Reginaldo Silva de Macêdo – Advogado, Pós-Graduado em Direito Público com ênfase em licitação, Pós-Graduando em Direito Tributário. (regsmacedo@hotmail.com)
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo discutir a incongruência interpretativa do Supremo Tribunal Federal no que concerne a eficácia em território tupiniquim dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dado que o STF adotou posições diametralmente opostas, em situações análogas, as quais colocavam em rota de colisão disposições do Tratado de San José da Costa Rica ante alguns comandos insertos na Carta Maior, como também em prescrições infraconstitucionais. Método: para a organização deste estudo, fez-se criterioso levantamento bibliográfico na doutrina especializada, legislação constitucional, bem como na jurisprudência. Conclusão: aprofundando-se no estudo tema, constatou-se que a Suprema Corte adotou entendimentos contraditórios quanto à aplicação, ou não, de mandamentos do Tratado Interamericano de Direitos Humanos, notadamente nos julgamentos que trataram da prisão civil do depositário infiel e da candidatura avulsa.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; Convenção Interamericana de Direitos Humanos; incongruência; supralegalidade.
Abstract: The purpose of this paper is to discuss the interpretative incongruity of the Supremo Tribunal Federal – STF, with regard to the effectiveness in Tupiniquim territory of the International Human Rights Instruments, given that the STF adopted diametrically opposed positions in similar situations, which placed on a collision course provisions of the Pact of San José of Costa Rica before some commands inserted in the Carta Maior, as well as in infra-constitutional prescriptions. Method: for the organization of this study, a careful bibliographical survey was made in specialized doctrine, constitutional legislation, as well as in jurisprudence. Conclusion: Deepening the study of the subject, it was found that the Supreme Court adopted contradictory understandings regarding the application, or not, of commandments of the American Convention on Human Rights, notably in the trials that dealt with the civil imprisonment of the unfaithful depositary and the single candidacy.
Keywords: Supremo Tribunal Federal; American Convention on Human Rights; incongruence; supralegality
Sumário: Introdução. 1 Eficácia das normas constitucionais em relação a sua aplicabilidade. 1.1 Normas de eficácia plena. 1.2 Normas de eficácia contida. 1.3 Normas de eficácia limitada. 2 Da posição hierarquico-normativa dos tratados internacionais. 2.1 Natureza supraconstitucional. 2.2 Natureza constitucional. 2.3 Status de lei ordinária. 2.2.1 Da tese da supensão, não revogação, das normas de tratados internacionais, ante a edição de lei ordinária que trate de tema análogo. 2.4 Caráter supralegal. 3 Métodos interpretativos à luz do direito constitucional. 3.1 Interpretação restritiva. 3.2 Interpretação extensiva. 3.3 Mutação constitucional. 4 O paradoxo interpretativo do Supremo Tribunal Federal, a respeito da aplicação em território nacional de normas constantes na convenção interamericana de direitos humanos. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal, no Brasil, é considerado o intérprete último e principal da Constituição da República. Dentre as atribuições constitucionalmente previstas ao Supremo Tribunal Federal destaca-se, além da guarda da Constituição, a incumbência em declarar a inconstitucionalidade de tratados internacionais.
Em razão do exposto, discutiremos nas linhas que se seguem o posicionamento de nossa Suprema Corte em decisões que colocaram em polos opostos alguns mandamentos constitucionais frente a outros dispositivos do Tratado Interamericano de Direitos Humanos.
Nesta senda, trouxemos ao debate as linhas interpretativas do Supremo Tribunal Federal em ações ou em remédios constitucionais que debatiam a eficácia do tratado sobredito no que se refere à prisão civil do depositário infiel, bem como a aplicadade da dispensa de filiação partidária através da candidaturas avulsas para cargos eletivos.
Sob esse prisma, discorremos no transcurso deste trabalho sobre a eficácia das normas constitucionais em relação a sua aplicabilidade, para tanto, em tópico específico, nos valemos dos ensinamentos de José Afonso da Silva, que classifica as normas constitucionais como sendo de eficácia plena, eficácia contida e eficácia limitada.
Dando sequência, no tópico seguinte, traremos à baila a evolução interpretativa no que tange a classificação hierarquico-normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, quando estes adentram ao ordenamento jurídico nacional, classificação a qual é enunciada pela doutrina nos ulteriores status: supraconstitucional; constitucional; de lei ordinária e, por fim, o entendimento que vem preponderando, o qual os classifica com status supralegal.
Seguindo na exposição, apresentaremos as noções básicas a respeito dos métodos interpretativos da Constituição Federal e neste ínterim evidenciaremos sobre algumas de suas espécies, a saber: interpretação restritiva, extensiva e mutação constitucional.
Antes da conclusão, exporemos ainda, as contradições existentes nas decisões do Supremo Tribunal Federal, quando tratou de temas análogos: prisão civil de depositário infiel; candidatura avulsa (Texto Constitucional x disposições do Tratado Interamericano de Direitos Humanos).
Nas considerações finais, discorremos sobre a incongruência interpretativa do Supremo Tribunal Federal.
1. EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS EM RELAÇÃO A SUA APLICABILIDADE
Tema de maior importância a ser estudado para assimilação do tema, refere-se à classificação das normas constitucionais em relação a sua aplicabilidade. Isto porque no comparativo entre as duas decisões do Supremo Tribunal Federal, que fundamentam as conclusões deste trabalho, imprescindível observar se ambas as normas – de acordo com os posicionamentos adotados pelo STF – encontram-se igualmente classificadas.
