Autores: Juliana Oliveira Eiró do Nascimento[1] e Ian de Andrade Picanço[2]
Orientador: Klelton Mamede de Farias [3]
Resumo: Este trabalho se dedica a discutir as influências da delimitação de prazo máximo às medidas de segurança na efetivação do Garantismo Integral no sistema penal brasileiro. Atualmente, com a edição Súmula 527 do STJ, as medidas de segurança, que deveriam perdurar até que cessasse a periculosidade do agente, passaram a ter por limite o prazo máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado, sob o argumento de que a Constituição veda expressamente penas de caráter perpétuo no Brasil. Com isso, diversas garantias dos inimputáveis e da coletividade de um modo geral foram gravemente afetadas. Essa pesquisa busca delinear o que é Garantismo Integral, analisar as medidas de segurança e evidenciar de que forma a delimitação de um prazo máximo às medidas de segurança refletem na efetivação do Garantismo Integral no Brasil. Para atingir os objetivos, realizou-se um estudo doutrinário sobre a tese.
Palavras-chave: Criminologia; Garantismo Integral; Medidas de Segurança; Súmula 527 do STJ.
Abstract: This paper is dedicated to discussing the influences of the delimitation of maximum term to the security measures in the effectiveness of the full guarantee in the Brazilian penal system. Currently, with the Súmula 527 edition of the STJ, security measures, which should last until the agent’s dangerousness ceases, are limited by the maximum term of the sentence abstractly linked to the offense committed, under the argument that the Constitution prohibits expressly perpetual penalties in Brazil. As a result, several guarantees of the unimputable and of the community in general were severely affected. This research seeks to outline what Integral Guarantee is, to analyze security measures and to show how the delimitation of a maximum term to security measures reflects in the effectiveness of full guarantee in Brazil. To achieve the objectives, a doctrinal study on the thesis was carried out.
Keywords: Criminology; Integral Guarantee; Security measures; Precedent 527 of the STJ.
Sumário: Introdução. 1. Uma breve análise do Garantismo Integral. 2. Considerações sobre as medidas de segurança. 3. Prazo máximo das medidas de segurança e o garantismo integral. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Desde a importação das teses garantista de Luigi Ferrajoli ao Brasil até os momentos atuais, é possível perceber que, pela falta de compreensão do que realmente é o instituto, a sua aplicação na prática vem ocorrendo de forma desponderada, com o uso de frases prontas e argumentos desarrazoáveis, deturpando totalmente as teses defendidas pelo supracitado autor (FISCHER, 2010).
Por essa razão, o sistema penal tem se afastado cada vez mais do Garantismo Integral, ou seja, aquele que acoberta com seu manto os direitos e garantias de todos com igual rigor, bem como permite uma ponderação proporcional dos direitos fundamentais protegidos constitucionalmente da sociedade como um todo, quando necessário.
No entanto, passou-se a ter um foco tão extremado nos direitos e garantias de uma pequena parcela da coletividade que, além de esquecidos, os direitos e garantias dos demais foram ficando cada vez mais prejudicados, sendo assim grande parte da doutrina e da jurisprudência passou a adotar o que se denomina Garantismo Penal Monocular Hiperbólico (FISCHER, 2010).
A aplicação do referido instituto caracteriza-se pela prevalência de determinados direitos fundamentais do réu em detrimento de outros direitos fundamentais da coletividade, como a segurança, vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, isto, pois a má compreensão do Garantismo e a ausência de uma interpretação sistêmica da constituição tem por consequência a proteção isolada de somente alguns sujeitos pelo manto do Garantismo (FISCHER, 2010).
É nesse diapasão que se insere a problemática do STJ, na Súmula 527, ter delimitado um prazo máximo para as medidas de segurança impostas aos inimputáveis que cometeram fato típico e ilícito, com base na previsão dos artigos 5º, XLVII, alínea b, da Constituição Federal de 1988 e 75 do Código Penal.
Como consequência, tem-se a reinserção de vários indivíduos atestadamente perigosos e irrecuperáveis na sociedade, a fim de que lhes seja resguardados alguns direitos constitucionalmente previstos, contudo, consequentemente, ficam preteridos outros diversos direitos e garantias individuais e coletivas.
Portanto, o presente estudo buscou reunir informações para responder ao seguinte problema de pesquisa: Quais os efeitos da delimitação de prazo máximo às medidas de segurança na efetivação do Garantismo Integral no sistema penal brasileiro?
Com base nesse questionamento, o presente artigo tem como objetivo geral demonstrar como a Súmula 527 do STJ poderia estar afastando o sistema penal brasileiro cada vez mais da efetivação do Garantismo Integral, influenciando diretamente na impossibilidade de alcance das garantias do inimputável e de toda a sociedade.
E, como objetivo específico, analisar o Garantismo de Luigi Ferrajolli, demonstrando como ocorreu a importação das teses garantistas para o sistema penal brasileiro e diferenciando o Garantismo hiperbólico monocular do Garantismo Integral.
Além disso, pretende definir a medida de segurança e a sua natureza jurídica, bem como analisar o prazo máximo da medida de segurança e, por fim, apresentar como a aplicação do prazo máximo às medidas de segurança influência na efetivação do Garantismo Integral no sistema penal do Brasil.
