Resumo: A evicção em hasta pública durante a vigência do Código Civil de 1916 propiciava diversos debates doutrinários acerca de sua aplicabilidade, devido a expressa determinação legal que estabelecia o cabimento da evicção apenas em contratos onerosos. Com o advento do Código Civil de 2002, estabeleceu-se expressamente a possibilidade de incidência da evicção sobre os bens arrematados em hasta pública, dirimindo a dúvida anteriormente debatida pela doutrina. A presente monografia de conclusão de curso estabelecerá os conceitos, limites e requisitos da evicção estabelecidos pela doutrina pátria, alcançará a garantia derivada do fato da evicção, estabelecendo seu alcance, mensuração, possibilidade de redução e ampliação e por último analisará os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da incidência da evicção em hasta pública. A metodologia adotada é a dogmática instrumental, tendo como objeto principal a análise da evicção e a sua incidência na hasta pública, abordando a possível obrigatoriedade de denunciação da lide pelo evicto e os responsáveis pela garantia originada do fato da evicção. Portanto ao final do estudo será traçado a função principal da evicção, diante dos princípios basilares do direito civil, verificando a quem cabe responsabilidade legal extraída do fato da evicção e como deverá ser adimplida essa obrigação legalmente estabelecida.
Palavras-chave: direito civil; contratos; evicção; garantia; denunciação da lide; hasta pública.
Abstract:Evictions at public auctions under the 1916 Brazilian Civil Code promoted many doctrinal debates about its applicability due to explicit legal determination that established the appropriateness of eviction only in onerous contracts. With the advent of the Brazilian Civil Code of 2002, it was expressly established the possibility of eviction on the incidence of auctioned assets at public auctions, claryfing any doubts and settling the question previously debated by the legal doctrine. This thesis presentation intends to establish the concepts, limits and requirements for evictions established by the national doctrine, discuss the warranties ensuing the foreclosure, establishing scope, measurement, possibility of reducing or increasing its reach, and finally examine the doctrinal and jurisprudential understandings about the incidence of foreclosure at public auctions. This thesis intends to present a dogmatic analysis of foreclosures and their incidence at public auctions, addressing the possible compulsory impleading of a third-party by the evictee and the responsible parties for the original warranty that resulted in the eviction. Therefore at the end of the study, the main function of eviction before the general principles of civil law will be delineated, determining consequently the responsible party for checking the legal liability extracted from an eviction proceeding and how this legally established obligation should be executed.
Keywords: civil law; contracts; eviction; warranty; third-party complaint / impleading; public auction.
Sumário: Introdução. 1 Evicção. 1.1 Origem do instituto da evicção. 1.2 Conceito de evicção. 1.3Natureza jurídica. 1.4 Dos elementos da evicção. 1.4.1Onerosidade pela aquisição do bem. 1.4.2 Perda total ou parcial. 1.4.3 Anterioridade do direito de terceiro. 1.4.4Sentença judicial. 1.4.5 Denunciação da lide. 2 A garantia. 2.1 Amplitude de atuação da garantia. 2.2Valores devidos ao evicto. 2.3 Possibilidade de redução e exclusão da garantia a evicção. 2.4 A garantia na doação. 2.5A garantia na dação em pagamento. 3 Evicção em hasta pública. 3.1 Execução forçada e seus institutos. 3.1.1 Execução forçada e resistida pelo executado. 3.1.2Penhora forçada. 3.1.3Arrematação e sua natureza jurídica. 3.2 Correntes doutrinárias. 3.3 Entendimento jurisprudencial. 3.4 Denunciação da lide do credor da execução. 3.5 Responsabilidade pela garantia a evicção. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como escopo a questão da incidência da evicção sobre bens arrematados em hasta pública, levando-se em consideração os requisitos consagrados no Código Civil, na jurisprudência propagada pelos tribunais superiores e na produção doutrinária acerca do tema.
A legislação pátria experimentou considerável avanço acerca do tema abordado, cabendo ao Código Civil de 2002 apartar as dúvidas corriqueiras, quando da vigência do Código Civil de 1916. Refletiu-se na produção legiferante do atual Código Civil, as recorrentes construções jurisprudenciais e as várias teses doutrinárias criadas por décadas, no sentido de adequar a evicção aos bens arrematados em hasta pública.
O objeto do estudo possui pertinência acadêmica na medida em que dúvidas acerca da aplicação da garantia a evicção permearam os tribunais, a doutrina levantou inconsistências na aplicação do instituto na arrematação judicial, e a lei sofria de grave omissão na previsão de aplicabilidade a bens originados em hasta pública.
A disparidade da natureza jurídica entre os contratos onerosos e a arrematação em hasta pública, serve como motivação para entendimentos antagônicos acerca da aplicabilidade da evicção em hasta pública. Nesse esteio, antes do Código Civil de 2002, coexistiam entendimentos jurisprudenciais conflitantes que enfatizavam essas disparidades, no bojo de julgamentos que apontavam as mais diversas situações fáticas.
Será estudada a natureza jurídica da evicção, a respectiva garantia em contratos onerosos, assim como a da arrematação em hasta pública, objetivando apontar através de diversos enfoques, as suas singularidades e os pontos de congruência e divergência entre os dois institutos. Portanto extrai do estudo a necessidade de abordar as origens do instituto da evicção, percorrendo os diversos conceitos formulados pela doutrina, estudando a natureza jurídica do instituto e estabelecendo seu genuíno significado dentro do Direito, para em seguida realizar uma abordagem especial acerca dos elementos que constituem a evicção.
Caso superado a corrente jurisprudencial e doutrinária que defende a inaplicabilidade do instituto da evicção em hasta pública, surge outro problema, no tocante a responsabilização da garantia.
A quem caberia o ônus de suportá-la, diante da obrigatoriedade imposta pela positivação no Código Civil vigente, e diante do princípio que veda o enriquecimento sem causa?
Posteriormente será identificado quem são os reais titulares a prestar garantia ao fato da evicção em hasta pública, diante de uma análise de quem coube o aproveito patrimonial diante da injusta perda sofrida pelo adquirente. Nessa análise serão considerados os princípios da boa-fé objetiva, da segurança jurídica, da garantia contratual e da vedação ao enriquecimento sem causa.
A metodologia abordada neste estudo será a dogmática instrumental, analisando doutrina e jurisprudência, buscando explicitar as principais diferenças entre os dois entendimentos jurisprudenciais divergentes. No primeiro capítulo será abordado o instituto da evicção, no segundo capítulo será delineada a garantia resultante do fato da evicção e no terceiro capítulo será apresentado como interagem a evicção, a garantia que a resulta no bojo das arrematações em hasta pública.
A busca pelos pontos divergentes dentro da fundamentação da doutrina possui o escopo de analisar qual teoria possui melhor fundamentação jurídica. Essas diferenciações serão implementadas através de diversos enfoques, buscando soluções aos problemas práticos relacionados ao assunto.
1. EVICÇÃO
O termo evicção vem do latin envincere, que significa ser vencido em uma demanda judicial, assim, desta maneira, talvez esse seja o motivo da vinculação da evicção a decisão judicial proferida. Contudo parte da doutrina entende que nem sempre será necessária determinação judicial para ser observado o fenômeno da evicção. Não havendo rigidez na interpretação do instituto, aliada a autonomia privada, verifica-se a possibilidade de redução ou até mesmo exclusão da garantia ao fato da evicção.
1.1. Origem do instituto do instituto da evicção
No Direito Romano o vendedor não transferia a propriedade da coisa negociada, apenas sua posse. A transferência da propriedade ocorria através da mancipatio, que somada à compra e venda (emptio venditio), consolidava no adquirente todos os poderes inerentes a posse e a propriedade. Conforme Moreira Alves “[…] ao contrário do que ocorre no direito civil brasileiro, o vendedor, em Roma, não se obrigava a transferir a propriedade da coisa vendida, mas, somente, sua posse.”[1]
No entanto, o direito de evicção oriundo da garantia estipulada no contrato, só alcançava o manipulatio, trazendo graves danos à segurança jurídica do contrato de compra e venda. Em busca de solução, os pretores em Roma convencionaram uma pena pecuniária, de livre estipulação das partes, a qual foi batizada de stipulatio duplae.
Conforme dita José Eduardo da Costa:
“Dessa forma, para a hipótese de vendas feitas sem mancipação, a garantia de evicção foi assegurada por meio de estipulações. Assim a garantia resultava não da venda, mas de um contrato que lhe era anexo.”[2]
Verificava-se a possibilidade de venda de coisa alheia, onde o comprador poderia ser turbado da posse ou privado da propriedade, fato onde é visível a ocorrência da evicção. Contudo a garantia pela evicção, em Roma, não estava relacionada à compra e venda, e sim ao mancipatio, onde o alienante deveria resguardar e garantir o direito do adquirente.
Nos termos que Kaser relata, acerca da garantia por vícios jurídicos:
“Com base na mancipatio, o adquirente, quando é demandado por terceiro com a vindicatio, tem direito a levar o alienante a assisti-lo no processo, como seu auctor, para defender a coisa contra o vindicante. Se o auctor recusar a assistência ou esta não tiver êxito, de modo que o vindicante vence, o alienante responde perante o adquirente com a actio auctoritatis pelo dobro do preço da venda.”[3] (grifo no original)
O mancipatio possuía natureza jurídica, similar ao negócio jurídico atual, onde havia a transferência da propriedade, diante de manifestação de vontade orientada a atingir esses efeitos. A respeito Max Kaser conceitua; “A mancipatio é um acto formal, mediante o qual alguém cede a outrem a propriedade ou um poder semelhante à propriedade sobre determinadas pessoas ou coisas.”[4] (grifo no original)
Pontes de Miranda[5] afirma que no antigo direito romano a transferência da coisa, mancipatio, originava a responsabilidade por vícios jurídicos, sendo desnecessária a compra e venda para o advento da responsabilidade pela evicção. Em linha de raciocínio subseqüente, Pontes de Miranda[6] estabelece que em caso de perda ou ausência em promover sua defesa, o vendedor sujeitava-se ao actio auctoritatis, havendo a possibilidade de efetuar o pagamento da venda em dobro.
No Direito Romano o vício jurídico da coisa era observado como verdadeiro ilícito, entendendo-se como inescusável má-fé a conduta de alienar coisa possuidora de vícios. Em proteção ao vício abordado, existia a actio auctoritatis, onde o alienante sujeitava-se a verdadeira penalidade coercitiva, em face de sua imputada má-fe na celebração do mancipatio.
Assim discorre Kaser, a respeito do actio auctoritatis:
“A actio auctoritatis consistiu originariamente numa multa, porque a aceitação indevida do preço pelo vendedor, que mancipou ao comprador uma coisa alheia, foi considerada um delito idêntico ao furto do dinheiro da compra (supôs-se que o vendedor sabia não ser ele o titular da coisa)”[7]
Em suma, fica claro que actio autoritatis, possuía o escopo de promover o ressarcimento do adquirente em face do devedor, na dimensão do que foi pago na compra e venda. Contudo, o direito à evicção, oriundo da garantia estipulada no contrato, só alcançava o manipulatio, acarretando prejuízos à segurança jurídica do contrato de compra e venda. Em busca da solução, os pretores convencionaram uma pena pecuniária, de livre estipulação das partes, na qual foi batizada de stipulatio duplae.
A evicção e sua garantia superveniente remontam do surgimento do mancipatio em Roma, instrumento que possuía o condão de transferir os direitos de propriedade ou seus similares.
Contudo, destarte a posse do alienatário, havia a possibilidade de esbulho da posse por terceiro, munido de direito vigoroso, preambular ao contrato. Essa possibilidade de perda denomina-se evicção, opcional no bojo do contrato. Assim, Pontes de Miranda ensinou:
“Nos contratos onerosos, o outorgante tem de prestar o que prometeu, de modo que o outorgado esteja a salvo quanto a direitos, pretensões e ações de outrem no tocante ao objeto da prestação.”[8]
Buscando resguardar a posse do alienatário de boa-fé, haveria o alienante, de prestar garantia, por intermédio de uma pena pecuniária estipulada em contrato. Para o exercício dessa garantia, usa-se a expressão “direito à evicção”.