Ou seja, para avaliar se houve, ou não, contradição no posicionamento adotado pela Suprema Corte em relação ao reconhecimento da abrangência da Convenção Americana de Direitos Humanos, no que tange a aplicabilidade da Convenção para impedir a prisão do depositário infiel, e, de sua não aplicabilidade quanto a possibilidade da candidatura avulsa a cargo eletivo, salutar se faz: compreender como se dá a referida classificação.
Diante desse contexto, nos valeremos da teoria desenvolvida por José Afonso da Silva, a fim de elucidar esta questão.
1.1 Normas de eficácia plena
O Professor José Afonso da Silva classifica as normas constitucionais em três grupos: normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada. Desta feita, neste item, conceituaremos, seguindo os ensinamentos do renomado constitucionalista, o que se entende por norma de eficácia plena, para nos itens seguintes exemplificar o conceito de norma de eficácia contida e, por fim, norma de eficácia limitada.
Vejamos os ensinamentos do abalizado professor sobre as normas de eficácia plena:
[…] estabelecem conduta jurídica positiva ou negativa com comando certo e definido, incrustando-se, predominantemente, entre as regras organizativas e limitativas dos poderes estatais, e podem conceituar-se como sendo aquelas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular. (SILVA, 2003, p. 101).
Depreende-se, da conceituação acima disposta, que as normas de eficácia plena seriam aquelas capazes de produzir todos os seus efeitos essenciais simplesmente com a entrada em vigor da Constituição, independentemente de qualquer regulamentação por lei.
1.2 Normas de eficácia contida
Como alertamos, neste item, nos valeremos novamente das liçoes de José Afonso da Silva a fim de explicitar a conceituação de normas de eficácia contida:
[…] Isso implica o surgimento de um grupo de normas constitucionais diferentes das de eficácia plena e das de eficácia limitada, exigindo tratamento à parte, porque, conquanto se pareçam com aquelas (são de aplicabilidade imediata) sob o aspecto da aplicabilidade, delas se distanciam pela possibilidade de contenção de sua eficácia, mediante legislação futura ou outros meios; e, se se assemelham às de eficácia limitada pela possibilidade de regulamentação legislativa, destas se afastam sob o ponto de vista da aplicabilidade e porque a intervenção do legislador tem sentido exatamente contrário: restringe o âmbito de sua eficácia e aplicabilidade, em vez de ampliá-lo, como se dá com as de eficácia limitada. (SILVA, 2003, p. 104).
Essa classificação se diferencia um pouco da anterior, na medida em que, apesar de possuir aplicabilidade imediata, como a norma de eficácia plena, todavia, as normas de eficácia contida possuem a peculiaridade de poderem ser restringidas. O que, na prática, consiste dizer que os direitos veiculados por tais normas podem ser diminuídos futuramente por meio de intervenção do legislador.
Sendo assim, necessário se faz comprender em que termos dar-se-á a referida restrição. Para tanto, utilizaremos das lições elucidativas de Pedro Lenza:
A restrição de referidas normas constitucionais pode-se concretizar não só através de lei infraconstitucional mas, também, em outras situações, pela incidência de normas da própria Constituição, desde que ocorram certos pressupostos de fato, por exemplo, a decretação do estado de defesa ou de sítio, limitando diversos direitos (arts. 136, § 1.º, e 139 da CF/88).
Além da restrição da eficácia das referidas normas de eficácia contida tanto por lei como por outras normas constitucionais, conforme referido acima, a restrição poderá implementar-se, em outras situações, por motivo de ordem pública, bons costumes e paz social, conceitos vagos cuja redução se efetiva pela Administração Pública. (LENZA, 2016, pag. 380).
1.3 Normas de eficácia limitada
Finalizando, trazemos a conceituação de normas de eficácia limitada, novamente, nas palavras de Pedro Lenza:
São aquelas normas que, de imediato, no momento que a Constituição é promulgada, ou entra em vigor (ou diante da introdução de novos preceitos por emendas à Constituição, ou na hipótese do art. 5.º, § 3.º), não têm o condão de produzir todos os seus efeitos, precisando de uma lei integrativa infraconstitucional, ou até mesmo de integração por meio de emenda constitucional, como se observou nos termos do art. 4.º da EC n. 47/2005. São, portanto, de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, ou, segundo alguns autores, aplicabilidade diferida. (LENZA, 2016, pag. 382)
Note-se, diferentemente das normas eficácia contida, que a legislação posterior (constitucional, infraconstitucional ou até mesmo oriunda de tratados internacionais) pode restringir os seus efeitos, nas normas de eficácia limitada, ocorre justamente o contrário, já que a norma porvindoura amplia a eficácia da norma até então alijada de seus efeitos almejados.
2 DA POSIÇÃO HIERARQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
Após as considerações supramencionadas a respeito da eficácia das normas constitucionais em relação a sua aplicabilidade. Neste item, iremos tratar sobre a posição hierarquica-normativa dos tratados internacionais sobre direitos humanos, vez que, como sabemos, por expresssa determinação constitucional, prevista no § 2º do art. 5º, os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Em sendo assim, fica a indagação: Em qual patamar hierarquico-normativo estas normas alienígenas se incorporarão ao ordenamento jurídico pátrio? Isto após passar pelas suas três fases: A celebração, o referendo ou aprovação e a promulgação.
