Resumo: O dumping social nas relações trabalhistas é problemática que tem assolado o ordenamento jurídico e social do Brasil, ocorrendo nos casos de supressão de direitos básicos trabalhistas, constitucionalmente garantidos, pelo empregador, reiterada e reincidentemente, com o intuito de reduzir custos e, por via de consequência, “vencer” a concorrência de maneira desleal, caracterizando-se como prática ilícita que atinge as esferas econômico-financeira, jurídica e social de um país. O tema, apesar de já veemente no Brasil, ainda padece de conhecimento e debate pelos operadores do Direito, a fim de buscar soluções que possam romper com o paradigma de impunidade criado em relação a estes empregadores perante a Justiça do Trabalho, bem como buscando o fim último de proteger os trabalhadores de tais condições e opressões que, em última instância, afrontam a dignidade da pessoa humana. Assim, através de uma análise do dumping social nas relações de trabalho e suas extensões no plano jurídico, este trabalho propõe uma mudança na atuação dos Juízes do Trabalho diante de casos reiterados do tema, a fim de combater a problemática e punir os empregadores pela prática ilícita.
Palavras-chaves: Dumping social. Direito do Trabalho. Relações de trabalho. Concorrência desleal. Justiça do Trabalho. Dignidade da pessoa humana. Juízes do Trabalho.
Abstract: The social dumping into working relationships is an issue that has plagued the legal and social order in Brazil, once that started to be common the suppression of constitutional labor laws, by the employer, in order to reduce costs and, by consequence, “win” the commercial competition unfairly. Because of it, the social dumping is characterized as an unlawful technique in economics, social and legal spheres of the country. Although this practice is very common in Brazil, the topic suffer without awareness and brainstorming of the labor law actors. Thereby, the objective of this article is to bring this problem and discussion to academia and break with impunity paradigm built around the employers who practice the social dumping, seeking ultimate goal to protect workers from such conditions and oppressions that affront human dignity. So, through a critical analisys of the social dumping into work relationships and its extensions in legal terms, this paper proposes a change on the performance and understanding of Labor Judges before renewed cases of social dumping, in order to avoid and prevent these unlawful practices.
Keywords: Social dumping. Labor Law. Work relatonships. Unfair competition. Labor Court. Human dignity. Labor Judges.
Sumário: Introdução; 1. Conceito de dumping social; 1.1. Inserção do dumping social no Direito do Trabalho; 2. Dano social nas relações de trabalho; 3. A Justiça do Trabalho diante do dumping social trabalhista; 3.1. A atuação dos juízes do trabalho no reconhecimento das condenações ao dano social ex officio; 4. Conclusão; 5. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo estudar e debater acerca do dumping social dentro da esfera do Direito do Trabalho, seus efeitos e consequências, de modo que a expressão em foco se refere à problemática das práticas reiteradas de atos lesivos aos trabalhadores, por parte dos empregadores, ao se suprimir direitos trabalhistas básicos, em vistas de se reduzir custos e, por consequência, vencer a concorrência, obviamente, de maneira desleal e ilícita, como será demonstrado no decorrer do mesmo.
Ressalte-se que não há, aqui, a pretensão de se exaurir por completo a complexidade da matéria, mas apenas trazer à comunidade acadêmica e aos operadores do direito a proposta de reflexão sobre o tema, que ainda padece de conhecimento, debate e regulamentação.
Não raro, nos deparamos, no cotidiano das Varas do Trabalho espalhadas pelo Brasil, com inúmeras ações ajuizadas em face do mesmo empregador, pleiteando os mesmos direitos trabalhistas suprimidos. E se engana quem acredita que, embora titular da demanda, o empregado seja o único lesado por tais condutas. Pelo contrário, é exatamente pela reiteração destes atos lesivos ao trabalhador que tais práticas se caracterizam como uma das modalidades de dumping social, como se verá a seguir.
Dessa feita, o que este artigo propõe demonstrar é a importância de se estudar e debater o tema ora apresentado, que ainda tem pouca atenção no meio jurídico, diante da necessidade de formação uniforme de jurisprudência em combate ao dumping social nas relações de trabalho no ordenamento jurídico pátrio, para que a repressão a estes atos atentatórios à dignidade do trabalhador, ao mercado econômico-financeiro e à sociedade, como um todo, possa se efetivar, quebrando com os paradigmas de impunidade que perpetram a realidade do Direito do Trabalho no Brasil.
