Resumo: Considerando a função social dos contratos como inovação incorporada ao direito legislado brasileiro a partir do Código Civil de 2002, o presente estudo analisa esse instituto como reflexo da evolução do pensamento jurídico, que foi positivado através de cláusula geral presente no artigo 421 do novo Código Civil. Constata-se que o tratamento dispensado aos contratos sempre foi de cunho essencialmente individualista, e nessa “nova” visão, trazida pelo estado social intervencionista, passou-se a ter uma maior preocupação com os aspectos sociais e a função exercida pelos institutos jurídicos.
Palavras-chave: Direito Civil. Direito Econômico. Contratos. Regulação Estatal. Função Social. Cláusula Geral.
1. INTRODUÇÃO
Os contratos são instrumentos de inquestionável relevância para a dinâmica social e para a manutenção da estabilidade da ordem econômica. É através desse instituto que os homens firmam negociações visando atender seus interesses e necessidades, criando círculos de interação com outros indivíduos, que movem, de forma bastante ampla, a sociedade.
Dada a proeminência dos contratos na sociedade já foram despendidas diversas configurações jurídicas para este instituto, que são, em geral, reflexo das convicções políticas de determinado contexto histórico.
O tratamento dado aos contratos no direito brasileiro sofreu significativas mudanças desde o Código Civil de 1916, que adotava uma postura eminentemente liberal, até o presente Código Civil, que adotou posicionamentos inovadores em nossa legislação, advindos de uma evolução do pensamento jurídico. A configuração dada atualmente ao direito contratual objetiva um melhor encaixe aos novos anseios sociais, que exigem um maior intervencionismo estatal para a sustentação de garantias constitucionais, como o direito a igualdade, dignidade humana, livre iniciativa e livre concorrência.
O artigo 421, que trata da chamada função social dos contratos, assim como a cláusula geral da boa-fé objetiva presente no artigo 422, e a possibilidade resolução contratual em caso de onerosidade excessiva superveniente (artigo 478) são mecanismos introduzidos no Código Civil vigente como reflexo desse novo tratamento atribuído aos contratos.
Caberá ao presente artigo uma análise mais detida da cláusula geral da função social dos contratos, sua evolução dentro do direito, assim como os limites de aplicabilidade da mesma a partir de uma leitura doutrinária.
2. A ORIGEM HISTÓRICA DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
A positivação da função social dos contratos sob a forma de cláusula geral em nossa legislação é tida com uma novidade trazida pelo Código Civil de 2002. Porém, as bases desse instituto não são, assim, tão recentes. Como expõe Gerson Luiz Carlos Branco (2009), a socialidade e a funcionalidade sempre foram pontos de interesse dentro do cenário jurídico, já o encaixe dessas preocupações no instituto dos contratos, que, somente, era regido por idéias tipicamente liberais, de não intervencionismo, figura no pensamento jurídico desde o final do século XIX.
Voltando um pouco na análise histórica do pensamento jurídico é possível perceber que os ideais iluministas provocaram um rompimento de caráter social e jurídico, ainda no século XVIII. Fundado em um direito racional, esse movimento, que serviu de base de conhecimento para a Revolução Francesa, encontrava "na razão, própria da natureza humana um modelo ideal de justiça e organização do Estado."(BASTOS, 2004, p.179).
A legislação, nesse período, buscava um ordenamento jurídico não opressor e que assegurasse “liberdades” ao povo. Essa liberdade era garantida em vários aspectos e objetivava a proteção dos cidadãos em face do próprio Estado, que em muitos momentos da história já havia se mostrado nocivo aos direitos da população.
O Código Civil francês editado nesse momento histórico era formal e individualista, seguia a linha de pensamento advinda dos iluministas. Concedia, em relação aos contratos, plena liberdade para que as partes definissem os termos do acordo. Posteriormente, esse sistema jurídico formalista se compatibilizou com o liberalismo econômico, que também defendia uma política e um direito que conduzissem a um estado não intervencionista.
