Resumo: O presente artigo pretende examinar o aspecto lógico do ordenamento jurídico, partindo do entendimento de que o mesmo comporta uma estrutura de sistema de normas tal qual fora proposto por Hans Kelsen e defendido por Lourival Vilanova. Não pretendendo estudar todos os aspectos deste sistema, iremos nos limitar a analisar a questão da possibilidade de seu fechamento e unidade, buscando solução jurídica à problemática do aborto nos casos de anencefalia fetal, segundo a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n° 54, que transita no Supremo Tribunal Federal. O objetivo é verificar a impossibilidade de encontrar-se “a decisão justa” para a situação, considerado, ainda, o reclamo social pela contemporanização do ordenamento jurídico nesta matéria. [1]
Palavras-chave: Lógica jurídica. Anencefalia fetal. Decisão jurídica. Interpretação.
Abstract: This paper examines the logical aspect of the legal system based on the understanding that it accepts a particular arrangement of rules as proposed by Hans Kelsen and defended by Lourival Vilanova. Not pretending to study all aspects of this system, we will limit our study to the question of its possible of closure and unity, seeking a juridical solution to the problem of abortion in the fetal anencephaly cases, according to the Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n° 54, which is processed on the Supreme brazilian court. The objective is to verify the impossibility of founding “the fair decision” for the situation, considered also the social claim for a contemporaneous legal system in this matter.
Keywords: Legal logic. Fetal anencephaly. Legal decision. Interpretation.
Sumário: 1. Do caso prático: a problemática do aborto de feto anencéfalo no ordenamento jurídico brasileiro. 1.2. Das hipóteses legítimas de aborto. 2. Sistema do Direito positivo. 2.1. Do fechamento do sistema. 2.2. Do juízo jurídico negativo. 2.3. Da interpretação. Reflexões finais. Referências.
1. DO CASO PRÁTICO: a problemática do aborto de feto anencéfalo no ordenamento jurídico brasileiro
Como é sabido, atualmente transita no STF a ADPF n° 54-8/DF[2], interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que busca, em decisão definitiva, seja declarada a inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei n° 2.848/40 – como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo[1], diagnosticados por médico habilitado.
Aduz que, nos casos de anencefalia fetal, devido à ausência de suporte fático que acarretasse a subsunção do fato à norma, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, não haveria qualquer repercussão jurídico-penal.
Fundamenta seus pedidos nos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade lato sensu, da liberdade, da autonomia da vontade, bem como os relacionados à saúde da gestante.
Fora concedida, em 01 de julho de 2004, medida liminar para suspender processos judiciais não transitados em julgado que envolvessem a mesma matéria, bem como o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica do parto, desde que a deformidade fosse atestada por laudo médico. Contudo, em sessão realizada no dia 20 de outubro do mesmo ano, a Corte decidiu pela revogação da liminar sob o fundamento de que se estaria criando nova espécie de exclusão de ilicitude, o que infringiria a separação dos poderes além de não encontrar conveniência política para subsistir em sede de medida liminar extensiva nacionalmente[2].
Considerando tratar-se de nascituro sem expectativa de vida extra-uterina tida como razoável[3] (na maioria dos casos sequer sobrevive ao parto), e estando em situação análoga à morte cerebral – a qual atesta o final da personalidade civil –, dá-se lugar à discussão a respeito de se há vida humana nesta situação. A confederação defende a tese da atipicidade deste aborto, acolhendo o neologismo “antecipação terapêutica do parto”, a fim de separar a presente hipótese dos demais casos de aborto.
A complexidade do caso abrange choque de princípios constitucionais como os da liberdade, dignidade e integridade física, relacionados à gestante e ao nascituro. Do ponto de vista jurídico, enseja-se a discussão sobre o feto ter ou não vida[4] e direitos, fazendo emergir um forte protecionismo, característicos no contexto de um Estado Democrático de Direito[5]. Já sob a ótica da bioética brasileira, o debate sobre o aborto no Brasil é ainda um tema perigoso e delicado[6].
Na própria decisão liminar, o Ministro Relator Marco Aurélio expôs a complexidade do caso, evidenciando um reclamo social pela adequação da hipótese no sistema normativo. Observemos o voto:
“(…) Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana.
O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quando de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança.
Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas justamente, para fazê-los cessar.
No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina.
Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia da vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação. (…)” (grifos nossos)
Desde sua interposição, somam-se mais de quatro anos de acirradas discussões, com uma pluralidade de posicionamentos que envolvem concepções morais divergentes, ou mesmo antagônicas. No entanto, e, principalmente, devido à enorme complexidade das matérias abordadas, vê-se a dificuldade de obter-se um consenso que ponha fim à problemática.
1.2. DAS HIPÓTESES LEGÍTIMAS DE ABORTO
É perfeitamente possível alcançar o raciocínio de que, no caso da anencefalia fetal, houve decerto uma incapacidade, por parte do legislador, de prever esta situação para fins normativos. Conquanto aplicando-se uma compreensão por analogia, poder-se-ia concluir pela validade de mais esta hipótese de exclusão da ilicitude no aborto.
Ora, no Brasil, o Código Penal somente permite duas formas de aborto[7] legal: o denominado aborto necessário e o eugênico, previstos no artigo 128, inciso I, hipótese em que o fato, quando praticado por médico não é punido, desde que não haja outro meio de salvar a vida da gestante; e inciso II, quando a gravidez resulta de estupro, e também chamado de “aborto sentimental” ou “humanitário”. São causas de exclusão da antijuridicidade.
Nossa legislação, portanto, reconhece à mulher o direito de extrair o feto fruto da concepção forçada (do estupro), animalesca, eliminando-o de sua vida de sua lembrança. Aceitou a tese que uma criança gerada dessa forma poderia trazer à mente da mãe péssimas recordações, tornando-se até mesmo odiada.
Já com relação à segunda hipótese, verifica-se que, diante da necessidade imperiosa de se fazer tudo para preservar o bem jurídico mais valioso, o código isenta de crime o aborto terapêutico, que consiste em destruir o feto para salvar a vida da mãe, ou evitar agravar riscos à sua saúde.
Nesse sentido, Antonio José M. F. Rosa[3], observa que “aquele que, tendo de fazer opção, dá morte à mãe para salvar o feto, incorre em crime de homicídio. A lei considera muito mais importante a vida humana independente, do que a mera esperança ou expectativa da vida, consubstanciada no feto. A prova disso vê-se na diferença enorme entre as penas atribuídas aos crimes contra ambos os bens tutelados, e, sobretudo, o texto claro do inciso I”.
Referido autor acrescenta, ainda, que certas correntes doutrinárias defendem a desnecessidade de previsão legal, dada a eximente do estado de necessidade que autoriza, no choque entre a vida da mãe e a do feto, o sacrifício do feto, por se tratar de vida futura e eventual. Já no que tange ao aborto eugenésico, aduz que algumas legislações admitem poder ser praticado quando houver fundada probabilidade de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, mediante pedido da gestante e concordância do cônjuge[4].
Em que pese incidir sobre o Direito Penal o princípio da estrita legalidade interpretativa, é possível a adoção da analogia in bonam partem – posicionamento já assente na doutrina internacional[5]. Assim, podemos enxergar a possibilidade de combinação dos motivos autorizadores das duas espécies de excludente da ilicitude: a necessidade de tutelar a integridade física e, principalmente, mental da gestante e a sensibilização à sua difícil situação de gerar um ser inviável e, talvez, que sequer possui uma vida humana.
Vislumbra-se, desta forma, uma descontextualização do ordenamento jurídico brasileiro, evidenciada na crise de racionalidade, que ao partilhar de uma estratégia de redução de complexidade do mundo do ser com vistas a ordená-lo e dominá-lo mediante textos normativos consolidados, torna o Direito descompassado com o maior grau de exigência da litigiosidade contemporânea[8][6].
Diante de tamanha crise de eficácia e legitimidade, a pós-modernidade demanda uma racionalidade que não esteja vinculada a referenciais absolutos de certeza tradicional, mas que respeite a pluralidade, a contingência, dos reclamos sociais.
É justamente neste ponto que inserimo-nos nesse debate, contribuindo através de uma análise lógica, e pretensamente epistemológica, do ordenamento jurídico, segundo a ótica kelseniana e com base, ainda, nos ensinamentos de Lourival Vilanova.
2. SISTEMA DO DIREITO POSITIVO
A proposta de Lourival Vilanova baseada na teoria kelseniana é que o direito positivo se não é, tende a ser um sistema. Não é mero agregado de proposições normativas, caótico feixe de normas, considerada sua finalidade de ordenação racional da conduta humana[7].