1. CONCEITO DE DUMPING SOCIAL
Preliminarmente, cumpre esclarecer o conceito do termo dumping pelo magistério dos doutos:
“A expressão dumping provém do verbo inglês dump, significando desfazer-se de algo e depositá-lo em determinado local, como se fosse lixo. No mercado internacional uma empresa executa dumping quando: (a) detém certo poder de estipular preço de seu produto no mercado local (empresa em concorrência imperfeita); e (b) perspectiva de aumentar o lucro por meio de venda no mercado internacional. Essa empresa, então, vende no mercado externo seu produto a preço inferior ao vendido no mercado local, provocando elevada perda de bem-estar ao consumidor nacional, porque os residentes locais não conseguem comprar o produto a ser vendido no estrangeiro.”[1]
Genericamente, pode-se dizer que dumping nada mais é que a comercialização, no mercado internacional, de produtos a preços abaixo do custo de produção, com o intuito de eliminar a concorrência conquistando, por consequência, uma fatia maior do mercado. Trata-se, pois, basicamente, da definição de concorrência desleal entre países. A definição oficial da expressão surgiu no Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras, de 1947.
De acordo com Barral (2000, p.7-8), três particularidades acompanham o conceito de dumping, referentes ao fato de (i) a expressão estar sempre relacionada à noção de prática desleal do comércio; (ii) da mesma não ter sido traduzida para qualquer idioma, de maneira que é sempre utilizada na língua inglesa; (iii) e de ser associada à uma conotação pejorativa, induzindo a interpretação de comportamento ou conduta condenável ou negativa.
Não obstante o termo dumping tenha conceituação muito precisa, focando seu objeto central apenas na empresa ou empresas que se deseja expulsar do mercado, é claro que, por consequência, tumultua a ordem jurídica, de maneira a desequilibrar as relações de interesse e envolver terceiros nas manobras ilegítimas exigidas para sua consumação. Conforme afirma Rodrigues Pinto (2011, p. 139), a área mais dúctil ao êxito dessas manobras é a da relação de emprego, pelo flanco que o poder de direção, e sua face oposta, a subordinação jurídica e econômica do trabalhador, abrem ao encolhimento da planilha financeira impiedosamente expurgada de encargos trabalhistas e sociais com o mínimo de resistência do prejudicado, no mais das vezes.
Por sua vez, as manobras jurídicas praticadas em favor do dumping repercutem na ordem social, considerando seu aspecto genérico, pelo sentimento de insegurança e insatisfação a que dão lugar.
Nesse sentido, asseveram Souto Maior, Moreira e Severo:
“Nada mais próprio do que falar em dumping para se referir às práticas econômicas que visem suprimir a concorrência também no mercado interno. E, quando essas práticas estão ligadas ao rebaixamento das bases sociais, ou seja, à desconsideração dos custos necessários para efetivar os direitos trabalhistas e previdenciários, nada mais apropriado do que se denominar esse fenômeno de “dumping social.”[2]
Ressalte-se que se trata de uma prática organizada, deliberada, de maneira a atingir, mesmo que por reflexo, o sistema econômico, gerando, obviamente, um prejuízo difuso para toda a sociedade.
O dumping social nada mais é do que manifestações de dano social, que contrariam, frontalmente, o projeto constitucional que fora destinado à legislação trabalhista no sentido de melhoria das condições sociais dos trabalhadores.
Trata-se, pois, de tema que supera a mera delinquência patronal, uma vez que o dumping social constitui prática reincidente, reiterada, de descumprimento da legislação trabalhista, possibilitando a majoração nos lucros e a vantagem concorrencial.
É por esta razão que a questão deve ser repercutida juridicamente, uma vez que causa grave desajuste ao modo de produção como um todo, gerando prejuízos e impactos não somente para os trabalhadores, mas também para a sociedade em geral.