Antes de nos aprofundarmos na matéria, a fim de responder a e pergunta acima, faremos uma síntese das três etapas citadas: A celebração é ato da competência privativa do Presidente da República (Constituição de 1988, art. 84, inciso VIII), a aprovação ou referendo é de competência exclusiva do Congresso Nacional (Constituição, art. 49, inciso I; art. 84, inciso VIII), e a promulgação é da competência privativa do Presidente da República (Constituição, art. 84, Inciso IV).
Pois bem, feito este breve resumo, salutar para compreensão da matéria, ateremo-nos, nos subitens que se seguem, no intento de responder a sobredita indagação, para tanto, necessário se faz, antes de esmiuçarmos vertente por vertente, dispor de forma resumida sobre as correntes doutrinárias que se debruçaram sobre o tema com intuito de resolver esta anomia.
Vamos a elas:
2.1 Natureza supraconstitucional
Esta vertente defende a tese que os tratados de direitos humanos possuem status supraconstitucional. Noutro falar, para essa corrente doutrinaria, os tratados internacionais de direitos humanos se encontram num patamar superior a própria Constituição Federal. Assim, depois de incorporadas ao ordenamento jurídico nacional, tais normas revogariam disposições contrárias as suas prescrições, mesmo que constantes na Carta Maior. Inviabilizando, inclusive, que uma proposta de Emenda Constitucional suprima qualquer mandamento introduzido pelos referidos tratados.
A respeito do tema, em tom crítico, assim manifestou-se Gilmar Ferreira Mendes:
[…] Os tratados e convenções devem ser celebrados em consonância não só com o procedimento formal descrito na Constituição, mas com respeito ao seu conteúdo material, especialmente em tema de direitos e garantias fundamentais. O argumento de que existe uma confluência de valores supremos protegidos nos âmbitos interno e internacional em matéria de direitos humanos não resolve o problema. A sempre possível ampliação inadequada dos sentidos possíveis da expressão “direitos humanos” poderia abrir uma via perigosa para uma produção normativa alheia ao controle de sua compatibilidade com a ordem constitucional interna. O risco de normatizações camufladas seria permanente. A equiparação entre tratado e Constituição, portanto, esbarraria já na própria competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal para exercer o controle da regularidade formal e do conteúdo material desses diplomas internacionais em face da ordem constitucional nacional. (MENDES, 2012, pag. 509).
Pelas suas palavras, parece-nos que o posicionamento do Eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal é inexoravelmente contrário à adoção desta corrente entre nós. Alertando, inclusive, que esta possibilidade poderia abrir uma janela para o alargamento do entendimento do conceito de direitos humanos, o que permitiria, em sua análise, que normas ádvenas disciplinassem outros temas, para além dos assuntos relacionados aos direitos humanos.
2.2 Natureza constitucional
Em síntese, essa tese defende que tratados internacionais de direitos humanos adentrariam no ordenamento jurídico brasileiro no mesmo patamar das normas constitucionais. Contudo, para nós, após a entrada em vigor (através da Emenda Constitucional nº 45/2004) do § 3º, do art. 5º, da Constituição Federal – que diz: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais – os argumentos plausíveis desta linha interpretativa ficaram fragilizados.
Vejamos, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, os principais âmagos interpretativos dos defensores da discutida visão hermenêutica:
Essa tese entende o § 2º do art. 5º da Constituição como uma cláusula aberta de recepção de outros direitos enunciados em tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil. Ao possibilitar a incorporação de novos direitos por meio de tratados, a Constituição estaria a atribuir a esses diplomas internacionais a hierarquia de norma constitucional. E o § 1º do art. 5º asseguraria a tais normas a aplicabilidade imediata nos planos nacional e internacional, a partir do ato de ratificação, dispensando qualquer intermediação legislativa. A hierarquia constitucional seria assegurada somente aos tratados de proteção dos direitos humanos, tendo em vista seu caráter especial em relação aos tratados internacionais comuns, os quais possuiriam apenas estatura infraconstitucional. Para essa tese, eventuais conflitos entre o tratado e a Constituição deveriam ser resolvidos pela aplicação da norma mais favorável à vítima, titular do direito, tarefa hermenêutica da qual estariam incumbidos os tribunais nacionais e outros órgãos de aplicação do direito. Dessa forma, o Direito Interno e o Direito Internacional estariam em constante interação na realização do propósito convergente e comum de proteção dos direitos e interesses do ser humano. (MENDES, 2012, pag. 509/510).
Antes de comentar a respeito dos ensinamentos sobreditos, necessário se faz transcrever os parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal, mencionados por Gilmar Mendes:
O que se verifica, após a leitura atenta dos dispositivos acima dispostos, que a tese defensora da natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, realmente encontrava um supedâneo crível de ser adotada, até a entrada em vigor do § 3º do art. 5º da Constituição Federal. Depois disso, a nosso ver, caiu por terra qualquer sustentáculo do referido entendimento.
