Estupro de vulnerável contra menor de 14 anos: Uma análise da vulnerabilidade absoluta e relativa

Resumo: O presente trabalho tem por objeto analisar criticamente o crime previsto pela Lei Federal 12.015 de 2009, conhecido como “estupro de vulnerável”, previsto no artigo 217-A no Código Penal Brasileiro, inserido por referida lei. Com a mudança legislativa, mudou-se o perfil subjetivo da vítima, com o objetivo geral da proteção integral da dignidade da pessoa humana, mais especificadamente, menores de 14 anos, ou qualquer outra pessoa que por enfermidade, deficiência mental ou qualquer outra causa não puder oferecer resistência. O crime, inclusive, foi inserido no rol dos crimes hediondos, dificultando a progressão de pena ao agente violador com a finalidade de coibir tal conduta delituosa. Por outro lado, na prática, há profunda divergência na aplicação de tal lei no caso concreto, como se pode analisar em jurisprudência atualíssima dos Tribunais Brasileiros bem como do Superior Tribunal de Justiça.

Palavras-chave: Direito Penal. Crimes contra a dignidade sexual. Estupro de vulnerável. Crimes hediondos.

Abstract: This paper aims to analyze in a critical way the crime originated by Federal Law number 12.015/2009, known as “vulnerable´s rape”, located in the article 217-A of the Brazilian Criminal Code. Legislative changes were made, and the subjective profile of the victim changed, to protect completly the dignity of the human being, especifically younger than 14 years old, or anyone whose has any kind of disease, mental illness or another cause for the person to be unable to resist. This crime, also was inserted in the list of heinous crime, difficulting the progression of the punishment for the criminal agent, trying to restrain this delictual conduct. On the other hand, on the praxis, there´s a deep divergence in application of such Law in analysis of real trials, as it can be observed in the actual jurisprudence from brazilian superior courts and the courts of the states.

Keywords: Criminal Law; Crimes against sexual dignity; Vulnerable´s rape; Heinous Crimes.

Sumário: Introdução 1 Origem do tipo penal na Lei Federal 12.015 de 2009 1.1 Classificação do estupro de vulnerável como crime hediondo 2 Bem Jurídico tutelado e estrutura típica 3 Do conceito de vulnerabilidade e violência implícita 3.1 Vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa 4 Prova da idade da vítima 5 Jurisprudência atual e polêmica. Considerações finais. Notas de fim Referências bibliográficas

Introdução

A partir da década de 80, os tribunais brasileiros começaram a se questionar sobre a presunção de violência constante no revogado art. 224 do Código Penal, qual seja, o anterior molde do crime de estupro, passando a relativizá-la no caso concreto, dentro das particularidades do caso. Doutrina e jurisprudência se desentendiam se referida presunção era de natureza relativa ou de natureza absoluta, ou seja, não podendo ser questionada.[1]

Desde logo a promulgação da Lei Federal 12.015 de 2009 doutrinadores como Rogério Greco[2] já se posicionavam no sentido de que referida lei já havia pacificado tal entendimento, tendo por critério objetivo a idade, identificando de plano a vulnerabilidade da vítima de forma presumida, independentemente das particularidades do caso concreto.

Por outro lado, outros doutrinadores de Ponta como Guilherme Nucci[3] desde então se pronunciaram contrários a uma presunção absoluta em favor da vítima, devendo-se ainda levar em consideração a idade e discernimento da vítima, sendo absoluta se criança – menor de 12 anos de idade, ou relativa se adolescente – maior de 12 anos, portanto.

Em relação à jurisprudência a situação não era outra. Juízes em precedentes isolados e Tribunais em suas jurisprudências divergiam profundamente e oscilavam em relação a absolvição e condenação dos réus em causas semelhantes envolvendo relações sexuais com menores de 14 anos ainda que com consentimento dos mesmos.

O tema, assim, configura repercussão geral social, já que relativamente comum observar a situação, mesmo por conta da iniciação sexual precoce que se tem notícia no país. É de imensa importância jurídica a discussão que, embora já tenha, neste mesmo ano de 2015, supostamente pacificado o tema, ainda deixa enormes lacunas a serem preenchidas e discutidas, dado que a situação não possui origem simples.

Uma vez originada na realidade social, é de base complexa e assim deverá ser tratado tal assunto, bem como se enquadra no interesse político dado que se relaciona não apenas com a violência e proteção da criança e do adolescente, mas com a proteção integral do ser humano, no qual se enquadra também a figura do réu.

