Introdução
O presente artigo tem o objetivo de estudar o estado de perigo como o vício do consentimento que é, trazendo todos seus elementos caracterizadores e formas possíveis, além de discussões doutrinárias a respeito e efeitos que acarretam o seu reconhecimento.
Estado de Perigo
Configura-se em estado de perigo a pessoa que assume obrigação excessivamente onerosa para salvar-se, ou pessoa de sua família, de grave dano conhecido da outra parte.
Difere-se, entretanto, a obrigação excessivamente onerosa da onerosidade excessiva. Embora ambas causem a quebra da equivalência entre a prestação e a contraprestação, a obrigação excessivamente onerosa respeita a um negócio jurídico que nasce numa condição de extremo desequilíbrio inter partes, ao passo que a onerosidade excessiva altera as circunstâncias no curso da execução do negócio de prestação continuada.
O estado de perigo está previsto no artigo 156, caput, do Código Civil, e são seus elementos:
a) A existência e a atualidade de um dano grave:
Existência: haver um dano grave à própria pessoa, ou a seu familiar ou a terceiro, que por qualquer circunstância seja beneficiada pela intenção do declarante (devedor).
Atualidade: segundo Teresa Arcona Lopez, “o dano atual significa que o acontecimento que pode originar o dano já existe e, caso não seja interrompido, conseqüências lesivas advirão, com certeza”. Para o declarante deve existir a pressão de escolha entre dois males, isto é, sujeitar-se ao dano ou participar de um negócio em condições desvantajosas.
b) O nexo de causalidade entre o grave dano e a declaração obtemperada para o negócio:
Teoria da equivalência: todas as condições que ensejam um determinado efeito equiparam-se como causa do evento.
Teoria da causalidade adequada: somente a causa direta e imediata que leva ao evento danoso é tida como relação de nexo.
A relação de causalidade, além de interesse teórico, mantém viabilidade prática, já que duas funções podem ser observadas. A primeira aparece como pressuposto da declaração, ou seja, ela só existiu por força do grave dano. A segunda função prende-se justamente na anulação do negócio, porque se a declaração foi feita ignorando-se o dano ou o temor, não se há falar em estado de perigo.
c) Conhecimento do fato de perigo pela contraparte receptora da declaração:
Trata-se de elemento de natureza subjetiva porque o receptor da declaração feita pela pessoa em perigo deve saber do grave dano real ou putativo que atinge o autor da declaração. Aqui fica demonstrada a razão de o estado de perigo situar-se dentre os defeitos do negócio jurídico, já que é a má-fé exaustiva do credor que descumpre o valor constitucional da solidariedade, aproveitando-se do temor do devedor.
d) A assunção de uma obrigação de excessiva onerosidade:
No estado de perigo a prestação é desproporcional à contraprestação, que pode ser um serviço, desde a origem do negócio, o que perturba claramente a noção da equivalência que deve ser mantida. A quebra da equivalência se dará porque o declarante, com raciocínio de que estava diante de um grave dano à pessoa ou aos familiares e afetos afins, compromete seu patrimônio assumindo obrigação excessivamente onerosa. Em contraprestação sempre haverá um serviço de valor inferior, o qual, numa situação de normalidade, não exigiria todo aquele dispêndio.
e) O intuito do declarante de salvar a si próprio, um familiar ou um terceiro:
O parágrafo único do artigo 156 do Código Civil trás a noção de cláusula geral a possibilidade de anulabilidade se estendida a terceiros que não o declarante nem seus parentes, contudo, pela preservação da pessoa humana não seria justo restringi-la somente ao declarante e seus familiares.
Estado de perigo putativo
Encontra-se em estado de perigo putativo a pessoa que julga estar em estado de perigo, concluindo assim certo negócio jurídico. O receptor da declaração, sabendo que a atualidade do dano não é real, aproveita-se do temor mental do declarante para celebrar o negócio.
No dizer de Casare Massino Bianca, “aos fins da rescisão não tem importância que o perigo seja real. Também o perigo putativo é de fato idôneo para comprometer a liberdade de contratação do sujeito”.
Efeito do reconhecimento de estado de perigo
Nos ditames do artigo 178, II do Código Civil, o negócio jurídico celebrado sob estado de perigo será passível de anulação. Para alguns doutrinadores, a solução não estaria na anulação do negócio, mas na redução proporcional do seu valor original ao serviço prestado. Neste diapasão, reza o artigo 606 do Código Civil:
“Se o serviço foi prestado por quem não possua título de habilitação, ou não satisfaça requisitos outros estabelecidos em lei, não poderá quem os prestou cobrar a retribuição normalmente correspondente ao trabalho executado. Mas se deste resultar benefício para a outra parte, o juiz atribuirá a quem o prestou uma compensação razoável, desde que tenha agido com boa fé.”
Moacyr de Oliveira conclui pela impossibilidade dessa redução, asseverando que neste caso o poder do juiz quanto à determinação de pagamento de qualquer remuneração pelo serviço prestado restou limitada, não se filiando à corrente italiana “que opera a redução ou modificação do ônus assumido, com a faculdade expressa na lei de, ao pronunciar a rescisão, atribuir, à vista das circunstâncias, eqüitativa retribuição à outra parte, pelo serviço prestado”.
Nem mesmo se de boa fé estava o receptor da declaração é possível buscar sua remuneração através do estado de perigo, muito embora haja posição divergente. Primeiro porque, a figura do artigo 156 exige a má-fé do receptor. Segundo porque, além disso, nunca deve ser aceito o empobrecimento excessivo do declarante.
Para o Professor Renan Lotufo, ausente a má-fé do credor, aplicar-se-ia no caso a figura da lesão posto não exigir qualquer interação subjetiva (má-fé).
Da aplicação do estado de perigo na hipótese de despesas hospitalares
Há posições que defendem a ocorrência deste vício no ato de garantia, através de cheque caução, prática rotineira nos hospitais particulares que exigem a assinatura de nota promissória em branco a fim de garantir que a parte não descumpra seu dever de adimplemento da obrigação e pela presença da atualidade do dano, que é o da pessoa que se vê compelido a efetuar depósito ou prestar garantia, exigidos pelo hospital, para conseguir internação ou atendimento de urgência de cônjuge ou de parente em perigo de vida.
Trata-se, a meu ver, de relação de consumo, isto porque o devedor é o destinatário final de prestação do serviço realizada por um hospital, que é fornecedor. Considerando que o CDC é norma de ordem pública, portanto cogente nos termos do art. 1º. Não há como se aplicar na hipótese o referido vício de consentimento.
Conclusão
Em suma, o estado de perigo macula a livre declaração de vontade da parte para a realização do negócio jurídico, vez que assume obrigação excessivamente onerosa por encontrar-se diante de um grave dano à sua pessoa, familiar ou afetos afins, o que provoca desequilíbrio entre os pactuantes desde o seu ato de celebração.
O estado de perigo, quando reconhecido judicialmente, importará na anulação do negócio firmado, nos termos do artigo 178, II do Código Civil. Contudo, existe a possibilidade de redução proporcional do valor do contrato, ao invés da sua anulação, quando o serviço prestado resultar benefício para a outra parte, e tenha o prestador dos serviços agido de boa fé, conforme artigo 606 do mesmo diploma.
Inúmeras são as posições doutrinárias que consideram a anulação do negócio jurídico por estado de perigo causa de enriquecimento indevido, haja vista o prestador do serviço ficaria sem a devida contraprestação (pagamento). Neste caso não há que se falar em enriquecimento indevido do declarante, pois sua má-fé lhe retira a causa para cobrança.
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