Parte do pressuposto de que a linguagem do Direito positivo é misto de linguagem da experiência comum com a da técnica, de modo que a estrutura total do sistema tem que seguir as possibilidades lógicas de construção e transformação sintáticas pertinentes a todo universo de linguagem[8].
Os autores defendem que a descritividade da dogmática do Direito e a prescritividade do sistema normativo manifestam-se na forma sintática da proposição, esquemas com um predicamento, com um termo susceptível de acolher possíveis sujeitos que se adéqüem à variável[9].
Vilanova afirma que o logos é uma das capas constituintes do Direito[9], sendo as estruturas lógicas parte da ontologia do Direito[10]. E explica: as formas puras das proposições não são generalizações do conteúdo existencial, mas do pensamento jurídico, com condições de cognoscibilidade que desprezam a particularidade do material empírico. Tais proposições interligam-se em estruturas, de modo que umas implicam outras e todas ingressam numa forma mais abrangente: o sistema. No entanto, esse grau de sistematicidade pressupõe unidade de fonte normativa, a estrutura estatal de poder.
Kelsen, por sua vez, admite que um dos momentos da pesquisa jurídico-científica é o da sistematização das normas jurídicas, afirmando que é a ciência do direito que ergue o sistema[10], descrevendo as relações entre os comandos, com o objetivo de reduzi-los a uma unidade inteligível[11], desligando o conceito de norma jurídica do de norma moral, convertendo a norma jurídica em proposição jurídica[12].
Afirma que a proposição jurídica tem por missão conhecer a norma, nada podendo prescrever. É um juízo, não regulamenta a conduta humana. Diz que as normas jurídicas são estabelecidas por atos volitivos das autoridades, ao passo que as proposições são formulações lógicas feitas pela ciência do direito e utilizadas para descrever as normas[13].
Kelsen ensina que uma norma tem sua origem em outra e dá lugar a outra ao ser aplicada à realidade[11] (critério da pertinencialidade). A norma fundamental, proposição mais geral e abstrata e que não provém de qualquer outra, comporta-se como forma lógica cuja variável está quantificada universalmente a fim de que dela, por substituição, se tirem as incontáveis proposições normativas individuais que recobrem a concrescência dos casos da vida social.
Antes da norma fundamental está o meramente factual, que ainda não se juridicizou, o dogmaticamente irrelevante. Sociologicamente, é suporte fático que condiciona a proposição fundamental; formalmente, é a proposição fundamental que juridifica o dado-de-fato.
O suporte factual do Direito é, portanto, uma série de fatos normativamente qualificados como constitutivos ou desconstitutivos de relações ou situações jurídicas. O “modo-de-referência” às situações objetivas é sua relação semântica. O modo como se inter-relacionam, como proposições, é sua relação sintática[14][12].
Entretanto, Vilanova adverte: referida sistematização do Direito cuida-se de processo inacabado, decorrente da racionalização do complexo cultural[13]. Aduz que o sistema estaria apenas no nível da linguagem da ciência do direito; já o sistema do Direito positivo, não passaria de imperfeita construção normativa, diferente de uma construção teorética ou epistemológica, já que proveniente de um ato de vontade e não de um ato cognoscitivo[15].
2.1. DO FECHAMENTO DO SISTEMA
Pode-se dizer que na proposição normativa fundamental temos a propriedade do fechamento, sendo a normatividade o pressuposto desta homogeneidade.
De acordo com a Teoria Pura do Direito, a norma No funciona como a última no regresso ascendente[14]. Trata-se de pressuposto gnoseológico, hipótese lógica indispensável para que a ciência jurídica possa considerar o direito como um sistema de normas válidas. É metajurídica, já que pressuposta ao pensamento jurídico[16].
De acordo com Larenz, kelsen considera a norma fundamental como uma hipótese científica, não sendo norma jurídica positiva, já que não foi “posta”, mas sim pressuposta pela ciência para poder interpretar como Direito o material empírico que lhe vem dado[17].
Nesse sentido, o que interliga proposições normativas tão variadas em conteúdo é o “fundamento-de-validade” que cada uma tem no todo, de modo que uma norma só pertence ao sistema se pudermos reconduzi-la à fundamental[18]. A unidade do sistema jurídico é, portanto, formal. Não provém da homogeneidade de uma região de objetos.