De acordo com Eveline de Andrade Oliveira e Silva[3], os primeiros registros de dumping social remontam a 1788, quando o banqueiro e ministro francês Jacques Necker mencionava a possibilidade de vantagens serem obtidas em relação a outros países abolindo-se o descanso semanal dos trabalhadores.
Desta maneira, já na primeira metade do século XIX a comunidade europeia iniciou a adoção de medidas e padrões internacionais de trabalho com o objetivo de garantir os direitos trabalhistas e eliminar as disputas entre nações.
1.1. A INSERÇÃO DO DUMPING SOCIAL NO DIREITO DO TRABALHO
Consoante afirmam Souto Maior, Moreira e Severo, para entendermos como e porque o dumping social se insere nas relações de trabalho, devemos realizar a seguinte pergunta: “por que, afinal, furtar alguns pães é crime e não o é subtrair o fruto do trabalho e esforço humano?”[4]
Diante deste questionamento, se faz urgente destacar a necessidade de se reavaliar as práticas trabalhistas, de modo a se demonstrar e perceber que os atos de desrespeito deliberado aos direitos dos trabalhadores, geram grave violência, cumprindo aos juristas extrair do conjunto normativo, o qual é pautado pela predominância dos Direitos Humanos, os efeitos punitivos de tais condutas.
Mas, de qual maneira o dumping social efetivamente se insere na esfera trabalhista? Conforme descrevem Souto Maior, Moreira e Severo,
“São empresas que optam pelo não pagamento de horas extras, pelo pagamento de salários “por fora”, pela contratação de trabalhadores sem reconhecimento de vínculo de emprego ou mesmo por tolerar e incentivar condutas de flagrante assédio moral no ambiente de trabalho. Constituem uma minoria dentre os empregadores e, por isso mesmo, perpetram uma concorrência desleal que não prejudica apenas os trabalhadores que contratam, mas também as empresas com as quais concorrem no mercado. Além disso, passam a funcionar como indesejável paradigma de impunidade, influenciando negativamente todos aqueles que respeitam ou pretendem respeitar a legislação trabalhista”[5].
Esta realidade de persistente e reiterado desrespeito à legislação e direitos trabalhistas revela a prática do dumping social nas relações de trabalho.
Ademais, a macrolesão social causada por tais condutas é comprovada pelas inúmeras reclamatórias trabalhistas ajuizadas em uma comarca ou Estado, revelando a reiteração da conduta lesiva.
Além disso, ao desrespeitar os direitos e garantias trabalhistas constitucionalmente previstos ao trabalhador brasileiro, a empresa não atinge somente a esfera patrimonial e pessoal daquele empregado, comprometendo, também, a própria ordem econômica, como um todo, uma vez que passa a atuar no cenário econômico-financeiro em desigualdade com as empresas do mesmo ramo praticando, portanto, concorrência desleal.
Vale destacar que, em razão desta realidade contumaz, a qual chega ao conhecimento do Poder Judiciário Trabalhista insistentemente, que foi aprovado por profissionais do Direito do Trabalho Brasileiro o Enunciado n.4, da 1ª Jornada de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho, organizada pela Anamatra, no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, com o seguinte teor:
“DUMPING SOCIAL. DANO À SOCIEDADE. INDENIZAÇÃO SUPLEMENTAR. As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido “dumping social”, motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade configura ato ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único do Código Civil, o fundamento de ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás, jpa previam os arts. 652, “d”, e 832, § 1º, da CLT”.
O estudo supramencionado dedica-se, exatamente, a enfrentar o tema do dumping social, sob a perspectiva da função Estado-Juiz, em um país que se proclama social e democrático de direito.
Portanto, o tipo de dano social que se pretende identificar e coibir neste trabalho é o dumping social, a concorrência econômica desleal que se perpetra mediante reiterada mitigação e supressão de direitos trabalhistas, configurando-se como verdadeiro desrespeito e boicote ao preconizado na nossa Carta Magna.
2. O DANO SOCIAL NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
A doutrina civilista clássica conceitua dano como toda redução dos bens jurídicos de uma pessoa em decorrência de ilícitos praticados por terceiros. Este dano pode ser, portanto, classificado como patrimonial (material) ou extrapatrimonial (moral), de modo que o primeiro ocorre quando há destruição, depreciação, deterioração e privação de bens, lucros ou vantagens, ao passo que o segundo se dá quando o dano tem extensões psíquicas, afetivas ou sentimentais sobre a personalidade da vítima (SARMENTO, 2009).