2.3 Status de lei ordinária
Para esta corrente doutrinária, os tratados internacionais, de qualquer espécie, ratificados pelo Brasil, possuem status de lei ordinária, o que significa dizer que após a sua incorporação ao ordenamento jurídico pátrio, tais normas se equivalem a uma norma infraconstitucional, o que pode gerar uma série de incovenientes, na hipótese de serem aprovadas normas outras de mesma hierárquia, que lhe sejam colidentes. Isto porque, como é de conhecimento geral, os tratados internacionais devem passar, para sua incorporação no território nacional, pelas três fases já esmiuçadas: a celebração, o referendo ou aprovação e a promulgação.
Entretanto, antes de adentrarmos nesta instigante discussão, o que será feito no subitem sequencial, nos socorreremos, mais uma vez, dos ensinamentos de Gilmar Ferreira Mendes, a fim expor o posicionamento dos tratados intenacionais sobre direitos humanos na pirâmade legal, imaginada pelos defensores da tese em discussão.
[…] prega a ideia de que os tratados de direitos humanos, como quaisquer outros instrumentos convencionais de caráter internacional, poderiam ser concebidos como equivalentes às leis ordinárias. Para esta tese, tais acordos não possuiriam a devida legitimidade para confrontar nem para complementar o preceituado pela Constituição Federal em matéria de direitos fundamentais.
O Supremo Tribunal Federal, como anunciado, passou a adotar essa tese no julgamento do RE 80.004/SE, relator para o acórdão Ministro Cunha Peixoto (julgado em 1º-6-1977). Na ocasião, os Ministros integrantes do Tribunal discutiram amplamente o tema das relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno.
O relator, Ministro Xavier de Albuquerque, calcado na jurisprudência anterior, votou no sentido do primado dos tratados e convenções internacionais em relação à legislação infraconstitucional. A maioria, porém, após voto-vista do Ministro Cunha Peixoto, entendeu que ato normativo internacional — no caso, a Convenção de Genebra, Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias — poderia ser modificado por lei nacional posterior, ficando consignado que os conflitos entre duas disposições normativas, uma de direito interno e outra de direito internacional, devem ser resolvidos pela mesma regra geral destinada a solucionar antinomias normativas num mesmo grau hierárquico: lex posteriore derrogat legi priori. (MENDES, 2012, pag. 511)
Como visto, em sua explanação, Gilmar Mendes cita que o posicionamento majoritário, dos outrora ministros do Supremo Tribunal Federal, foi no sentido de que normas oriundas de tratados internacionais poderiam ser modificadas por lei posterior. Desta feita, ficou consignado, à época, que eventuais antinomias de normas seriam resolvidos utilizando-se a técnica da lex posteriore derrogat legi priori.
2.2.1 Da tese da supensão, não revogação, das normas de tratados internacionais ante a edição de lei ordinária que trate de tema análogo.
Em razão do raciocínio crítico anteriormente desenvolvido, questionando os inconvenientes ocasionados pela adoção do entendimento da utilização da técnica de que a lei posterior revoga a lei anterior, mesmo cuidando-se de normas ratificadas de tratados internacionais de direitos humanos, já que, como dito superficialmente nas linhas acima, estes para se incorporarem ao ordenamento jurídico pátrio devem seguir e cumprir requisitos dispostos na Constituição Federal. Assim, em virtude desse fato, visando equacionar o referido problema, sem contudo mudar o posicionamento hierárquico dos tratados internacionais de direitos humanos, foi desenvolvida, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, de época pretérita, Leitão de Abreu, a tese da supensão de mandamento previsto em tratado internacional de direitos humanos, em decorrência de edição de lei ordinária posterior com texto colidente.
Vejamos a descrição do voto do referido ministro pugnando por este entendimento, extraido da obra de Gilmar Ferreira Mendes:
(…) Como autorização dessa natureza, segundo entendo, não figura em nosso direito positivo, pois que a Constituição não atribui ao judiciário competência, seja para negar aplicação a leis que contradigam tratado internacional, seja para anular, no mesmo caso, tais leis, a consequência, que me parece inevitável, é que os tribunais estão obrigados, na falta de título jurídico para proceder de outro modo, a aplicar as leis incriminadas de incompatibilidade com tratado. Não se diga que isso equivale a admitir que a lei posterior ao tratado e com ele incompatível reveste eficácia revogatória deste, aplicando-se, assim, para dirimir o conflito, o princípio ‘lex posterior revogat priori’. A orientação, que defendo, não chega a esse resultado, pois, fiel à regra de que o tratado possui forma de revogação própria, nega que este seja, em sentido próprio, revogado pela lei. Conquanto não revogado pela lei que o contradiga, a incidência das normas jurídicas constantes do tratado é obstada pela aplicação, que os tribunais são obrigados a fazer, das normas legais com aqueles conflitantes. Logo, a lei posterior, em tal caso, não revoga, em sentido técnico, o tratado, senão que lhe afasta a aplicação. A diferença está em que, se a lei revogasse o tratado, este não voltaria a aplicar-se, na parte revogada, pela revogação pura e simples da lei dita revogatória. Mas como, a meu juízo, a lei não o revoga, mas simplesmente afasta, enquanto em vigor, as normas do tratado com ela incompatíveis, voltará ele a aplicar-se, se revogada a lei que impediu a aplicação das prescrições nele consubstanciadas.