1 Origem do tipo penal na lei federal 12. 015 de 2009

 A Lei Federal 12.015 de 2009 veio corrigir algumas situações tidas como inadequadas pela doutrina e jurisprudência tais como a nomenclatura do título VI da Parte Especial do Código Penal conhecido como “crimes contra os costumes”, embasados em modelos comportamentais ultrapassados da sociedade.[4]

Dentre outras mudanças, unificou o estupro e o atentado violento ao pudor, desconsiderando algumas figuras relacionadas a imagem unicamente da mulher, passando a exaltar a questão da dignidade da pessoa em si.

Passou-se a considerar a questão da dignidade, mais de acordo com a Constituição Federal de 1988, passando tal nomenclatura a ser chamada de “crimes contra a dignidade sexual”, dando uma conotação maior para a decência, compostura, respeitabilidade, honra,[5]

Volta-se a lei para maior proteção ao desenvolvimento sexual do menor de 18 anos e ainda com maior cuidado, o legislador se atentou para o menor de 14 anos. Foca-se na dignidade humana como princípio regente bem como na livre formação da personalidade do indivíduo.

Desta forma, surge o crime de estupro de vulnerável, tipo penal classificado como simples (conduta simples), comum (pode ser cometido por qualquer pessoa), material (requer a demonstração do resultado naturalístico), de forma livre (cometido por qualquer meio pelo agente), instantâneo (o resultado é definido na linha do tempo), de concurso eventual (unissubjetivo – cometido por uma só pessoa mas que admite co-autoria e participação) e em regra comissivo (requerendo uma conduta comissiva, indicando ações e não inações salvo em caso de co-autoria e participação) e plurissubsistente (cometido em vários atos).[6]

1.1 Classificação do estupro de vulnerável como crime hediondo

O art. 217-A do Código Penal possui três espécies de estupro de vulnerável: O simples, que pode ser próprio (caput) ou por equiparação (parágrafo primeiro); o qualificado por lesão corporal de natureza grave (parágrafo terceiro); e o qualificado pela morte da vítima (parágrafo quarto).[7]

Em todas essas hipóteses constitui-se crime hediondo, conforme o art. 1º, VI da Lei Federal 8.072/1990, impossibilitando o sujeito ativo do crime a receber graça, anistia, indultos ou fianças; sujeitando-o ao regime fechado com possibilidade de progressão apenas após cumprimento de dois quintos da pena se primário ou três quintos se reincidente; bem como ao cabimento de prisão temporária de 30 dias prorrogável por igual período, se necessário e extrema e comprovada necessidade; e por fim, limitando a possibilidade do pedido de livramento condicional da pena apenas após cumprimento de pelo menos dois quintos da pena se e somente se o apenado não for reincidente específico em crimes hediondos ou equiparados.[8]

Muito embora tenha a Lei 12.015/2009 inserido o estupro de vulnerável no rol dos crimes hediondos, indiretamente acabou por revogar o art. 9º da Lei 8.072/1990, em decorrência da revogação expressa do art. 224 do Código Penal, entendimento esse acolhido pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. Por outro lado, ao estupro de vulnerável já é aplicada pena privativa de liberdade elevada, ou seja, de oito a quinze anos de reclusão, maior do que a do próprio estupro que é de seis a dez anos de reclusão, tornando desnecessária a majoração imposta pela Lei de Crimes Hediondos.[9]

2 Bem jurídico tutelado e estrutura típica

O bem jurídico tutelado é a dignidade sexual dos considerados vulneráveis perante a lei, com o objetivo de proteger a integridade e privacidade dessas pessoas em seu âmbito sexual. O objeto material do crime é a pessoa vulnerável sobre a qual se recai a conduta típica.[10]

Assim, qualquer verbo do núcleo do tipo, quais sejam, ter conjunção carnal, ou praticar qualquer ato libidinoso com os considerados vulneráveis pelo art. 217-A do Código Penal pode incorrer nas penas da lei.