O vício jurídico incidente sobre a coisa apresenta-se como um desequilíbrio contratual. O adquirente amarga prejuízo financeiro, em relação a não correspondência do que foi pactuado e pago, em face do que foi efetivamente recebido. Conforme Carvalho de Mendonça[9] afirma, a evicção supõe a venda a non domino.[10] Conforme José Eduardo da Costa[11] afirma é a transferência de propriedade de outrem, ao patrimônio do comprador.
Nesse esteio, afirma Pontes de Miranda, acerca do vício de direito:
“Há vício jurídico quando, por defeito na titularidade do devedor que prestou, o credor recebe direito diminuído em comparação com o que foi prometido, ou com o que, em virtude de lei, tinha de adimplir. (e.g., exigências de saúde pública, ou do gado)”[12]
O vício de direito necessário para a caracterização da evicção, caracteriza-se pela existência de direito de terceiro anterior ao direito do adquirente, oriundo de contratos onerosos ou hasta pública.
Maria Helena Diniz conceitua o instituto da evicção ressaltando a necessidade de vício jurídico anterior:
“Evicção é a perda da coisa, por força de decisão judicial, fundada em motivo jurídico anterior, que a confere a outrem, seu verdadeiro dono, com o conhecimento em juízo da existência de ônus sobre a mesma coisa, não denunciado oportunamente no contrato.”[13]
É de fácil constatação que o vício de direito deve originar-se antes da aquisição do adquirente, marco temporal que deve ser observado, cuja inobservância afeta diretamente a existência e os efeitos do instituto.
1.2. Conceito de evicção
Os doutrinadores não divergem acerca da definição do instituto, convergindo quanto a sua essência e, de certa maneira, os conceitos se complementam. Observa-se de certo modo a suplementação dos conceitos apresentados pelos doutrinadores.
Serpa Lopes conceitua evicção, entendendo que a própria evicção é a garantia que deve ser prestada ao adquirente:
“A evicção é uma forma de garantia, um elemento natural dos contratos onerosos, que se apresenta onde haja obrigação de transferir domínio, posse ou uso de uma determinada coisa. Como consequência, ao alienante cabe resguardar o adquirente dos riscos por ela produzidos, toda vez que não se tenha excluído tal responsabilidade.”[14]
O termo evicção deriva em latim de evictio, que significa recuperação da coisa judicialmente. Um dos pressupostos para sua ocorrência é a perda de um direito em detrimento de terceiro. Na evicção é possível apontar três sujeitos: o alienante, que vende a coisa; o evicto, adquirente que perde a coisa e o evictor, que conquista a coisa, vencendo a demanda em face do evicto.
No período clássico, os requisitos necessários à ação de evicção, eram a perda da posse, vitória judicial do verdadeiro proprietário e defeito no negócio jurídico celebrado entre vendedor e verdadeiro proprietário.
A evicção é a perda total ou parcial do direito de posse ou propriedade da coisa, em face de direito anterior ao negócio jurídico, onde o adquirente (evicto) sofre derrota em demanda judicial promovida por terceiro (evictor). Cabe destacar os elementos necessários a ocorrência da evicção, tais como negócio jurídico de aquisição de propriedade, perda total ou parcial da posse ou propriedade da coisa, direito anterior ao negócio jurídico de aquisição e inexistência de cláusula que retire a responsabilidade.
Assim conceitua Paulo Nader:
“Dá-se a evicção quando o adquirente de coisa móvel ou imóvel, em contrato oneroso, perde o direito de propriedade, posse ou uso, total ou parcialmente, geralmente por sentença judicial ou ato de desapropriação, devido a fato anterior ou contemporâneo à aquisição.”[15]
De acordo com o conceito citado, e complementando com o conceito apresentado abaixo, Silvio Rodrigues enfatiza a imprescindibilidade da sentença judicial para que seja constatada a evicção:
“Dá-se evicção quando o adquirente de uma coisa se vê total ou parcialmente privado da mesma, em virtude de sentença judicial que a atribui a terceiro, seu verdadeiro dono. Portanto, a evicção resulta sempre de uma decisão judicial.”[16]
Inicialmente cabe analisar a perda ou privação da coisa, fundada preferencialmente em causa jurídica. Precipuamente temos o contrato oneroso, no qual os contratantes assumem prestações recíprocas; por seguinte a perda total ou parcial do direito sobre a coisa, justificada pela anterioridade do fato causador; e por fim a ausência de exclusão de responsabilidade, na qual o adquirente tenha ciência e assuma o risco. A doutrina, em sua maioria, inclui a decisão judicial como requisito, contudo, não obstante a falta de menção direta em lei, a jurisprudência entende como desnecessária para conclusão da evicção. Exemplo que corrobora é a apreensão policial, que determina a perda do bem, possuindo natureza jurídica adversa da decisão judicial.
É o que pode se vir com Marco Aurélio Bezerra de Melo:
“Evicção é a perda da coisa por decisão judicial ou administrativa que importe em legítimo reconhecimento de que o bem transferido pertencia à outra pessoa distinta do transferidor e, por via de conseqüência, não pode ser titularizado pelo adquirente.”[17]
A necessidade de negócio jurídico de aquisição da coisa está diretamente ligada à garantia a evicção, que surge durante a transferência de titularidade. Assim, somente após a transferência de domínio da coisa, é possível atestar a garantia contra a evicção, pois a partir desse momento surge o terceiro possuidor de direito anterior ao negócio jurídico.
Evidente é o desrespeito a boa-fé objetiva, cerne orientador do direito privado. Com isso, observando a evicção em consonância com os princípios da garantia dos contratos e da vedação ao enriquecimento sem causa, nota-se que a evicção assume o caráter de garantia precípua, oriunda do contrato oneroso. O alienante compromete-se acerca da inexistência de vícios anteriores. Amparados e delimitados por expressa autorização legal, devido à característica de garantia legal, os contratantes poderão dispor da responsabilidade, reduzindo, ampliando ou retirando o instituto.
Pontes de Miranda em análise lingüística do instituto elucida:
“Evincere é ex vincere, vencer pondo fora, tirando, afastando. A língua portuguesa possui o verbo evencer: o terceiro, ou o próprio outorgante que vence, quer como demandante que como demandado, evence, porque vence e põe para fora, no todo ou em parte, o direito do outorgado.”[18]
Assim, entende-se a evicção como a perda da coisa adquirida, decorrente de sentença judicial ou decisão administrativa, atribuído a direito anterior ao contrato. Evidente é o desrespeito a boa-fé objetiva, cerne orientador do direito privado. Com isso, observando a evicção em consonância com os princípios da garantia dos contratos e da vedação ao enriquecimento sem causa, assume a evicção caráter de garantia precípua, oriunda do contrato oneroso. O alienante compromete-se acerca da inexistência de vícios anteriores. Amparados e delimitados por expressa autorização legal, devido à característica de garantia legal, os contratantes poderão dispor da responsabilidade, reduzindo, ampliando ou retirando o instituto.
1.3. Natureza Jurídica
Acerca da natureza jurídica, define-se a garantia à evicção como obrigação de fazer, devido ao contrato e sua natureza onerosa. É facilmente notada como garantia implícita ao contrato oneroso.
Washington de Barros Monteiro esclarece acerca do modus operandi da garantia a evicção:
“A evicção é obrigação de fazer, a cargo, pois, do alienante, e que nasce diretamente do contrato, por constituir caráter natural deste; por isso mesmo, independe de estipulação, não sendo mister esteja expressa para que se façam sentir seus efeitos. Ainda que no contrato não se depare qualquer alusão a respeito, subentende-se a garantia, pela qual responde o transmitente, com as cominações da lei.”[19]
No mesmo sentido Carvalho Santos argumenta acerca das obrigações contratuais que o alienante deve prestar ao adquirente:
“O vendedor é obrigado a assegurar ao comprador a posse pacífica da coisa vendida, de forma que deve abster-se pessoalmente de fatos que possam produzir a evicção, além de defender o comprador de ataques de terceiros. Obrigação de fazer ou não fazer portanto. No caso de evicção consumada, deve reparar as conseqüências da evicção, o que se traduz em obrigação de pagar ou dar.”[20]
Analisando as duas definições acerca da natureza jurídica, constata-se a obrigação do alienante em assegurar a propriedade ou posse ao adquirente, e caso haja esbulho, resultará a obrigação em fazer ou não fazer por parte do alienante.
Serpa Lopes entende a natureza jurídica da evicção observando sua consequência processual:
“A evicção constitui uma obrigação de fazer, suscetível, em princípio, de uma execução in natura. Obrigação de fazer, por isso que, se o adquirente for turbado no exercício da posse pacífica da coisa vendida, tem o direito de chamar o vencedor ou cedente a intervir processualmente em seu auxílio. Se, porém, houver recusa do vendedor, ou, se a despeito de sua intervenção, o adquirente for evicto, a este cabe pedir perdas e danos.”[21]
Importante ressaltar que o dever de assegurar não possui natureza de obrigação acessória, conforme De Plácido e Silva[22], não depende, em regra, de cláusula expressa, é congênito do contrato de compra e venda. Nesse mesmo sentido, Carvalho de Mendonça[23] se atém a necessidade de observar que a garantia a evicção não é acessória do contrato. Resta evidente sua inclusão no bojo da obrigação principal originada do contrato de compra e venda, não havendo necessidade de qualquer menção contratual para sua eficácia posterior. Desta forma, assim que ocorrida a evicção, surge a obrigação em prestar garantia.
Contudo, a obrigação não recai sobre garantir a propriedade ou posse da coisa, e sim em garantir em caso de perda da coisa, o alienante providencie a garantia devida.
Assim, Carvalho de Mendonça entende que mesmo sem menção contratual, a garantia à evicção permanece:
“Ela é realmente uma das modalidades das obrigações do vendedor, um efeito do contrato em que se empenhou; supõe a violação desse contrato ou a inexecução das obrigações contraídas. O direito do comprador a evicção subsiste, ainda quando dele se não faça nenhuma menção no contrato.”[24]
Observa-se que a obrigação de prestar garantia a uma possível evicção é intrínseca ao contrato celebrado, criada no momento da celebração do contrato, sendo passível de modulação por convenção entre os contratantes.
Nesse raciocínio, José Eduardo da Costa conceitua:
“A obrigação de garantia contra a evicção, portanto, é cláusula natural dos contratos onerosos que são títulos para a transferência do domínio, posse ou uso. Trata-se de obrigação imposta por lei, fato que permite caracterizá-la como obrigação legal.”[25]
Afere-se entre o fato da evicção e sua garantia, em face de suas similaridades, confusão dos institutos, sendo prontamente afastada, na observação de necessária superveniência da garantia diante da evicção, sendo aquela precedente lógica dessa, razão de sua existência. Nesse sentido, esclarece José Eduardo da Costa:
“O fato da evicção não se confunde com a garantia de evicção. Ele é pressuposto da incidência de garantia: trata-se de necessidade lógica, e que deve ser considerada antes de qualquer reflexão a respeito da garantia.”[26]
A extensão da garantia da evicção, o Código Civil mencionou apenas a hasta pública, cabendo a doutrina e jurisprudência enumerarem hipóteses diversas de cabimento.
O Código Civil[27] é completo e taxativo no tocante aos direitos do evicto, relacionando-os nos art. 450 e art. 451.[28]
O alienante possuirá responsabilidade sobre a coisa, mesmo que se encontre deteriorada, conforme art. 451 do Código Civil. Assim interpreta Serpa Lopes:
“O alienante não pode se eximir a essa responsabilidade, sob o pretexto de que a coisa transferida já não mais se encontra no estado em que se achava no momento da transferência, salvo se o adquirente houver procedido dolosamente. Se auferidas pelo adquirente as vantagens das deteriorações, sem ser condenado a indenizá-las, o valor delas será deduzido da quantia que lhe houver de dar alienado.”[29]
Precipuamente a evicção possui o condão de assegurar ao adquirente o bom direito que o alienante possui do objeto do contrato. Estende-se aos bens adquiridos em hasta pública, contudo a jurisprudência tem diversos entendimentos, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, não havendo uma posição majoritária.
1.4. Dos elementos da evicção
A evicção demanda alguns requisitos essenciais para que configure sua responsabilidade, dos quais observa-se leve divergência entre os doutrinadores. Alguns requisitos despontam como unanimidade na doutrina, cabendo a alguns doutrinadores complementá-los com situações específicas. Dentre os requisitos destacam-se, a) onerosidade pela aquisição do bem; b) perda total ou parcial; c) anterioridade do direito do terceiro; d) sentença judicial; e) denunciação da lide. A seguir análise individual de cada requisito.
