo normativo da lei, reside na gênese da formulação do Princípio do Promotor Natural a que repugnam interferências ilegítimas da chefia da Instituição, que rompem, mediante designações casuísticas e arbitrárias a regular ordem de distribuição dos processos e encargos funcionais”60.
6.4 – Inciso LIII do art. 5º, da Constituição Federal.
Este inciso prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Muitos autores, com acerto, entendem que neste inciso se consagram, tanto o princípio do Juiz Natural, quanto o do Promotor Natural.
O primeiro por conta da expressão “sentenciado” e o segundo por causa do termo “processado”.
“Processado” iria aí no sentido de iniciar e conduzir uma ação judicial.
Expressa muito bem este entendimento a voz de NELSON NERY JÚNIOR:
“Quando o texto constitucional diz que ninguém será ‘processado’ senão pela autoridade competente, estabelece o princípio do promotor natural, pois, em regra, não o juiz, mas o MP é quem pode processar (dar início à ação penal ou civil pública). No texto o verbo ‘sentenciar’é que se refere ao juiz.”61.
Neste passo, também o Min. MARCO AURÉLIO no seu voto no HC 67759-2-RJ:
“(…)
A alusão a impossibilidade de alguém vir a ser processado senão pela autoridade competente diz respeito às normas processuais e estas, iniludivelmente, abarcam os pressupostos de desenvolvimento válido do processo e dentre estes exsurge a legitimidade ad processum e que, no caso, quanto ao Estado, é revelada pela atribuição conferida ao Promotor Público.”62.
O Min. MARCO AURÉLIO , ainda neste voto, esclarece que chega a tal conclusão pelo fato de que se o inciso LIII limitasse-se ao reconhecimento do Juiz Natural haveria uma odiosa redundância no Texto Constitucional, na medida em que o inciso XXXVII já o consagra ao proibir o tribunal de exceção63.
7- O Princípio Do Promotor Natural, a LOMP (Lei 8625/93) e a LC 75/93. Brevíssimas anotações.
A compostura exata do Princípio indica como escopo principal garantir-se contra as possíveis e eventuais interferências do Procurador-Geral no exercício das atribuições dos demais órgãos de execução do Ministério Público.
Diz, com a costumeira proficiência, NELSON NERY JÚNIOR:
“Devem todos os promotores de justiça ocupar cargos determinados por lei, vedado ao Chefe do MP fazer designações especiais, discricionárias, de promotor ad hoc para determinado caso ou avocar autos administrativos ou judiciais afetos ao promotor natural”45.
Na LOMP há dois preceitos referentes ao tema: o art. 10, IX, f e g, e o art.24.
O art. 10, IX, f e g, diz o seguinte:
“art. 10: compete ao Procurador Geral de Justiça
IX – designar membros do Ministério Público para:
f) assegurar a continuidade dos serviços, em caso de vacância, afastamento temporário, ausência, impedimento ou suspeição do titular do cargo, ou com o consentimento deste;
g) por ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da instituição, submetendo sua decisão previamente ao Conselho Superior do Ministério Público”.
Já o art. 24 prescreve:
“O Procurador-Geral de Justiça poderá, com a concordância do Promotor de Justiça titular, designar outro Promotor para atuar em feito determinado, de atribuição daquele”.
Tais preceitos vieram festejados pela doutrina, ansiosa de ver cumprida a exigência estabelecida pela conclusão imposta na extração do voto médio no HC 67759-2-RJ, consistente em materializar-se então, a tão esperada interpositio legislatoris capaz de só assim ter-se por positivado, no direito brasileiro, o Promotor Natural.
Expressa uma tal impressão o entendimento sintético do Professor POLASTRI:
“Posteriormente o STF no HC 67759, por maioria dos votos dos E. Ministros, entendeu que a Constituição por si só não autorizava a aplicação do Princípio do Promotor Natural, necessitando de previsão e regulamentação em lei.
Porém com o advento da nova Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Lei 8625/93, entendemos que adveio a previsão legal do promotor natural, através do seu artigo 24, verbis:
(…)
Assim, a contrario sensu, impedida está a designação discricionária, sendo que o promotor natural com atribuição legal para determinado feito só poderá ser substituído com sua expressa concordância”65.
PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO ao analisar o art. 10, IX, f e g, entende que os casos possíveis que autorizariam o que ele chama de “designação atípica”, seriam aqueles em que o promotor com atribuição, incorra em caso de “suspeição não declarada pelo promotor, atraso no cumprimento dos prazos, falta de empenho ou diligência nos atos que lhes são próprios, inclusive produção de prova, favorecimento a uma da partes etc”66.