Nos crimes contra a dignidade sexual como um todo, a dignidade sexual é o bem jurídico mediato, considerando que cada um dos tipos específicos possui um bem jurídico imediato. Em relação aos vulneráveis, sequer se pode falar em liberdade sexual propriamente dita, já que não é reconhecida plenamente a disponibilidade do exercício dessa liberdade, que é justamente o que caracteriza a vulnerabilidade, tentando assegurar o desenvolvimento normal da personalidade e que se tenha uma vida adulta plena.[11]

3 Do conceito de vulnerabilidade e violencia típica

Conforme Cesar Roberto Bittencourt, todos nós em algum momento estamos vulneráveis em certas circunstâncias, ou seja, envolvidos em uma vulnerabilidade eventual. Mas não seria essa vulnerabilidade o objeto do legislador, que leva em conta critérios objetivos de vulnerabilidade tais como idade, enfermidade mental ou estado de incapacidade[12].

Desta forma, sendo a pessoa considerada vulnerável, a violência será considerada presumida. Sendo a pessoa não considerada vulnerável, a violência a ser observada deverá ser a violência real para ser configurado o crime.

Com base no autor, pode-se afirmar que houve uma substituição da violência presumida para a violência implícita, também chamada de presunção implícita.[13]

O legislador do ano de 2009 usou as mesmas circunstâncias do legislador de 1940 para presumir a violência sexual. Anteriormente, destacou-se as causas que levariam a presunção de violência, sendo que o legislador contemporâneo usa disfarçadamente a mesma expressão, ludibriando o intérprete e o aplicador da lei. A proteção conferida aos menores de quatorze anos continuou despertando debate doutrinário e jurisprudencial, não sepultando a discussão sobre o caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência que pairava inclusive no Supremo Tribunal Federal acerca das particularidades da vida e conduta pessoal da vítima, relativizando a presunção de violência[14].

Assim, para Bittencourt, a presunção implícita de violência contida no novo artigo do Código Penal não afastaria a discussão sobre a questão da relatividade, sendo que “o rótulo não altera a substância”[15].

No ano de 2005, em Habeas Corpus nº 73.662/MG 2ª Turma ao Supremo Tribunal Federal conforme o entendimento do Relator Ministro Marco Aurélio no

“Nos nossos dias não há crianças, mas moças com doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definidos a ponto de vislumbrarem toda a sorte de consequências que lhes podem advir.”[16]

Bittencourt[17], assim como Nucci, inclina-se no sentido de que o STF, caso a caso, in concreto, para a análise das condições pessoais de cada vítima. Em contrário, Rogério Greco discorda, entendendo que a determinação da idade foi uma eleição político-criminal feita pelo legislador, mesmo que a vítima seja já prostituída ou consinta a relação sexual.[18] [19]

Conforme Bittencourt, afastada a vulnerabilidade absoluta, poderá restar a vulnerabilidade relativa, que não se confunde com a presunção relativa de vulnerabilidade. São dois aspectos distintos: a presunção absoluta versus presunção relativa de vulnerabilidade e a vulnerabilidade absoluta versus vulnerabilidade relativa, que resultam em juízos de valor distintos[20].

Em relação a presunção absoluta e a relativa de vulnerabilidade, questiona-se a natureza da presunção legal, expressa ou implícita, independentemente da gravidade ou da natureza da própria vulnerabilidade que não é objeto de exame em um primeiro juízo valorativo.[21]

Pela presunção absoluta de vulnerabilidade, admite-se que a vítima é vulnerável sem qualquer discussão, não admitindo prova em sentido contrário. Em relação a presunção relativa de vulnerabilidade, a vítima pode ou não ser vulnerável, dependendo da análise do caso concreto. Não se questiona ou discute o grau de intensidade da vulnerabilidade, mas somente se admite ou não prova em contrário.[22]

Partindo-se do princípio de que a vulnerabilidade existe, avalia-se seu grau, intensidade ou extensão no estudo acerca da vulnerabilidade absoluta ou vulnerabilidade relativa conforme se pode estudar abaixo.

3.1 Vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa

A discussão sobre a qualidade da presunção de violência no estupro sempre esteve acirrada, se a mesma era absoluta ou relativa. Em relação a presunção absoluta, não comportando prova em contrário, ou se relativa, possibilitando-se prova em contrário.

O debate, conforme mencionado por Guilherme Nucci[23], dava-se em particular em relação a idade, já que em relação a pessoas com capacidade diminuída dependia-se na grande maioria das vezes de prova pericial.

A Lei 12.015/2009 procurou sanar a questão dentro do tipo penal autônomo do art. 217-A, concedendo uma denominação própria ao incapaz de consentir validamente o ato sexual: vulnerável.