1.4.1. Onerosidade pela aquisição do bem
Para ocorrência da evicção, faz-se necessário que analisar inicialmente o modo como foi adquirido a coisa controvertida, em função de sua essencialidade dentro do instituto da evicção, não cabendo, em regra, a evicção em contratos onde não existe prestações sinalagmáticas. Verifica-se a evicção em todos os contratos onerosos, desde que não afastada por cláusula específica.
Com propriedade Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald indicam acerca da fundamentação jurídica da garantia, no tocante a onerosidade existente nas prestações sinalagmáticas:
“A compreensão do fundamento da evicção pressupõe a exata apreensão do sentido do termo sinalagma. Trata-se do nexo de reciprocidade entre as prestações contratuais, da sua interdependência – uma como causa da outra por ocasião da formação do contrato -, no sentido de que as obrigações são proporcionais e representam um justo intercâmbio.”[30]
Observa-se que o contrato foi concretizado sobre a égide de equilíbrio econômico entre os contratantes, e a ruptura do que foi proposto, devido ao fato da evicção, descaracterizará a harmonia contratual, indo de encontro aos princípios basilares do direito civil.
A redação atual do Código Civil não delineou se o instituto da evicção aplica-se exclusivamente aos contratos que transferem domínio ou uso, cabendo a doutrina determinar o alcance do instituto.
A cessão de créditos é um exemplo de contrato onde não ocorre a transferência de domínio ou uso e que é perfeitamente aplicável a evicção, nos termos que Pontes de Miranda assegura:
“Na evicção, o crédito existe, mas já a favor de outrem, ou gravado ou subordinado a direito pessoal de outrem (direito, pretensão, ação ou exceção): aqui, existe entre o cessionário e o devedor; ali, entre o terceiro e o devedor. Se o crédito não existia, não podia ser cedido (seria ceder-se o nada), e incide o art. 1073 do Código Civil. Se não existia entre o cedente e o devedor e existia entre o terceiro e o devedor, tanto pode ser proposta a ação do art. 1073 do Código Civil como a de evicção, se evicção houve.”[31]
Inicialmente cabe ressaltar que o art. 1073 do Código Civil de 1916 corresponde ao art. 295 do Código Civil em vigor. A evicção corresponde a garantia existente acerca da real titularidade do crédito cedido, não alcança o plano de existência do crédito, pois não há conceber evicção acerca de crédito que ao menos exista.
1.4.2. Perda total ou parcial do bem
Segundo requisito abordado é a perda total ou parcial do direito, fundada em direito anterior a alienação e amparado em motivo essencialmente legal, jurídico. A perda da propriedade ou posse é indispensável para a existência da evicção. A doutrina entende que os requisitos devem apresentar-se reunidos para a consolidação da evicção.
Caio Mário define que a perda deve ser do direito incidente sobre a coisa, desde que não observados defeitos ocultos:
“Recebendo-a o adquirente em estado de servir, e sem que sofra a ação qualquer defeito oculto que a atinja, vem a perdê-la privando se do domínio, da posse ou do uso. A perda pode ser total ou parcial, coforme o adquirente seja dela despojado na sua integridade ou apenas parcialmente”[32]
Observa-se que a perda do direito é a matriz do instituto da evicção, é o evento que provoca os acontecimentos ligados ao instituto da evicção. Nesse sentido Paulo Nader entende que a perda do direito é núcleo do instituto da evicção:
“O fato gerador do direito subjetivo é a perda total ou parcial dos direitos sobre a coisa. Como se verificará, a tal elemento associam outros para a caracterização do vício de direito. A evicção pode atingir integralmente ou não a coisa e referir-se à propriedade, posse ou uso.”[33]
Assim o adquirente só gozará da garantia à evicção se amargar perda parcial ou total do direito obtido, ao qual o alienante tem o dever de garantir a posse estável e defendê-lo de aspirações de terceiros.
Miguel Maria de Serpa Lopes abordou que não é qualquer turbação de direito que será identificado como passível de evicção, o direito turbado tem que ser colocado em risco, na iminência de prejuízo patrimonial:
“Diferentemente da situação resultante do próprio alienante, em que se pode dar a turbação de fato, em se tratando de terceiro, é capital, para a exigibilidade da garantia por evicção, que haja uma turbação de direito. Uma simples turbação de fato decorrente de terceiro não é suficiente. Além disso, essa turbação de fato deve originar-se de um direito sobre a coisa.”[34]
Observa-se a presença da evicção parcial de determinado direito, decorrente de perda de porção do direito debatido. Se o direito é dotado de divisibilidade, a evicção que nele incide poderá ser parcial. Washington de Barros Monteiro[35] entende que deverá o alienante indenizar na proporção da perda experimentada pelo evicto. Desta forma, caberá ao evicto a ação quanti minoris, na qual poderá reaver a restituição da proporção sofrida, conforme elucida Caio Mário da Silva Pereira[36].
Contudo se a evicção parcial incidir sobre núcleo essencial da coisa, quanto a sua utilidade ou finalidade, poderá o adquirente resolver o contrato ou obter a restituição correspondente ao desfalque sofrido, conforme art. 455 do Código Civil.
Nesse sentido, aponta Washington de Barros Monteiro, acerca da relevância da evicção:
“Em qualquer desses casos, se a evicção for de tal relevância em relação ao todo, que o contrato se não teria efetuado, faculta-se ao adquirente optar entre a rejeição total da coisa e o abatimento proporcional do preço, como nos vícios redibitórios. Em tal hipótese, verdadeiramente falando, ocorre obrigação alternativa, com escolha da prestação do credor.”[37]
Miguel Maria de Serpa Lopes cita Cunha Gonçalves, no tocante as possibilidades existentes na evicção parcial:
“Se o comprador for privado, apenas, de parte da coisa, ou do direito adquirido, ou tendo sido vendidas conjuntamente duas ou mais coisas, embora por um só preço, só uma delas for evicta, será a garantia limitada a essa parte. Mas se esta parte for considerável, poderá o evicto optar entre a rescisão do contrato e a restituição de parte do preço correspondente ao desfalque sofrido, o qual terá de ser avaliado em proporção do valor total da coisa ao tempo em que foi reivindicada e entregue ao evictor.”[38]
Desta forma, havendo a perda do bem em sua totalidade, caberá ao alienante garantir o direito do adquirente, contudo, sendo apenas parcial a evicção, o adquirente poderá exigir a restituição proporcional no preço, ou em caso de considerável evicção parcial, sobre núcleo essencial da coisa, rescisão contratual que alcance a compra em sua totalidade.
1.4.3. Anterioridade do direito do terceiro
Apenas a perda do direito não caracteriza a evicção, é necessário que a origem do direito do evictor seja anterior ao contrato do qual supostamente concretizou-se a transferência de domínio ou posse. Nesse esteio, resta necessário estabelecer o momento de aquisição do direito pelo evictor, afim de comprovar real anterioridade ao contrato.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald verificam que a transferência de direito é equivocada e apenas aparente:
“A privação é causada por um terceiro em razão de um vício de direito transmitido ao evicto, que antes supunha ter este direito integrado ao seu patrimônio. A titularidade real do direito é do terceiro e não do alienante, pois aquele ostenta um direito superior ao adquirente.”[39]
Desse modo, observa-se que o direito ao qual cabe o alienante assegurar e garantir, em momento algum esteve abarcado em seu patrimônio, havendo engano acerca da titularidade, sendo irrelevante o animus e a boa-fé do alienante.
Pontes de Miranda exemplifica alguns casos específicos, restando claro, na observação das suas espécies, falha na avaliação do alienante acerca da titularidade de direito, objeto do contrato celebrado:
“ As espécies mais frequentes são as seguintes: a) o devedor não tem a propriedade do bem; b) o devedor tem a propriedade e não tem a posse, de modo que a entrega foi da tença, e não da posse, expondo do credor a ações possessórias; c) o devedor não tem a propriedade livre de direitos reais limitados; d) o devedor não tem exercício completo do uso ou aproveitamento do bem; e) o devedor só tem a enfiteuse.” [40]
Contudo, doutrina abalizada de Caio Mário ventilou hipótese de exceção à regra, tida como única aceitável e tecnicamente possível. É o caso de desapropriação com decreto declaratório já existente e ainda não realizado:
“Exceção razoável ao princípio da anterioridade é a desapropriação da coisa, posteriormente ao contrato, sempre que o decreto declaratório da utilidade pública já existia no momento da transmissão e não tenha sido acusado pelo alienante, porque, embora a perda da coisa ocorra posteriormente ao contrato aquisitivo, sua causa o antecede, e não está nas mãos do adquirente evitá-la.”[41]
Evidente que o animus da Administração Pública em desapropriar e consequentemente turbar a propriedade do legítimo proprietário já existia, contudo a perda só caracteriza-se no momento da privação da coisa. Desta forma, a causa já era preexistente, contudo o fato jurídico que dá enseja a evicção só ocorreu após transferência de domínio.
1.4.4. Sentença judicial
A doutrina tem convergido para o entendimento da necessidade de sentença judicial para que surjam os efeitos da perda parcial ou total da coisa em que incide a evicção. Obrigatório a delineação entre que possui direito acerca da coisa controversa. Observa-se que o Código Civil não aponta como necessário a sentença, mesmo por disposição direta ou indireta no texto da lei. Fica a critério das construções jurisdicionais e doutrinárias, a responsabilidade em analisar o assunto. Orlando Gomes assim elucida:
“A necessidade da sentença judicial é reconhecida geralmente como indispensável requisito à caracterização da evicção. Preciso é, com efeito, para ocorrer a privação do direito evicto, que ele seja condenado a restituir a coisa.”[42]
No mesmo sentido, Silvio Rodrigues estabelece que apenas o genuíno pronunciamento jurisdicional, através da sentença judicial, será apto a determinar a quem cabe o direito incidente sobre o domínio da coisa:
“O direito do reivindicante e a carência de direito do vendedor, em verdade, só judicialmente podem ser apurados; sem sentença com trânsito julgado, que proclame o bom e o mau direito de um e de outro, não se pode ter certeza sobre a quem pertence o domínio.”[43]
Contudo, nem sempre será necessária sentença judicial para que seja observada a evicção, exemplo que corrobora com a afirmação é apresentado por Orlando Gomes, estabelecendo que haja a possibilidade de existência da evicção, se o contrato estiver sob influência de condição resolutiva:
“Admiti-se, contudo, em casos excepcionais, que a evicção possa existir independentemente de sentença do juiz, quando, por exemplo, perde o domínio da coisa pelo implemento de condição resolutiva (evicção resolutiva).”[44]
Entende-se como condição resolutiva a subordinação dos efeitos do contrato ao um evento futuro e incerto. Desta forma, ocorrendo o evento pactuado na celebração do contrato, e dela acarretando privação do adquirente, ocorrerá e denominada evicção resolutiva.
Posicionamento semelhante é o defendido por Maria Helena Diniz, constatando que nem sempre sentença judicial será requisito para a ocorrência da evicção, situações enumeradas abaixo:
“Entretanto, essa regra não é absoluta, visto que a jurisprudência mais recente tem admitido, em casos excepcionais, a evicção, independentemente de sentença judicial, quando, p. ex.: a) houver perda do domínio do bem pelo implemento de condição resolutiva; b) houver apreensão policial da coisa, em razão de furto ou roubo ocorrido anteriormente à sua aquisição; c) o adquirente ficar privado da coisa por ato inequívoco de qualquer autoridade.”[45]
Os três casos expostos denotam que a perda da coisa tem que ser coercitiva, realizada além das forças e resistência do adquirente, que ao término padecerá do esbulho inevitável. No primeiro exemplo entende-se como condição resolutiva o elemento acidental que subordinará a eficácia do negócio jurídico. No segundo exemplo trata-se de ato administrativo emanado do Poder Público, verdadeiro poder de polícia que incide sobre os direitos individuais dos administrados. O terceiro representa o uso do poder-dever administrativo, em face dos princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade.
