A responsabilização civil do médico, quando no atendimento aos pacientes, inclui a responsabilidade por lesões – danos – que sejam causados pelas “coisas” que utilizar, ou seja, aparelhos, equipamentos, substâncias e um grande número de materiais com efeitos terapêuticos os mais diversos. Tudo isto, merece uma análise de como os Tribunais encaram a necessidade dos médicos repararem, no terreno da responsabilidade civil, os danos causados nestas situações.
O artigo 938 do Código Civil brasileiro é o utilizado na subsunção do fato à norma pelos julgadores em caso de responsabilidade civil pelo fato da coisa, em situações de erro médico, e ele nos diz, verbis: “Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido.” Trata-se, pois, de um caso de interpretação extensiva da norma jurídica pelo julgador, que extende aos equipamentos, instrumentos e outros materiais utilizados pelo médico no atendimento do paciente o mesmo tratamento dado pela lei às coisas que “caírem ou forem lançadas” de um prédio. Além dos equipamentos, também os produtos utilizados pelo médico, se causarem dano ao paciente, implicam na responsabilização deste pelos prejuizos que houverem, como nos diz José Carlos Maldonado de Carvalho: “A responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, em suma, está vinculada ao conceito de acidente de consumo, ou seja, toda vez que ocorrer acidente causado em razão de um serviço ou de um produto médico defeituoso.” (IATROGENIA E ERRO MÉDICO – sob o Enfoque da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p.66).
Como se vê também no escólio de Hildegard Taggesell Giostri: “O uso de bisturis, tesouras, pinças, aparelhos de hemodiálise, raios laser, raios X, aparelhos eletro-eletrônicos, bombas de cobalto, instrumentos ortopédicos e cirúrgicos, em suma, qualquer objeto que possa ser classificado como aparelho médico-hospitalar pode gerar a responsabilidade para o médico, ou para o hospital.” (RESPONSABILIDADE MÉDICA – As obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação. Pensamento Jurídico – Vol. V, Curitiba: Juruá Editora, 2001, p.201).
O médico deve saber operar corretamente a aparelhagem que utilizar, pois qualquer erro no manuseio de algum equipamento, que cause dano ao paciente, implicará na sua responsabilização pelo prejuizo que advir do incorreto manuseio da aparelhagem que empregar. Até uma equivocada opção por um equipamento no tratamento do paciente, se disto resultar dano a este, redundará em responsabilização do médico. O objeto, ou produto, na sua utilização no paciente, integra-se ao serviço executado pelo médico – é um prolongamento das suas mãos. Sobre isso transcreve-se o que pensa Rui Stoco: “(..) presumindo-se, assim, a responsabilidade do guardião ou dono da coisa pelos danos que ela venha causar a terceiros.” (RESPONSABILIDADE CIVIL E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL. 4. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.485). No mesmo sentido, vai o ensinamento de José de Aguiar Dias: “O dever jurídico de cuidar das coisas que usamos se funda em superiores razões de política social, que induzem, por um ou outro fundamento, à presunção da causalidade aludida, e em conseqüência, à responsabilidade de quem se convencionou chamar o guardião da coisa, para significar o encarregado dos riscos dela decorrentes.’’ (DA RESPONSABILIDADE CIVIL. v.2, 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.398). Para complementar, veja-se o que nos diz Regina Beatriz Torres da Silva: “A responsabilidade por fato da coisa é também indireta e funda-se no princípio da guarda, de poder efetivo sobre a coisa no momento do evento. Desse modo a determinação do guardião é fundamental nessa espécie de responsabilidade civil.” (in: NOVO CÓDIGO CIVIL COMENTADO. Ricardo Fiuza – coordenador -, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 849).
O profissional da Medicina tem que ser diligente, prudente e perito ao utilizar, na sua atividade, instrumentos (equipamentos, aparelhos, substâncias, materiais). O uso destes tem que ser correto e a conservação (manutenção) dos mesmos deve ser realizada adequadamente. Como se depreende do escólio de Jerônimo Romanello Neto: “O ente (médico, hospital, clínica,etc.) tem um dever de prudência e de diligência quando utiliza instrumento ou produto, pelo que deverá ter os maiores cuidados na escolha, manutenção e conservação deles.” (RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MÉDICOS, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1998, p.120). Nos diz ainda, o mesmo autor: “ (…) ao alegar que o problema foi do aparelho cujo defeito desconhecia, ou, ainda, não podia prever, entramos no campo da responsabilidade do fabricante.” (op.cit., p.121), portanto se o equipamento apresentar deficiência que seja desconhecida do médico, ou mesmo não previsível, deixa de ser responsabilidade do médico o dano porventura sofrido pelo paciente. Esta responsabilidade pelo prejuízo causado ao paciente passa a ser do fabricante do aparelho. Como comanda o artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor – CDC, que, em seu caput, explicita: “O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”, artigo este situado no Capítulo IV, Seção II, DA RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO (no caso: coisa) E DO SERVIÇO, que deixa bem clara a responsabilidade legal objetiva do fabricante de um aparelho que apresente defeito e, em virtude deste, ao ser utilizado em um ato médico, cause dano a um paciente.