Em um primeiro momento, a lei teria abolido a presunção de violência nos crimes sexuais, mediante a revogação do art. 224 do Código Penal Brasileiro[24]. Desta forma,

“Enquanto o estupro com violência real ou grave ameaça a adequação típica era imediata, permitindo a imputação ao agente do crime definido no art. 213 do Código Penal, no estupro com violência presumida a adequação típica era mediata, dependendo do socorro de norma de extensão da tipicidade. Com efeito, a imputação dizia respeito ao art. 213 c/c o art. 224 (em alguma das suas hipóteses)[25]

Hoje, com dois crimes diversos, depende-se do perfil subjetivo do ofendido. Se a vítima for considerada pessoa vulnerável, aplica-se o art. 217-A, ao passo que nas demais situações aplica-se o art. 213 do Código Penal.[26]

O legislador atribuiu a condição de vulnerável ao menor de quatorze anos ou a quem por enfermidade ou deficiência mental não tenha discernimento necessário para a prática do ato ou que não possa oferecer resistência. No art. 218-B novamente menciona o adjetivo vulnerável para outra faixa etária, o menor de dezoito anos sem qualquer justificativa razoável ou explicações distintas.[27]

O legislador usa o termo em modos distintos, concluindo-se que há concepções distintas de vulnerabilidade. No entendimento de Cesar Roberto Bittencourt[28], na visão do legislador, desta forma, devem existir duas modalidades de vulnerabilidade: a absoluta e a relativa. A absoluta seria referente ao menor de quatorze anos, bem como a relativa seria referente ao menor de dezoito anos e maior de quatorze, expressão empregada ao contemplar a figura do favorecimento a prostituição ou outra forma de exploração sexual.

Nas palavras de Bittencourt, “o legislador consagra uma vulnerabilidade real e outra equiparada”, apresentando três modalidades de vulnerabilidade em seu entendimento: a real (aplicada a menor de quatorze anos); a equiparada (aplicada a vítima enferma ou deficiente mental); e a por interpretação analógica (quem por qualquer causa não puder oferecer resistência).[29]

Quando se avalia a presunção absoluta ou relativa, avalia-se a natureza, quando se avalia a vulnerabilidade em si avalia-se o juízo, o quantum, e seguindo-se a linha do legislador, que previu linhas etárias distintas, qual seja, menor de quatorze e menor de dezoito anos, apresentam gravidades e consequências distintas no caso concreto com o objetivo de se perseguir a justiça até mesmo para o apenado, já que a pena varia em suja quantidade e deverá ser apurado se a pena do sujeito ativo será menor ou maior dependendo do caso concreto e da vulnerabilidade da vítima.[30]

Nesse sentido, considera-se o princípio da proporcionalidade e razoabilidade da pena.

Porém, Guilherme Nucci[31] vai um pouco mais adiante, analisando que a etimologia do vocábulo estupro significa coito forçado, violação sexual com emprego de violência física ou moral, violação forçada no campo sexual.

Nucci posiciona-se a favor que a vulnerabilidade poderá ser relativizada não apenas para ajustar a pena do sujeito ativo do crime como também tornar a conduta atípica, dado que “a lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade”[32]. Leva em consideração, portanto, o critério social, enquadrando-se na realidade ou contexto em que se enquadra vítima e sujeito ativo, bem como o princípio da ofensividade.

Para a posição crítica de Nucci, houve um entrave do legislador com o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que o mesmo não acompanhou a evolução dos comportamentos na sociedade, entendendo o maior de doze anos capaz de consentir em relação aos seus atos sexuais, sendo válida a proteção absoluta e inviolável do menor de doze anos, considerado ainda criança aos olhos da lei.[33]

Da mesma forma, é fundamental a análise do dolo do agente e a possibilidade de análise da situação do mesmo, inclusive se o mesmo não é também parte vulnerável ou está temporariamente com capacidade reduzida.

4 Prova da idade da vítima

Outra questão polêmica que não se pode deixar de mencionar é a da prova sobre a idade da vítima no momento da consumação do ato, já que o desconhecimento da idade da vítima poderá induzir ao erro de tipo no direito penal.

Como ficaria a questão do conhecimento da idade da vítima? No caso concreto, em uma festa, poderia-se fornecer o exemplo dos “ficas” em que pessoas que mal se conhecem praticam atos libidinosos sem maiores compromissos e sem maiores conhecimentos umas das outras.