A partir dessa exposição, fica evidente que a tese defendida, à época, não resolveu a questão. Visto que há de se convir que, na prática, nada mudou. Isto porque, ao afirmar que o tratado não será revogado, mas sim afastado, obteve-se um resultado efetivo quase nulo, pois adotando esse entendimento, a única alteração perceptível seria que numa eventual revogação da lei que afastou os efeitos das disposições do tratado, este voltaria a vigorar.
2.4 Caráter supralegal
Pois bem, após a análise das diversas espécies interpretativas sobre a posição hierarquico-normativa dos tratados internacionais sobre direitos humanos, chegamos, finalmente, na tese que prepondera atualmente, a qual consiste, em suma, num posicionamento intermediário sobre o grau hierárquico dos referidos tratados, já que, para essa corrente interpretativa, esses se encontram acima das leis infraconstitucionais, não obstante, por outro lado, encontram-se abaixo da Constituição Federal. Assim, a fim de explicar como ocorreu a evolução hermenêutica sobre o tema, nos socorreremos, novamente, das lições de Gilmar Ferreira Mendes:
Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.
Essa tese já havia sido aventada, em sessão de 29-3-2000, no julgamento do RHC 79.785/RJ, pelo voto do relator, Ministro Sepúlveda Pertence, que acenou com a possibilidade da consideração dos tratados sobre direitos humanos como documentos supralegais. Pertence manifestou seu pensamento da seguinte forma:
“Certo, com o alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo compromisso de logo — como creio ter deixado expresso no voto proferido na ADInMc 1.480 — com o entendimento, então majoritário — que, também em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais — preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis. Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande frequência, precisamente porque — alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (…).
Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos” [RHC 79.785/RJ, Pleno, por maioria, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 22-11-2002, vencidos os ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso (o então Min. Presidente)]. (MENDES, 2012, pag. 515).
Como bem observado por Gilmar Mendes, já começava a aflorar no Supremo Tribunal Federal uma mudança de paradigma em relação à posição hierarquico-normativa dos tratados internacionais sobre direitos humanos, notadamente pelo voto do então ministro do STF Sepúlveda Pertence.
Em decorrência desta evolução interpretativa, em 2008, enfim, ocorreu esta mudança de paradigma.
Vejamos:
Esse entendimento solidificou-se no julgamento do RE 466.343, Rel. Cezar Peluso, e do RE 349.703, relator originário Ilmar Galvão. Naquela ocasião, a Corte reconheceu a natureza supralegal e infraconstitucional dos tratados que versam sobre direitos humanos, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. O julgado está assim ementado:
“PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE n. 349.703 e dos HCs n. 87.585 e n. 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. (MENDES, 2012, pag. 518), (grifei).
Com esta nova exegese, podemos chegar a algumas conclusões relevantes sobre o tema: os tratados sobre direitos humanos revogam as leis que lhe são anteriores, mas não podem ser revogados pelas leis infraconstitucionais posteriores. Dito de outra forma, nas palavras de Gilmar Mendes, temos:
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. (MENDES, 2012, pag. 518)
3 MÉTODOS INTERPRETATIVOS À LUZ DO DIREITO CONSTITUCIONAL
Como visto, a mudança de posicionamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal envolveu um trabalho hermenêutico, a fim de reestuturar a linha interpretativa até então adotada. Em virtude do exposto, abordaremos conceitos basilares sobre interpretação constitucional.
3.1 Interpretação restritiva
No que tange a interpretação restritiva, esta sucede quando a interpretação der a norma um sentido mais amplo do que aquele expresso pelo legislador no corpo da regra. O traço diferenciador é que, neste caso, o sentido da norma, a finalidade que o legislador gostaria de alcançar, está expresso no texto da lei, todavia é necessário que o intérprete amplie essa interpretação diante da problemática da realidade fática.
Sintetizando todo o dito, Paulo Bonavides ensina: “a interpretação restritiva verifica-se quando a lei diz mais do que pretendeu o legislador”. (BONAVIDES, 2014, p. 454)
3.2 Interpretação extensiva
A interpretação extensiva, conforme Tercio Sampaio Ferraz Jr, por seu turno, igualmente “leva em consideração a mens legis, ampliando o sentido da norma para além do contido em sua letra, explanando que a extensão do sentido está contida no espírito da lei, considerando que a norma diz menos do que queria dizer”. (FERRAZ JR, 2001, p. 290-292).
No mesmo sentido dos ensinamentos de Ferraz Jr, Paulo Bonavides explica: “Dá-se a interpretação extensiva (lex minus scripsit quam voluit) quando a lei abrange mais casos que aqueles que ela taxativamente contempla, isto é, o teor da lei é objeto de alargamento e retificação, até coincidir com a vontade que o legislador quis exprimir”. (BONAVIDES, 2014, p. 454)
3.3 Mutação constitucional
Após a exposição conceitual dos possíveis resultados interpretativos, apresentaremos o conceito de mutação constitucional, que diferentemente do exposto até aqui, mas utilizando os seus métodos, não procura tão somente desvendar o conteúdo da norma jurídica, restringindo-a, ampliando-a ou declarando-a, vai além, pois consiste numa releitura da norma constitucional, sem alteração do seu texto.
Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, eis o conceito de mutação constitucional:
O estudo do poder constituinte de reforma instrui sobre o modo como o Texto Constitucional pode ser formalmente alterado. Ocorre que, por vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não se confunde com o texto, repara-se, aí, uma mudança da norma, mantido o texto. Quando isso ocorre no âmbito constitucional, fala-se em mutação constitucional.
