Marcelo Lannes[1]
Resumo: Devido à possibilidade de o material genético ser utilizado para realizar a fertilização e inseminação artificial, visando a geração de um herdeiro após a morte de seu doador, surgiu a discussão sobre a possibilidade e os efeitos legais desse procedimento. Os argumentos apresentados por alguns encontra fundamento na possibilidade e consequente legalidade da utilização do material genético, fundamentado em autorização irrevogável daquele doador, deixando de observar que a morte traz efeitos civis, que não podem ser ignorados. Neste trabalho, pretendemos demonstrar os efeitos civis da morte quanto ao patrimônio genético.
Palavras-chave: Fertilização. Bioética. Privacidade Genética. Acervo Genético. Direito da Personalidade. Patrimônio Genético. Direito Fundamental. Gene Humano. Biodireito. Acervo Genético. Espólio. Sucessões. Fertilização in vitro. Fertilização post mortem.
Abstract: Due to the possibility of genetic material being used to carry out fertilization and artificial insemination, aiming at the generation of an heir after the death of its donor, a discussion arose about the possibility and the legal effects of this procedure. The arguments presented by some assume that it is possible and legal to use genetic material, based on the fact that the simple donation would already be an irrevocable authorization, failing to observe that death has civil effects, which cannot be ignored. In this work, we intend to demonstrate the civil effects of death in terms of genetic heritage.
Keywords: Fertilization. Bioethics. Genetic Privacy. Genetic Collection. Personality Law. Genetic Heritage. Fundamental right. Human gene. Bi-right. Genetic Collection. Booty. Successions. In vitro fertilization. Post-mortem fertilization.
Sumário: Introdução. 1. Conceito de Patrimônio Genético – Direito da Personalidade. 2. Efeitos Jurídicos do Evento Morte – Fertilização Póstuma – Requisito e Possibilidade. Conclusão. Referências.
Introdução
Devido aos avanços tecnológicos casais tem optado pela paternidade somente após a realização profissional, uma vez que a vontade de ter filhos não guarda mais limites biológicos severos. Assim, podemos observar que o projeto de ter filhos tem sido adiado ou mesmo retomado, com frequência, em idade avançada.
Nesse caso é comum que durante os procedimentos preparatórios para realização da fertilização in vitro, com o objetivo da inseminação artificial, um dos doadores venha a óbito, permanecendo o material genético preservado para posterior inseminação. Esta utilização de material genético em momento posterior à morte do doador, seja ele do sexo masculino ou feminino, gera efeitos jurídicos, inclusive os sucessórios.
Ao nos debruçarmos sobre o tema observamos que parte da doutrina tem admitido a possibilidade de utilização desse material, com a autorização prévia do falecido2, fundamentados no artigo 1.597, III, IV e V do Código Civil, enquanto que em outras oportunidades decidiu-se pela desnecessidade de autorização, uma vez que a simples doação do material genético3 já caracterizaria a devida autorização.
Deste ponto é que pretendemos examinar os efeitos da morte de doador do material genético em relação à autorização para o uso, confrontando sua perpetuidade prevista no artigo 1.597 do Código Civil com a extinção do vínculo conjugal, extinção do poder familiar, resolução dos contratos de serviços e dos mandatos e procurações e outros casos diante do falecimento.
O Patrimônio Genético de um indivíduo se caracteriza pelo conjunto biológico formador da sua identidade, passível de ser observado através da análise de seu DNA e que compõe parte da personalidade. Esse conjunto único é protegido pela Constituição Federal e reconhecido o direito do indivíduo à sua privacidade genética, sendo vedada sua divulgação ou mesmo obtenção sem a devida autorização.
Em algumas oportunidades o Supremo Tribuna Federal – STF já se manifestou sobre a natureza jurídica do material genético. Destaca-se a Repercussão Geral sobre a obrigatoriedade de coleta de material biológico para obtenção do perfil criminal, na execução penal por crimes violentos, assim fundamentada:
“Os limites dos poderes do Estado de colher material biológico de suspeitos ou condenados por crimes, de traçar o respectivo perfil genético, de armazenar os perfis em bancos de dados e de fazer uso dessas informações são objeto de discussão nos diversos sistemas jurídicos.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já́ se debruçou sobre a questão em algumas oportunidades.