Ademais, visa demonstrar as influências da limitação do prazo das medidas de segurança na proteção de direitos e garantias do inimputável e de toda a coletividade.
Acredita-se que Superior Tribunal Federal, ao delimitar um prazo máximo às medidas se segurança aplicadas no Brasil, baseou-se somente na proteção de alguns direitos e garantias do inimputável, aproximando seus argumentos do Garantismo Penal hiperbólico monocular.
Com isso, supõe-se que o Tribunal Superior deixou de lado outros inúmeros direitos sociais, inclusive garantias constitucionais do próprio inimputável e, consequentemente, afastou-se das importantíssimas premissas formuladas por Luigi Ferrajolli que cobre com o seu manto os direitos individuais e coletivos de um modo geral, criando mais um embaraço para que o Garantismo Penal Integral seja efetivado no Brasil.
Ressalta-se que o problema tem relevância nacional e internacional, visto que a pesquisa visa analisar uma problemática que pode estar afetando diretamente os direitos humanos dos indivíduos no Brasil. Diante disto, a escolha deste tema justifica-se pela análise de como a descabida determinação de prazo máximo às sanções impostas aos inimputáveis poderia se tornar mais um obstáculo para a consolidação do Garantismo Integral no sistema penal, com a vantagem de demonstrar que afastando a aplicação da Súmula 527 do STJ poderia assegurar a efetivação dos direitos e garantias constitucionais de todos os cidadãos integral e sistematicamente.
Vale ressaltar que a presente pesquisa não tem por objetivo argumentar contra a proteção dos direitos e garantias processuais e constitucionais adquiridas pelo inimputável, pois reconhece sua incalculável importância. Na realidade, o que se vislumbra como objetivo é que o manto do Garantismo se estenda para todos integralmente, efetivando tanto os direitos humanos do inimputável como os da sociedade de modo geral.
A metodologia adotada é critico-dialética, com abordagem qualitativa, através do referencial teórico dos princípios constitucionais e processuais penais e da legislação pátria, seguindo pelo exame de conceitos realizado pelo estudo pormenorizado de livros e artigos publicados na literatura e no meio eletrônico, visto que se entende ser o melhor método para atingir os objetivos almejados pela pesquisa.
No momento em que o Estado passou a se organizar por uma espécie de Contrato Social, cada cidadão abriu mão de uma parcela de sua liberdade para uma boa convivência social e o Estado passou a deter o poder punitivo para aqueles que prejudicassem aos interesses sociais (MAGALHÃES, 2010).
Em síntese, os indivíduos, através desse Pacto Social, passaram do Estado de Natureza para um Estado de Sociedade, limitando a vontade individual em prol da vontade da maioria (MAGALHÃES, 2010).
Deste modo, entende-se que os indivíduos somente abriram mão de parte da sua liberdade, pois tinham em vista um suporte coletivo muito maior, com vida digna e alcance da felicidade, com medidas imprescindíveis à preservação humana. Esse seria, em síntese, o fundamento do poder punitivo Estatal (MAGALHÃES, 2010). Contudo, esse poder punitivo estatal, vem sendo reformulado com o passar do tempo, tendo em vista a necessidade de atuação do Estado em cada momento histórico que altera as exigências sociais.
Em um contexto de uma legislação penal emergencial contra atos terroristas, surgem as teses garantista de Ferrajoli, com o marco histórico da obra “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal”, buscando a defesa dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, sobretudo aqueles de liberdade contra as arbitrariedades do Estado (MAGALHÃES, 2010).
Luigi Ferrajolli explica:
El modelo garantista […] presenta las diez condiciones, límites o prohibiciones que hemos identificado como garantías del ciudadano contra el arbitrio o el error penal: según este modelo, no se admite ninguna imposición de pena sin que se produzcan la comisión de un delito, su previsión por la ley como delito, la necesidad de su prohibición y punición, sus efectos lesivos para terceros, el carácter exterior o material de la acción criminosa, la imputabilidad y la culpabilidad de su autor y, además, su prueba empírica llevada por una acusación ante un juez imparcial en un proceso público y contradictorio con la defensa y mediante procedimientos legalmente preestabelecidos (2000, p. 103-104)
Segundo os ensinamentos de Luigi Ferrajoli, a teoria do Garantismo, atualmente equivocadamente interpretada, visa à tutela dos direitos de forma que se diminua a violência e se aumente a liberdade, bem como estabelece a teoria jurídica de validade e efetividade de normas de categorias distintas, gerando ao juiz a obrigação jurídica de não aplicar leis vigentes que sejam incompatíveis com o ordenamento constitucional e limitando os poderes do legislador aos bens e valores constitucionais (FERRAJOLI, 2000).
É importante observar que, apesar de nascerem em um momento em que há uma visão negativa do Estado e ingênua sobre os seres humanos (MAGALHÃES, 2010), é possível observar que as teses de Ferrajoli, resumidamente apontadas a cima, não visam a proteção de direitos e garantias de sujeitos específicos, ao contrário, apenas defende teses de suma importância para que a sociedade não seja prejudicada por arbitrariedades do Estado.