A nova interpretação há, porém, de encontrar apoio no teor das palavras empregadas pelo constituinte e não deve violentar os princípios estruturantes da Lei Maior; do contrário, haverá apenas uma interpretação inconstitucional. (MENDES, 2012, p. 133).
Sobre o mesmo tema, Pedro Lenza afirma:
As mutações não seriam alterações “fisicas” “palpáveis”, materialmente perceptíveis, mas sim alterações no significado e sentido interpretativo de um texto constitucional. A transformação não esta no texto em si, mas na interpretação daquela regra enunciada. O texto permanece inalterado. (LENZA, 2014, p.158)
Constatasse, com as explicações do emérito professor, que as mutações constitucionais consistem numa alteração hermenêutica de dispositivos contidos na Carta Maior.
Já para Uadi Lammêgo Bulos (apud Lenza, 2014, p. 158), mutação Constitucional seria:
[…] o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Constituição, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como do usos e costumes constitucionais”.
Bulos, por sua vez, expande um pouco o conceito lecionado por Lenza, já que, para além de restringir a somente uma alteração hermenêutica proporcionada pelo interprete, vislumbra, também, uma construção de novos sentidos para o texto, derivada, inclusive, pelos usos e costumes constitucionais.
No próprio julgado que tratou a respeito da prisão civil de depositário infiel, na medida cautelar em habeas corpus nº 98.893-8, o Ministro Relator, Celso de Mello, assim se pronunciou sobre a mutação constitucional:
A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea.
4 O PARADOXO INTERPRETATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, A RESPEITO DA APLICAÇÃO EM TERRITÓRIO NACIONAL DE NORMAS CONSTANTES NA CONVENÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
No julgamento do Mandado de Injunção 6.977, Distrito Federal, que tratou sobre a candidatura avulsa, o Ministro Relator Celso de Mello, em decisão monocrática, negou seguimento ao referido remédio constitucional, sob o argumento, em síntese, de que para o cabimento do Mandado de Injunção deve existir lacuna técnica, já que, para o Ministro: “o mandado de injunção busca neutralizar as consequências lesivas decorrentes da ausência de regulamentação normativa de preceitos constitucionais revestidos de eficácia limitada, cuja incidência – necessária ao exercício efetivo de determinados direitos neles diretamente fundados – depende, essencialmente, da intervenção concretizadora do legislador”.
Fundamentando ainda:
[…] Impende considerar, no ponto, a circunstância, juridicamente relevante, de que o requisito de filiação partidária traduz condição de elegibilidade, cuja observância se impõe ao legislador comum por efeito de expressa determinação constante da própria Constituição Federal, como resulta claro do art. 14, § 3º, inciso V, da Lei Fundamental da República. Embora pessoalmente entenda que os tratados internacionais de direitos humanos revestem-se de qualificação constitucional, como assinalei em votos vencidos nesta Suprema Corte (HC 87.585/TO – RE 349.703/RS – RE 466.343/SP), não posso deixar de considerar, em atenção ao princípio da colegialidade, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos precedentes ora referidos, consagrou, no específico tema concernente à posição hierárquica de tais convenções internacionais, o critério da supralegalidade (HC 93.280/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), a significar, portanto, que o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 23, n. 2) não pode superpor-se às cláusulas inscritas no texto de nossa Carta Política nem inibir-lhes a eficácia no plano jurídico, mesmo porque – segundo diretriz jurisprudencial desta Corte – referido tratado internacional situa-se em nível inferior ao da Constituição. (grifei).
Pelo exposto, sublinhe-se a posição do Ministro no sentido de que, em decorrência do entendimento do colegiado do Supremo Tribunal Federal a respeito da adoção da tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, os tratados não podem superpor-se às cláusulas da nossa Carta Política. Em sendo assim, na ocorrência de eventual conflito entre qualquer disposição dos tratados internacionais de direitos humanos ante a Carta Magna, por obvio, prevalecem os comandos insertos na Constituição Federal.
Apesar disso, na oportunidade em que julgaram a respeito da prisão civil de depositário infiel, os ministros do Supremo Tribunal Federal adotaram uma postura diametralmente oposta.
Vejamos um trecho extraído do Habeas Corpus nº 95.967-9 Mato Grosso do Sul, julgado no STF:
[…] Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.
[…]
Desse modo, na atualidade a única hipótese de prisão civil, no Direito brasileiro, é a do devedor de alimentos. O art. 5O, §2°, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput do mesmo dispositivo não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em matéria de direitos humanos, expressamente, só admite, no seu bojo, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e, conseqüentemente, não admite mais a possibilidade de prisão civil do depositário infiel. Tal conclusão não impede que sejam adotadas
outras medidas coercitivas para o efetivo cumprimento das obrigações decorrentes do depósito, ressalvada a impossibilidade da prisão civil. Ante o exposto, concedo a ordem de habeas corpus para o fim de cassar os efeitos do decreto de prisão civil do paciente. (grifo nosso).
Em razão do exposto, vejamos, na visão de Gilmar Ferreira Mendes, os efeitos ocasionados pela adoção da tese da supralegalidade:
[…] é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada pela adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n. 911, de 1º-10- 1969. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do novo Código Civil (Lei n. 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916. Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel. (MENDES, 2012, pag. 518).