É nesse quadro, formado a partir de ideais iluministas e liberais, que se configurou o Código Civil brasileiro de 1916, seguindo claramente esses preceitos, a legislação assegurava o poder sobre propriedade privada de forma absoluta, no âmbito da liberdade contratual a autonomia da vontade era plenamente garantida, as partes livremente se vinculavam, ou não, sob as condições que escolhessem. As limitações eram, em regra, apenas ligadas a vícios relacionados a própria manifestação da vontade, como erro, dolo, coação ou quando, por exemplo, a vontade era emitida por pessoa incapaz, ou, também, se houvessem implicações de ordem formal. Dessa forma, quando o “ato jurídico” não fosse revestido da forma prescrita em lei ou fosse preterida alguma solenidade que a lei considerasse essencial para a sua validade, o contrato, assim como os demais atos jurídicos “latu sensu” eram considerados nulos. Não havia uma preocupação clara com aspectos sociais.
A vontade livre ocupava lugar de destaque no cenário jurídico, se sobrepondo à lei, que, em geral, apenas dava respaldo ao que foi ajustado entre as partes. O instituto dos contratos sempre esteve “de una manera intima” (DUGUIT, 1975, P.221) ligado ao princípio da autonomia. O respeito ao que foi definido pela vontade era garantido de forma irrestrita, como expõe Ricardo da Silva Bastos, "independentemente da realidade das partes, ou das circunstancias específicas que envolviam o contrato, ou das pessoas dos contratantes." Obviamente a segurança jurídica trazida pela legislação, que garantia de forma plena o que foi acordado pelas partes, significou um enorme avanço, porém esse individualismo exacerbado trouxe muitos problemas de cunho social, ligados à disparidade entre os pólos contratantes, e às conseqüências danosas daquilo que muitas vezes foi manifestado a partir da vontade.
Socialmente, aqueles, que também favorecidos pelo sistema capitalista, se destacavam, acabavam sendo também juridicamente privilegiados no ramo contratual, pois tinham um poderio capaz de obrigar os menos favorecidos, que eram tolhidos na autonomia de manifestarem suas vontades.
A legislação não considerava que muitas vezes a vontade não era livre em sua essência. Em algumas situações, que com o avanço do sistema capitalista e do liberalismo foram se tornando mais freqüentes, as partes manifestavam a vontade de contratar em condições desfavoráveis, movidos por necessidades e desejos. A vontade declarada nem sempre é livre, autônoma, mas o sistema jurídico acabava por corroborar esse quadro de desequilíbrio a partir do entendimento de o que foi decidido no contrato foi livremente ajustado.
Essa situação foi ainda mais agravada com as contratações em massa, que tornaram mais evidentes as disparidades que o sistema liberal de regência dos contratos estava causando, nesse momento fez-se necessária a intervenção estatal. Passou-se então a reconhecer a necessidade de uma legislação mais intervencionista, que pudesse propiciar um cenário de maior equilíbrio para a feitura dos contratos, visando suprir, de alguma forma, a disparidade dos pólos contratantes, e, também, garantir a equidade entre as partes. A partir desse novo quadro, a noção de liberdade contratual sem qualquer forma de restrição acabava por se tornar uma justificativa para sobreposição do forte sobre o fraco. (BASTOS, 2004)
O principio da liberdade, que tinha como alicerce a crença de que estabelecia o equilíbrio econômico entre as partes, não sai de cena, apenas ganha novos contornos e limites. A nova tipologia de princípios contratuais sai dessa noção de que “nenhuma força exógena poderia penetrar na economia do contrato.” (PEREIRA, 1982, p. 130)
O dirigismo contratual, termo utilizado para denominar a intervenção estatal no ramo dos contratos, possui dois meios de atuação, como expõe Ricardo da Silva Bastos. Um meio legislativo, através da criação de leis intervencionistas, que são responsáveis por limitar os direitos de forma a compensar desigualdades, e, outro meio, através da atribuição de deveres às partes na condução do processo obrigacional, por meio de cláusulas gerais, como a boa-fé objetiva e a função social dos contratos.
3. OS CONTRATOS E A ORDEM ECONÔMICA APÓS 1988
Como expões Souza (1999) em determinado momento histórico o Princípio da livre concorrência foi entendido como um princípio ideológico sobre o qual o poder público não poderia sequer se manifestar.