As teses garantistas, de Luigi Ferrajoli, passam a ser importadas para o Brasil a partir do advento da Constituição Federal em 1988, com a redemocratização, tendo em vista que o país sofreu, e ainda sofre, com a violação de direitos fundamentais individuais (FISCHER, 2010).
De acordo com as lições de Douglas Fischer:
Na linha dos próprios fundamentos basilares do Garantismo , não se afigura difícil compreender que a Constituição ocupa uma função central no sistema vigente (sem gerar um panconstitucionalismo), podendo-se dizer que seus comandos traduzem-se como ordenadores e dirigentes aos criadores e aos aplicadores (intérpretes) das leis (aí incluída a própria Constituição, por evidente) (2010, p.11 ).
A Constituição Federal de 1988 passou a possuir comandos ordenadores e dirigentes aos criadores e aplicadores das leis, resguardando os direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos e, com isso, ocupou um papel central na efetivação do Garantismo no Brasil (FISCHER, 2010).
No mesmo sentido, Maria Fernanda Palmo afirma que “a Constituição quem define as obrigações essenciais do legislador perante a sociedade” (2006, apud FISHER, 2010, p.12), logo, da mesma maneira que os dispositivos que fossem incompatíveis com as garantias fundamentais dos cidadãos estampadas na Constituição Democrática não deveriam mais ser aplicados pelo judiciário, novos dispositivos contrários às previsões constitucionais também não poderiam ser editados pelo Legislativo.
Dessa maneira, os ordenamentos penais e processuais penais passaram a ser interpretados de forma sistêmica, com base nos ordenamentos constitucionais que visam à proteção de bens jurídicos individuais e coletivos, bem como a proteção dos interesses sociais e do investigado. Isto é, a Constituição Federal de 1988, dispõe sobre o dever de visualizar integralmente as garantias do sistema (FISCHER, 2010).
Ademais, é relevante trazer à baila os ensinamentos de Maria Fernanda no sentido de que “a constituição pode conformar o Direito Penal porque funciona como uma espécie de norma fundamental autorizadora do Direito ordinário, assumindo um papel hierarquicamente superior” (2006, apud FISHER, 2010, p.11).
Com isso, conclui-se que, tendo o Garantismo a tese central de que se deve observar rigidamente os direitos fundamentais individuais e coletivos, bem como os deveres fundamentas do Estado e dos cidadãos constitucionalmente previstos, não pode uma norma hierarquicamente inferior restringir o disposto na constituição, o direito e o processo penal passam a estar limitados constitucionalmente.
No mesmo sentido, têm-se as lições de Gascón Abellán (2005, apud FISHER, 2010, p.2):
Como primera aproximación que un derecho garantista establece instrumentos para la defensa de los derechos de los individuos frente a su eventual agresión por parte de otros individuos y (sobre todo) por parte de poder estatal; lo que tiene lugar mediante el establecimiento de límites y vínculos al poder a fin de maximinar la realización de esos derechos y de minimizar sus amenazas.
Nesse sentido, com o Garantismo Penal, o acusado deixa de ser um objeto da instrução processual e passa a ser um sujeito de direitos tutelados pelo Estado, bem como deixa o juiz de ser subordinado à letra da lei, não devendo mais ocorrer uma interpretação meramente literal, mas sim sistêmica da constituição (FISCHER, 2010).
No entanto, no Brasil, atualmente, a palavra Garantismo vem sendo muito mais utilizada pela jurisprudência e doutrina, do que verdadeiramente estudada a fundo suas raízes (FISCHER, 2010).
Diante disso, há a aplicação de forma desarrazoada do Garantismo no sistema penal, de forma indiscriminada e sem a mínima fundamentação, muitas vezes sem qualquer reflexão ou racionalidade, gerando uma desproteção sistêmica, visto que somente é acobertado pelo manto dos direitos individuais fundamentais o investigado, acusado ou condenado, emergindo o denominado Garantismo monocular hiperbólico (FISCHER, 2010).
Segundo Vlamir Costa Magalhães (2018), os direitos individuais vêm sendo tratados com fetichismo e, com isso, banaliza-se o autêntico sentido do Garantismo no Brasil, pois se enxerga com extremismo os preceitos garantista, que acabam passando a servir como um escudo para a delinquência.
O direito penal deve ser utilizado como “ultima ratio” e deve preservar os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. No entanto, atualmente existem alguns equívocos ao aplicar o Garantismo Penal em certas fundamentações, incorrendo na proteção excessiva de apenas uma parte do processo e na desproteção do restante da coletividade, o oposto do que propõe Luigi Ferrajoli.
O Garantismo aplicado dessa forma é, sem dúvidas, inconstitucional, tento em vista o dever do Estado de proteger efetivamente os direitos fundamentais individuais ou coletivos, de todas as dimensões e de todos os brasileiros (FISCHER, 2010).