Sobre a decisão supratranscrita, vale aqui fazer um parêntese, pois, com a devida vênia, o Supremo Tribunal Federal nesse julgamento adotou a tese do status da supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, uma vez que o dispositivo constitucional é claro e cristalino quanto à possibilidade da prisão do depositário infiel. Nessa esteira, é falacioso o argumento de que foi adotada a tese do status da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, uma vez que a colisão jurídica não envolve normas infraconstitucionais versus tratado internacional de direitos humanos, pois no polo oposto deste está a própria Constituição Federal. E pensar de maneira diversa, é um autoengano interpretativo.
Em decorrência dessas contradições, oportuno discorrer também a respeito da adoção cada vez mais corriqueira de um controverso “alargamento interpretativo”. Pois, é necessário eclodir uma reflexão sobre a necessidade de utilização com parcimônia dos critérios interpretativos, notadamente quando estamos diante de decisões perpetradas pelos membros do Supremo Tribunal Federal.
Nesse tocante, proveitoso se faz colacionar um trecho de um artigo publicado por Lenio Luiz Strek, no qual, como de costume foi certeiro e posiciona-se contra ao “vale tudo” interpretativo:
[…] Chegamos nessa estupidez institucionalizada porque permitimos que se deflagrasse, no Direito, a ideia de que respeitar o texto da lei significa uma aplicação mecânica, que proíbe a interpretação. Ora, é justamente e somente a partir da interpretação que se chega na verdade! Acreditar na possibilidade da “letra fria” [sic] da lei é coisa ainda do século XIX. Não se trata disso. Da ideia de que estamos condenados a interpretar não se segue que vale tudo, e que o intérprete seja livre pra atribuir ao texto o sentido que quiser. Interpretar autenticamente significa respeitar a autoridade da tradição a partir da qual se pode chegar na resposta correta. A quem interessa essa ideia de que se pode dizer qualquer coisa? É simples. Àqueles a quem cabe dizer essa coisa, seja ela qual for. Engana-se quem acha que o relativismo é uma arma da democracia, que permite a pluralidade de ideias; é justamente o contrário: é o relativismo que autoriza que, aquele que detém o poder, diga o que bem entender, o que bem quiser, e o azar é todo nosso. Porque dissemos que tudo era relativo […]. (Streck, 2018).
Pois bem, antes de apontarmos outras contradições que envolvem este imbróglio interpretativo, para melhor compreensão das questões que serão levantadas, conveniente disponibilizar, de forma esquematizada, as disposições constitucionais, os mandamentos descritos no Tratado Interamericano de Direitos Humanos e o teor da súmula vinculante nº 25 do STF. Ocasionadores da querela jurídica.
Vejamos na ordem sobredita:
Constituição Federal
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
(…)
—————————————————————————————————————–
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(…)
(…)
V – a filiação partidária;
Tratado Interamericano de Direitos Humanos
Artigo 7. Direito à liberdade pessoal
7.Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
(…)
Artigo 23. Direitos políticos
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Súmula vinculante nº 25 do STF:É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito
Numa análise suscinta dos dispositivos constitucionais supratranscritos, verificamos, de pronto, que estão expressos na Constituição Federal: tanto a possibilidade de prisão do depositário infiel quanto à estipulação da condição de filiação partidária para elegibilidade. Desta feita, concluimos que, independentemente de serem classificados como norma supralegal ou infraconstiticional, os tratados internacionacionais de direitos humanos não podem se sobrepor as diposições expressas da Lei Fundamental, salvante quando aprovadas nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal.
Neste sentido, eis o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Injunção nº 6.880, Distrito Federal:
MANDADO DE INJUNÇÃO. ALEGADA OMISSÃO REGULAMENTADORA DE DIREITO ASSEGURADO NO ART. 23 DO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. ELEIÇÃO MAJORITÁRIA. POSSIBILIDADE DE CONCORRER, POR MEIO DE CANDIDATURA AVULSA. NORMA ASSEGURADORA DO SUPOSTO DIREITO QUE, À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE, EMBORA DESFRUTE DE STATUS SUPRALEGAL, ESTÁ SITUADA EM PATAMAR INFRACONSTITUCIONAL. MESMO QUE, AO PRECEITO INVOCADO PELO IMPETRANTE, FOSSE RECONHECIDO TRATAMENTO EQUIVALENTE AO CONFERIDO ÀS EMENDAS CONSTITUCIONAIS, ESTAR-SE-IA DIANTE DE NORMA DE EFICÁCIA CONTIDA E NÃO DE EFICÁCIA LIMITADA. INIDONEIDADE DA UTILIZAÇÃO DO WRIT COM O INTUITO DE SOLUCIONAR CONFLITO APARENTE DE NORMAS. NEGATIVA DE SEGUIMENTO, COM AMPARO NO ART. 21, § 1º, DO RISTF. (grifei).