No mesmo contexto apresentado por Maria Helena Diniz, a doutrina assinala casos análogos a evicção, onde não é necessário a sentença judicial, conforme exemplificado por Caio Mario da Silva Pereira:
“Abandono da coisa antes da sentença, quando o direito do terceiro reivindicante é de tal forma incontroverso que o prosseguimento do litígio implicaria injustificada recalcitrância e dispêndio inútil de energia processual como financeira. Mas, para que o abandono possa a equivaler a evicção, não pode ser arbitrário do adquirente, porém nele há de convir o alienante.”[46]
No exemplo citado acima, de situação análoga à evicção, destaca-se a imprescindibilidade de manifestação de vontade do alienante no sentido de concordar com o afastamento realizado pelo adquirente. Importante ressaltar que o adquirente deverá abandonar de vontade livre e sem interferência do alienante. Caio Mário da Silva Pereira prossegue exemplificando:
“Vias de fato de terceiro, confirmadas judicialmente, no caso do adquirente acorrer em defesa da coisa arrebatada, e na ação que intentar, para reivindicá-la ou sustentar a sua integridade jurídica; ser vencido o fundamento do direito anterior do terceiro demandado; a analogia com a evicção está em que o pronunciamento judicial confirmatório da situação fática criada pelo terceiro gera a mesma consequência que produziria uma sentença condenando o adquirente a efetuar a entrega a outrem.”[47]
Neste exemplo fica caracterizado que apesar possuir natureza jurídica adversa a sentença condenatória de entregar a coisa, a sentença declaratória emanada nas vias de fato de terceiro, opera os mesmos efeitos sobre o patrimônio do adquirente. E por último, explica Caio Mario da Silva Pereira:
“Conservação da coisa por título diverso do contrato aquisitivo, caso em que não ocorre a perda do bem recebido, por que o adquirente vem a consolidar seu direito em virtude de uma causa jurídica diversa, como, por exemplo, no caso de ser herdeiro do terceiro evidente, e tornar-se dono por sucessão causa mortis; não há perda do bem jurídico, mas fatalmente o perderia se não ocorresse a interferência de outra causa jurídica para a sua retenção.”[48]
No último exemplo observa-se que existirá causa jurídica adversa garantidora do domínio incidente sobre a coisa. Contudo, outro caso interessante é ressaltado por Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, ao qual menciona a desnecessidade de compor o polo ativo da demanda para que seja revelado como evictor:
“É sabido que ela dá-se quando o comprador é judicialmente vencido sobre a coisa. Mas isso não implica, como as vezes se vê afirmar, que a coisa lhe tenha sido reivindicada, que ele seja, em suma, réu na ação. Ela tem também lugar quando, sendo autor, tendo proposto ação para entrar na coisa comprada, seja vencido por quem provar ter melhor direito.”[49]
Por último cabe frisar que a evicção não está rigorosamente atrelada ao polo processual experimentado pelo evicto, que em primeira impressão indica que foi réu na ação movida pelo evictor. Por vezes, conforme acima ilustrado Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, o evicto pode ser o autor que sofreu derrota em face do réu que torna-se evictor, fruto do seu êxito judicial.
1.4.5. Denunciação da lide
Pressuposto ao qual o alienante deve observar para obter real garantia a evicção em curso. Paulo Nader evidencia a obrigatoriedade dessa litisdenunciação, onde a perda da oportunidade esvaziará os seus direitos decorrentes da evicção:
“Ajuizada a ação reivindicatória contra o adquirente, este deverá imediatamente notificar do litígio o alienante, ou qualquer dos anteriores, a fim de poder exercitar, posteriormente, os seus direitos decorrentes da evicção.”[50]
Em suma, para que o adquirente possa exercer seu direito diante da pretensão insurgida pelo terceiro evictor, caberá ao adquirente a denunciação da lide, devida a necessidade que o alienante possa defender-se e gozar do contraditório, diante de possível sentença judicial que possa prejudicá-lo.
Contudo a perda da garantia não acarreta na dissipação dos meios processuais adequados para a indenização das perdas suportadas pelo adquirente. Nesse sentido aponta Marco Aurélio Bezerra de Melo:
“…parece-nos que a ausência de denunciação da lide não deverá acarretar a perda do direito à indenização, podendo o adquirente exercer, até que a prescrição se efetive, a pretensão ressarcitória pela via da ação de locupletamento, sem a inclusão dos valores previstos no art. 450 do Código Civil. A ação teria por fundamento legal o art. 884 do Código Civil, que cuida do enriquecimento sem causa e que garante ao prejudicado a restituição do valor monetariamente atualizado.”[51]
Dessa maneira, o autor apresenta o entendimento que esvaindo a oportunidade de admissão do alienante na lide, e desta forma ocorrendo, conforme afirma Venosa “[…] o adquirente decai do direito à evicção.”[52], caberá ao adquirente as ações reparatórias, estabelecendo a evicção e seu prejuízo decorrente como causa de pedir, razão jurídica que justifica a inédita demanda.
Em de acordo com o estabelecido pelos dos civilistas, a V Jornada de Direito Civil aprovou o enunciado 434, com a seguinte redação, “A ausência de denunciação à lide do alienante, na evicção, não impede o exercício de pretensão reparatória por meio de via autônoma.”[53] Na justificativa apresentada pelo autor que sugeriu o enunciado, Marcos Catalan, evidencia-se que o entendimento proposto visa promover o princípio da isonomia contratual, afastando a possibilidade de locupletamento experimentado pelo alienante, diante do acréscimo econômico irregular, em sacrifício ao patrimônio do adquirente. Abaixo transcrição da justificativa apresentada por Marcos Catalan:
“A denunciação do alienante – direto ou não – à lide é facultativa. Sua não observância não impede o evicto de – pela via autônoma – haver as verbas que lhe são devidas em razão da evicção. Pensar de outro modo é defender manifesta incoerência e estimular o desrespeito à isonomia. Se evicção é hipótese de cumprimento imperfeito da prestação, como tal deve ser tratada. Qualquer outra leitura deve ser afastada, mormente quando produz injustificável – e lesivo – tratamento ao evicto. É inconcebível que quando uma parte seja lesada pela mora, cumprimento inexato ou inadimplemento de obrigação negocial, o prazo para exercício da pretensão seja mais que suficiente para a satisfação dos interesses em pauta, enquanto o previsto para o exercício da garantia legal nos casos de evicção, não. Hialina a violação do princípio constitucional da isonomia na tese da obrigatoriedade da denunciação à lide na evicção e assim, a falta de comunicação do alienante não pode ser um óbice à reparação dos prejuízos suportados pelo evicto, embora, não se negue a utilidade da figura, nem os riscos decorrentes da opção pela via autônoma.”[54]
Na sua excelente justificativa, na hipótese de preclusão do direito de denunciação da lide, Marcos Catalan buscou acomodar os princípios da função social dos contratos e vedação ao enriquecimento sem causa, apresentando como solução ação reparatória ou indenizatória afim de restabelecer o equilíbrio contratual abalado.
2. A GARANTIA
A palavra garantia possui diversas atribuições, todas convergindo para o significado de garante, que conforme De Plácido e Silva “[…] é a pessoa que dá ou oferece garantia a respeito da execução de um contrato ou do cumprimento de uma obrigação.” [55]. Nesse esteio confere-se ao vocábulo garantia amplo significado, no tocante a assegurar ao garantido a propriedade, posse ou mesmo usufruto de algum direito alcançado.
Conforme Caio Mario da Silva Pereira[56] estabelece, a evicção é exemplo de garantia legal, com alcance determinado em lei. Nesse mesmo sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[57] estabelecem que a garantia da evicção é elemento natural dos contratos, confirmado pela ordem jurídica vigente. Portanto, aspectos relevantes devem ser abordados, tais como, como o montante devido ao evicto e como deve ser mensurado, o método a ser observado em casos de doação, dação em pagamento. Diante dessas possibilidades, cabe analisar individualmente cada possibilidade considerada.
2.1. Amplitude de atuação da garantia
Acerca da aplicabilidade da garantia a evicção, não existe rol taxativo contemplando os contratos abarcados pela garantia, bastando que o adquirente sofra os efeitos de ter sua posse e propriedade prejudicada por terceiros. Nesse sentido, Carvalho de Mendonça[58] esclarece que, para os efeitos da garantia por evicção pouco importa a espécie de direito pelo qual foi tirada ao comprador a posse da coisa.
Tampouco a responsabilidade de garantia à evicção ignorar a espécie de direito correspondente, inexiste necessidade em aferir culpa ou dolo para a incidência da responsabilidade, conforme determina Pontes de Miranda.[59]
Desta forma, no momento de consolidar a responsabilidade pela garantia, basta aferir o desapossamento, tornando-se irrelevante a que título justo seja fundado a posse ou propriedade.
Importante inovação ocorreu no Código Civil de 2002, nos casos de ocorrência da evicção, não havendo mais restrição acerca das características do contrato oneroso para sua aplicabilidade. O Código Civil de 1916 possuía expressa previsão legal estabelecendo que apenas houvesse evicção e negócios jurídicos que apresentassem transferência de domínio, posse ou uso.
Desta forma, José Eduardo da Costa esclarece:
“O novo Código Civil afastou a antiga qualificação dos contratos onerosos presente no art. 1.107 do Código Civil de 1916. Com efeito, o art. 447 do novo Código Civil dispõe que nos contratos onerosos o alienante responde pela evicção. Assim, o novo Código Civil brasileiro não limitou a evicção aos contratos onerosos que constituem título para a transferência de domínio, da posse ou do uso. Mas permanece a exigência lógica de uma transmissão de direito, imanente à noção de vantagem patrimonial, dos contratos onerosos, pois, conforme exposto acima, a privação é sempre de um direito que foi transferido ao adquirente, uma vantagem patrimonial que lhe foi atribuída e que teve por título um contrato.”[60]
Portanto, não existe mais limitação ao alcance da evicção dentro do universo de possibilidades dos contratos onerosos, cabendo assim, a efetiva transferência de domínio acompanhada de prestações sinalagmáticas para a possibilidade de incidência da evicção e seus efeitos decorrentes.
Nesse esteio, prossegue José Eduardo da Costa:
“Os contratos onerosos garantidos contra a evicção são aqueles que se constituem em títulos para a transmissão de um direito. Seu escopo jurídico é uma modificação da titularidade do direito, e com isso uma modificação na atribuição de bens jurídicos.”[61]
Seguindo a enumeração e delimitação dos casos abrangidos pela evicção, pertinentes são as hipóteses elencadas por Paulo Nader, no sentido de não existir evicção da perda da coisa por acts of God, furto ou roubo, ato administrativo que acarrete em tombamento.[62]
A evicção origina-se da perda de bem ou coisa adquirida em contratos onerosos, quando terceiro possui direito anterior ao contrato. A garantia a evicção possui correlação ao equilíbrio econômico necessário aos contratos privados. Cabe ressaltar que a transferência de domínio ou posse não é requisito essencial para que ocorra a garantia aos riscos da evicção, caso da cessão de crédito. É dever de o alienante garantir sua prestação pactuada no contrato em questão. Desta forma, Maria Helena Diniz entende que:
“A garantia por evicção constitui uma obrigação de fazer do transmitente: a) de não turbar o adquirente, assegurando-lhe a posse pacífica da coisa alienada; b) de o assistir e tomar a sua defesa, no curso de uma ação reivindicatória, ao ser denunciado à lide; e c) de reparar os danos sofridos pelo comprador, se a evicção se consumar.”[63]
Contudo, não obstante as obrigações enumeradas pela autora, o Código Civil apresenta a possibilidade de modulação dos efeitos da garantia à evicção, prestigiando a autonomia privada das partes, princípio basilar do Direito Privado.
2.2. Valores devidos ao evicto
No tocante a indenização, haverá as possibilidades de indenização parcial ou integral. A indenização integral incluirá os danos emergentes e lucros cessantes, desde que devidamente comprovados.
O art. 450 do Código Civil estabeleceu em rol exemplificativo as quantias que devem ser restituídas ao evicto. No inciso I estabelece que os prejuízos suportados pelo adquirente devam ser restituídos na mesma extensão, em observância ao princípio da vedação ao enriquecimento sem causa. No inciso II destaca as despesas contratuais e extracontratuais, tais como custo de escritura e emolumentos de registro, conforme ensina Maria Helena Diniz[64].