Segundo Douglas Fischer:
Em doutrina e jurisprudência, têm-se difundido os ideais garantistas sem que se analise pelo menos de um modo minimanente dogmático o que, efetivamente, significa Garantismo Penal. É a íntegra de seus postulados (devidamente concatenados) que pretendemos seja aplicada (porque assim a Constituição determina), e não o que tem havido em muitas situações (valorizando-se unicamente direitos individuais fundamentais) e que temos denominado de Garantismo hiperbólico monocular, hipótese diversa do sentido proposto por Luigi Ferrajoli (ao menos na leitura que fizemos de seu integral pensamento) (2009, online).
Além disso, o que se observa é que a jurisprudência, além de restringir a aplicação do Garantismo somente aos condenados e acusados, o sistema penal tem limitado ainda os direitos que serão excessiva e exclusivamente protegidos, como se o rol dos direitos fundamentais se restringisse somente em liberdade e propriedade (MAGALHÃES, 2010).
Ao contrário, a Constituição Federal de 1988 prevê a todos uma infinidade de direitos e garantias que devem ser asseguradas pelo Estado, bem como, a partir de uma interpretação sistêmica, dispõe que não há nenhuma liberdade ou direito fundamental absoluto em vista da harmonia social, devendo sempre haver a ponderação de interesses conforme o caso concreto.
É bem verdade que, para haver um sistema garantista é necessário que haja uma atuação negativa do Estado, denominado Garantismo negativo. Todavia, o Garantismo Penal não pode ser entendido somente por coibir os excessos, esta é somente uma das premissas dele (FISCHER, 2010).
Para existir um verdadeiro sistema garantista é necessária, também, uma atuação positiva, ou seja, que a sua proteção abarque também os deveres que o Estado deve cumprir a fim de assegurar o exercício dos direitos fundamentais individuais – Garantismo positivo – (FISCHER, 2010).
Há de salientar que deve haver uma ponderação no que tange a atuação do Estado, visto que a proibição de excessos não pode garantir ao Estado o direito de uma atuação insuficiente, no momento em que o direito individual de alguns prevalece indiscriminadamente sobre os dos demais, tem-se o Garantismo hiperbólico monocular, evidenciando-se a desproporcionalidade e impedindo a integral proteção social (FISCHER, 2010).
Por essa razão, há a necessidade de uma revisão do que se entende hoje por Garantismo no sistema penal brasileiro, de modo a compatibilizá-lo com todas as dimensões de direitos fundamentais para que se protejam os interesses sociais de forma geral, inclusive de modo que se complete a noção de liberdade.
Emerge-se, com isso, a defesa do chamado Garantismo Penal Integral, pautado em uma proporcionalidade, que visa, da mesma maneira e intensidade, proteger os direitos de todos os indivíduos, de modo proteger tanto os réus e condenados do poder punitivo indiscriminado do Estado, como os demais indivíduos de decisões desarrazoadas, fundadas exclusivamente nas normas que protegem o réu, resguardando os interesses sociais (FISCHER, 2010).
É necessário trazer à baila a previsão do artigo 32 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que leciona justamente pela compatibilização dos direitos individuais de todos de forma integral.
Artigo 32 – Correlação entre deveres e direitos 1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática (BRASIL, 1969).
Ressalta-se que, no Garantismo de modo integral e não parcial (hiperbólico monocular), o Estado leva em conta a aplicação dos direitos fundamentais individuais e sociais integralmente, considerando tanto os direitos do acusado, como a necessidade de garantir à sociedade eficiência e segurança, visto que isto também é um imperativo constitucional de acordo com o artigo 6º e 144, ambos da Constituição Federal.
Dessa maneira, conclui-se que há de se levar em consideração que na carta magna brasileira prevê a obrigatoriedade de proteção dos direitos individuais e coletivos, contudo não há como concordar com as posições doutrinarias e jurisprudenciais que interpretam o Garantismo Penal apenas com prevalência de direitos fundamentais individuais do acusado, investigado ou condenado. Isto é, com base no Garantismo Penal monocular hiperbólico.
O que deve haver é a interpretação do sistema penal e constitucional conforme o Garantismo Penal Integral, pois com isso se impõe a observância rígida não somente dos direitos e garantias individuais, mas também dos deveres fundamentais do Estado e do cidadão, considerando que o Poder Público não pode agir de forma desproporcional ou desarrazoada, de modo que, ao evitar os excessos, seja deficiente.
Segundo as lições de Nucci, crime pode ser conceituado como:
Uma conduta típica, antijurídica e culpável, vale dizer, uma ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijuridicidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial de ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito (NUCCI, 2014, p. 138).
Com isso, pode-se concluir que o Código Penal Brasileiro adota a corrente tripartite, isto é, só há crime se houver três elementos: fato típico, ilícito e culpável.
Quando um sujeito comete um delito, nasce para o Estado o direito/dever de punir, ius puniendi, logo a pena pode ser conceituada como um resultado natural do delito praticado (NUCCI, 2014).
Nesse sentindo, Nucci leciona que pena é “a sanção imposta pelo Estado, através da ação penal, ao criminoso, cuja finalidade é a retribuição ao delito perpetrado e a prevenção a novos crimes” (NUCCI, 2014, p. 308). Dessa forma, entende-se que só haverá possibilidade do Estado punir se o ato praticado pelo agente for típico, ilícito e culpável.