Nessa perspectiva, classificamos como contraditório o posicionamento do Supremo Tribunal Federal que, ignorando os postulados expostos pela própria Corte, decidiu que prevalece a proibição da prisão do depositário infiel, em razão das disposições contidas no Tratado Interamericano de Direitos Humanos, senão vejamos:
EMENTA: HABEAS CORPUS. DECISÃO QUE NEGOU SEGUIMENTO AO WRIT AJUIZADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MITIGAÇÃO DA SÚMULA 691/STF. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. INADMISSIBILIDADE. ORIENTAÇÃO PLENÁRIA DESTE SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou a orientação de que só é possível a prisão civil do “responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia” (inciso LXVII do art. 5º da CF/88). Precedentes: HCs 87.585 e 92.566, da relatoria do ministro Marco Aurélio. 2. A norma que se extrai do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal é de eficácia restringível. Pelo que as duas exceções nela contidas podem ser aportadas por lei, quebrantando, assim, a força protetora da proibição, como regra geral, da prisão civil por dívida. 3. O Pacto de San José da Costa Rica (ratificado pelo Brasil – Decreto 678, de 6 de novembro de 1992), para valer como norma jurídica interna do Brasil, há de ter como fundamento de validade o § 2º do artigo 5º da Magna Carta. A se contrapor, então, a qualquer norma ordinária originariamente brasileira que preveja a prisão civil por dívida. Noutros termos: o Pacto de San José da Costa Rica, passando a ter como fundamento de validade o § 2º do art. 5º da CF/88, prevalece como norma supralegal em nossa ordem jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. Não é norma constitucional — à falta do rito exigido pelo § 3º do art. 5º –, mas a sua hierarquia intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que possibilite a prisão civil por dívida. 4. Na concreta situação dos autos, a prisão civil do paciente foi decretada com base nos artigos 652 do Código Civil e 904, parágrafo único, do Diploma Civil Adjetivo. A autorizar, portanto, a mitigação da Súmula 691. 5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício.
(HC 94523, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 10/02/2009, DJe-048 DIVULG 12-03-2009 PUBLIC 13-03-2009 EMENT VOL-02352-02 PP-00343 LEXSTF v. 31, n. 363, 2009, p. 419-423) (grifo nosso).
No mesmo compasso, consideramos incongruente a não aplicação da mesma tese – de que: “o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação” – na ocasião em que se decidiu pela impossilidade da candidatura avulsa, pelos seguintes motivos: ambas as decisões põe em campos opostos textos expressos da Constituição Federal perante disposições do Tratado Interamericano de Direitos Humanos. Ademais, conforme retromencionado e sublinhado em tópico específico, os ministros do STF classificaram os dois mandamentos, em evidência, previstos na Constituição Federal, como sendo normas de eficácia contida ou restringível.
Nesse cenário, considerando o entendimento que Supremo Tribunal Federal tem a respeito da tese da supralegalidade, tanto a legislação que trata da prisão do depositário infiel quanto a que regulamenta os procedimentos da filiação partidária deveriam ter a sua eficácia paralisada. Mesmo estando tais dispositivos expressos na Constituição Federal no sentido de ser permitido a prisão do depositário infiel e de ser exigida a filiação partidária para se candidatar a cargo eletivo. Sob pena de se ter uma interpretação casuística e não sistemática das normas constitucionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise dos argumentos apresentados, vislumbramos uma aplicação equivocada da tese da supralegalidade, no caso do julgamento do mandamento constitucional que previa a prisão civil do depositário infiel, pois, com a tese interpretativa, embora os tratados internacionais de direitos humanos (não aprovados por quórum qualificado) encontrem-se num patamar inferior a Constituição Federal, na prática, com edição da Súmula Vinculante nº 25 do STF, a referida norma constitucional foi “revogada”. Uma vez que, com o efeito paralisante, a norma que tratava do tema perdeu a sua eficácia. Tornando impossível, também a edição de nova lei que regulamente o camando inserto no inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal. Logo, percebe-se, claramente, que, com a edição da citada súmula vinculante, o STF se sobrepujou ao próprio texto constitucional.
Noutro norte, interessante que, reversamente, quando tratou sobre a candidatura avulsa, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se no sentido de que embora os tratados internacionais de direitos humanos desfrutem de status supralegal, estão situados em patamar infraconstitucional. Portanto, os referidos tratados não podem confrontar as disposições expressas da Constituição Federal.
Lembrando ainda que, lastreado pelos argumentos apresentados, as normas objeto do citado comparativo – inciso LXVII do art. 5º e inciso V do § 3º do art. 14 da Constituição Federal – são classificadas como norma de eficácia contida ou restringível – segundo o decidido pelo próprio STF – portanto encontram-se em situações interpretativas análogas. Consequentemente, as referidas normas deveriam produzir efeitos correlatos.
Por todos esses aspectos levantados, em respeito a coerência interpretativa, só nos resta esperar que o Supremo Tribunal Federal, ou adote a tese do status da supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, de modo que: tanto seja proibido a prisão do depositário infiel quanto seja permitida a candidatura avulsa, ou adote a tese da supralegalidade, a qual coloca a norma internacional de direitos humanos num patamar inferior a Constituição Federal. Nesse último caso, estará obrigado a expurguar do nosso sistema jurídico as normas colidentes com a Constituição Federal, como o caso da norma do Tratado Interamericano de Direitos Humanos que proíbe a prisão do depositário infiel. Neste contexto, oportuno ressaltar que o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de pacificar o seu entendimento interpretativo, no julgamento do RE 1238853 – que trata sobre a candidatura avulsa; tema com repercussão geral a ser julgado pelo colegiado.
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