Todavia, como aduz o citado autor, a vulnerabilidade de tal entendimento, assim também entendidos todos os demais Princípios relacionados ao liberalismo puro, foi rapidamente demonstrada a partir do domínio do mais forte sobre o mais fraco, o que acabava por afastar ou até mesmo anular a livre concorrência, principalmente no âmbito contratual. (SOUZA, 1999)
Com o advento da Constituição Brasileira de 1988 foi se desenhando novo contorno à Ordem Econômica Brasileira, reflexo das mudanças sociais e políticas “sofridas” pelo país. Naquele momento já predominava o entendimento de que tanto o liberalismo econômico puro proposto por Adam Smith, como o socialismo marxista, eram posições extremas e inadequadas para um Estado com as proporções do Estado brasileiro.
Ficou facilmente demonstrável a tese de que uma omissão total do Estado diante de setores antes tidos como estritamente privados, como os contratos, acabaria por conduzir a resultados trágicos como alta concentração e até mesmo monopolização de determinados setores da economia.
Assim, a Constituição de 1988 em seu art. 170 trouxe dentre seus Princípios não apenas preceitos puramente liberais como a livre concorrência e a livre iniciativa, mas também a sujeição a ditames da justiça social, função social da propriedade e a defesa do consumidor.
No texto Constitucional entre as principais funções estatais delineadas nas disposições a respeito da Ordem Econômica destaca-se, com relação ao contexto ora estudado, a função de agente regulador, que vem ganhando cada vez mais relevância, enquanto, por outro lado, a atuação direta do estado como ente produtor vem perdendo força.
Esse quadro se estruturou não apenas no contexto brasileiro, mas também em diversos outros países. É o que se extraí da obra de autores português:
“Por paradoxal que possa parecer, a redução do peso do Estado-empresário e a liberação de determinados sectores de actividade económica, a que se tema assistido ao longo dos últimos anos em diversos países, têm sido acompanhadas por um alargamento do papel do Estado como regulamentador.” (GONÇALVES, MARQUES, SANTOS, 1999, p. 75)
Desta forma, ciente dos novos contornos constitucionais, a seguir passa-se ao estudo da legislação infraconstitucional a respeito da função social dos contratos, reflexo do fortalecimento da atuação do estado como agente regulador da economia através, também, de sua função normativa.
4 CLÁUSULA GERAL
A forma como legislador brasileiro positivou que os contratos teriam como limite a sua função social foi através da cláusula geral presente no artigo 421 do Código Civil vigente. As cláusulas gerais não se confundem com os princípios, que são normas com largo âmbito de incidência; elas descrevem as situações de maneira genérica, formadas por conceitos vagos, cabendo ao juiz, no caso concreto, definir melhor os limites de aplicabilidade dessa norma.
Cuida-se de um tipo de norma que não prescreve uma certa conduta, como conceitua Humberto Theodoro Junior (2007), mas define parâmetros hermenêuticos. Sendo assim, serve como ponto de referência para a interpretação, oferecendo ao operador do direito, que será responsável pela interpretação, critérios axiológicos e limites para aplicação de outras normas.
A vantagem desse tipo de formulação é sua fácil adaptação a novos contextos, são “normas cuja vagueza de sentido assume a função de integrar e sistematizar as demais normas do sistema.” (BRANCO, 2009, p 143)
Outro aspecto de grande relevância para a aplicabilidade desse instituto diz respeito à existência de uma hierarquia entre princípio e cláusula geral no que se refere à interpretação. Como expõe Fabio Ulhoa “a interpretação desta última não pode contrariar o primeiro.” (2005, p.31)
5. A DIRETRIZ DA SOCIALIDADE
As diretrizes fundamentais, que regem o novo Código Civil brasileiro, como expõe o grande mestre Miguel Reale, são a eticidade, a operabilidade, e, a de maior importância para o presente estudo, a socialidade. Essa exposição do já citado doutrinador é de primordial importância para o entendimento da função social dentro do contexto da legislação brasileira vigente.