Em contrapartida, no que tange às medidas de segurança, Nucci (2007, p.479) explica que é:
Uma forma de sanção penal, com caráter preventivo e curativo, visando a evitar que o autor de um fato havido como infração penal, inimputável ou semi-imputável, mostrando periculosidade, torne a cometer outro injusto e receba tratamento adequado.
Diante disso, depreende-se que a medida de segurança somente será aplicada no caso do agente inimputável ou semi-imputável que cometa conduta típica e ilícita, ausente a culpabilidade, o terceiro elemento necessário para caracterização de crime.
O mesmo autor prossegue explicando que:
O inimputável (doente mental ou imaturo, que é o menor) não comete crime, mas pode ser sancionado penalmente, aplicando-se-lhe medida de segurança, que se baseia no juízo de periculosidade, diverso, portanto, da culpabilidade. O autor de um fato típico e antijurídico, sem compreensão do que fazia, não merece ser considerado criminoso – adjetivação reservada a quem, compreendendo o ilícito, opta por tal caminho, sofrendo censura –, embora possa ser submetido a medida especial cuja finalidade é terapêutica, fundamentalmente (NUCCI, 2014, p. 241).
Diante do exposto por Nucci, é possível compreender que nos casos da aplicação de medida de segurança ao agente inimputável ou semi-imputável, como o terceiro requisito do delito é excluído, não há o que se falar em cometimento de crime e, se não há crime, não se abre a possibilidade para o Estado exercer o seu poder punitivo, bem como, consequentemente, não haverá pena.
Vale destacar que, o Código de Processo Penal Brasileiro (2020), Artigo 386, Inciso VI, determina a absolvição imprópria de réus que portem as condições supramencionadas. Isto é, deverá ocorrer todo o devido processo legal e, ao final, apesar de praticar um fato típico e ilícito, o indivíduo não será culpado e, portanto, sofrerá uma absolvição impropria, sendo a ele será imposta a medida de segurança prevista no Artigo 97 do Código Penal Brasileiro que não terá natureza jurídica de pena.
Corrobora com esse entendimento a lição de vários doutrinadores. Dower, por exemplo, leciona que “medida de segurança não é pena. A pena é uma sanção baseada na culpabilidade do agente. O louco age sem culpa. Por tanto a medida de segurança se fundamenta na periculosidade do agente” (2000, p. 122).
E, ainda, Zaffaroni e Pierangeli afirmam que as medidas de segurança:
São materialmente administrativas e formalmente penais. Uma das provas mais acabadas de que não pode ser outra a sua natureza é que juridicamente não podem chamar-se “sanções”, ainda que, na prática, o sistema penal as distorça e a elas atribua, eventualmente, esta função, realidade que se faz necessário controlar e procurar neutralizar. Além disso, o seu fundamento não é a periculosidade em sentido jurídico-penal (isto é, a relevante probabilidade de que o sujeito cometa um delito), mas a periculosidade entendida no sentido corrente da palavra, que inclui o perigo de autolesão, que não pode ser considerada delito (2011, p. 115).
Na realidade, o instituto da medida de segurança está equivocadamente alocada no ramo penal, uma vez que não tem caráter penalizante ao agente inimputável. Ao contrário, a medida de segurança tem caráter preventivo, curativo e terapêutico, sem qualquer objetivo de reprimir a conduta praticada, sobretudo por não fazer sentido retribuir um injusto provocado à um sujeito doente mental que não é ao menos capaz de relacionar a repressão à conduta ilícita por ele realizada.
Corrobora esse entendimento a previsão do artigo 32 do Código Penal Brasileiro (2020) de que as penas são apenas as privativas de liberdade, restritivas de direitos e, multa, não incluindo nesse rol as medidas de segurança.
Ademais, destaca-se que o artigo 26 do Código Penal Brasileiro (2018) dispõe que:
Art 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Portanto, diante da constatação que a medida de segurança definitivamente não pode ser considerada pena, não é correta a aplicação de institutos característicos da pena, como, por exemplo, o “quantum” limitador da pena em concreta ou a abstratamente, bem como o seu limite máximo de 30 anos.
Por conta disso, ao analisar o Código Penal Brasileiro (2020), mais especificamente o parágrafo primeiro, do artigo 97, tem-se que prazo mínimo para a medida de segurança está bem delimitado entre um a três anos.
Contudo, o mesmo diploma jurídico, nada dispôs sobre o prazo máximo exato que pode ser aplicada tal medida, delimitando apenas que a internação ou o tratamento ambulatorial deve perdurar enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade do agente, a fim de que não haja a reinserção na sociedade de um individuo atestamente perigoso.
Apesar disso, em 23 de Setembro de 2005, o STF no julgamento do Habeas Corpus 84.219, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ 23.9.2005, firmou o entendimento de que as medidas de segurança não poderiam ter lapso temporal indeterminado, em razão de ser um direito individual do réu, taxado constitucionalmente, a vedação de pena de caráter perpetuo (SÃO PAULO, STF, 2005).
