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Ética e Direito

O presente artigo tem por escopo relacionar os conceitos de Ética e Direito, destacando os objetivos de ambas as disciplinas. Procura-se, em conseqüência, indicar os pontos de intersecção entre a Deontologia e a Política Jurídica, vendo-se nesta a disciplina capaz de apontar os rumos para a realização da idéia de valor na construção do direito que deve ser.

1. Introdução

As tentativas de conceituar categorias das chamadas ciências sociais ou culturais têm sido bastante tormentosas ao longo da história da Filosofia. Não obstante, sempre se procurou, com maior ou menor grau de frustração quanto aos resultados, enfrentar o grande desafio que nos traz a necessidade de separar da objetividade dos significados a serem construídos, o sentido emocional que impregnam os significantes utilizados.

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Tratando-se de Ética e Direito, palavras que polarizam enorme carga emocional por parte do estudioso, essas dificuldades se mostram bem evidentes. A emotividade que lançamos sobre essas categorias, que já se incorporaram ao nosso patrimônio espiritual, forma uma capa que dificulta o acesso ao mínimo de racionalidade e de objetividade que nos permita fugir de proposições meramente emotivas, para adentrarmos epistemologicamente na análise dos conteúdos.

Fazemos esta observação introdutória para exteriorizar nossa preocupação com as imperfeições que devam brotar das tentativas realizadas, com o propósito de demonstrar a possibilidade de tratamento objetivo na delimitação de territórios comuns da Ética e do Direito.

Se aceitarmos que, na justificação do direito vigente, deve-se considerar a tábua de valores aceita pela sociedade em referência, então a Ética, enquanto princípio dominante na formação da consciência jurídica, estará presente no julgamento axiológico de toda norma jurídica de caráter atributivo. Só essa diretriz deontológica permitirá a existência de uma política jurídica para a construção do direito que deve ser e como deva ser.

2. Sobre Ética e Moral

A palavra Ética é empregada nos meios acadêmicos com três acepções.

Numa faz-se referência a teorias que têm como objeto de estudo o comportamento moral, ou seja, como entende Adolfo Sanchez Vazquez; “… a teoria que pretende explicar a natureza, fundamentos e condições da moral, relacionando-a com necessidades sociais dos homens.”[1] Teríamos, assim, nessa acepção, o entendimento de que o fenômeno moral pode ser estudado racional e cientificamente por uma disciplina que se propõe a descrever as normas morais ou mesmo, com o auxílio de outras ciências, ser capaz de explicar valorações comportamentais.

Um segundo emprego dessa palavra é considerá-la uma categoria filosófica e mesmo parte da Filosofia, da qual se constituiria em núcleo especulativo e reflexivo sobre a complexa fenomenologia da moral na convivência humana. A Ética, como parte da Filosofia, teria por objeto refletir sobre os fundamentos da moral na busca de explicação dos fatos morais.

Henrique Cláudio de Lima Vaz, em sua obra Ética e Direito, discorrendo longamente sobre essa concepção puramente especulativa dos domínios da Ética, nas várias escolas filosóficas, entende que, embora muitas teorias contemporâneas ponham em dúvida a possibilidade de uma Ética filosófica, “… parece difícil admitir que uma teoria do ethos no sentido filosófico da sua justificação ou fundamentação racional possa desaparecer do horizonte cultural da nossa civilização, a menos que desapareça a própria filosofia e a civilização venha a mudar de alma e de destino.”[2]

Numa terceira acepção, a Ética já não é entendida como objeto descritível de uma Ciência, nem tampouco como fenômeno especulativo. Trata-se agora da conduta esperada pela aplicação de regras morais no comportamento social, o que se pode resumir como qualificação do comportamento do homem enquanto ser em situação. É esse caráter normativo de Ética que a colocará em íntima conexão com o Direito.

Nesta visão, os valores morais dariam o balizamento do agir e a Ética seria assim a moral em realização, pelo reconhecimento do outro como ser de direito, especialmente de dignidade. Como se vê, a compreensão do fenômeno Ética não mais surgiria metodologicamente dos resultados de uma descrição ou de uma reflexão, mas sim, objetivamente, de um agir, de um comportamento conseqüencial, capaz de tornar possível e correta a convivência, dando-lhe inclusive o aporte estético – a correlação do bom com o belo – conceito que nos vem da filosofia clássica.[3]

Esta terceira possibilidade do uso da palavra Ética guarda conexão com enunciado proposto por Max Weber como ética social ou de responsabilidade,[4] é o agir consciente daquele que sabe das conseqüências de suas escolhas atitudinais, especialmente quando as normas éticas estão formando o núcleo axiológico da atributividade jurídica.