Ora, se o sujeito não está preocupado sequer se a suposta vítima possui doenças a serem transmitidas naquele momento de euforia, também em um primeiro momento não se preocupa com a idade da mesma, principalmente se aparenta e se porta como se tivesse bem mais idade.

Comum entre pessoas mais jovens, esse tipo de conduta deverá ser levado em consideração no caso concreto, motivo ainda maior para se consolidar a teoria da relatividade da vulnerabilidade.

A questão não é a reprovabilidade da conduta em si ou se a mesma poderia ser evitada com a consciência e presunção de que todo adulto maior de 18 anos deveria saber bem que constitui crime ter ato de lascívia ou conjunção carnal com menor de quatorze anos, e que por isso deveria ter maior cuidado.

A questão é não se fechar os olhos para a questão da prova da idade. Ademais, em relação a prova da idade pode esbarrar na mãe que, denunciando o rapaz de dezoito anos que mantém relação com sua filha de treze anos desde que o mesmo tinha dezessete, como ficaria a prova da idade a partir da qual se possa configurar a conduta delituosa?

5 Precedentes e jurisprudências atuais e polêmicas

Há muito tempo há dissenso nos Tribunais sobre a aplicabilidade da vulnerabilidade relativa ou absoluta nos casos de estupro envolvendo menores e mesmo em que grau essa vulnerabilidade seria aplicada – como e em que extensão.

A divergência sobre a presunção de vulnerabilidade absoluta – não havendo de se falar em absolvição se ciente da relação com menor de quatorze anos, apenas no grau da variação da pena; e a vulnerabilidade relativa – havendo de se falar inclusive na absolvição do réu em caso de consentimento e capacidade de discernimento mínimo da vítima foi apresentada por Guilherme Nucci de forma clara em diversos julgados do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça bem como outros tribunais, datados até o ano de 2010.[34]

Em decisão atualíssima datada de 20 de agosto de 2015, processo número 0007611-43.2012.8.26.0047, o juiz Thiago Baldani Gomes de Filippo, da 2ª Vara Criminal de Assis em São Paulo absolveu um rapaz de 18 anos que engravidou sua namorada de apenas 13 anos de idade. De acordo com referida decisão, o rapaz iniciou namoro com a garota de 12 e após um ano de namoro, passaram a manter relações sexuais, fato que culminou na gravidez.[35]

Ao que consta da decisão, a mãe da garota, ciente do namoro, mas em desaprovação, ainda agrediu a menina quando soube da gravidez, embora tivesse pleno conhecimento de que a filha já mantinha relações sexuais com o namorado. O juiz, em sua decisão, levou em conta as particularidades do caso, dentre as quais o depoimento da vítima que alegou consentir, não se sentir enganada e não se arrepender de suas atitudes em nenhum momento, dado haver muito afeto entre ambos e até mesmo a cogitação de um noivado.[36]

“Na justificativa, o magistrado afirma que, com a entrada em vigor da Lei 12.015/2009, tem prevalecido nos tribunais superiores o entendimento de que a vulnerabilidade reconhecida para as vítimas menores de 14 anos não admite prova em contrário. No entanto, para o juiz Thiago Filippo, nenhuma dessas decisões serve de paradigma para o caso, pois foram decisões de órgãos fracionários, e não do pleno dos tribunais.[37]

Para o juiz do caso, citando Guilherme Nucci, apenas há presunção absoluta de violência no caso de crianças, sendo que adolescentes possuem um grau maior de entendimento e assim, outro grau de vulnerabilidade. Para o magistrado, nenhuma decisão de tribunal superior até então teria discutido tal situação no pleno, mas apenas por seus órgãos fracionários, motivo pelo qual não aplicaria o entendimento de que não caberia prova em contrário em caso de menor de 14 anos.

Mas seis dias após esta decisão, o Superior Tribunal de Justiça, em sessão de julgamento no rito de Recursos Especiais Repetitivos, sob relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz analisou caso repetitivo de repercussão geral originado do Estado do Piauí em que um adulto iniciou o relacionamento com uma criança de 8 anos. À época da denuncia, o denunciado teria 25 anos e a vítima 13. Em primeiro grau, levando-se em consideração a ciência da família, anuência da vítima, o Tribunal Piauiense em semelhante decisão ao juiz paulista, absolveu o réu.[38]