Aspecto importante a ser abordado é a respeito do valor devido pela evicção, se calculado com base no valor do tempo da aquisição ou da efetiva perda do direito? O art. 450, parágrafo único do Código Civil encerrou por definitivo a discussão travada no âmbito doutrinário, estabelecendo que o valor a ser pago é o preço da época em que houve a perda do direito. Caso ocorra valorização da coisa, essa será suportada pelo alienante, contudo se ocorrer o inverso, caberá ao adquirente suportar o gravame. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[65] arrematam que esta sistemática valoriza o princípio da reparação integral.
Nesse esteio estabelece Sílvio de Salvo Venosa:
“O montante indenizatório é consequência do direito de garantia, que, por sua vez, tem relação com o princípio da boa-fé, como vimos. Os prejuízos efetivos decorrentes da perda da coisa devem ser devidamente provados. Cuida-se, nessa hipótese, do princípio geral que rege as perdas e danos.”[66]
Os princípios gerais de direito deverão ser empregados na hermenêutica ao Código Civil, verificando a doutrina que o art. 450 é impreterivelmente influenciado pelos princípios da reparação integral, boa-fé e vedação ao enriquecimento sem causa.
Seguindo a mesma atenção aos princípios coroados pela legislação e doutrina, Miguel Maria de Serpa Lopes[67] estabelece que o alienante é obrigado a restituir o valor pago, mesmo se afastada a garantia a evicção, com exceção se no momento de celebração do contrato, o adquirente assumiu incontestavelmente o risco apresentado. Conclui o autor com o a argumentação que não haverá prestação do adquirente se ao menos existiu o objeto referente a prestação do alienante.
O art. 455 do Código Civil determina duas alternativas caso a evicção parcial seja considerável, cabendo ao evicto manifestar sua preferência. A primeira estabelece
que o evicto poderá rescindir o contrato diante de manifesta ausência parcial do objeto a ser prestado pelo alienante, conforme mencionada lição de Miguel Maria de Serpa Lopes[68], e na segunda hipótese poderá o alienante exigir o preço proporcional ao prejuízo suportado. Portanto, a indenização parcial corresponderá à perda sofrida, assumindo a obrigação caráter divisível, caso a coisa evicta assim for.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald exemplificam com clareza as possibilidades de evicção parcial:
“A evicção parcial poderá consistir na perda da fração de um direito sobre o bem adquirido (v.g. adquirente é privado da propriedade de 50% da área do imóvel); pode também representar a supressão de uma situação jurídica que acedeu ao negócio jurídico (v.g. evicção quanto a uma servidão de passagem sobre imóvel vizinho); ou mesmo a submissão do direito a uma situação jurídica de terceiro (v.g. adquirente é derrotado em demanda que impõe ao seu prédio a condição de serviente perante outro prédio).”[69]
Consequentemente, a cada exemplo acima citado, respeitando os critérios legais e jurisprudenciais, caberá ao evicto determinar a alternativa almejada, dentre as opções do art. 455 do Código Civil, observando o caráter potestativo da sua escolha.
Caso existam benfeitorias necessárias ou úteis que não foram indenizadas na ação reivindicatória, poderão ser levantadas em pedido de ressarcimento com base no valor atual, ressalvada a o respeito aos princípio da boa-fé pelo adquirente.
Após a perda do direito, o evicto poderá demandar o alienante no bojo da ação reivindicatória, através da denunciação da lide, facilitando a direito a indenização. Não ocorrendo a denunciação da lide, poderá o evicto ajuizar ação autônoma, exercendo seu direito a indenização, diante da evicção ocorrida.
2.3. Possibilidade de redução e exclusão da garantia a evicção
A interpretação sistemática da legislação brasileira permite aduzir que cabe ao alienante garantir ao adquirente possíveis prejuízos originados pela evicção. Possui semelhança funcional como uma cláusula de garantia no bojo do contrato, contudo não possui expressa previsão contratual, por conseguinte, sua existência, validade e eficácia resultam da previsão legal. A possibilidade de exclusão da garantia a evicção conforme determina Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald “[…] a garantia a evicção se submete ao poder de autodeterminação dos contratantes.”[70]
Portanto a legislação consentiu no sentido de possibilitar a modificação na intensidade da garantia a evicção, conforme Orlando Gomes assevera:
“Não são imperativas as disposições legais atinentes à evicção. No contrato podem as partes estipular a dispensa da garantia, assim como atenuar ou agravar o rigor dos seus efeitos. A estipulação de que não haverá responsabilidade por evicção formula-se na cláusula de non praestanda evictione, que, entretanto, não elimina todos os efeitos da garantia, se a evicção se der. Ao evicto assistirá o direito de recobrar o preço que pagou pela coisa.”[71]
Nesse sentido o legislador concedeu aos contratantes, autonomia para modular sua existência, no caso de exclusão total da garantia, e sua eficácia, reforçando ou reduzindo seus efeitos.
No entanto, importante ressaltar que a exclusão a garantia não afastará por completo seus efeitos, conforme aponta José Eduardo da Costa:
“Contudo, no plano da exclusão da garantia da evicção, o exercício da autonomia privada já nasce condicionado, de forma que na sua constituição já existem limites e restrições impostas por lei. Ou seja, a cláusula contratual de exclusão da garantia não goza, ao nascer, de plenos efeitos, pois já vem ao mundo jurídico eivada de restrições e limitações.”[72]
A possibilidade de exclusão da garantia a evicção não poderia oferecer aos contratantes a possibilidade de afastar do contrato celebrados os efeitos irradiados pelos princípios basilares do direito civil e aos impedimentos estabelecidos pela interpretação sistêmica do arcabouço jurídico. Pontes de Miranda[73] entende que a exclusão a garantia poderá ser anterior a celebração do contrato, no momento da celebração ou depois de celebrado, constituído e com eficácia plena.
Entretanto se o adquirente no momento de celebração do contrato assumiu os riscos da cláusula non praestanda evictione, deverá suportar os prejuízos advindos de possível evicção superveniente ao contrato celebrado. Esse é o entendimento proposto por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
“O adquirente que tem conhecimento da situação duvidosa e litigiosa do direito alienante e, mesmo assim, ciente e expressamente dispensa a garantia celebra um contrato aleatório (emptio spei), em que assume o risco no tocante à existência do direito, alforriando o alienante, sendo que nada receberá caso a evicção se pronuncie.”[74]
Dessa forma, fica estabelecido que existindo completa e inequívoca ciência dos riscos oriundos do contrato celebrado, somada a exclusão da garantia a evicção, suportará o evicto todos os prejuízos amargados pela evicção. Contudo, caso não houver real dimensão dos riscos inerentes ao contrato, e ocorrido o fato da evicção, caberá ao alienante indenizar o evicto na dimensão do preço pago.
Aspecto interessante abordado por Sílvio Salvo Venosa é a possibilidade de reforçar a garantia a evicção:
“Se as partes podem excluir, também podem reforçar a garantia. Nada obsta que seja estipulada uma cláusula penal para o caso de perda da coisa pelos princípios da evicção. Isto é possível com ou sem o conhecimento de periclitação do direito.”[75]
Consequentemente a garantia sendo estendida proporcionará maior segurança jurídica entre os contratantes, contudo cabe ressaltar que a natureza jurídica dessa extensão será distinta da garantia a evicção, sendo aquela simples cláusula incluída no bojo do contrato e essa garantia imposta por lei, não havendo necessidade de previsão contratual.
2.4. A garantia na doação
Outra hipótese elencada pela doutrina é a doação com encargo, doação dotada de ônus, proporcionalmente inferior ao benefício concedido pelo doador. Não se trata de contraprestação, na qual existe paridade entre as prestações pactuadas.
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias entendem que o encargo não assume contornos de contraprestação, conforme entendimento:
“A inserção do encargo na doação produz uma restrição na eficácia da liberalidade, pela criação de uma obrigação para o donatário de dar, fazer ou não fazer. O encargo não se qualifica como uma contraprestação – mantendo a doação a sua essencial gratuidade -, porém o contrato se torna bilateral, justificando a incidência da evicção até o limite da prestação imposta ao donatário.”[76]
Dessa maneira, os contornos de doação pura são descaracterizados pelo encargo, afastando parcialmente a liberalidade e espontaneidade, surgindo ao donatário dever, correspondente ao ônus gravado pelo doador, com consequências no plano de eficácia da doação modal.
Apesar de não existir autêntico vínculo sinalagmático, Caio Mário da Silva Pereira[77] entende que existe exceção prevista pela legislação, devido a perda do seu caráter espontâneo a título gratuito, havendo semelhança aos contratos onerosos, devido a imposição de encargos ao donatário.
Desta forma conclui-se que apesar de não existir verdadeira contraprestação nas doações modais, o encargo atrairá a incidência da evicção e sua respectiva garantia.
Contudo é importante observar verdadeira exceção a regra da onerosidade contratual, tratada no art. 552 do Código Civil, onde estabelece que na doação para casamento com certa e determinada pessoa, o doador ficará sujeito a evicção. Verifica-se proteção do frente ao inadmissível dolo do cônjuge buscando encantar o outro nubente, empregando má-fé na doação prometida.
Estabelecido que as doações com encargo e doações para casamento são suscetíveis de evicção, como se comportaria a evicção nos casos de doação pura, livre de encargo ou qualquer obrigação por parte do donatário. Evidente que não havendo sinalagma, não há de comportar o instituto da evicção.
“Nos contratos gratuitos, como doação, não se aplica a evicção, pois a eventual privação do bem pelo adquirente não representaria um prejuízo propriamente dito, mas apenas a perda de uma vantagem. Dispensa-se, por conseguinte, a recomposição do sinalagma.”[78]
Evidencia-se estreita relação entre a existência da evicção e a reciprocidade das prestações no âmbito contratual, trabalhando a evicção no intuito de conservar o equilíbrio contratual.
Pontes de Miranda identifica no Direito Romano outra hipótese também tratada pelos doutrinadores contemporâneos, no caso de deliberado dolo do doador:
“Mas, embora excepcionalmente, pode ocorrer responsabilidade pela evicção nas doações. O princípio geral é o de não haver responsabilidade pela evicção nos negócios jurídicos gratuitos, mas o direito romano abria exceção para as espécies em que ocorrera dolo do doador.”[79]
Dessa maneira, José Eduardo da Costa sintetiza acerca da possibilidade da garantia a evicção em doações:
“Assim, como regra geral, o doador não responde pela evicção. Contudo, e desde que não haja convenção em contrário, o doador sujeita-se à evicção na hipótese de doação para casamento com pessoa certa e determinada.”[80]
Por fim, demonstra-se que a onerosidade do contrato, reveladora da relação sinalagmática entre os contratantes manifesta-se fundamental para a presença da evicção, contudo o ordenamento jurídico aliado a construção doutrinária tem indicado a possibilidade de incidência do instituto da evicção em doações específicas, tais como doação com encargo e doação nupcial.
2.5. A garantia na dação em pagamento
A dação em pagamento caracteriza-se pela entrega ao devedor de coisa de coisa distinta ao anteriormente estipulado pelas partes.
Com propriedade João de Matos Antunes Varela define claramente a dação em pagamento:
“A dação em cumprimento (datio in solutum), vulgarmente chamada pelos autores de dação em pagamento, consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação.”[81]
Trata-se de pacto posterior ao contrato inicial, onde o credor permite ao devedor que efetue o pagamento com objeto diferente do estabelecido no contrato. Imperativo é que o credor aquiesça com o novo objeto da prestação, para que exista validade a dação em pagamento.
Maria Helena Diniz apontou que o direito romano estabelecia regras clássicas e claras acerca da aplicação do datio in solutum:
“Nesse ponto o direito romano era muito mais rigoroso do que o moderno, embora tenha admitido a datio in solutum para amenizar aquele princípio, mas somente naqueles casos em que o credor permitia ao devedor a entrega de coisa diversa, com efeito liberatório, consagrando-se assim o clássico princípio romano: aliud pro alivio invicto creditore solvi non potest, isto é, (uma coisa por outra, contra a vontade do credor, não pode ser solvida).”[82]
A dação em pagamento é um instituto originário da flexibilização do Direito Civil acerca das possibilidades de extinção das obrigações, nada mais que positivação de expressa exceção ao estabelecimento que a obrigação tem que ser cumprida em cumprimento ao anteriormente pactuado.