No dizer de Cláudio Souto e Solange Souto,

Todo indivíduo normal tem uma idéia, certa ou errada, daquilo que deve ser feito. Em toda sociedade encontramos uma área de conduta que se situa na categoria do que deve ser. E para o cumprimento das várias condutas pertencentes a esta categoria, existe um conhecimento, ou seja uma idéia de como se deve fazer.[5]

Significa então dizer que, sob este aspecto, se a ética de convicção pode servir de critério para a pessoa emitir juízos e julgar os conflitos de seus próprios valores, será a ética social o critério para julgar o procedimento de cada um nas relações interpessoais. Como salientamos em outro texto, não é demais insistir que a Ética, a Política e o Direito embora sejam categorias diferentes, são todas interagentes da conduta humana: “Cabe à Ética decidir qual seja a resposta sobre o que é moralmente correto; ao Direito sobre que seja racionalmente justo e à Política, sobre o que seja socialmente útil.”[6] Seriam estes três caminhos, aqueles que apontariam uma forma racional de buscar o bem, o bom e o belo na vida social.

3. Sobre Direito e Política Jurídica

No universo das interações sociais, o Direito é uma ordenação de relações interpessoais e, em razão disso, mister se faz compromisso de suas normas com princípios éticos. Funciona, pois o Direito como regulação de conflitos de interesses e de vontades, permitindo com isso a convivência entre pessoas e mesmo a sobrevivência do grupo.

Não será, por certo, tão só na lógica do positivismo jurídico, nem apenas no uso da força coatora do Estado que se buscará a harmonia nos conflitos sociais. “ O império do Direito – avisa Dworkin – “é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo.”[7] E essa atitude, segundo este pensador, será essencialmente construtiva: “(…) sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor (…)”.[8] Preciso será que um conteúdo humanista esteja pulsando no interior das normas jurídicas, que as fundamente e lhes garanta conseqüências positivas na sua aplicação e com isso a aceitabilidade e a obediência espontânea para que tenham eficácia social.

Gustav Radbruch ressaltou, objetivamente, essa necessidade de vincular preceitos éticos às normas jurídicas, ao conceituar o Direito como “a realidade que tem o sentido de se achar ao serviço da idéia de justiça.”[9]

Mas qual é essa realidade que deve servir à justiça, poder-se-á perguntar. E a resposta vamos buscar no próprio Radbruch quando ele nos diz que “ (…) as realidades que se acham penetradas por este sentido especial de servirem certas idéias têm a natureza psicológica de valoração.” O mesmo Autor, após explicar-nos que, no seu entender, o território dos fatos relacionados à idéia do Direito seja o preceito jurídico, conclui que “a essência da justiça reside na tendência para conformar as relações dos homens entre si, no sentido da igualdade.”[10]

No mesmo curso de idéias, nos diz Perelman, que “as leis e os regulamentos politicamente justos são os que não são arbitrários porque correspondem às crenças, às aspirações e aos valores da comunidade política.”[11]

Sabe-se que o domínio normativo da Ética nem sempre coincide com o domínio normativo do Direito. Este é mais complexo, inclui normas pragmáticas e de organização que, em princípio, seriam neutras do ponto de vista axiológico. Mas seja qual for a finalidade do preceito jurídico, sua validade material estará vinculada à realização do interesse geral e portanto do bem comum, sentido que lhe empresta o valor utilidade.

Os rumos atuais do Direito, em nossa civilização ocidental, parecem indicar não só uma superação do positivismo jurídico, que pretende emprestar à norma uma validade somente pelo fato de sua obediência a questões técnico-formais, mas também do jusnaturalismo, cujos fundamentos metafísicos têm servido de entrave ao entendimento do fenômeno jurídico como um dado cultural, ou seja, como um dado da experiência.

É a lição de Perelman:

O crescente papel atribuído ao juiz na elaboração de um direito concreto e eficaz torna cada vez mais ultrapassada a oposição entre o direito positivo e o direito natural, apresentando-se o direito efetivo como o resultado de uma síntese em que se mesclam, de modo variável, elementos emanantes da vontade do legislador, da construção dos juristas e considerações pragmáticas de natureza social e política, moral e econômica.[12]

Essa constatação de que o Direito é fenômeno cultural, construído historicamente pela experiência na vida social e nas práticas comunitárias, com a influência de variadas manifestações ideológicas, deve explicar a formação histórica dos princípios gerais de direito e, em grau especialíssimo, daqueles que garantem o elenco dos direitos humanos no constitucionalismo contemporâneo.