Apontado como o segundo princípio utilizado nos trabalhos de elaboração do Código Civil a socialidade marca "a colocação das regras jurídicas num plano de vivência social” (REALE, 1986, p.9). Voltando o enfoque desse princípio para o contrato, que é, por natureza, um instituto individualista, instrumento da autonomia da vontade, do poder de que cada individuo tem de decidir os negócios que irá realizar, não se pode deixar de lado o fato de que o cenário onde os contratos são celebrados e produzem seus efeitos é a sociedade, e sobre ela gera reflexos.
Assim, por ser a sociedade o ambiente aonde o contrato será executado e irá receber uma razão de equilíbrio e de medida, foi estabelecido, nas palavras do mestre Miguel Reale:
“um artigo do Projeto de Código Civil, que me parece muito importante ter presente, no qual se declara que contrato terá de ser analisado em razão de sua função social. É o principio da socialidade governando o Direito Obrigacional. É logo o primeiro artigo, quase que um preâmbulo de todo o direito contratual.“ (REALE, 1986, p.10)
6 DA APLICABILIDADE DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
A função social dos contratos nada mais é que um limite, assegurado através da cláusula geral, à liberdade individual de celebrar contratos. Essa limitação diz respeito ao fato dos contratos trazerem, em muitos casos, implicações sociais, e não apenas inter partes. Essas duas esferas, a liberdade contratual e a socialidade estão em uma constante interação, pois apesar de ser indispensável a existência dessa liberdade para que sejam celebrados os contratos, não se pode abandonar o fato de que terceiros serão afetados e não devem sofrer prejuízos em razão disso.
O contrato é instrumento para o exercício da autonomia da vontade, de suma importância para as relações econômicas, e não pode perder esse sentido. Porém, a cláusula geral da Função Social é reflexo da evolução do direito, das novas necessidades da sociedade, e atinge essa autonomia contratual em três principais pontos: na liberdade de contratar, ou seja, de decidir a respeito da celebração do contrato; na liberdade contratual, que diz respeito ao conteúdo, às cláusulas; e a liberdade de escolha do tipo jurídico (BRANCO, 2009, p. 203).
A limitação à autonomia das partes de livremente ajustarem o contrato visa preservar a sociedade no qual o contrato é firmado. “A função social do contrato serve para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório.” (PEREIRA, 2002, p.13).
Como conseqüência ao descumprimento da cláusula geral da função social do contrato o juiz pode determinar a nulidade desse negócio jurídico, além de indenização por responsabilidade dos contratantes, caso o contrato tenha gerado prejuízos a terceiros. Fazendo uma análise comparativa podemos encontrar o fundamento dessa nulidade, que vai ser determinada em caso de inobservância da função social: se as partes descumprirem o dever de boa-fé objetiva as repercussões serão apenas entre os pólos contratantes, por isso, esse ato ilícito, terá como conseqüência a responsabilidade civil da parte que o causou. Nessa situação não é necessária a anulação de todo o ato, já que é possível a reparação especifica do dano. Já no caso de o contrato não atender a função social o juiz “não pode atender à pretensão do que busca a execução do negócio, por ser ela incompatível com a tutela dos interesses metaindividuais afetados.” (COELHO, 2005, p. 37). Sendo assim, o juiz declara a nulidade do ato e determina o envio dos autos ao Ministério Público para que proceda, caso seja o caso, a responsabilização civil dos contratantes.
7 CONCLUSÃO
A cláusula geral presente no artigo 421 reflete a importância dada pelo novo direito civil às implicações sociais. A prevalência do interesse da coletividade sobre vontades individuais é marcante nesse novo contexto jurídico.
É, porém, importante ressaltar que, apesar desse novo tratamento, os contratos são ainda um instrumento de manifestação da autonomia da vontade, é direito das partes firmarem pactos, e, apesar das limitações em prol da sociedade, a cláusula geral não pode funcionar com um instrumento para descaracterizar a função típica dos contratos.
Sendo a cláusula geral, como já explicitado anteriormente, uma norma aberta que depende do juiz para ser adaptada ao caso concreto, deve, o magistrado, ser bem cauteloso em sua aplicação para que não sirva com um empecilho nas relações econômicas, e sim funcione como um mecanismo de auxilio e evolução dentro da sociedade.
Graduada em Direito pela PUC Minas, Pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo IEC-PUC Minas
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