No que toca ao art. 24 este autor chama atenção para uma questão relevantíssima:
“A primeira pergunta que surge: seria possível o promotor renunciar a atribuição fixada em Lei Complementar à Constituição?67”
E responde:
“Cremos que ela é irrenunciável, pelo simples fato de não ser um direito exclusivamente do Promotor e ainda que fosse seria certamente indisponível”67.
Ao depois, tentando salvar a validade do dispositivo, acrescenta:
“Pela redação do art. 24, c/c art. 10, IX, letra f fine, mantendo-se o princípio do Promotor Natural, só será possível ao Procurador-Geral designar membro do Ministério Público para exercer atribuições concorrentes com o Titular, com a concordância deste”68.
A esta altura, e, neste que é o ponto mais importante do presente trabalho, peço vênia para ousar, discordando dos posicionamentos destes dois ícones da doutrina processual.
A meu ver não há acrobacia exética capaz de salvar estes dois dispositivos da mais completa eiva de inconstitucionalidade.
Sequer a técnica da interpretação conforme salvará tais dispositivos.
Entendo que antes de consagrar o Promotor Natural em nível infraconstitucional, como quer a doutrina, o fere de morte.
No caso do art. 10, IX, f e g, notadamente, a explicação do Professor PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO, para as possíveis hipóteses capazes – segundo ele – de excepcionar o promotor natural são, com a cabida vênia, absurdas.
Todas as hipóteses por ele arroladas constituem condutas verdadeiramente criminosas por parte do promotor titular (a exemplo de prevaricação), que, em ocorrendo, não impede o Procurador-Geral de socorrer-se da “escala de substituição automática”, referida por NELSON NERY JÚNIOR.
Se uma tal escala não contém número suficiente de promotores que dê conta dos serviços, proceda-se a outra, com um número suficiente de promotores.
Jamais seria possível pensar em afastar-se um princípio da envergadura do Promotor Natural porque o promotor com atribuição, criminosamente, não se desincumbe de suas atribuições.
Ademais, todas as referências normativas à aceitação do titular a permitir as designações casuísticas, são inconstitucionais.
Como diria CAIO TÁCITO, “competências não se transacionam”. O próprio PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO, compreende bem a irrenunciabilidade da atribuição. O cargo é ocupado pelo promotor, mas isto não o faz dono do cargo, a ponto de, por sua mera concordância, renunciar ao exercício de sua função.
Esta tentativa doutrinária, condensada no pensamento coligido dos dois mencionados autores, de buscar acomodar a realidade das coisas à exigência do voto médio do STF, a meu ver, não é científica.
Tenho, em vez de como fundamento, autêntica afronta ao Promotor Natural as disposições normativas consagradas nos arts. 10, IX, f e g, e 24 da Lei 8625/93, bem como o seu correspondente art. 57, XIII, da LC 75/93.
8- Conclusão.
Apontada a inconstitucionalidade no tópico anterior, tenho que, mudar o norte de uma conclusão científica para acomodá-la à autoridade do STF, não é a melhor solução dogmática.
Procurei demonstrar, não por mim, mas através de farta doutrina e de diversos julgados, o entendimento segundo o qual a Constituição por si, já consagra o Princípio do Promotor Natural.
E, é sabido e ressabido, que quando a Constituição consagra um mandamento, ele possui, no mínimo, eficácia paralisante.
Este tipo de eficácia, que toda norma constitucional tem, traz a virtude de impedir que, em nível infraconstitucional, produzam-se atos normativos em rota de colisão com o que consagrado na disposição da Lei Maior.
Esta eficácia paralisante, assim denominada por JOSÉ AFONSO DA SILVA, tem, a meu sentir, força suficiente para impedir que fossem produzidas normas como as anteriormente mencionadas.
Vale adiantar, aos que irão se opor às conclusões apontadas, que o arremate aqui proposto não aniquila as hipóteses de substituição ou designações outras.
Apenas se assevera que em casos em que seja necessária a intervenção d’um outro promotor que não o titular, tal designação dê-se fundada em critérios prévios de ordem objetiva e sem desprezar a escala de substituição automática.
Proficientemente sentencia ROGERIO LAURIA TUCCI:
“A conclusão, porém, não conduz à afirmação de o Promotor, o procurador ou o Juiz não poderem ser designados para atuação em processo determinado. Urge, porém, respeitar a exigência legal previamente estabelecida.
Assim como pode haver o Juiz auxiliar ou substituto (consoante critério anterior à designação), são viáveis o Promotor ou Procurador auxiliar ou substituto.
Importante, fundamental mesmo, é a prefixação do critério. Nisto reside a distinção da designação ad hoc, orientada para o caso concreto. A primeira é salutar. A segunda, odiosa”69. Grifei.
Graduado pela UCSal em 1998, pós-graduado lato sensu pela Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia em 2000, aprovado no concurso para Procurador do Estado da Bahia em 2003, e, especializando em Direito Penal e Processual pela UNIFACS.
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