Além disso, em 18 de Maio de 2015, o Superior Tribunal de Justiça, redigiu a Súmula 527 (BRASIL, 2015), afirmando que nenhuma medida de segurança poderá ter tempo maior do que o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito cometido, por analogia a antiga redação do artigo 75 do Código Penal Brasileiro (2020).
Como já analisado, os Tribunais vêm adotando, em sentido contrario ao previsto no Código Penal (BRASIL, 2008) e equivocadamente, a tese de que as medidas de segurança não devem ultrapassar o prazo máximo previsto abstratamente ao delito cometido.
O desacerto decorre, primeiramente, pois os Tribunais insistem em ampliar o sentido da palavra pena, usada na Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre que a proibição de pena de caráter perpetua.
Dessa maneira, a jurisprudência teima em aplicar a supracitada vedação às medidas de segurança, que, como já explanado acima, não podem ser compreendida como uma pena imposta pelo Estado, pois, além das definições, as finalidades também são distintas.
Segundo Nucci, as medidas de segurança têm:
Caráter preventivo e curativo, visando a evitar que o autor de um fato havido como infração penal, inimputável ou semi-imputável, mostrando periculosidade, torne a cometer outro injusto e receba tratamento adequado (2007, p. 479).
Em razão disso, o legislador nada dispõe sobre limite de prazo para a duração das medidas de segurança no Código Penal Brasileiro, apenas ordena que durem enquanto constatada a periculosidade do agente.
Como se pode observar, há uma intenção legislativa por trás da omissão no que tange o prazo limite para tais medidas, o que se que assegurar é que aqueles sujeitos que não tiveram ou que até nunca terão a periculosidade cessada sejam mantidos isolados da sociedade, em vista de que não prejudiquem a segurança das demais e, ao mesmo tempo, possam receber tratamento de saúde e vida digna em ambientes capacitados para tanto.
Com isso, a formulação da Súmula 527 do STJ, em vista de tentar resguardar garantias do réu, acobertou com a manta do Garantismo somente alguns direitos e de alguns sujeitos específicos, preterindo diversos outros tantos direitos e garantias individuais e coletivos, além de ignorando completamente as finalidades preventivas e terapêuticas da medida de segurança.
Diante do exposto, resta cristalino que há, na jurisprudência brasileira atual, uma ausência de interpretação sistêmica da constituição e, consequentemente, a formulação de teses muitas vezes aparentemente garantista, mas que, se analisada profundamente, não passam de decisões inconstitucionais, pautadas no Garantismo hiperbólico monocular, que, devido a falta de compreensão das teses garantistas de Ferrajoli, acabam por violar os direitos humanos e afastam o país cada vez mais do valioso Garantismo Integral.
O STJ, por não ter compreendido que a Medida de Segurança não tem caráter repressivo, mas terapêutico, acabou por retirar o direito do doente mental de ter o tratamento psiquiátrico que melhor se adeque ao seu caso, isto porque, embora fosse o desejado por todos, não há, na esmagadora maioria dos casos dos doentes mentais perigosos, a aceitação e o fundamental amparo familiar e social do sujeito.
Além da periculosidade do irrecuperável, o abandono familiar tem como fundamento também o aumento dos custos, a falta de recursos financeiros, a necessidade redobrada de dedicação e cuidados com o doente mental, aliada a falta de tempo e medo por parte dos parentes próximos.
Com isso, a reinserção desses inimputáveis no convívio social muitas vezes torna inviável a manutenção do tratamento devido e, devido à exclusão social e familiar, pode-se dizer que esses sujeito sofrerão com a dificuldade da ausência de saúde e vida digna, bem como a sociedade sofrerá com a insegurança e medo de ter no meio social indivíduos com um altíssimo risco de delinquir.
Estas afirmações são baseadas em estudos estatísticos encontrados ao longo da pesquisa bibliográfica. Abaixo demonstraremos o índice de abandono de doentes mentais em hospitais psiquiátricos. Isto é, em hospitais que não são responsáveis por receber especificamente os inimputáveis que praticaram fato típico e ilícito, mas um hospital comum para tratamento dos doentes mentais que nunca se desviaram da proibição da lei.
Pesquisas realizadas no Hospital Psiquiátrico de Maringá/PR indicam que de 240 pacientes, apenas 50% dos familiares ainda visitam e ajudam no cuidado dos doentes mentais internados. Alguns estão no local há mais de 3 (três) anos e até onde se sabe, nenhum parente voltou a procurá-los e com a ausência da família, o hospital fica impossibilitado de dar alta para tais pacientes. E seria desumano simplesmente colocá-los nas ruas após o fim da internação (Jornalismo especializado UNESP, online).
Dessa forma, essa pesquisa permite auferir que os índices de abandono dos doentes mentais irrecuperáveis nos hospitais de custódia certamente são muito maiores do que os 50% referente aos doentes mentais que recebem tratamento sem cometer nem um fato típico e ilícito.
Ademais, vale pontuar que os objetivos dos Hospitais de Custódia são os mesmo dos Hospitais Psiquiátricos, ou seja, são verdadeiros Hospitais Psiquiátricos, que oferecem tratamento a quem sofre com a perda da capacidade de se autodeterminar. Logo, nos casos daqueles sujeitos perigosos irrecuperáveis, o desamparo nas ruas após o período de internação, sem a devida preocupação se esses sujeitos possuem a mínima capacidade de se autodeterminar ou se ao menos possuem amparo e condições de manter o tratamento, é completamente desumano, violando as garantias à saúde e vida digna.