A noção e o conceito de dano moral são muito amplos, nos dizeres de Ferrari e Martins:
“[…] a noção e conceito de dano moral, inclusive o laboral, são muito amplos, pois cobrem todo o espectro da personalidade humana, alcançando todos os atos ilícitos que causem, desnecessária e ilicitamente, desassossego, desconforto, medo, constrangimento, angústia, apreensão, perda de paz interior sentimento de perseguição ou discriminação, desestabilização pessoal, profissional, social e financeira”[6].
É claro que tanto o conceito quanto a aplicação jurídica do dano moral não são novidade no ordenamento jurídico, contudo, a preocupação relativa ao dano moral nas relações de trabalho é relativamente recente no âmbito jurídico mundial. Isto porque, originariamente, o instituto do dano moral é intrinsicamente privado, de modo que vem sendo coletivizado sob o fundamento de abarcar novas demandas sociais, sobretudo aquelas que se referem às ofensas aos direitos coletivos lato sensu, em outras palavras, direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Desta maneira, é sob esta ótica que o dano social se faz presente, como reflexo do momento atual civilizatório, tratando-se, portanto, de uma nova modalidade de dano, o qual se impõe diante das mudanças da vida moderna.
Assim, o que fixa a necessidade do reconhecimento de uma nova espécie de dano é a factibilidade de se praticar atos que extrapolem a esfera de alguém com quem se mantem determinada relação juridicamente relevante, fazendo-se necessário um ressarcimento peculiar, justamente porque peculiares são suas consequências (SOUTO MAIOR, MOREIRA E SEVERO, 2014).
Nas palavras de Antônio Junqueira Azevedo:
“Os danos sociais são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento do seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva, por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral de pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população”.[7]
Por provocar uma ruptura na dicotomia público x privado, o Direito do Trabalho ressente, como nenhuma outra área do direito, a má-fé nas relações sociais, consequência dos abusos de direito. Por esta razão, a indenização por dano social se reveste de especial importância quando estamos diante da relação que se estabelece entre capital e trabalho.
Não é difícil perceber o prejuízo gerado à sociedade em geral pelas condutas reiteradas de desrespeito à ordem jurídica trabalhista. Souto Maior, Moreira e Severo utilizam como exemplo o empregador que deixa de pagar ao empregado o FGTS respectivo, por se tratar de um custo social a partir do qual várias iniciativas de políticas públicas são adotadas e financiadas, inclusive, a própria concessão do benefício do seguro-desemprego.
Em razão do exposto, as agressões ao Direito do Trabalho acabam por atingir uma grande quantidade de pessoas, de maneira que, muitas vezes, inclusive, o empregador se vale das mesmas para obter vantagem na concorrência econômica em relação a diversos outros empregadores. Isto acarreta, assim, um dano a outros empregadores não identificados que, “desavisadamente”, cumprem a legislação trabalhista. Como resultado, temos a precarização completa das relações sociais, que se baseiam na lógica do capitalismo de produção.
Na mesma direção, não se torna nenhum exagero afirmar que a própria empresa perde, com suas agressões trabalhistas, o direito de atuar no mercado, uma vez que fere, frontalmente, o preceito negocial, conforme regulamentação do Código Civil.
Ademais, é necessário esclarecer que a extensão conceitual do dumping social trabalhista diz respeito à deterioração do contrato individual de trabalho em benefício do lucro do empregador com sacrifício das obrigações e encargos sociais tutelares do empregado. Resta claro que, indiretamente, isso atinge as empresas, mas se distancia do propósito de extermínio empresarial, caracterizador do dumping. Isto porque, quando há intenção em exercer o mesmo, a relação de emprego aparece como um dos meios possíveis para o êxito do resultado, por duas razões:
“1ª As facilidades proporcionadas pela inexistência ou fragilidade da legislação social de determinados países, ou seu recorrente desrespeito num negócio jurídico em que a desigualdade econômica dos sujeitos torna um deles extremamente vulnerável às pressões ilícitas do outro.