Para Vilanova, contudo, o Direito positivo já contém certo quantum de unidade, bem como a mutação histórico-social do Direito leva a um certo quantum de homogeneidade, um “sobresistema”[15]. Mas, ressalva que o sistema jurídico é aberto e está em intercâmbio com os subsistemas sociais econômicos, políticos, éticos etc, razão pela qual não poderia ser científico ou formal, ou mesmo real (empírico), cujos modelos não toleram a inconstância ou a incompatibilidade contraditória entre enunciados[19].
Com efeito, o que se mostra na experiência é a existência de contradições entre as proposições normativas, somente elimináveis por critérios extralógicos, como o critério da hierarquia, o da temporalidade ou mesmo da especialidade da norma; ou seja, apenas de acordo com a vontade do legislador[16]. Se o sistema de Direito positivo fosse científico, aduz Vilanova, necessariamente seguiria a lei lógica de não-contradição.
Temos que a completude e a consistência são propriedades formais de um sistema. Aquela funda-se na lei de exclusão de terceiro, esta, na lei de não-contradição. Para identificar-se a completude no ordenamento jurídico, Lourival, na linha do pensamento kelseniano, aduz que teríamos de verificar a existência de uma única fonte de normas (a estatal), bem como a existência de uma ideologia conservadora do movimento social, de modo que este se fizesse dentro de vias pré-traçadas pelas normas, ou que a mudança social fosse tão lenta que o ordenamento pudesse prever as soluções cabíveis[20].
Kelsen admite a permanência de conflitos contraditórios no sistema normativo, alegando que isso decorre do fato de existirem vários focos de irradiação normativa, emitidas em tempos diversos, por legisladores também diversos e ante circunstâncias que mudam. Justifica a sistematização do Direito, por sua vez, no fato de as proposições normativas não se conduzirem pelo critério lógico de veracidade, mas sim pelo da validade.[17]
Tratando-se de sistema homogêneo de proposições prescritivas, não é permitido ao ordenamento jurídico acolher normas e leis teoréticas, o que não o impossibilita de converter tais leis lógicas em conteúdo de regra jurídica[21]. Assim, seguindo o raciocínio dos autores, existem duas vias para eliminar as contradições normativas: uma dada pelo próprio sistema[22], outra pela ciência jurídica[18].[23]
Do ponto de vista da ciência do direito, um sistema jurídico é completável por recursos normativos do próprio sistema, mas também requer recursos sociológico, políticos ou filosóficos – juízos de valor que comumente designamos por expressões como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc[24]. Assim, se o caso concreto não se aloja inteiramente em norma geral, por conter um novum inesperado e imprevisível, como o juiz não pode deixar de julgar, emite norma individual, fundado em algum tipo de argumento, ou saca princípio geral implícito no sistema para construir a norma individual[25].
Contudo, sob a ótica do Direito positivo, nada pode-se dizer sobre sua validade e verificabilidade, exceto se o próprio Direito abarcasse tais normas metajurídicas. Mas, neste caso, estas já configurar-se-iam como normas de Direito positivo[19].
Já do ponto de vista da completude firmada pelo próprio ordenamento, poderemos concebê-la seguindo dois caminhos: pelo primeiro, o sistema está completo porque nem tudo entrou em sua órbita, já que seletivamente o sistema separou. Em outras palavras, o não-jurídico é, aqui, o juridicamente inexistente, irrelevante, de modo que o sistema estaria completo com a porção de fatos selecionados pelo sistema como relevantes.
Pelo segundo caminho, partimos do pressuposto de insuficiência e inevitável descompasso do sistema normativo perante o mundo dos fatos naturais, compreendendo a manifesta incompletude do Direito positivo e que o legislador é um emitente de normas contextualmente situado e limitado. Nestes termos, a teoria da completude resulta numa exacerbação de logicismo, uma tentativa vã de equiparar o sistema de normas com sistemas formais.
Vilanova chama-nos a atenção para o fato de que colocar o ordenamento jurídico sob uma perspectiva sistemática, como sistema de proposições deônticas, não implica negar a História e a Sociologia dos ordenamentos, tão-somente devendo colocá-los metodologicamente fora de foco[26].
Ora, para uma análise da completude sintática, observamos o sistema sem dele sair. No entanto, a completude semântica é propriedade relacional entre o sistema e a realidade social, o universo da conduta humana, que é uma série quantitativamente indeterminável e qualitativamente inexaustiva. Nem tudo desse universo poderá estar como “termo-de-referência” do sistema normativo[27]. O sociólogo vê o descompasso inevitável entre o sistema e a realidade. O político também observa o hiato. Para as duas perspectivas, o Direito positivo é insuficiente.