Há pois duas situações, como bem nos diz Hildegard Taggesell Giostri: “Em nosso entender, e no que diz respeito à responsabilidade pelo fato das coisas, há que serem analisadas duas posibilidades distintas da ocorrência desta responsabilidade:
a) O dano é causado pelo médico, por intermédio do aparelho;
b) O dano é causado pelo próprio aparelho, independentemente do profissional.” (op. cit, p.204).
Naqueles casos em que o responsável pelo defeito no aparelho for o fabricante e o médico vier a ser, em juízo, responsabilizado pelos danos causados, pode este ressarcir-se junto ao fabricante do valor no qual foi condenado frente ao paciente, obedecendo ao comando legal do artigo 934 do nosso Código Civil, que diz: “Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz.”. O artigo 13, do Código de Defesa do Consumidor – CDC, em seu Parágrafo Único, vai no mesmo sentido dispondo, verbis: “Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso.”. Assim, um eventual defeito de fabricação terá, caso causar dano ao paciente, como responsável último, pelos danos porventura sofridos por este, o fabricante (ou mesmo o importador, em se tratando de aparelho estrangeiro). Cabe ao médico, caso venha a ser responsabilizado em juízo, por prejuízos ao paciente, numa situação assim caracterizada, impetrar uma ação de regresso contra o fabricante (ou importador) do aparelho defeituoso que lesou o paciente, para ser ressarcido do valor pecuniário com que teve que indenizar o paciente.
Um medicamento, ou qualquer substância prescrita ou manuseada com finalidade similar, se utilizado pelo médico deverá ser corretamente ministrada ao paciente, observando o profissional as características do princípio ativo desta. Isto implica em seguir as orientações científicas no tocante às dosagens que devem ser prescritas, ou administradas ao paciente. Isto inclui cuidados e orientações quanto às reações colaterais – adversas – bem como contraindicações que existam. A orientação ao paciente, de parte do médico não pode faltar como adverte Maria Beatriz Cardoso Ferreira: “Hoje, nos estados Unidos, reações adversas a medicamentos são consideradas a quarta causa de morte, só sendo superadas por câncer, cardiopatia isquêmica e acidente vascular cerebral. No entanto habitualmente o que se vê é a valorização dos efeitos terapêuticos e a ausência de menção dos efeitos indesejáveis ou sua apresentação de uma forma discreta.
Embora o conhecimento dos riscos a que está exposto seja um direito do paciente, os profissionais algumas vezes os minimizam.” (NEM SEMPRE O MEDICAMENTO MAIS NOVO É O MELHOR – Entrevista, Boletim Informativo, ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, nº54, abril, 2005, p.6). Deve haver, isso sim, orientação – esclarecimento – e vigilância por parte do médico no que se refere ao aparecimento de efeitos indesejáveis dos fármacos, e substâncias, utilizadas nos mais diversos tratamentos realizados nos pacientes. Se necessário, deve o médico corrigir as doses das substâncias empregadas, durante o tratamento, e, também, por imperativo, adaptá-las às características diferenciadas de cada organismo humano. Em certas situações, a interrupção da medicação deve ser a medida a ser tomada pelo médico no momento adequado. Com estes cuidados no manejo da terapêutica ministrada ao seu paciente o médico não será responsabilizado por danos ao paciente em virtude dos medicamentos – substâncias –, pois certamente estes danos serão devidos às peculiares ações dos fármacos. Mais provavelmente, pois, serão conseqüência das ações dos medicamentos, que ficam no terreno da responsabilidade civil exclusiva dos laboratórios farmacêuticos fabricantes dos mesmos. No mesmo sentido vai o escólio de Jurandir Sebastião: “A regra é a mesma em relação aos produtos farmacêuticos, relativamente à Medicina e, também, às normas de proteção ao consumidor (qualidade do produto). Tratando-se de marca-passo, pino de platina, expansor de pele da mama, prótese dentária, etc., o médico ou o dentista devem observar o recomendação do fabricante e ajustá-la ao paciente (precaução de alergia, rejeição, etc.). Percorrido este caminho satisfatoriamente, eventual resultado danoso ao paciente deverá ser debitado apenas ao fabricante. Caso contrário, a responsabilidade será de ambos ou tão–só do médico se este descurou da diligência prévia de ajustamento ou pronta mudança, no caso de resultado inverso e inesperado no paciente.” (RESPONSABILIDADE MÉDICA CIVIL, CRIMINAL E ÉTICA. 3.ed., Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2003, p.197). Assim também pensa João Monteiro de Castro: “Assim sendo, considerando-se ser o médico um profissional liberal (portanto respondendo mediante apuração de culpa) e que, paralelamente, existe por força de lei a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos, fica afastada a responsabilidade solidária deste, que usa um produto defeituoso.