2ª O considerável peso dos encargos contatuais e sociais da mão de obra na composição da planilha de custos de produto a ser oferecido ao mercado, devido a uma legislação despreocupada em proteger a pessoa do trabalho”.[8]
Por fim, mas não menos importante, nunca é demais relembrar que o descumprimento, reiterado e reincidente, da legislação trabalhista representa um descumprimento histórico com a humanidade, haja vista que a formação do Direito do Trabalho está intrinsecamente ligada ao advento dos direitos humanos, os quais foram consagrados pelo reconhecimento de que a concorrência desregrada entre as potências econômicas conduziu os países à conflagração. Assim, por todo o exposto, muito embora o dumping caracterize-se, histórica e originariamente, no Direito Econômico, não há como negar sua incidência na esfera trabalhista.
3. A JUSTIÇA DO TRABALHO DIANTE DO DUMPING SOCIAL TRABALHISTA
Neste momento, primordial ressaltar que não se deve pensar no combate ao dumping como um fim em si mesmo, tampouco como um tema isolado, menos ainda como forma de compensar a hipossuficiência do empregado, mas como medida de intervenção judicial a serviço de um objetivo mais amplo, qual seja: atuar no sentido de buscar uma sociedade igualitária, igualdade esta que vai muito além da formalidade, justificando-se pelos caminhos seculares de luta da classe trabalhadora a fim de conquistar direitos inerentes à condição humana e de valorização do trabalho (JUNIOR E PINTO, 2013).
Diante da realidade latente mencionada nos capítulos anteriores, que vem crescendo, cada dia mais, no cenário brasileiro, onde o trabalho, por si só, não é capaz de promover uma condição de dignidade ao empregado, torna-se imprescindível o reconhecimento de que o Estado deve se valer de ferramentas jurídico-objetivas como o intuito de tornar efetiva e eficaz as normas de proteção ao trabalho digno. Tais ferramentas dizem respeito ao reconhecimento de consequências de reparação pelo empregador, tanto no plano patrimonial, como no extrapatrimonial e, inclusive, no plano individual e coletivo/social.
A ordem econômica brasileira é regulada pelo princípio da lealdade concorrencial, de modo a prevenir e reprimir infrações contra a ordem econômica, nos termos na Lei nº 8.884/1994, bem como é fundamentada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo, assim, como objetivo final, assegurar a dignidade da pessoa humana estabelecida no art. 170 da Constituição Federal.
Foi com base nisto que as situações denominadas de dumping social foram abarcadas pelo sistema jurídico nacional, uma vez que a mera aplicação do Direito do Trabalho, à luz da tutela individual, com pagamento de juros e correção monetária, obviamente, não compensaria o dano sofrido pela sociedade, em particular em relação às empresas que habitam o cotidiano das Varas do Trabalho, uma vez que estas se valem da prática negligente de agressões reiteradas aos direitos dos trabalhadores com o intuito primordial de ampliarem seus lucros e driblarem, por consequência, suas concorrentes no mercado econômico.
Deste modo, nas palavras de Souto Maior, Moreira e Severo:
“[…] nas reclamações trabalhistas em que tais condutas forem constatadas (agressões reincidentes e ação deliberada, consciente e economicamente inescusável de não respeitar a ordem jurídica trabalhista), deve-se proferir condenação que vise a reparação específica pertinente ao dano social perpetrado, fixada ex officio pelo juiz da causa, pois a perspectiva não é a da mera proteção do patrimônio individual”.[9]
Assim, este entendimento tendo sido pioneirizado por grupos de juízes do trabalho na tentativa de garantir os direitos institucionais das partes, direitos estes que existem para além daqueles criados através de uma decisão judicial ou prática social expressa, uma vez que compete ao judiciário o poder-dever de fazer valer todo o aparato social, especialmente nas situações ora em apreço, para impedir que fraudes à legislação trabalhista obtenham êxito.