…
De tudo se extrai o reconhecimento de que as informações genéticas encontram proteção jurídica na inviolabilidade da vida privada – privacidade genética.
No caso brasileiro, a Lei 12.654/12 introduziu a “coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético”, em duas situações: na identificação criminal (art. 5o, LVIII, CF, regulamentado pela Lei 12.037/09) e na execução penal por crimes violentos ou por crimes hediondos (Lei 7.210/84, art. 9-A).
Cada uma dessas hipóteses tem um regime diferente. Na identificação criminal, a investigação deve ser determinada pelo juiz, que avaliará se a medida é “essencial às investigações” (art. 3o, IV, combinado com art. 5o, parágrafo único). Os dados poderão ser eliminados “no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito”.
Os dados dos condenados, por outro lado, serão coletados como consequência da condenação. Não há previsão de eliminação de perfis.” (RE 973837 RG, Relator: Min. GILMAR MENDES, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-217 DIVULG 10-10-2016 PUBLIC 11-10-2016, grifos diferentes do original)
Anteriormente a Corte Suprema já havia traçado os parâmetros do conceito de material genético, durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 35104 sob a Relatoria do Ministro Ayres Britto, ao examinar a Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), caracterizando que “o embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição…”.
Não existe em nosso ordenamento jurídico uma legislação específica que regule o tema do Patrimônio Genético, sendo este encarado como parte do Direito da Personalidade de acordo com os ensinamentos do Professor Naves[6]:
“Já se afirmou que os direitos de personalidade congregam os diversos aspectos da pessoa humana, consistentes em bens que guarnecem a própria personalidade. São direitos considerados tradicionalmente como necessários, vitalícios, indisponíveis, extrapatrimoniais e intransmissíveis.
Há perfeita correspondência entre os dados genéticos, a definição e as características dos direitos de personalidade. Aqueles são informações vitais para o desenvolvimento da vida humana; são necessários, já que toda a matéria viva é regida, biologicamente, pelas informações de seus genes; são vitalícios, pois se constituem em bens que acompanham o curso da vida humana; são indisponíveis e intransmissíveis, pois sua disposição ou transmissão implicaria na cessação da vida de seu titular; e, por fim, são extrapatrimoniais, devido à impossibilidade de avaliação econômica, por isso são considerados bens fora do comércio.
Se os direitos de personalidade são bens definidores da própria pessoa, por isso projeção jurídica do ser, os dados genéticos encaixar-se-iam perfeitamente nessa categoria.
Logo, a proteção oferecida aos direitos de personalidade deve ser utilizada também na garantia das informações genéticas humanas. E, pela gravidade e extensão da ofensa, deve-se sempre preferir a tutela inibitória, isto é, a tutela preventiva pela qual se evita a concretização de um ato ilícito que ainda se encontra em potência. É a proteção da mera ameaça a direito e que, no que se refere aos dados genéticos, pode se dar de maneiras variadas.”
Os avanços tecnológicos impulsionam a ciência do Direito, que hoje deve considerar como parte da personalidade a genética do indivíduo, conferindo-lhe proteção similar àquela. Não se trata apenas de dados simples, obtidos da análise celular com. extração do DNA, mas da própria essência humana que diante de inúmeras combinações possíveis gerou um indivíduo, com características únicas.
Caracterizado o conceito de Patrimônio Genético como parte da Personalidade do indivíduo e, portanto, passível de proteção, devem ser analisados os efeitos jurídicos decorrentes da morte daquele doador que em algum momento deu início a um projeto de paternidade.
O projeto de paternidade que se admite para fins pedagógicos é aquela promessa realizada entre dois sujeitos, de qualquer sexo, em plena capacidade civil, ou seja sem restrições legais quanto a capacidade de contratar e agir.
Em análise superficial temos o disposto no artigo 1597 e seus incisos do Código Civil Brasileiro que parte da doutrina interpreta como permissivo legal para utilização de material genético para fins reprodutivos em momento posterior à morte do doador, desde que tenha prévia autorização, e, caminhando neste sentido temos a Resolução 2168/2017 do Conselho Federal de Medicina que assim dispõe:
VIII – REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST-MORTEM
É permitida a reprodução assistida post-mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente.