A ciência do Direito não pode explicar como a decisão do juiz (norma individual), para julgar o caso inédito, tenha validade, sem existir a proposição normativa geral supra-ordenada, se não fizer a constrution: ir ao sistema global e subsumir a norma individual de decisão inovadora, dentro do sistema[28]. Sem essa construção jurídico-dogmática, a decisão inovadora constituir-se-ia em hipótese de ilicitude, convertendo-se num caso de antijuridicidade, ou, então, não produziria efeitos. Pressuposto desta construção é que o sistema confira competência ao juiz para criar norma individual sem relação lógica de subalternação a uma proposição normativa geral.
2.2. DO JUÍZO JURÍDICO NEGATIVO
Lourival Vilanova toma o dever-ser kelseniano e conforma-o como functor ou operador deôntico, interligando não só pressuposto e conseqüência, mas os sujeitos da relação jurídica, qualificando as condutas em proibidas, obrigatórias ou permitidas.[20] Considera, portanto, operador relacional que se triparte para dar conta das possibilidades de conduta juridicamente relevantes[29].
O functor de permissão, ressalte-se, é multilateral quanto aos possíveis conteúdos da conduta, mas bilateral porque reduz-se à dual possibilidade de fazer ou omitir. E, dizendo em teoria formal dos conjuntos, o conjunto dos atos permitidos é o conjunto complemento formado pelas condutas que não pertencem ao conjunto dos atos proibidos ou dos obrigatórios.
A doutrina ainda distingue a permissão como modo deôntico, hipótese de previsão expressa de uma permissão pelo ordenamento, e como modalidade factual, à margem do Direito[30]. Seguindo este raciocínio, tem-se chegado à tese de que, se inexiste norma geral proibitiva, ou obrigatória, ou permissiva, tendo o juiz de julgar qualquer caso controvertido, seu ato meramente emitiria um juízo jurídico negativo[31], remetendo a conduta a uma área de liberdade de fato, um espaço juridicamente indiferente – o que não confere, portanto, poder, no sentido do direito subjetivo.
Lourival Vilanova aduz que o ordenamento não fica indiferente à forma relacional de conduta, mas confere faculdade de ação ou omissão no que as normas não proibirem ou ordenarem. Assim, norma jurídica existe, expressa ou tácita, que nos concede a permissão e obriga os demais a respeitar o direito[21].
Neste ponto em que se analisa a “lacuna” no Direito, os autores aduzem que não é logicamente impossível a aplicação da ordem jurídica vigente, no que há uma interpretação com base no conjunto das disposições legais pertencentes ao mesmo, o que não é possível, apenas, é aplicar uma norma jurídica singular nos casos omissos pelo legislador[32].
Kelsen afirma que quando a aplicação da ordem jurídica é, segundo a concepção ético-política do tribunal, insatisfatória no caso sub judice, a Corte pode decidir com base em sua livre apreciação. Entretanto, ressalva, isso poderia conferir ao órgão um poder demasiado extenso. A tentativa de limitar esta atribuição, contudo, esbarra no fato de o legislador não poder prever tais casos, afinal, se o pudesse, regulá-los-ia positivamente.
2.3. DA INTERPRETAÇÃO
Nesse diapasão, temos que, no momento da aplicação do Direito, a interpretação ocorre no progredir de uma norma superior para uma inferior (da Constituição para as leis ordinárias, ou da lei para a sentença judicial). Trata-se de uma relação de determinação ou vinculação: a norma do escalão superior determina não só o processo em que a norma inferior é posta, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou o ato de execução a realizar[33].
Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma superior não pode vincular em todas as direções o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato, sendo conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro desta moldura em qualquer sentido possível.
Assim, quer se trate de um ato criação jurídica ou de pura execução, é, em parte, determinado pelo próprio Direito e, em parte, indeterminado. Esta indeterminação pode ou não ser intencional por parte do legislador – como no caso das palavras que carregam em si uma pluralidade de significações[22]. A indeterminação pode, ainda, ser conseqüência do fato de duas normas, que se pretendem valer simultaneamente, contradizerem-se total ou parcialmente.
Segundo afirma Kelsen, a jurisprudência tradicional crê ser lícito esperar da interpretação não só a determinação da moldura para o ato jurídico a pôr, mas também um método que torne possível preencher ajustadamente a moldura prefixada, como se o órgão aplicador apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), e não sua vontade, para realizar uma escolha correta, justa[34].