Com isso, tendo em vista que a medida de segurança tem finalidade fundamentalmente terapêutica, tornando-se um meio de efetivar o direito constitucional de saúde e vida digna dos mentalmente enfermos, no momento em que o Estado os libera desconsiderando a situação da sua periculosidade, apenas com o escopo simplista de “validar um preceito constitucional” erroneamente interpretado e aplicado ao caso pela Súmula 527 do STJ, garantem apenas uma desproteção social sistêmica.
Por outro lado, como se pode observar com dados estatísticos, a criminalidade e violência experimentada pela sociedade brasileira é um problema histórico e, nos últimos anos, atingiu níveis altíssimos, conforme publicação do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada) no Atlas da Violência 2019 do Brasil:
Segundo os dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil, o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada cem mil habitantes. Trata-se do maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país, conforme destacado no gráfico 1.1. (IPEA, 2019, online).
Além disso, os dados do Ministério da Justiça e Segurança sugerem que as ocorrências criminais no Brasil de Estupro, homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e tentativa de homicídio, no ano de 2019 são, respectivamente: 18165, 16198, 354 e 14425 (Ministério da Justiça, online).
E ainda, segundo notícia publicada 08/07/2019 no site do G1, o Brasil é o segundo país mais violento da América do Sul de acordo com dados da ONU. Salienta que:
A ONU divulgou nesta segunda-feira (8) um relatório sobre taxas de homicídio intencional no mundo em 2017, no qual a América Central e América do Sul registraram os mais altos índices, com 25,9 e 24,2 assassinatos por casa 100 mil habitantes, respectivamente. Na lista, o Brasil ficou em segundo lugar no continente sul-americano, atrás da Venezuela, com 30,5 mortes, acima da média regional (Globo, online).
Portanto, a segurança pública no Brasil se tornou uma questão importantíssima para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito e para efetivação dos direitos fundamentais dos indivíduos que o compõe, direitos estes ratificados em inúmeros diplomas internacionais sobre direitos humanos.
Destaca-se que, a mesma Carta utilizada para fundamentar a Súmula 527 do STJ (BRASIL, 2015), pois proíbe penas de caráter perpétuo, disciplina, também, como direito social, a segurança e a saúde:
Constituição Federal de 1988:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Disciplina a proteção de inúmeros direitos fundamentais, não restritos apenas aos previstos no Título II da Constituição Federal, como direito à vida, liberdade, dignidade da pessoa humana e lazer.
No mesmo sentindo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos apontou, no Art. 3º, a segurança pessoal como um dos três decisivos e fundamentais direitos. Igualmente, o direito à segurança vem previsto no Art. 1º da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e, da mesma forma, o artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem disciplina que toda pessoa tem direito à segurança.
Com isso, resta demonstrado a importância da segurança pública dentro de um Estado Democrático de direito, visto que é essencial para a concretização dos demais direitos fundamentais, desde a liberdade de ir e vir de um individuo, até o direito à uma vida digna.
Dessa maneira, de acordo com a Carta Magna Brasileira, o Estado tem o dever de garantir os direitos sociais, aqui especialmente tratado o direito à segurança, bem como, deve se garantir um ambiente adequado para que outros inúmeros direitos fundamentais possam ser preservados.
O Direito Penal tornou-se necessário para que fosse possível proteger bens juridicamente relevantes, que, segundo os ensinamentos de Luiz Régis Prado: “O conceito (…) deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais” (1997, p. 203).
Conforme apontam Zaffaroni e Pierangeli (2011, p.156):
O direito penal não pode ter outra meta que não a de prover a segurança jurídica, posto que este deve ser o objetivo de todo o direito (…) a função de segurança jurídica não pode ser entendida, pois, em outro sentido que não o da proteção de bens jurídicos (direitos), como forma de assegurar a coexistência.
Vale ressaltar que, o direito a segurança envolve não somente o dever do Estado de evitar condutas criminosas, mas também prosseguir com a devida investigação das ocorridas, obviamente com respeito ao direito e garantias do investigado, para a punição devidamente o responsável.
Logo a investigação, o processo criminal, bem como a penalização dos infratores ou medidas de segurança aplicada, são formas positivas de garantir a segurança e a boa convivência na sociedade, evitando as infrações.
Gilmar Mendes tem entendimento no mesmo sentido, afirmando que:
Os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção […], expressando também um postulado de proteção […]. Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: […] (b) Dever de segurança […], que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; […] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental […]” (2004, apud FISHER, 2010, p.17).
A Súmula 527 do STJ (BRASIL, 2015), que teoricamente pretende garantir a proteção do inimputável com base constitucional, ao possibilitar o retorno de um indivíduo atestadamente perigoso e que não possui recuperação, fere não somente as funções do direito penal, como também os próprios direitos fundamentais constitucionais e coloca em segundo plano os Direitos Humanos cabíveis a toda uma coletividade.