Diante da realidade nacional atual, no que pertine ao tema, onde é possível constatar que o dumping social é uma constante no judiciário, sobretudo tendo em mente o imenso volume de ações judiciais trabalhistas em face da mesma empregadora, sendo pleiteados os mesmos pedidos (verbas trabalhistas mínimas), com base na reiterada causa de pedir do desrespeito contumaz ao trabalhador, a magistratura brasileira tem buscado soluções para coibir tais práticas, de maneira que foi publicado o Enunciado nº 04, elaborado pela ANAMATRA e pelo Tribunal Superior do Trabalho, o qual foi oportunamente transcrito na subseção 2.1, servindo como impulso significativo à consolidação do tema no cenário jurídico brasileiro.
A partir da aprovação do Enunciado supramencionado, a Associação dos Juízes do Trabalho tem trabalhado no sentido de inovar os critérios para a configuração do dumping social, dado que além das características já conhecidas e aplicadas no enquadramento do empregador, como a provocação do dano à sociedade e obtenção de vantagem indevida perante a concorrência, deve ser observado, também, a reiteração da conduta lesiva.
Outrossim, o Enunciado trouxe uma solução dogmática-normativa de enquadramento da indenização por dano social na indenização suplementar estabelecida no art. 404, parágrafo único do Código Civil Brasileiro, como uma maneira de coagir os empregadores ao cumprimento das leis trabalhistas.
3.1 A ATUAÇÃO DOS JUÍZES DO TRABALHO NO RECONHECIMENTO DAS CONDENAÇÕES AO DANO SOCIAL EX OFFICIO
Isto posto, é certo que a Justiça do Trabalho, cada vez mais, tem se sensibilizado para a realidade ora apresentada assumindo, embora ainda em decisões esparsas, seu papel social no tema, sendo certo que já se observa, tanto em Varas do Trabalho quanto nos Tribunais, decisões no sentido de condenar empresas com práticas reiteradas de supressão de verbas trabalhistas à indenização por dano social.
Nesse sentido, importante registrar as palavras no Desembargador Ricardo Carvalho Fraga, relator no acórdão proferido no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região:
“A legitimidade do juiz, para deferir o pagamento de multa por dumping social, se justifica pela necessidade de coibir as práticas reiteradas de agressões aos direitos trabalhistas, por meio do reconhecimento da expansão dos poderes do julgador no momento da prestação jurisdicional, nas reclamatórias trabalhistas em que se verifica a ocorrência do referido dano.”[10]
O entendimento de condenação à luz do dumping social segue o mesmo sentido em outros tribunais, como é o exemplo da ementa a seguir:
“REPARAÇÃO EM PECÚNIA: CARÁTER PEDAGÓGICO – DUMPING SOCIAL. CARACTERIZAÇÃO – Longas jornadas de trabalho, baixos salários, utilização da mão de obra infantil e condições de labor inadequadas são algumas modalidades exemplificativas do denominado dumping social, favorecendo em última análise do lucro pelo incremento de vendas, inclusive de exportações, devido à queda dos custos de produção nos quais encargos trabalhistas e sociais se acham inseridos. “As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal práticas desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado Social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante da concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido dumping social” (1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, Enunciado n. 04). Nessa ordem de ideias, não deixam as empresas de praticá-lo, notadamente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, quando infringem comezinhos direitos trabalhistas na tentativa de elevar a competitividade externa. “Alega-se, sob esse aspecto, que a vantagem derivada da redução do custo de mão de obra é injusta, desvirtuando o comércio internacional. Sustenta-se, ainda, que a harmonização do fator trabalho é indispensável para evitar distorções num mercado que se globaliza” (LAFER, Celso – “Dumping Social”, in Direito e Comércio Internacional: Tendências e Perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Irineu Strenger, LTR, São Paulo, 1994, p. 162). Impossível afasta, nesse viés, a incidência do regramento vertido nos art. 186, 187 e 927 do Código Civil, a coibir – ainda que pedagogicamente – a utilização, pelo empreendimento econômico, de quaisquer métodos para a produção de bens, a coibir – evitando práticas nefastas futuras – o emprego de quaisquer meios necessários para sobrepujar concorrentes em detrimento da dignidade da pessoa humana.”[11]
No mesmo sentido, outra ementa:
“DANO À SOCIEDADE (DUMPING SOCIAL). INDENIZAÇÃO SUPLEMENTAR. JUSTIÇA DO TRABALHO. APLICAÇÃO. As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado Social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido “dumping social”, motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade configura ato ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único do Código Civil, o fundamento da ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás, já previam os arts. 652, “d” e 832, §1º, da CLT. (Súmula n. 04, da primeira Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, em 23.11.2007)”.[12]
De igual modo decidiu a Desembargadora Elza Cândida da Silveira, diretora da Escola Judicial do TRT 18ª Região:
“DUMPING SOCIAL”. INDENIZAÇÃO. DANO SOCIAL. A contumácia da reclamada em descumprir a ordem jurídica trabalhistas atinge uma grande quantidade de pessoas, disso se valendo o empregador para obter vantagem na concorrência econômica com outros empregadores, o que implica dano àqueles que cumprem a legislação. Essa prática, denominada “dumping social” prejudica toda a sociedade e configura ato ilícito, por tratar-se de exercício abusivo do direito, já que extrapola os limites econômicos e sociais, nos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. A punição do agressor contumaz com uma indenização suplementar, revertida a um fundo público, encontra guarida no art. 404, § único, do Código Civil e tem caráter pedagógico, com intuito de evitar-se a reincidência na prática lesiva e o surgimento de novos casos”.[13]
As decisões colacionadas, dentre outras, revelam um importante despertar dos magistrados trabalhistas para a problemática social gerada pela inobservância dos direitos trabalhistas reiteradamente. Inclusive, convém destacar que a noção de dano social já foi devidamente incorporada pela doutrina e jurisprudência ao direito brasileiro, de modo que tal conceito não é sequer questionado pela mídia especializada, nos dias de hoje.
Contudo, há de se ter em mente que o debate acerca da possibilidade de os juízes, em reclamações trabalhistas individuais, deferirem indenização adicional por dumping social ex officio, é bem profundo e polêmico.
A problemática se dá pelo fato de que, dentro do ideário capitalista, os poderes do Estado tem funções predeterminadas de modo que, ao juiz, incumbe tão somente a aplicação das leis. À lume do direito processual, esta ideologia perpetra as regras que determinam a estrita observância dos limites e ditames legais da lide, atrelando o julgador à manifestação de vontade das partes.
São inúmeros os acórdãos que modificam as decisões prolatadas em primeiro grau para excluir a condenação por dumping social sob um único fundamento: ausência do pedido da parte, sem o qual o juiz não pode julgar. Essas reformas reafirmam o paradigma de confere ao juiz função essencialmente passiva, tornando-o totalmente irresponsável perante a realidade social.
Ao demandar judicialmente, a pretensão da parte é de que seja proferida manifestação judicial capaz de por fim ao litígio, pacificando o conflito social preexistente (ou, ao menos, minimizando-o). Pretende, a toda evidência, que tal manifestação seja tempestiva, de forma a pacificar as relações sociais a tempo de evitar uma deterioração irreversível.
Quando várias pessoas demandam trazendo ao conhecimento do poder judiciário, de forma reiterada, a mesma realidade de inobservância de direitos sociais, buscam, além da satisfação de seus créditos, uma tomada de posição do Estado. Pretendem uma resposta que as faça novamente acreditar na realidade projetada como um dever-ser em nossa Constituição.
Assim, o principal argumento que contraria a tese de reconhecimento do dever-poder do Estado-Juiz em condenar empresas pela prática de dumping social refere-se à ausência de pedido expresso da parte. Tal fundamentação representa, pois, uma visão equivocada e ultrapassada do conteúdo do princípio dispositivo, cujo caráter democrático é inegável. (SOUTO MAIOR, MOREIRA E SEVERO, 2014).
De plano, é necessário ressaltar, que admitir a condenação à indenização por dano social de ofício é romper com paradigmas processuais arraigados na cultura jurídica nacional. Paradigmas estes que, como a própria doutrina processual insta em afirmar, estão ultrapassados há algum tempo.
Além do mais, não se pode considerar a condenação por dumping social uma “surpresa” para a parte, ferindo a noção de contraditório, uma vez que o fato pelo qual a empresa é condenada, de ofício, é aquele amplamente discutido nos autos e, normalmente, em inúmeras demandas judiciais que reiteradamente são trazidas ao judiciário.