Admitida a possibilidade de extinguir a obrigação com prestação diferente da originária, cabe analisar se admissível a ocorrência da evicção e suas consequências e desdobramentos. Nesse esteio, Maria Helena Diniz argumenta:
“ Entretanto, pode acontecer que o credor receba coisa não pertencente ao solvens, havendo, então, a sua reivindicação por terceiro, que prove ser seu proprietário. Ter-se-á, então, a evicção, ou seja, a perda total ou parcial do objeto em virtude de sentença judicial, que confere seu domínio a terceira pessoa. Dessa forma, se o devedor oferece coisa que lhe não pertence, a lei determina o restabelecimento da antiga obrigação, tornando sem efeito a quitação.”[83]
O entendimento acima exposto pela ilustre autora, possui amparo na abalizada doutrina de João de Matos Antunes Varela:
“O restabelecimento da obrigação primitiva envolve a ideia de que renascem, a favor do credo, não só o direito à prestação, mas também as garantias e acessórios do crédito, sem exceção das garantias prestadas por terceiro, salvo no que respeita a fiança.”[84]
Caracterizada a evicção total ou parcial, devida a titularidade da propriedade, posse ou domínio terceiro alheio, amparada por título que antecede a dação em pagamento, reativar-se a obrigação extinta e seus acessórios que a acompanham. Desta forma, a evicção age diretamente sobre a eficácia da dação em pagamento, tornando-a ineficaz e reconduzindo a obrigação extinta, verdadeiro retorno ao stato que ante.
3. EVICÇÃO EM HASTA PÚBLICA
A evicção em hasta pública é um tema debatido a décadas no direito pátrio, devido e expressa previsão legal delineado no art. 1.107 do Código Civil de 1916[85], onde consagrava-se que apenas ocorreria evicção nos contratos bilaterais onerosos. No entanto, não obstante a inequívoca redação legal, a doutrina e jurisprudência pátria enfrentou o problema em busca de soluções, diante da necessidade de consideração de princípios basilares do direito civil, dos quais os princípios da segurança jurídica e da vedação ao enriquecimento sem causa. O Código Civil vigente abarcou um conjunto de novidades com reflexos no direito processual, sendo relevante para esse estudo a inclusão da garantia a evicção em bens arrematados em hasta pública, conforme exposto no art. 447.
3.1. Execução forçada e seus institutos
Execução deriva do latim exsecutio, de exsequi, que para De Plácido e Silva significa “[…] seguir até o fim, proceder judicialmente, perseguir.”[86], traduzindo a ideia de perseguição e conclusão de algo incompleto, já estabelecido e imposto por lei.
De Plácido e Silva aponta que a execução:
“Na técnica judicial, é o ato por que se faz cumprir o disposto num título executivo seja ele um título executivo judicial ou extrajudicial, compelindo ou constrangendo o condenado a reduzir a efeito o objeto disposto no título.”[87]
A obrigação já estabelecida, afirmado ou provado oficialmente a certeza, liquidez e exigibilidade, caberá aos atos executórios efetivarem coercitivamente o crédito não satisfeito pelo devedor.
A análise da execução forçada faz-se necessária visando apontar qual natureza jurídica e os efeitos diante do patrimônio do devedor, como ocorrerá o acréscimo patrimonial do credor e por fim entender como deverá operacionalizar a evicção em caso de terceiro evictor demandar o arrematante evicto.
3.1.1. Execução forçada e resistida pelo executado
A execução forçada é atividade realizada pelos órgãos jurisdicionais que pretende realizar, no plano fático, a obrigação estabelecida e não cumprida. É tutela jurisdicional impregnada de poder coercitivo, afim de projetar o dever ser no plano do ser. Incabível a possibilidade de existência de direito subjetivo sem meios eficazes aptos a efetivarem seu conteúdo.
Assim entende Enrico Redenti, em sua obra citada por Frederico Marques:
“A execução, seja com base em título judicial, seja com fundamento em título extrajudicial, é modalidade da tutela jurisdicional para a obtenção de um pronunciamento tendente a um resultado material e tangível.”[88]
Entende-se como execução forçada o meio de obtenção da prestação inadimplida através de meios coercitivos previstos em lei. Assim dessa forma entende Frederico Marques[89] que é o meio de se efetivar a prestação pronta e exigível, mediante previsão legal, observando-se o tradicional princípio nulla executio sine titulo.
A execução forçada, na modalidade de execução por quantia certa, compreende ato complexo, subdividido em três momentos distintos e de natureza diferentes quais são, da afetação dos bens, logo depois a expropriação, e por último a satisfação do exequente, conforme Theodoro Júnior[90] estabeleceu.
Conforme aponta Dinamarco, acerca do animus do executado, no tocante a satisfação do crédito ao exequente:
“A transferência do bem na execução forçada é um ato imperativo do Estado-juiz, realizado independentemente da vontade do dono, que é o executado, ou mesmo contra ela. Essa é a sanção representada pela execução forçada.”[91]
De fácil constatação é a coação estatal em face do executado, buscando a satisfação do exequente, originado de anterior inadimplemento obrigacional do executado. Assim o executado defender-se-á das medidas executórias, em respeito ao princípio do contraditório, contudo defesa precária e escassa, dentro do processo executivo. Resta evidente o caráter hostil da execução, atacando o patrimônio do devedor, tolhendo sua volição.
3.1.2. Penhora forçada
A penhora caracteriza-se como ato judicial que através da apreensão ou tomada dos bens do devedor, objetiva-se cumprir pagamento de dívida ou obrigação inadimplida. Corresponde como ato inicial da execução por quantia certa, verdadeira turbação incidente sobre o patrimônio do devedor. Assim, pela penhora existe a esbulho dos bens no tocante à posse, para posterior retirada da propriedade do devedor, efetivada pela arrematação.
Entendida como a primeira das três fases distintas do processo executivo, a penhora é conceituada por Liebman como:
“A penhora é o ato pelo qual o órgão judiciário submete a seu poder imediato determinado bens do executado, fixando sobre eles a destinação de servirem à satisfação do direito do exequente.”[92]
Fácil perceber que a penhora caracteriza-se como ato judicial de indisponibilidade dos bens do devedor, afim de assegurar, a priori, delimitação dos bens que serão futuramente expropriados, verdadeiro passo inicial para a execução. Por consequência reflexa, nota-se a efetiva conservação os bens, em face de possível disposição do devedor.
Nesse termos Pontes de Miranda alerta:
“A indisponibilidade consequente à penhora é ligada ao fim, que é a execução iniciada. Os juristas que nela vêem início de execução e segurança (medida cautelar) não percebem a contradição que há nessa justaposição de funções: só se segura para execução o que ainda não é objeto de início da execução, como seria contraditório sequestrar ou arrestar e penhorar. Não há perigo, nem incerteza, quando se penhora: não se está ainda a caminho da execução, já se começou de executar.”[93]
O Estado no uso de seu poder jurisdicional delimita, através da penhora, quais bens são aptos à expropriação efetivada através da hasta pública. A individualização dos bens dentro do universo patrimonial do devedor cabe inicialmente ao executante e não sendo efetivamente eficaz, poderá o juiz intimar o executado para indicá-los, sob pena de multa de 20% do valor total da execução forçada.
Observa-se que em nenhum momento existe disposição voluntária do executado acerca dos bens aos quais deve-se objetivar a penhora, sendo afastado qualquer intuito negocial do executado, em favor da futura expropriação a ser efetivada.
Contudo há posição diversa na doutrina acerca da produção de efeitos da penhora, em face da autonomia negocial do devedor dos bens penhorados, segundo a qual existe apenas um enfraquecimento do direito do devedor, não afetando de forma absoluta as faculdades inerentes ao proprietário, nesse caso a disposição. Nesse sentido aponta Liebman:
“O efeito da penhora é, pois, meramente processual e consiste em imprimir a responsabilidade na coisa apreendida de forma tal que a coisa continua sujeita a execução, quaisquer que sejam os atos realizados pelo executado a seu respeito.”[94]
Assim existe a possibilidade de disposição do bem afetado pela penhora, contudo ele estará vinculado ao procedimento executório, como garantia de obtenção do quantum necessário para satisfação do exequente.
3.1.3. Arrematação e sua natureza jurídica
A execução por quantia certa possui o escopo de quantificar e determinar judicialmente o montante necessário para que o Estado desaproprie e satisfaça a dívida diante do credor. Inicialmente, desenha-se como imprescindível, a apuração de sua certeza, liquidez e exigibilidade.
Em segundo momento da execução forçada, já realizada penhora eficaz, que resulta na delimitação dos bens a serem expropriados, o passo seguinte é a expropriação dos bens, que é efetivada na arrematação do bem por terceiro, chamado de arrematante.
Conforme aponta Dinamarco, acerca da latente coercibilidade imbuída na persecução executória:
“A transferência do bem na execução forçada é um ato imperativo do Estado-juiz, realizado independentemente da vontade do dono, que é o executado, ou mesmo contra ela. Essa é a sanção representada pela execução forçada.”[95]
Demonstrada a coercibilidade da execução forçada, série de atos formais e imperativos que ignoram a vontade do devedor, perseguindo a satisfação do crédito ao exequente, cabe verificar a possibilidade da arrematação igualar-se ao contrato de compra e venda, em seus aspectos intrínsecos.
Posição doutrinária atualmente minoritária, onde estabelece direta correlação entre o instituto contratual da compra e venda e a arrematação no processo executório, De Plácido e Silva assim entende:
“A arrematação significa a compra e venda que se faz no leilão ou na hasta pública, venda esta que se efetiva ao ofertante ou licitante do maior lanço. E daí sua designação de venda em almoeda, que quer dizer quem mais der.”[96]
Precoce é equiparação superficial dos institutos, ignorando na arrematação, elemento constitutivo essencial ao negócio jurídico, a manifestação de vontade da parte, pressuposto esse que se não atingido, nem ao menos existiu o contrato. Desse modo, impossível a equiparação da arrematação ao contrato de compra e venda, pois aquele é totalmente desprovido de manifestação de vontade do devedor.
Francisco de Paula Batista foi pioneiro na intelecção acerca da natureza jurídica adversa entre os institutos da arrematação e contrato de compra e venda, conforme menção nos comentários de Celso Neves:
“A arrematação assemelha-se à venda no ponto único de dar-se em ambas a alienação da propriedade, mediante o preço equivalente pago em moeda, mas a venda é um contracto, effeito do livre consentimento, que exprime a vontade dos contractantes, e a arrematação é uma desapropriação forçada, effeito de lei, que representa a justiça social no exercício dos seus direitos, e no uso de suas forças para reduzir o condenado à obediência do julgado; a ideia de que a entrega do ramo representa o consentimento do executado pela interposta pessoa do juiz, é uma ficção fútil e pueril.”[97]
A arrematação consiste em instrumento de oferecimento ao público do bem já penhorado, no qual será convertido o bem em pecúnia, buscando a satisfação do credor. O resultado da arrematação será convertido ao exequente, tendo em vista a penhora já consumada que incide no bem expropriado. Na arrematação não existe livre manifestação de vontade buscando um contrato de transferência de propriedade, mas apenas uma transferência expressamente prevista na legislação.
No sentido técnico, arrematação consiste em título de domínio, conforme Humberto Theodoro Júnior estabelece:
“A arrematação é título de domínio, em sentido material, do arrematante sobre os bens adquiridos em hasta pública. O auto de arrematação funciona como título em sentido formal. Mas como a transferência de domínio, em nosso sistema jurídico se opera pela tradição, além do auto é necessária a entrega das coisas móveis, quando a arrematação versar sobre tais bens, ou o registro no Registro Imobiliário quando se tratar de bens imóveis.”[98]
A arrematação consiste em ato processual, não havendo qualquer resquício de liberalidade contratual. O que se pretende é a solvência da dívida, havendo satisfação do crédito. O Estado, possuindo a exclusividade da execução forçada, pode unilateralmente retirar do devedor os bens suficientes para adimplemento da dívida. Não cabe a comparação com negócio jurídico bilateral de compra e venda, haja vista seu caráter coercitivo e natureza de direito público.