Aduz que a opção de escolha entre as possibilidades que se apresentam como “corretas”, não é uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas sim de política do Direito.
Da mesma forma que, a partir da Constituição, através da interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, obter as únicas sentenças corretas. Decerto, existe uma diferença entre estes dois casos, mas é uma diferença somente quantitativa, e não qualitativa, que consiste apenas em a vinculação do legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais reduzida do que a do juiz, já que aquele tem maior liberdade de criação.
Não há qualquer critério científico com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura a aplicar possa ser preferida à outra. Apesar de todos os esforços da jurisprudência tradicional, não se conseguiu até hoje decidir por uma forma objetivamente válida. Todos os métodos de interpretação conduzem a um resultado apenas possível[23]. Os habituais métodos do argumentum a contrario e da analogia, por exemplo, conduzem a resultados opostos e não há qualquer critério que permita saber quando deva ser empregado um e quando deva ser utilizado o outro.
De acordo com Lourival Vilanova, o formal jurídico do sistema normativo não está no fato de que da norma fundamental poder-se-ia sacar proposições por inferência, e assim subseqüentemente. Não se trata de um sistema formal-lógico dedutivo, se o fosse não constariam, no seu vocabulário, constantes factuais[24]. O que tem de formal é a estrutura de linguagem, a composição sintática interior. O quantum interpretativo que contém é o “ser normativo”[35][25].
Para os autores, a decisão jurídica vai além de uma mera dedução silogística, porquanto a norma individual da sentença ultrapassa o âmbito da premissa maior, contendo conotação referencial nova[26].
Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar ao aplicador uma pluralidade de decisões a tomar, as quais dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não poderia prever. De modo geral, na interpretação do Direito pelos órgãos aplicadores, a atividade cognoscitiva combina-se com um ato de vontade em que o aplicador efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas.
A interpretação feita pelo órgão aplicador, neste sentido, é sempre autêntica. Cria direito, ainda quando crie apenas para um caso concreto[36]. Importa notar que, pela via de interpretação autêntica, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também pode-se produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma representa.
A lógica jurídica, portanto, não é capaz de determinar o conteúdo da proposição decisória, tratando-se de tema extralógico, no que importa consulta à experiência e uma tomada de contato com o sistema social[37]. Não lhe compete qualificar normativamente o dado, muito menos dizer qual é a justa decisão proveniente da subsunção do fato ao tipo normativo. Não cabe à lógica jurídica decidir quando se empregue a inferência indutiva, ou a análoga, ou a via do argumento a contrario sensu, que é problema nitidamente extralógico.
O juiz preenchendo os interstícios da regra geral saturando, está continuando o processo de autocriação do Direito, com os dados de fato sociais, políticos, econômicos, que a circunstância concreta lhe oferta[38]. O juiz, das premissas aplicáveis, valora e escolhe a mais justa, mais conveniente e oportuna.
Apesar da completude semântica ser uma tentativa frustrada, não impossibilita o aplicador de julgar[27]. Ou este julga a partir de regra geral, criando a individual, ou julga sem aquela. Participa, portanto, da produção normativa devido à sua competência atribuída pelo próprio sistema normativo. É próprio ordenamento autocompondo-se, autointegrando-se, ou autocompletando-se. O sistema qualifica-o e habilita-o para construir regra ad hoc. Sem tal norma, estaria indo contra ou praeter legem.
Vilanova ressalta que somente em aparência o ordenamento é algo já feito e concluso. Ele é algo se fazendo. O Direito, como totalidade em movimento, em rigor é incompleto, mas potencialmente integrável, tem “completabilidade”[28].
O fechamento apenas exprime a continuidade normativa, a sucessividade dos níveis de proposições deônticas do sistema, que dever-ser provém de dever-ser. Não que seja completo por sua referência ao universo de conduta humana. Empiricamente é a Sociologia; filosoficamente, é a Ontologia da conduta, que dá a solução positiva ou negativa. Não a lógica.
REFLEXÕES FINAIS
O Direito não existe estaticamente. A mutação das circunstâncias históricas determina a alteração dos sentidos objetivos das normas jurídicas. A despeito da vontade do legislador, o judiciário, inevitavelmente, tenderá a contemporanizar o Direito[29], mediante um crescente processo de criação normativa. Não se visualiza a possibilidade do nosso Poder Judiciário simplesmente ignorar os fatos do mundo real e tentar alcançar um raciocínio cartesiano e reducionista da complexidade do problema[30].