E, como assinalam Souto Maior, Moreira e Severo:
“[…] a ausência de pedido revela-se mesmo como da natureza dessa espécie de condenação. O dumping social implica lesão à sociedade, não apenas ao autor da demanda judicial. A indenização aí deferida sequer reverterá em seu favor. Trata-se de uma consequência com caráter pedagógico que deve assumir a decisão judicial. Sequer é razoável, em tal contexto, exigir que haja pedido da parte”.[14]
Desta feita, o debate em volta da legitimidade e dos limites da ação na qual se condena a reclamada a indenização com fulcro no dumping social constituem não menos que uma tentativa de sobrepor forma a conteúdo. A verdade é que, ao final, o que se exige do magistrado é que diante de um fato demonstrado que afete o interesse social, este se valha do seu dever-poder para penalizar e disciplinar o agressor no intuito de desestimulá-lo na reiteração da prática abusiva, bem como oferecer uma condenação que compense, de alguma maneira, o benefício econômico ilicitamente obtido.
Assim, numa visão mais ampla da problemática, pode-se se dizer que facultar ao juiz agir de ofício diante da prática de dumping social, para preservar a autoridade do ordenamento jurídico, nada mais é do que manter o respeito a regulamentação do Direito do Trabalho, o qual constitui um dever, de maneira que o não cumprimento convicto e inescusável dos preceitos trabalhistas fere o pacto do Estado Democrático de Direito sob do desenvolvimento do modelo capitalista em bases sustentáveis e com verdadeira responsabilidade social.
4. CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, este trabalho se pautou na legislação e doutrina nacionais e internacionais a fim de demonstrar a supressão de direitos trabalhistas ditados pela ordem econômica atual, desencadeando a ocorrência do dumping social nas relações de trabalho.
Assim, este trabalho teve como foco primordial apresentar a problemática, cada vez mais recorrente na sociedade e ordenamento jurídico brasileiros, do dumping social no Direito do Trabalho, a qual ainda não tem ganhado grande atenção dos operadores do direito no país, bem como seus impactos e consequências, não somente no que pertine ao trabalhador em sua esfera individual, mas, principalmente, no que se refere à coletividade, desencadeando a ideia de condenação do empregador por dumping social, como forma de combate a esta forma de redução dos direitos trabalhistas.
Por todo o demonstrado, fica evidente que a melhor, senão a única, forma de trazer à lume uma solução para este problema é a atuação dos juízes do trabalho no sentido de combater tais práticas, através da condenação por dano social como fator punitivo e pedagógico às empresas praticantes do dumping social, tendo como objetivo final o desencorajamento de que estas empresas permaneçam desrespeitando a legislação trabalhista, tornando-se grandes paradigmas de impunidade dentro do contexto brasileiro. Por uma última vez, nas palavras dos precursores do tema no Brasil, Souto Maior, Moreira e Severo:
“[…] O que se espera do Judiciário Trabalhista é que faça valer todo o aparato jurídico para manter a autoridade do sistema, no aspecto da eficácia das normas do Direito Social, não fazendo vistas grossas para a realidade, não fingindo que desconhece a realidade em que vive e não permitindo que as fraudes à legislação trabalhista tenham êxito. Sobretudo, exige-se do Judiciário que reconheça ser sua a obrigação de tentar mudar a realidade quando em desacordo com o Direito.”[15]
Portanto, em última instância, é do Judiciário Trabalhista brasileiro a capacidade maior de reverter o quadro aqui apresentado, através do seu poder-dever de coibir práticas ilícitas dentro das relações trabalhistas, tornando a jurisprudência ainda esparsa sobre o tema homogênea e consolidada, pois a existência de precedência de matéria já julgada é a maior e melhor medida a ser implantada no sentido de combater o dumping social que tem assolado as relações de trabalho e o mercado econômico-financeiro o país. Enquanto um posicionamento efetivo não for tomado neste sentido, os trabalhadores continuarão a ver seus direitos básicos, constitucionalmente “garantidos”, suprimidos, sendo submetidos a condições de trabalho degradantes e exploratórias que afrontam, acima de tudo, a dignidade humana.
Advogada. Pós-graduanda em Direito Público pela PUC Minas. Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Estácio de Sá de Juiz de Fora/MG
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