Por fim, conclui-se que a arrematação não possui requisito essencial aos negócios jurídicos, a livre manifestação de vontade, acarretando que sua equiparação ao instituto da compra e venda é completamente inadmissível e desprovida de lógica jurídica.
3.2. Correntes doutrinárias
Primeiramente, cabe analisar a tentativa de analogia entre contratos onerosos e arrematação em hasta pública, afim de alicerçar a aplicação da garantia a evicção em face de aquisições originadas no âmbito da hasta pública.
Debruçando-se sobre o instituto da compra e venda, sem necessidade de intensa profundidade, fácil concluir que suas disparidades sobressaem ao cotejo realizado diante de suas semelhanças.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho classificam o contrato de compra e venda como:
“Trata-se, em síntese, de um negócio jurídico bilateral e sinalagmático, em regra consensual, comutativo ou aleatório, translativo de propriedade, de execução instantânea ou diferida, entre outras características”[99]
Analisando as características abordadas pelos autores, de primeiro plano constata-se a impossibilidade de analogia, principalmente por não haver obrigatória tratativa consensual no âmbito da hasta pública, ausência de liberalidade negocial.
Apesar de latente ausência da autonomia da vontade no sentido do liberalismo negocial, a doutrina nacional não possui entendimento que aponte para sentido único, no tocante ao fenômeno da evicção e de sua garantia decorrente.
Na primeira corrente, que defende o disposto expressamente no Código Civil Brasileiro vigente, aponta como perfeitamente cabível a evicção e sua garantia decorrente, diante da evicção incidente sob bens arrematados em hasta pública.
Desta forma a doutrina entende que a evicção é um vício de direito, que surgiu em direito anterior a transferência. Estabelecendo-se como institutos análogos a transferência da coisa e a arrematação, é perfeitamente cabível a incidência da evicção.
De fato, doutrina abalizada entende como um dos requisitos a evicção, a transmissão de direito. Nesse sentido, José Eduardo da Costa afere:
“A privação causada por terceiro, e que caracteriza o fato da evicção, não é qualquer privação, mas sim aquela qualificada por um vício do direito transmitido. O que se chama de vício de direito transmitido é, no fundo, um problema de titularidade de um direito, a qual pertence a um terceiro, e não ao alienante. O problema da anterioridade da causa a privação, está intimamente ligado ao problema do vício.”[100]
Assim sendo, a evicção é um vício no direito, fundada em direito preexistente a transmissão e que surge com o advento da transferência completa da coisa. Entende-se como direito preexistente do evictor, o direito completo e perfeito, anterior ao negócio jurídico que lhe determine a transferência de titularidade.
Desta forma, o vício de direito preexistente do arrematado é a precariedade do direito celebrado, suplantado por direito à justo título do evictor.
Após o fato da evicção e a supressão do direito por sentença judicial com eficácia declaratória, surgirá o direito a garantia a evicção, na qual o adquirente estará em condições de insurgir-se em face do alienante.
No entanto, a necessidade de sentença declaratória não é aplicável em algumas exceções. Das quais o mestre José Eduardo Costa enumera:
“O abandono da coisa, em razão de o direito do terceiro ser tão incontestável que o litígio seria mero desperdício de energia processual e financeira; o reconhecimento extrajudicial do direito do terceiro, com consentimento do alienante; a perda do bem em decorrência do implemento de condição resolutiva; apreensão policial da coisa, em razão de roubo ou furto ocorrido antes da aquisição; a privação da coisa em razão de ato inequívoco de qualquer autoridade; remição hipotecária, em que não há perda da coisa, em razão do pagamento do débito garantido pelo adquirente.”[101]
O entendimento doutrinário exposto converge com o disposto no art. 447 do Código Civil de 2002, o qual tomou como referência posição doutrinária e entendimento jurisprudencial majoritário existente no momento de sua elaboração.
Contudo, conforme já afirmado anteriormente, a questão não é analisada e debatida assentada sob a unanimidade. Entendimentos jurisprudenciais e doutrinários opostos surgiram no decorrer dos anos, justificados no rigor interpretativo das normas e arcabouço legal.
Na vigência do Código Civil de 1916, havia na doutrina discussão acerca da aplicabilidade da evicção sobre bens adquiridos através de arrematação em hasta pública. A pertinência do debate ancorava na expressa determinação legal de incidência da evicção nos contratos onerosos, ou melhor, da inexistência de previsão legal que abrangesse outros institutos existentes de transferência de domínio do bem.
Fator que corrobora com o debate mencionado acima se origina da natureza jurídica adversa entre os contratos onerosos e arrematação promovida na execução forçada, anteriormente abordada nesse estudo acadêmico.
Desta forma, dentro da doutrina processualista, existe entendimento majoritário no sentido de atribuir a arrematação e os contratos onerosos, natureza jurídica opostas, atribuindo a aquela como execução forçada e a esse como contrato com livre manifestação vontade dos contratantes.
Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior torna claro:
“A arrematação, no entanto, não é um contrato, mas uma desapropriação, de sorte que não se pode falar em responsabilidade contratual como é a da garantia da evicção. Mas como a alienação forçada não exclui a ação reivindicatória de titulares do domínio sobre o bem arrematado, desde que estranhos à execução, há de se dar solução ao problema do arrematante que vem a ser privado do bem adquirido em hasta pública.”[102]
O entendimento jurisprudencial, fundamentado na doutrina divergente, refletiu esses antagonismos, produzindo sentenças em sentidos diversos nas quais serão posteriormente analisadas.
Importante mencionar que apesar da garantia a evicção, no caso de arrematação judicial, atuar efetivamente na restituição do equilíbrio financeiro da relação jurídica, haverá a possibilidade da evicção causar danos de natureza material e extramaterial, cabendo a aquele que diretamente concorreu, reparar na mesma proporção.
Poucos doutrinadores discorreram sobre o tema, cabendo a Araken de Assis tecer breve comentário, acerca da possível aferição de responsabilidade do Estado:
“Aqui é preciso considerar a unidade do poder jurisdicional. Ao sub-rogar à vontade do executado, as instâncias do exequente, ou veicular a ação deste na esfera jurídica do obrigado, conforme ângulo de análise, e, a um só tempo, decidir o domínio a favor de terceiro, o Estado assume o risco de entregar com uma mão o que, em seguida, retirará com a outra. Daí resulta o dever de indenizar o evicto. Ademais, a inserção do Estado no negócio de arrematação autoriza imputar-lhe responsabilidade pelo dano porventura causado por terceiro. Deste modo, o Estado responderá solidariamente com as partes da relação processual pela evicção do arrematante.”[103]
Desta forma, é possível a imputação da responsabilidade civil solidária do Estado, na medida em que na atuação do poder jurisdicional, o Estado deve diligenciar acerca da titularidade do bem que incide a execução.
3.3. Entendimento jurisprudencial
Na primeira corrente, expressamente prevista no Código Civil Brasileiro, é defendido como perfeitamente cabível a evicção e sua superveniente garantia, nas aquisições originadas de bens disponibilizados em hasta pública. Argumento considerado e utilizado como justificativa é da existência de cláusula implícita que presta garantia a evicção, mesmo em contratos efetuados em hasta pública.
Nesse sentido é o entendimento doutrinário de Nelson Rosenvald, citado em voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi:
“A cláusula que acautela o adquirente em face da evicção é implícita, mesmo nos contratos efetuados em hasta pública. Destarte, haverá proteção em prol daquele que arrematou judicialmente em processo de execução. A grande indagação é a seguinte: quem lhe indenizará pela coisa evencida? Afinal, não se trata de alienação de um bem, mas sim de uma hipótese de expropriação praticada pelo Estado. Ademais, propugnar a evicção contra o antigo dono é uma tarefa árdua diante do seu estado econômico precário, a não ser que tenha percebido o saldo remanescente pela evicção. A outro turno, postular contra credores gera maiores chances de sucesso, haja vista que eles levaram o bem à hasta pública e embolsaram seu valor. Poder-se-ia, em princípio, objetar que os credores nunca foram titulares do bem, porém a cláusula geral da função social do contrato (…) propicia que o adquirente alcance aqueles, tendo em vista que o adquirente se torna vítima de uma relação obrigacional entre executado e exequentes. Em suma, o resguardo do princípio da boa-fé objetiva provocará uma solidariedade passiva entre credores beneficiados e o executado.”[104]
O trecho do voto da relatora demonstra o entendimento acerca da aplicação à garantia, independente da ausência de previsão legal. A construção da justificativa para a aplicação da garantia é constituída unicamente pela analogia da compra e venda com a arrematação.
A jurisprudência tem apontado no sentido de aplicar a evicção em hasta pública, ignorando a natureza jurídica incompatível entre contrato oneroso de compra e venda e arrematação em hasta pública. O entendimento ampara-se nos princípios da proteção ao terceiro de boa-fé e vedação ao enriquecimento sem causa, que na medida que é aplicada, legitima a extensão da evicção a hipóteses que diferem dos contratos onerosos.
No entanto, existe divergência jurisprudencial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, exposta no Recurso Especial nº 625.322-SP, de relatoria do Ministro Luiz Fux:
“Com efeito, a natureza da arrematação, assentada pela doutrina e pela jurisprudência, afasta a natureza negocial da compra e venda, por isso que o adquirente de bem em hasta pública não tem garantia dos vícios redibitórios e nem da evicção. Em outras palavras, na arrematação, o arrematante não adquire nenhuma ação de garantia.”[105]
O entendimento exposto pelo iminente relator diverge da corrente jurisprudencial e doutrinária dominante, entendendo que devido a natureza jurídica processual da arrematação, imbuída de autoritarismo e poder jurisdicional, não cabe a aplicação evicção, instituto próprio dos contratos onerosos, de natureza negocial e autônoma.
Não obstante ao óbice levantado pelo relator, em trecho seguinte do seu voto, apontou alternativas ao arrematante penalizado do seu direito:
“O arrematante lesado pode desfazer a arrematação, investir contra o devedor que liberou-se com a alienação juridicamente interditada ou voltar-se mesmo contra o credor que se pagou de modo indevido, mas jamais, sub-rogar-se em crédito do processo de expropriação cuja própria execução ultimou-se com o pagamento do precatório.”[106]
3.4. Denunciação da lide do credor da execução
O Código Civil estabelece no art. 456 que o adquirente para usufruir da garantia a evicção, deverá notificar o alienante, através da denunciação da lide. Trata-se de insuperável condição, sem a qual é impossível usufruir da garantia a ser prestada pelo alienante. Assim, faz-se necessário que a adquirente, após ser demandando pelo terceiro evictor, chame o alienante para vir responder acerca do direito ao qual deve garantir ao adquirente.
Caio Mário da Silva Pereira ressaltou a necessidade do estrito cumprimento ao comando do art. 456 do Código Civil vigente:
“Para efetivação do direito resultante da evicção, cria a lei um requisito impostergável: convocar o alienante à integração da lide – laudatio auctoris. Se a ação é intentada pelo adquirente contra terceiro, na inicial pedirá a citação do alienante para que integre o processo, e responda pelas consequências. Se, ao revés, for réu na ação movida pelo terceiro reivindicante , convocará (denunciação da lide no linguajar processual) o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores para que venha assumir a sua defesa.”[107]
Contudo, algumas considerações são necessárias para a análise correta acerca do acréscimo patrimonial indevido. Observa-se que o devedor obteve proveito patrimonial, onde adimpliu obrigação contratual com um bem não integrante do seu patrimônio. Desta forma, para a devida eficácia da denunciação à lide, não se deve ater apenas ao ganho patrimonial obtido pelo devedor, deve-se verificar a real possibilidade de ressarcimento pelo evento da evicção. Ora, se o devedor sofre a execução, é privado do bem através da penhora que posteriormente é arrematado em hasta pública, é evidente que a possibilidade de arcar com o ressarcimento, acionado através da denunciação da lide é improvável. Por fim, não havendo possibilidade de transferência do ônus para o arrematante, cabe ao credor, participante da relação obrigacional originária, responder pelos danos sofridos pelo arrematante, sendo prudente e eficaz denunciá-lo à lide, apontando o devedor como solidário na obrigação de restituição.