A jurisprudência brasileira não se debruçou sobre o tema, havendo decisões que permitem a utilização de material genético desde que exista autorização prévia e decisões que não o permitem fundamentado na violação do princípio da autonomia da vontade[7].
Os casos até então estudados estão baseados na existência ou não de autorização prévia. Não importa de que modo essa autorização tenha sido concedida, desde que tenha sido prévia, o que denota um privilégio legislativo concedido à promessa de constituição do núcleo familiar realizada no ato da doação de material genético.
Devemos falar em privilégio, pois a Lei não confere tal benesse à procuração outorgada a advogados por exemplo, ou mesmo ao próprio casamento. O artigo 6º do Código Civil preconiza que “…a existência da pessoa natural termina com a morte…”, e Maria Helena Diniz assim nos ensina:
“Morte real: Com a morte real, cessa a personalidade jurídica da pessoa natural, que deixa de ser sujeito de direitos e obrigações, acarretando: a) dissolução do vínculo conjugal e do regime matrimonial (Lei n. 6.515/77; CC, art. 1.571, b) extinção do poder familiar (CC, art. 1.635, I); dos contratos personalíssimos, como prestação de serviço (CC, art. 607), e mandato (CC, art.682, II; STF, Súmula 25); cessação da obrigação de alimentos com o falecimento do credor (RJTJSP, 82/38; RT, 574/68; CC, art. 1.700); do pacto de preempção (CC, art. 520); da obrigação oriunda de ingratidão do donatário (CC, art. 560); e d) extinção de usufruto (CC, art. 1.410, I; CPC, art. 725, VI); da doação em forma de subvenção periódica (CC, art. 545); do encargo da testamentaria (cc, art. 1.985).” (Código Civil comentado / coordenadora Regina Beatriz Tavares da Silva – 10. Ed. – São Paulo, 2016. Vários Autores p. 84)
Por certo que, na dúvida, devemos privilegiar a possível geração de uma vida, contudo devemos observar que o evento morte cessa qualquer compromisso firmado, interrompe planos e destrói famílias.
Relativizar o falecimento daquele doador que prometeu constituir família, ou mesmo ter filhos pode ser feito no campo da filosofia, mas não resiste ao cruel cotidiano do cônjuge sobrevivente. Nesta esteira podemos citar parte do voto condutor do Ministro Ayres Britto na já citada ADI 3510:
“Mais claramente falando: o recurso a processos de fertilização artificial implica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher produtora dos óvulos afinal fecundados? Todos eles? Mesmo que sejam 5, 6, 10? … Minha resposta, no ponto, é rotundamente negativa. Não existe esse dever do casal, seja porque não imposto por nenhuma lei brasileira ( “ninguém será́ obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, reza o inciso II do art. 5o da Constituição Federal), seja porque incompatível com o próprio instituto do “planejamento familiar” na citada perspectiva da “paternidade responsável”. Planejamento que só́ pode significar a projeção de um número de filhos pari passu com as possibilidades econômico-financeiras do casal e sua disponibilidade de tempo e afeto para educá-los…”
Nesse tocante podemos asseverar que a morte de um dos doadores extingue a sua obrigação, não sendo crível que os efeitos daquela promessa perdurem, uma vez que não existe paternidade responsável em inseminação artificial póstuma. O planejamento familiar não se sustenta após a morte, não havendo que se falar em perpetuidade de projeto familiar.
Falecido um dos promitentes genitores, o sobrevivente não poderá alegar a possibilidade de concretização de projeto familiar póstumo, posto que este implicaria em paternidade ou maternidade individual, cuja responsabilidade, manutenção e conclusão difere em muito daquela prevista no projeto a dois.
Neste aspecto devemos questionar o cônjuge sobrevivente que pretende utilizar o material genético do falecido para gerar descendente, fundamentado na manutenção de projeto familiar. Na tentativa de realizar o projeto de paternidade ou maternidade póstuma poderia também ser relativizada a dissolução do seu vínculo conjugal, negando vigência ao artigo 1.571 do Código Civil fundamentada na manutenção da família? Por certo que a resposta seria negativa, pois não se permanece casado com pessoa falecida.