Vilanova ressalta que somente em aparência o ordenamento é algo já feito e concluso. Ele é algo se fazendo. O Direito, como totalidade em movimento, em rigor é incompleto, mas potencialmente integrável, tem completabilidade.
A conduta juridicamente regrada é um corte abstrato de uma projeção objetiva que submerge suas raízes na estrutura total do homem. Não existe de um lado o homem e do outro o saber científico, a moral, o Direito, a religião. Matéria e forma são conceptualmente separáveis, mas dialeticamente inter-relacionadas na composição do ser integral do homem.
O próprio Kelsen adverte que se de uma mão, as democracias parlamentares concedem segurança jurídica ao ordenamento, a sua falta de flexibilidade na produção de normas individuais acarreta dificuldade de adaptação do Direito às circunstâncias da vida em constante mutação[39].
No que tange ao caso prático ora abordado, observa-se que a descontextualização do direito brasileiro vigente relativamente à matéria não somente foi gerada em decorrência da evolução das concepções sociais, mas, principalmente, devido à limitação do legislador em prever e abordar toda a complexidade empírica e jurídica apresentada na problemática.
Como fora exposto, é possível conceber uma interpretação benéfica à gestante, eventual denunciada num processo crime, pressupondo uma combinação dos motivos autorizadores das duas espécies de excludente da ilicitude: a necessidade de tutelar a integridade física e, principalmente, mental da gestante e a sensibilização à sua difícil situação de gerar um ser inviável e, talvez, que sequer possui uma vida humana.
Considerando uma suposta omissão do legislador para a presente hipótese, e, em conformidade com o posicionamento de Lourival Vilanova, norma jurídica existe, expressa ou tácita, que nos concede a permissão e obriga os demais a respeitar o direito.
No ponto em que se analisa a “lacuna” do Direito, Vilanova e Kelsen aduzem que não é logicamente impossível a aplicação de ordem jurídica vigente, no que há uma interpretação com base no conjunto das disposições legais pertencentes ao mesmo, não sendo possível, apenas, aplicar uma norma jurídica singular nos casos omissos pelo legislador.
Sustentam que, se inexiste norma geral proibitiva, ou obrigatória, ou permissiva, tendo o juiz de julgar qualquer caso controvertido, seu ato meramente emitiria um juízo jurídico negativo, remetendo a conduta a uma área de liberdade de fato, um espaço juridicamente indiferente.
A descendência da norma superior à inferior significaria duas coisas: aplicação da norma superior e criação de Direito, produção de norma inferior. Mas, como a norma superior não pode determinar totalmente todas as direções do ato de criação e execução da norma inferior, sempre deixa margem de livre arbítrio, de modo que a superior será somente um marco a ser preenchido pelo ato[40].
A lógica jurídica não é capaz de determinar o conteúdo da proposição decisória, tratando-se de tema extralógico, no que importa consulta à experiência e uma tomada de contato com o sistema social.
O juiz preenchendo os interstícios da regra geral saturando, está continuando o processo de autocriação do Direito, com os dados de fato sociais, políticos, econômicos, que a circunstância concreta lhe oferta. Neste processo, valora e escolhe a mais justa, mais conveniente e oportuna.
Assim, deve-se evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação “correta” – ficção que se serve a jurisprudência tradicional para tentar consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação das normas, este ideal somente é realizável aproximativamente.
A opção de escolha entre as possibilidades que se apresentam como “corretas”, não é uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas sim de política do Direito. Não há qualquer critério científico com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura a aplicar possa ser preferida à outra. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar ao aplicador uma pluralidade de decisões a tomar, as quais dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não poderia prever.
Justa, portanto, seria a decisão de um caso concreto somente quando tomasse em consideração todas as particularidades do mesmo caso. Contudo, considerando tal perspectiva inviável, dá-nos a seguinte solução: “(…) se o órgão, perante o qual se apresenta o caso, deve proferir decisão justa, ele somente o poder fazer aplicando norma geral que considere justa”. Do que se depreende o processo de auto-composição e auto-integração do Direito[41].
Mestra em Teoria do Direito no PPGD da Faculdade de Direito do Recife/UFPE. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Analista Judiciária do TJPE
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