No agravo de instrumento nº 70007875446 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Desembargador Mario Rocha Lopes Filho entende como possível denunciar à lide a União, que desempenhou o papel de credora da execução a qual foi arrematado o bem que posteriormente foi objeto da evicção:
“Portanto, ao contrário do entendimento exarado na decisão agravada, figura possível a denunciação à lide da União para a presente em ação de usucapião para resguardar o atual proprietário dos efeitos da evicção, pois, na execução promovida em processo falimentar pela Fazenda Nacional, essa foi a credora que, embora tivesse direito ao pagamento, não tinha de que fosse adimplido com a alienação de bens de terceiros.”[108]
O voto citado trata-se de acórdão proferido em sede de agravo de instrumento questionando decisão denegatória de denunciação à lide da União, em processo de usucapião. Versa sobre bem objeto de execução promovida pela União, que no papel de credora obteve a satisfação de seu crédito através da penhora, e que futuramente o arrematante sofreu os efeitos da evicção, tornando-se evictor do bem ao qual arrematou.
Outro aspecto importante a ser abordado, tomando como referência o trecho do voto acima citado, é a possibilidade de denunciação à lide do credor da execução, da qual se originou o bem posteriormente arrematado. Nota-se que a priori, de acordo com o senso comum, a denunciação à lide teria como alvo precípuo, o devedor da obrigação inicial.
O entendimento jurisprudencial semelhante o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.237.703 – MG expôs e fundamentou o direito de regresso do arrematante em face do credor beneficiário da execução:
“Na hipótese, FRANCISCO adquiriu o bem em hasta pública ainda na vigência do CC/16. O Tribunal de origem – ao mesmo tempo em que considerou evicto o bem alienado por FRANCISCO a EURÍPEDES – seguiu entendimento doutrinário e a preocupação jurisprudencial para expressamente admitir o direito de regresso do arrematante FRANCISCO contra o credor beneficiado com a alienação forçada.”[109]
O credor como real beneficiário do acréscimo patrimonial deve prestar a garantia a evicção, podendo o evictor acioná-lo mediante denunciação à lide. A jurisprudência e doutrina preocupam-se em não perpetuar possível enriquecimento ilícito experimentado pelo credor, que apesar de não ter participado de má-fé dos atos executórios, usufrui de acréscimo patrimonial que não o pertence, não havendo razoabilidade possível consentimento do Judiciário. Resta ao credor arcar e suportar com a garantia a evicção, restando a alternativa de buscar outros bens passíveis de penhora no universo patrimonial do devedor.
Nesse sentido, José Eduardo da Costa estabelece elemento funcional e prático da evicção:
“ No direito civil brasileiro, é possível afirmar que a função prático-social da garantia a evicção, nos contratos onerosos, é recompor o equilíbrio contratual, abalado pelo rompimento da correspectividade das prestações. De fato, a privação total ou parcial, provoca uma diminuição quantitativa no patrimônio do evicto, em razão do rompimento do equilíbrio entre vantagem e sacrifício, isto é, entre o dever de contraprestação de uma das partes em contraposição à obrigação da outra.”[110]
Desta forma, compreende-se que a garantia a evicção possui objetivo de equilíbrio financeiro entre os envolvidos, e que a denunciação à lide deve atentar-se a esse aspecto. Assim estabelece José Eduardo da Costa:
“ A garantia da evicção atribui ao evicto o direito de exigir do alienante a recomposição patrimonial. Dito de outra forma, a garantia da evicção consiste numa regulamentação dos direitos, deveres, ônus e obrigações decorrentes do rompimento da sinalagmaticidade das prestações. No planos dos contratos onerosos, o elemento central da evicção é a frustração do cerne da onerosidade contratual, caracterizada pelas vantagens e sacrifícios recíprocos dos contratantes.”[111]
A denunciação à lide possui a natureza condenatória, similar a sentença condenatória, mas por possuir característica secundária ao processo, não será sentenciada isoladamente.
Interessante entendimento é o exposto por Flávio Luiz Yarshell[112], a repudia em denunciar à lide pelo adquirente como verdadeira abdicação do direito de regresso, onde o adquirente assume totalmente os riscos inerentes a renúncia da denunciação da lide do alienante, não cabendo assim possibilidade de tornar nula, sem eficácia, sentença regularmente constituída.
Maria Helena Diniz entende que caberá ao evicto notificar o alienante, sob pena de assumir o risco inerente a renúncia tácita efetivada com a ausência da denunciação à lide:
“Denunciação da lide, visto que, pelo Código Civil, art. 456, o adquirente, para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, deverá notificar do litígio o alienante, quando e como lhe determinarem as leis processuais. O adquirente, proposta por terceiro ação para evencer bem transmitido, deverá denunciar a lide ao alienante. Se o adquirente não fizer isso, perderá os direitos decorrentes da evicção, não mais dispondo de ação direta para exercitá-los. Exige-se esse requisito porque o alienante precisa conhecer a pretensão do terceiro-reivindicante, uma vez que irá suportar as consequências da decisão judicial e os riscos da evicção.”[113]
Com efeito, a denunciação à lide disponibilizará ao alienante o exercício do regular direito de defesa, que participando do processo como litisconsorte, possuíra a oportunidade de gozar do contraditório afim de demonstrar o seu direito e se opor as alegações do evicto e a ampla defesa será observada, no tocante a inclusão no polo passivo em momento oportuno, na fase de conhecimento processual.
Por final fica comprovado que a doutrina possui entendimento convergente com os dispositivos legais, no sentido de admitir a obrigatoriedade da denunciação à lide do alienante, afim de que o evicto possa usufruir das garantias consagradas pela evicção.
3.5. Responsabilidade pela garantia a evicção
Aspecto controverso e pouco abordado pelos doutrinadores é consoante a responsabilização pela evicção, quem deverá responder, o credor ou o executado.
Inicialmente é pertinente ressaltar, conforme anteriormente abordado, que a arrematação é ato processual onde é imposta ao executado a expropriação de parcela de seu patrimônio. Intolerável a equiparação da compra e venda com a arrematação, pois aquela edifica-se na liberdade negocial e essa simplesmente corresponde a expropriação forçada que busca satisfação de um crédito legítimo. No que pese a arrematação em contraposição a vontade do executado, afastando-se do requisito basilar existente nos contratos onerosos, deverá o ordenamento jurídico promover os meios necessários para reparar o decréscimo patrimonial ilegítimo amargado pelo arrematante.
Coube a Caio Mário da Silva Pereira perceber e indagar acerca de quem será o responsável por indenizar o evicto pelas perdas suportadas:
“ O Código de 2002 inovou em relação ao direito anterior, ao dispor que subsiste a garantia da evicção ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública. Diante de tal regra, a pergunta cabível, não respondida pelo Código, consiste em se saber quem responde pela evicção na alienação em hasta pública, tendo em vista que nessa hipótese a venda não se dá espontaneamente pelo proprietário da coisa, mas sim pelo Estado, a fim de que terceiro seja favorecido. Imagine-se a hipótese de um bem ser alienado em hasta pública após ter sido penhorado para a garantia de uma execução contra o proprietário. Em ocorrendo a evicção, o adquirente de bem deve exigir a indenização pela sua perda do antigo proprietário, ou do credor que obteve o proveito com a venda que veio a ser prejudicada em razão de um direito anterior? Na primeira hipótese, as chances de o adquirente vir a obter a sua indenização são diminutas, tendo em vista o provável esta de insolvência do proprietário que teve bem da sua propriedade levado a hasta pública. Na segunda hipótese, se estará transferindo a responsabilidade pela evicção a quem nunca foi proprietário da coisa evencida.”[114]
A possibilidade de evicção em bens arrematados em hasta pública levantou algumas questões omissas na redação do Código Civil, devendo o operador do direito analisar sistematicamente a legislação na busca de correta solução ao caso concreto.
Observando as dificuldades abordadas, em consonância com os problemas apontados por Caio Mário da Silva Pereira, Humberto Theodoro Júnior, baseado na doutrina de Frederico Marques conclui:
“A solução mais plausível é, sem dúvida, a oferecida por Frederico Marques, apoiada em Micheli e Liebman; embora não haja compra e venda na arrematação, o executado responde pela evicção, porque se o seu patrimônio é garantia comum de todos os credores, seria injusto, caso o bem arrematado não lhe pertencesse, fosse o arrematante obrigado a arcar com todo o peso da execução, beneficiando os credores com um enriquecimento injustificado porque obtido à custa de algo que não era devido.”[115]
De fato o executado possuidor da dívida que originou a arrematação tira proveito de locupletamento ilegítimo, na medida que quita dívidas através de valor pago levantado da arrematação de bens dos quais não é o legítimo proprietário ou possuidor.
A doutrina processualista e civilista repudia a possibilidade de enriquecimento ilícito, considerando preponderante a observância da boa fé objetiva do arrematante e os princípios da segurança jurídica e função social do contrato.
Desta forma, Humberto Theodoro Júnior sintetiza preciosa lição de Enrico Tullio Liebman, concernente a reparação devida ao arrematante, evicto da coisa litigiosa:
“Daí a conclusão de Liebman, de que o primeiro responsável pela reparação do prejuízo do arrematante é o executado e, subsidiariamente o credor. Para o notável mestre peninsular, embora não se possa falar da garantia da evicção propriamente dita, porque o executado não vendeu, é inegável o direito do arrematante de reaver o que pagou sem causa. Quem se enriqueceu indevidamente foi o executado que se livrou das dívidas à custa de bens alheios; é ele obrigado a indenizar o arrematante. Mas, às vezes, ele é insolvente; o arrematante poderá, então, repetir dos credores o que receberam, porque, embora tivessem direito ao pagamento, não o tinha a ser pagos pela alienação de bens de terceiros.”[116]
Observa-se que a priori caberia ao executado responder pelos danos causados, contudo sua situação econômica delicada certamente o impossibilitará de suportar a obrigação. A partir dessa reflexão, fácil notar que caberá ao executante suportar a responsabilidade, na medida que usufruiu do acréscimo patrimonial advindo de terceiro não integrante da relacional obrigacional que originou a execução.
CONCLUSÃO
Da avaliação da doutrina e jurisprudência no decorrer desse estudo, admiti-se alcançar um conjunto de conclusões acerca do instituto da evicção, a amplitude de sua garantia e seus efeitos no âmbito da hasta pública.
A doutrina pátria entende que a função precípua da evicção é a manutenção do equilíbrio econômico no âmbito contratual, caracterizando-se como obrigação de prestar garantia proveniente da ruptura da bilateralidade das prestações contratuais. Trata-se de recomposição das perdas oriundas do inadimplemento total ou parcial das prestações, a fim de estabelecer as proporções das obrigações anteriormente experimentadas ao negócio jurídico que deu origem.
O legislador percebendo a necessidade de recompor as perdas e dividindo os encargos de sua ocorrência, procurando dirimir os efeitos de possível desequilíbrio econômico, estabeleceu na legislação avaliações e parâmetros para implantar a evicção. Trata-se de verdadeira necessidade de distribuir as possíveis perdas e no estabelecimento de equilíbrio econômico no âmbito contratual.
A responsabilidade de quem deve prestar a garantia não depende da existência de animus do alienante, concernente a aferição de culpa ou dolo. Basta comprovar o prejuízo acarretado por terceiro alheio ao liame contratual para a implementação da garantia a evicção.
Anteriormente ao Código Civil de 2002, a doutrina apresentava divergência acerca da aplicabilidade da evicção sobre bens arrematados em hasta pública, divergência que repercutia nos tribunais superiores. Todavia com a vigência do Código Civil atual, a dúvida foi dirimida pelo 2ª parte do art. 447 que identifica a aplicação, inclusive, aos bens arrematados.
Acerca de quem é o titular da responsabilidade pela garantia a evicção, interessante mencionar que cabe responsabilização direta do executado pelos danos patrimoniais originados da evicção, tendo em vista que o seu patrimônio é a garantia do crédito dos executantes. Contudo, conforme anteriormente identificado, o executado certamente não obterá patrimônio para adimplir a garantia oriunda da evicção. Portanto, solidariamente cabe ao executante prestar a garantia, tendo em vista que o propósito da hasta pública e o consequente valor levantado pela arrematação, foi a satisfação dos seus créditos em sede de execução.
Advogado formado pelo Centro Universitário de Brasília UNICEUB especializado em Direito Administrativo Tributário e Previdenciário Pós Graduado em Direito Tributário e Previdenciário pela Universidade Cândido Mendes UCAM
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