Embora o caso fosse anterior ao ano de 2009, inicialmente o rapaz havia sido condenado em sentença de primeiro grau, o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí em sede de Apelação absolveu o réu. Contra a decisão, o Ministério Público do Piauí interpôs Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça, o qual conseguiu o seu intento de reformar o Acórdão novamente condenando o acusado.[39]

Para o ministro Rogerio Schietti, a dúvida já está superada, tanto para o Superior Tribunal de Justiça quanto para o Supremo Tribunal Federal, havendo de se entender que independentemente do consentimento da vítima, há a configuração do crime de estupro de vulnerável. Considera, assim, irrelevante o consentimento e mesmo a vontade da vítima dado que “o legislador estabeleceu de forma clara a idade de 14 como limite para o livre e pleno discernimento quanto ao início de sua vida sexual”, de forma a não se antecipar a vida adulta.

Considerações finais

A discussão acerca da vulnerabilidade absoluta ou relativa da vítima de estupro que se enquadra na situação de vulnerabilidade conforme a lei sempre foi presente na doutrina e na jurisprudência brasileira, em especial quando o assunto se refere a menor de quatorze anos e menor de dezoito anos de idade, e tornou-se mais presente com o advento da Lei 12.015/2009.

A discussão continuou e se tornou ainda mais polêmica. A maior parte da doutrina inclinou-se no sentido de aceitar o conceito de presunção de violência relativa bem como a análise da vulnerabilidade relativa, admitindo-se prova em contrário da violência bem como a relativização do conceito de vulnerabilidade na valoração da pena e mesmo aplicação de atipicidade ou desqualificação da conduta típica para outra modalidade de crime contra a dignidade sexual.

Há muito tempo os Tribunais em sua maioria aplicavam as particularidades subjetivas da vítima de estupro, incluindo seu consentimento, e mesmo vontade da prática do ato para a análise de houve ou não violência no caso, mesmo por conta do perfazimento da justiça.

Muito se levou em consideração nesta análise como o critério do legislador ao fixar uma idade limite para se presumir a violência, ou se o critério social levando-se em consideração a era da informação, tornando crianças e adolescentes precoces e entendidos acerca do assunto de suas sexualidades.

Embora se tenha de respeitar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de pacificar a questão da vulnerabilidade do incapaz, não há de se calar para algumas questões finais. Ainda há questões que necessariamente necessitarão de respostas.

Como ficará um rapaz de 18 anos de idade, adulto conforme a lei civil e penal, recém-saído da adolescência nos dias de hoje, com sua ficha de antecedentes criminais fichada com um crime de estupro simplesmente por namorar uma garota menor de 14 anos de idade? Como restará a dignidade deste indivíduo colocado no banco dos réus simplesmente por sentir atração e quem sabe amor, sem qualquer ato de violência contra a vítima?

Ainda que se possa falar na possibilidade da proibição do namoro de maiores de 18 anos com qualquer menina menor de 14 há muitos problemas práticos a serem resolvidos.

Como considerar quando essa mesma garota deseja fortemente manter relações sexuais com o garoto maior de 18, como muitas vezes ocorre? Simplesmente não haveria qualquer problema se ele tivesse 17 anos de idade, menor, portanto, pois não haveria crime propriamente dito. O argumento de que não se deve “antecipar a vida adulta” não procede desta forma.

Ainda há mais a se considerar. Dois menores de 13 anos que mantenham relações sexuais, ambos terão cometido ato infracional? Ambos deverão sofrer intervenção?

Quanto aos pais, tanto do adulto de 18 anos quanto da garota menor de 14, cientes das relações sexuais – e portanto coniventes com elas – deverão ser indiciados como partícipes ou co-autores, assim como ocorre com a mãe que é omissa em relação a filha abusada pelo padrastro pedófilo?[40]

São questões realmente complexas que não poderão ter respostas simplistas. A dúvida e polêmica sobre a vulnerabilidade absoluta ou relativa pode ser pacificada por um critério repetitivo e mesmo autoritário, mas que não se poderá falar em justiça no caso concreto. No debate, a questão continua acesa e controversa.