O artigo 1.597 do Código Civil, com sua atual interpretação – por parte da doutrina e da jurisprudência – concede privilégios aos filhos que venham a ser gerados por inseminação artificial, que serão reconhecidos por mera autorização prévia, e discrimina aqueles filhos havidos fora do casamento que somente serão reconhecidos caso haja escritura pública ou particular desde que arquivada em cartório ou mesmo testamento como previsto no artigo 1.609, II e III do Código Civil.
Por outro lado, os contratos de serviço assinados pelo falecido doador podem ter sua validade relativizada em nome de uma eventual continuidade da vida, negando vigência ao artigo 607 do Código Civil? Por certo que a resposta é negativa mais uma vez. Deste modo há de se questionar o motivo pelo qual o laboratório ou profissional médico irá honrar contrato de fertilização em momento póstumo, sem ao menos questionar a existência de herdeiros, testamenteiros ou inventariantes.
Um advogado pode entender que a procuração que lhe foi outorgada continuará vigente, apesar da morte do outorgante? Claro que não, inclusive pela ausência da capacidade de ser parte, uma vez que a existência da pessoa natural termina com a morte. Como argumento de autoridade ressaltamos preciosa lição de Caio Mário preconizando que “como toda relação jurídica, a que se origina do mandato cessa nos casos que a lei menciona, oriunda de três ordens de causas: a vontade das partes, o acontecimento natural, o fato jurídico. São eles: a revogação, a renúncia, a morte, a mudança de estado, a terminação do prazo, a conclusão do negócio…” (Instituições de Direito Civil, 10 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 262-3).
No que se refere à procuração outorgada a advogado, devemos imaginar a seguinte hipótese. Um casal se dirige a uma clínica e realiza uma doação de material genético visando a futura inseminação artificial, contudo, após poucos dias ocorrem desentendimentos e um deles resolve dissolver aquela sociedade, quebrando o projeto familiar. Ato contínuo, procura um advogado e contrata seus serviços para dissolução da sociedade conjugal, assinando a respectiva procuração. Porém, logo em seguida ocorre o óbito desse cônjuge. Nessa hipótese, o advogado estaria impedido de protocolar a ação de divórcio, posto que sua procuração não possui efeitos, já o cônjuge sobrevivente poderia prosseguir com o projeto de paternidade por ser válida a autorização assinada junto a clínica médica.
Prosseguindo no exercício ficcional teríamos a hipótese de um filho gerado posteriormente ao óbito que demanda direitos sucessórios como alimentos, guarda e proteção a serem prestadas não pelo doador, mas pelos herdeiros já existentes.
Neste contexto, devemos pensar que o sucesso do procedimento de fertilização póstumo irá gerar encargos e obrigações superiores à metade dos bens deixados pelo promitente falecido, obrigação esta que não poderia ter sido instituída, nem por testamento como prevê o artigo 1.846 do Código Civil, mas poderá ser instituída pelo formulário preenchido perante o profissional médico na clínica de fertilização.
Diante destas inconsistências devemos interpretar o artigo 1.597 do Código Civil de forma sistêmica e harmônica com os demais dispositivos do Código Civil, como preconiza o artigo 5º da LINDB, observando os ensinamentos de Zeno Veloso:
“Para aplicar a lei (dizer o direito), o juiz terá, antes, de interpretá-la, descobrir não a vontade do legislador, mas a voluntas legis, a vontade atual da lei, o verdadeiro significado, a extensão do seu comando.” (Código Civil comentado / coordenadora Regina Beatriz Tavares da Silva – 10. Ed. – São Paulo, 2016. Vários Autores p. 44)
Para uma interpretação harmônica devemos entender o artigo 1.597 do Código Civil em consonância com o artigo 6º do mesmo diploma legal, observando que a morte daquele doador gerou efeitos civis que extinguem o contrato firmado, a procuração outorgada, e por consequência a autorização concedida, posto não existir mais sociedade conjugal quanto mais projeto de paternidade. Com o advento da morte cessa o fundamento da promessa, não há mais possibilidade de paternidade responsável, é findo o projeto familiar.