Destarte, há de se destacar que o Garantismo Penal Integral visa resguardar do mesmo modo e com igual rigor todos os indivíduos de irracionalidades positivistas do Estado, bem como proteger os anseios da sociedade (FISCHER, 2010).
Contudo, analisando que a edição de uma Súmula limita o prazo da medida de segurança, abrindo a possibilidade que muitos sujeitos que não possuem discernimento dos seus atos, muita vezes atestadamente perigosos e irrecuperáveis, acarreta incalculáveis prejuízos ao direito à segurança pública e a harmonia social, bem como impede que os inimputáveis recebam amparo e tratamento adequado.
Dessa forma, conclui-se que a Súmula 527 do STJ visa cobrir com o manto do Garantismo uma parcela restrita de direitos e garantias de alguns poucos indivíduos submetidos às medidas de segurança, deixando de lado os direitos igualmente importantes ao tratamento, saúde e vida digna dos inimputáveis ou semi-imputáveis, bem como de segurança do restante da sociedade, gerando uma desproteção sistêmica, na contra mão de todas as premissas verdadeiramente garantista de Ferrajoli, tornando-se um obstáculo à efetivação do Garantismo Integral no sistema penal brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da presente pesquisa, foi possível analisar como Súmula 527 do Superior Tribunal de Justiça, que limita o prazo máximo da medida de segurança, influência diretamente na efetivação do Garantismo Integral no sistema penal brasileiro.
O artigo analisou o contexto em que surge o Garantismo Penal de Luigi Ferrajolli, bem como a importação das suas teses para o Brasil. Destacou que Judiciário brasileiro tem aplicado o referido instituto de forma a acobertar com o manto do Garantismo somente uma parcela restrita de direitos e garantias de alguns cidadãos específicos, transformando-o em um Garantismo Penal monocular hiperbólico, bem como apresentou a atual tese do Garantismo Penal Integral.
Ademais, explicou no que consiste a medida de segurança que, embora esteja alocada como um instituto do direito penal, não tem caráter repressivo, mas tão somente terapêutico, bem como demonstrou que a manutenção da medida de segurança não importa em prejuízo para inimputável irrecuperável atestamente perigoso, chegando à conclusão de que o Hospital de Custódia pode ser o único lugar viável para o tratamento adequado desses sujeitos.
Igualmente, expôs que ao mesmo tempo em que o inimputável doente mental deve ter resguardado os seus direitos fundamentais, os indivíduos que compõe a sociedade também merecem respeito no tocante aos seus direitos previstos constitucionalmente, sendo necessário que os juristas, sobretudo os Ministros responsáveis pelo direito sumulado, passem a desentranhar das suas decisões o Garantismo Penal Monocular Hiperbólico, para que se torne possível efetivar o Garantismo Penal Integral no Brasil.
Não há como negar que se trata de um grande desafio realizar a ponderação de interesses ligados à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. Contudo, não restaram dúvidas de que não há direito absoluto, devendo ocorrer uma verdadeira reflexão sobre as medidas necessárias para que os direitos e garantias individuais e coletivas sejam protegidos de igual modo e rigor.
Por fim, concluiu-se que a Súmula 527 do STJ, ao limitar o prazo das medidas de segurança, como se ateve tão somente à proteção de alguns poucos direitos do inimputável ou semi-imputável, possibilitou a reinserção de muitos indivíduos perigosos, irrecuperáveis e que oferecem risco à sociedade, bem como impediu a continuidade do amparo e tratamento adequado para muitos indivíduos, acarretando uma desproteção social sistêmica e afastando cada vez o sistema penal do Garantismo Integral.
Vale ressaltar que o tema não se esgota na metodologia utilizada neste trabalho. Embora tenha sido obtida uma ampla gama de material bibliográfico tratando sobre Garantismo Penal, medida de segurança e sua natureza jurídica, ainda é escasso o estudo no que tange o Garantismo Penal Integral.
Além disso, é relevante que se realize uma pesquisa de campo, com entrevistas aos profissionais da área da saúde, sobretudo médicos psiquiatras, a fim de conhecer um pouco mais da mente dos indivíduos perigosos irrecuperáveis, com visitas aos Hospitais de Custódia e com a análise mais aprofundada sobre o índice de reincidência dos inimputáveis irrecuperáveis que são postos de volta ao convívio social.
Outrossim, embora fosse possível efetuar alguns desses estudos de campo em tempos normais, o presente trabalho foi realizado ao tempo da pandemia provocada pelo vírus Sars-Cov-2, o qual provou a restrição das relações interpessoais e impossibilitou a aproximação desses lugares e dessas pessoas.
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[1] Acadêmica de Direito no Centro Universitário do Pará. E-mail: julianaeiro1@gmail.com
[2] Acadêmico de Direito no Centro Universitário do Pará. E-mail: ianpicanco@gmail.com
[3] Doutorando em Sociologia do Direito na UFPA. Mestre em Direito pela UFPA. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Bacharel em Direito e em Filosofia. Delegado da PC-PA. Professor no IESP e no CESUPA. E-mail: mamedklelton@yahoo.com.br
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