Devemos finalmente reconhecer que esse comprometimento do Direito com os princípios éticos pressupõe uma visão utópica, se considerarmos a utopia como inconformidade com o que é e a busca do que deve ser, mais precisamente daquela política-jurídica utópica de que nos fala Dworkin: “Dessa forma, a política jurídica utópica continua sendo direito, seus filósofos oferecem extensos programas que podem, caso seduzam a imaginação dos juristas, tornar seu progresso mais deliberado e reflexivo.” “ (…) Nesse sentido, cada um de seus sonhos já é latente no direito contemporâneo; cada sonho pode ser o direito do futuro.”[13]

Nas possibilidades de uma Política Jurídica impulsionada pela utopia humanista da esperança e assim preocupada com critérios objetivos de justiça[14] e de utilidade social, poder-se-ão encontrar algumas indicações para a solução dos dilemas da experiência jurídica, que põem em correlação a ética, a política e o direito, pois, como pensa Miguel Reale,

É na Política do Direito que se analisam as conveniências axiológicas, em função das quais o poder é levado a optar, por exemplo, por um determinado projeto, eliminando da esfera da normatividade jurídica todas as outras soluções propostas.[15]

Considerações Finais

Pode-se dizer, em conclusão, que o Direito, entendido como fenômeno cultural, ou seja, como realidade referida a valores, tem por compromisso permanente a busca da segurança jurídica, da utilidade social (bem comum) e da justiça. Embora os dois últimos objetivos sejam comuns à Ética, evidentemente não podemos confundir o conceito de norma jurídica com o de norma ética, pois que, embora ambas tenham as características básicas da bilateralidade, só a norma jurídica é imperativo-atributiva e exigível. Disso sabemos todos. Mas é preciso ressaltar que só podemos atribuir a uma norma jurídica validade plena, se, além dos aspectos formais de que trata com rigor a dogmática jurídica, houver aquela conveniência axiológica de que nos fala Reale. E tal validade material da norma jurídica só poderá ser observada se esta guardar correspondência com os princípios que prescrevem comprometimentos éticos.

Finalmente importa reconhecer que, embora nem todo discurso justificativo de critérios e normas possa constituir-se em verdade, fica-nos a convicção de que os objetivos traçados por uma política-jurídica comprometida com os valores éticos, podem servir, se não de trilhos mas certamente de trilhas, para o balizamento de uma caminhada utópica e responsável rumo ao devir esperado.

Bibliografia
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Porto Alegre: Fabris Editora, 1994.
PERELMAN, Chain. Ética e Direito. Tradução de Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
PLATÃO. O Banquete. Coleção Os Pensadores. Tradução de José C. de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1979.
SOUTO, Cláudio et Solange. Sociologia do Direito. São Paulo: LTC/USP, 1981.
VAZ, Henrique C. de Lima. Ética e Direito. (org. de Claudia Toledo e Luiz Moreira). São Paulo: Edições Loyola, 2002.
VAZQUEZ, Adolfo. Ética. Tradução de João Dell´Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
WEBER, Max. Il Lavoro Intelectuale Comme Professione. Torino, 1948 apud Dicionário de Política (Bobbio, Mateucci et Pasquino). Brasília: UNB, 1986.
Notas
[1] VAZQUEZ, Adolfo S. Ética. Trad. João Dell’Anna, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 15.
[2] VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Direito. Org. de Claudia Toledo e Luiz Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 63.
[3] Platão em O Banquete (181-a), ensinou que “toda ação (…) em si mesma, enquanto praticada, nem é bela nem feia (…), mas é na ação , na maneira como é feita que tal resulta; o corretamente feito fica belo, o que não é, fica feio.”
[4] WEBER, Max em Il Lavoro Intellectuale come Professione, Torino, 1948, apud Dicionário de Política (Bobbio, Matteucci e Pasquino), Brasília: UNB, 1986, p. 961, escreveu: “ (…) há diferença considerável entre o agir segundo a máxima da ética de convicção (…) e o agir, segundo a máxima da ética de responsabilidade, conforme a qual é preciso responder pelas conseqüências predizíveis das próprias ações.”
[5] SOUTO, Cláudio et Solange. Sociologia do Direito. São Paulo: LTC/USP, 1981.
[6] MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Porto Alegre: Fabris Editor, 1994, p. 58/59.
[7] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. De Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 492.
[8] DWORKIN, Idem, idem.
[9] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. De Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 197?, p. 92/93.
[10] RADBRUCH, Gustav. Idem, idem.
[11] PERELMAN, Chain. Ética e Direito. Trad. Maria E. Galvão Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 192.
[12] PERELMAN, Chain. Op. Cit. P. 392.
[13] DWORKIN, cit. P. 488 e sg.
[14] Sobre a possibilidade de estabelecer critérios objetivos de justiça, esboçamos uma proposta teórica em nossa obra Fundamentos da Política Jurídica, Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1994, p. 108 e sgs.
[15] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 63.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Osvaldo Ferreira de Melo

 

Doutor em Direito. Professor Titular aposentado da UFSC e Professor no CPCJ/UNIVALI

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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