Referências
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BITTENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal. IV. 8 ed rev amp at. São Paulo: Saraiva, 2014
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JUSTIÇA, Superior Tribunal de. Para o STJ, estupro de menor de 14 anos não admite relativização. Disponível em <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Para-o-STJ,-estupro-de-menor-de-14-anos-n%C3%A3o-admite-relativiza%C3%A7%C3%A3o> Acesso em 09 set. 2015
MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: parte especial. V III. São Paulo: Método, 2011, p. 58
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. 2 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 103
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SÃO PAULO. SENTENÇA 0007611-43.2012.8.26.0047. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/estrupo-vulneravel-sexo-menor-14-anos.pdf> Acesso em 09 set. 2015
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<http://www.unama.br/novoportal/biblioteca/attachments/article/126/Manual%20ABNT%20UNAMA%2004-08-2014.pdf>. Acesso em 15 set 2015
Notas:
[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial. V III, 8 ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 527.
[2] GRECO, 2011, p. 528.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. 2 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 103
[4] NUCCI, 2010, p. 23
[5] NUCCI, 2010, p. 26.
[6] MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: parte especial. V III. São Paulo: Método, 2011, p. 58, e NUCCI, 2010, p. 106
[7] MASSON, Ibidem, p. 59.
[8] MASSON, 2011, p. 59-60.
[9] MASSON, Ibidem, p. 60.
[10] MASSON, Ibidem, p. 60.
[11] BITTENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal. IV. 8 ed rev amp at. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 98-99.
[12] BITTENCOURT, 2014, p. 94-95.
[13] BITTENCOURT, Ibidem, p. 101.
[14] BITTENCOURT, Ibidem, p. 101-102.
[15] BITTENCOURT, Ibidem, p. 102.
[16] Apud BITTENCOURT, Ibidem, p. 102.
[17] BITTENCOURT, 2014, p. 102.
[18] GRECO, 2011, p. 529.
[19] Rogério Greco, inclusive apenas menciona a possibilidade de que, para que ocorra o delito de estupro de vulnerável, o agente deve ter conhecimento da idade da vítima, sob pena de se enquadrar como erro de tipo, o que pode ocasionar a desqualificação do crime para estupro ou mesmo dar pela atipicidade do crime. GRECO, Ibidem, p. 530.
[20] BITTENCOURT, Op. Cit., p. 103.
[21] BITTENCOURT, Op. Cit., p. 103.
[22] BITTENCOURT, Op Cit., p. 103.
[23] NUCCI, 2010, p. 100.
[24] MASSON, 2011, p. 59.
[25] MASSON, Ibidem, p. 59.
[26] MASSON, Ibidem, p. 59.
[27] BITTENCOURT, 2014, p. 100
[28] BITTENCOURT, 2014, p. 101.
[29] BITTENCOURT, Ibidem, p. 101.b
[30] BITTENCOURT, Ibidem, p. 103-104.
[31] NUCCI, 2010, p. 101.
[32] NUCCI, Ibidem, p. 102.
[33] NUCCI, 2010, p. 102-103
[34] NUCCI, 2010, p. 102-103
[35] NUCCI, 2010, p. 109-113.
[36] ROVER, Tadeu. No interior de SP, jovem de 18 anos que engravidou namorada de 13 é absolvido. 2015 <http://www.conjur.com.br/2015-ago-24/juiz-absolve-jovem-18-anos-engravidou-namorada-13-anos> Acesso em 09 set. Sentença disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/estrupo-vulneravel-sexo-menor-14-anos.pdf> Acesso em 09 set.
[37] SÃO PAULO. SENTENÇA 0007611-43.2012.8.26.0047. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/estrupo-vulneravel-sexo-menor-14-anos.pdf> Acesso em 09 set. 2015
[38] ROVER, 2015.
ATUAL, Rede Brasil. Relações sexuais com menor de 14 anos é crime em qualquer caso, decide STJ. 2015. Disponível em < http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2015/08/relacoes-sexuais-com-menor-de-14-anos-e-crime-em-qualquer-caso-decide-stj-4823.html> Acesso em 09 set.
[39] JUSTIÇA, Superior Tribunal de. Para o STJ, estupro de menor de 14 anos não admite relativização. Disponível em <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Para-o-STJ,-estupro-de-menor-de-14-anos-n%C3%A3o-admite-relativiza%C3%A7%C3%A3o> Acesso em 09 set. 2015
[40] Como previsto pelo próprio autor Rogério Greco. GRECO, 2011, p. 536.

Informações Sobre os Autores

Agatha Gonçalves Santana

Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPa. Professora de Direito Processual Civil na Universidade da Amazônia – Unama. Advogada

Fernando Augusto Morgado Ferreira Filho

Estudante do sétimo semestre do curso de Direito da Universidade da Amazônia – Unama


Equipe Âmbito Jurídico

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