Neste aspecto, o material genético, caracterizado como parte da personalidade do cônjuge falecido, apenas poderá ser utilizado para fecundação e posterior inseminação artificial caso esta autorização prévia ocorra através de testamento – único “ negócio jurídico pelo qual uma pessoa dispõe de seus bens, no todo ou em parte, ou faz determinações não patrimoniais, para depois de sua morte.”8.
Nesse caso, a utilização de material genético post-mortem irá acarretar efeitos jurídicos patrimoniais ao espólio semelhantes ao legado de alimentos previsto no artigo 1.920 do Código Civil que somente pode ser instituído por testamento, desde que não comprometa a parte da legítima.
Ressalvado o fato de que instituir legado requer que o legatário tenha, no momento da morte, a propriedade do bem legado – como disposto no artigo 1.916 do Código Civil Brasileiro – e que este não interfira na metade da herança devida aos herdeiros necessários posto que vedado pelo artigo 1.789 do Código Civil como nos ensina mais uma vez Zeno Veloso:
“O testador só pode dispor se tiver tais herdeiros, da metade de seus bens – parte disponível -, pois a outra metade á a legítima, a quota do patrimônio destinada, obrigatoriamente, a esses herdeiros forçados.” (Código Civil comentado / coordenadora Regina Beatriz Tavares da Silva – 10. Ed. – São Paulo, 2016. Vários Autores p. 1.885)
Deste modo, por não se mostrar possível interpretar o artigo 1.597 do Código Civil extensivamente, deve ser condicionada a validade de autorização para fertilização póstuma à presença dos requisitos autorizadores da instituição do legado.
Conclusão
Diante dos avanços da ciência, é certo que o Direito não é capaz de acompanhar as várias facetas das relações pessoais e contratuais de nosso tempo, porém, como sociedade, não podemos permitir que as descobertas científicas anulem as garantias legais que nos caracterizam como sociedade.
Os efeitos civis da morte não podem ser relativizados. Seguindo o entendimento de que deve ser realizada uma fertilização e inseminação artificial visando a geração de um herdeiro de pai morto, fundamentado em autorização dada em vida, teríamos que aceitar a validade de procuração para gerir negócios, ou mesmo permitir que o casamento não se dissolva pois o falecido pretendia permanecer casado.
Por outro lado, ainda que parte da doutrina e da jurisprudência entendam ser possível a utilização de material genético para inseminação póstuma pelo promitente sobrevivente, teremos que responder se esta autorização concedida previamente perante a clinica de fertilização – e alçada à validade do testamente público – não estaria atribuindo aos herdeiros um legado que comprometa mais da metade de seu patrimônio, ante a vedação expressa no artigo 1.846 do Código Civil.
As hipóteses apresentadas parecem esdrúxulas, mas tem como fundamento a relativização dos efeitos da morte, simplesmente aceitando a possível vontade do falecido como imutável. Como sabemos a morte é um evento que interrompe planos, projetos e dilacera famílias, por este motivo temos vasta previsão legal disciplinando a hipótese, não sendo crível que uma pretensão de se formar novo núcleo familiar tenha o condão de superar o inevitável.
Neste quadro caótico em que o Direito tenta disciplinar as novas possibilidades entendemos ser impossível conferir tratamento privilegiado à fertilização e inseminação póstuma ante o casamento e os demais contratos e obrigações.
Não se trata de negar avanços científicos, mas conferir segurança jurídica aos atos da vida civil. É possível utilizar material genético para fertilização póstuma, desde que estejam presentes requisitos legais para validade. Interpretar o artigo 1.597 do Código Civil de forma harmônica e sistemática requer a preservação da vigência dos demais comandos da legislação pátria dentre eles o artigo 6º do Código Civil.
A morte precisa ser encarada sem os disfarces filosóficos pois extingue o poder familiar, vínculo conjugal, contrato de serviços, mandatos e procurações, usufrutos, suspende processos judiciais e na seara penal extingue a punibilidade, e por certo torna inexigível autorização concedida no ato da doação de material genético.
Bibliografia
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[1] Advogado – Fundador do Escritório LANNES CONSULTORIA E ADVOCACIA.
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O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
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