A situação será bem diversa se o profissional agir com culpa quanto a instruir e informar o paciente sobre o uso ou dosagem do produto, o que configurará falha na prestação do serviço médico e atrairá a responsabilização do médico.” (RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. São Paulo: Editora Método, 2005, p.175). Ainda, na visão do mesmo autor: “Assim não responderá o médico se, sem culpa profissional, danos advierem ao paciente, em decorrência de aplicação de produto defeituoso, eis que, escolhida com prudência e diligência a terapêutica a ser seguida, deve-se, tanto como se aceita a fatalidade da doença e a possibilidade de sua má evolução, conformar-se com o risco do tratamento.
Por outro lado, em existente culpa do médico e exposição do paciente aos riscos de produto defeituoso, responderá ele solidariamente pelos danos patrimoniais e extrapatrimoniais experimentados, advindos da má escolha.” (op. cit., p.176).
Pode a atividade do médico associar-se, ou assemelhar-se, à daquele que fornece o produto. Isto pode trazer implicações para ele, sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, como se vê no escólio de Oscar Prux: “Não se pode ignorar a freqüência com que muitos profissionais liberais, a par de fornecerem seus serviços, também atuam como autênticos comerciantes (e até como fabricantes ou importadores), vendendo ao consumidor produtos ligados ao serviço prestado. Assim, transportando para o campo prático, podemos exemplificar da seguinte maneira: o médico que em tratamento de obesidade, depois de prescrever o tratamento, também vender ao consumidor o remédio por ele receitado, deverá responder tanto pela qualidade de seu serviço, quanto pela qualidade do produto que vendeu, sendo que, nesse aspecto, sua responsabilização deverá acontecer tal qual a de qualquer comerciante. E se o remédio for de sua fabricação ou importação, também responderá na condição própria de fabricante ou importador. Assim, se quanto à responsabilização referente a seu serviço está amparado pela exceção do § 4º, do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, o mesmo não acontece quanto à sua genuína atuação como fabricante ou importador, ou mesmo apenas vendedor. Quanto a essas últimas, ele responderá tal qual os demais fornecedores, que nessa atividade, têm em comum com ele, o mesmo intuito de ganho, ou seja, aplicando-se a regra geral da responsabilidade objetiva. No tocante à fabricação e venda do remédio, não existe diferença a justificar ao médico responder de forma privilegiada em comparação com o fabricante e o comerciante. Muito ao contrário, há que se ter um rigor ainda maior, pois ao receitar e vender remédio de sua fabricação, o profissional aproveita-se no fornecimento, de todo o peso de sua autoridade de especialista no assunto, deixando o consumidor praticamente à sua mercê”. (RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROFISSIONAL LIBERAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 1998, p.227-228). Se o médico praticar ato de comércio, agir como comerciante, até mesmo importador, obtendo lucro com a venda de produtos relacionados com o serviço que prestar, a sua responsabilização, em caso de dano a um paciente, será objetiva nos termos do caput, do artigo 12, do CDC (em vez do parágrafo 4°, do artigo 14, do mesmo CDC, verbis: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”), ou seja, o médico será considerado um fornecedor.
Portanto, o médico pode ser responsabilizado civilmente, nos Tribunais, se agir culposamente na utilização da “coisa” em um tratamento médico. Também será, o médico, se agir com culpa, responsabilizado, neste caso solidariamente com o fabricante ou importador, mesmo que aquilo que utilizar tenha um defeito de fabricação. Se, o médico, agir como um comerciante – fornecedor –, será responsabilizado nos Tribunais nos termos da responsabilidade objetiva.
Advogado e Médico – Direito Médico
Autor do livro: Responsabilidade civil e penal do médico – 2003 – LZN
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