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Garantismo x Cristianismo


Recebi, por e-mail, um artigo. É do ano passado, mas é “de hoje”. Seu autor é um magistrado da comarca de Ibirubá, do interior do Rio Grande do Sul. Em resumo, um sujeito havia invadido o domicílio do Excelentíssimo para furtar qualquer coisa. Depara-se a vítima com a crueza da realidade e começa com o invasor uma luta corporal. No fim das contas, pelo o apreendido do texto, o invasor não recebera a devida sanção com o ocorrido.


O juiz fica revoltadíssimo e publica, escorrendo ódio de seus dedos, algumas palavras quase terroristas: “… pois todos acreditamos que, pelo menos dentro dos nossos lares, estamos protegidos dessa corsa de marginais. Ledo engano!… eu consegui derrubá-lo no chão e imobilizá-lo. Após, eu tive oportunidade de ´fazer justiça com as próprias mãos´ ou de deixar que a minha cadela Hottweiller o fizesse, mas acabei não fazendo nada contra o assaltante, acreditando que a justiça, poder ao qual pertenço, seria feita… Não desejo mal para ninguém, mas gostaria muito, mas muito mesmo que esse fato que aconteceu comigo aconteça com esses colegas juízes criminais que se auto-denominam ´garantistas´, pois aí eles poderão aquilatar melhor o que passa uma vítima que tem a sua casa invadida durante a madrugada por um ladrão – e mudassem de entendimento, deixando de tratar ladrões contumazes como ´príncipes´. Até quando verdadeiros facínoras vão ser tratados como ´príncipes´ pelos juízes criminais?… Chega! Basta de erudição em cima do sofrimento alheio! Está mais do que na hora de se dar um basta nessa situação. Chega de impunidade.”


Para acrescentar, li também críticas de uma estudante de Direito sobre uma possível displicência dos “garantistas” no que diz respeito à realidade da criminalidade brasileira, relatando-se, categoricamente: “o Direito Penal está cheio de poetas!”


E, para provar que o assunto é mesmo “de hoje”, tive, recentemente, a infeliz oportunidade de assistir a uma aula. A “autorizada” criminalista fala acompanhada de gestos faciais afirmativos dos mais de sessenta alunos que a ouviam: “ser garantista é coisa da moda. O garantista passa a mão na cabeça dos coitadinhos como se eles fossem santos, porque não sabem que são violentos e impiedosos. Por que não leva pra casa, então?”


É preciso colocar as coisas em seus devidos lugares.


A professora é ex-delegada de polícia e deve ter passado por situações de fazer tremer qualquer “homem de pedra”. Situações essas que vão calejando o policial com o passar do tempo, transformando-o no que o senso comum chama de “polícia ignorante” ou ainda “polícia covarde”. Devo, por consciência e realismo, defender nossos policiais. Há um conhecido provérbio chinês que diz: “o cão não ladra por valentia e sim por medo. Quando se vê um policial – e não falo dos criminosos fardados – fazendo uma revista mais “ignorante” ou falando com o suspeito de forma absolutamente grosseira, estamos diante de uma pessoa que se defende antecipadamente de um mal que a vida lhe ensinou a prever, um cão com medo. Mas isso não significa que se possa jogar os direitos humanos pela janela. E isso também não significa que se está deixando de ser garantista.


Com todo o respeito merecido a essa figura religiosa, devo avisar que o garantista não é Padre. Não “passa a mão” na cabeça dos que “pecam”. Garantismo não é Cristianismo. Esse, quando manda “perdoar aqueles que nos ofendem” poderia, forçando um pouco, aproximar-se muito mais de um abolicionismo.


O garantista também não é dono de albergues para poder “levar pra casa” quem comete crime. E, ainda, ser garantista não é “coisa da moda”, é “coisa” da Constituição da República. “Diz-me o processo penal que tens e dir-te-ei o Estado que o instituiu” (Figueiredo Dias). Um processo penal no contexto democrático não poderia ter outra feição que não a garantista.


Posso, e parece que devo, considerar que muitas previsões legais de nosso sistema jurídico têm raízes nas “leis” do Cristianismo. Mas devo, e não somente posso, lembrar que o nosso sistema visa à estabilidade social, sem considerar qualquer princípio religioso em função disso (Estado laico). Nada de novo.


Contudo, me parece que há uma visão exagerada e, acima de tudo, equivocada sobre a concepção garantista da Ciência Penal. O garantista quer sim ver a aplicação da lei penal no caso concreto, quer sim que aqueles que se subsumem à norma recebam o preceito secundário da mesma. Mas quer, também (e é “somente” por isso que é garantista), que o indiciado ou acusado responda a um processo devidamente legal com todas as garantias a ele previstas, um processo que busca a aplicação de uma pena que previna a sociedade do cometimento de novos crimes. Nada mais que isso!


O garantista não ignora a realidade. Muito pelo contrário, é exatamente porque considera a realidade que defende a aplicação de um Direito Penal mínimo com todas as garantias necessárias a serem dispensadas ao investigado ou acusado criminalmente.


A nossa sociedade faz uma constante viagem de ida e volta: do cinismo e da exclusão para a hipocrisia e execração. Isso porque, quando se ignora diversas crianças, deixando-as à livre sorte da vida e se aceita um sistema naturalmente desigual como algo normal está-se sendo cínico e excludente e quando, depois disso, vê-se essa criança crescer e se tornar um dependente químico e criminoso e se diz “algemas nele”, “dignidade é para quem é digno”, “corsa de marginais”, enfim, “o Direito Penal está cheio de poetas!”, está-se sendo hipócrita e execrador.


“Poetas” aqueles que exaltam a aplicação de um Direito Penal mais duro, porque consideram apenas o subjetivismo exigido para a existência da poesia, o subjetivismo poético. “Poetas” porque escrevem e recitam aquilo que, na maioria das vezes, é cego às nossas realidades. Escritos e ensinamentos com poesia não só antidemocrática, mas aí sim anticristã, pois o seu subjetivismo tem como base o egoísmo.


Portanto, “chega” digo eu! Chega de hipocrisia, chega de execração, chega de exclusão, chega de cinismo, chega de poesia egoísta, chega de covardia. A covardia é de todo um sistema e daqueles sujeitos passivos diante de tanta desigualdade e miséria. Fácil é para os que têm a vida serena e tranqüila retirar as pedras de seu caminho com o uso da violência legal. Difícil é sequer ter um caminho.


Que a desigualdade por si não faz ninguém furtar, agredir ou matar alguém é uma verdade aceita (ainda bem, o Brasil seria um lugar desabitado!). Mas também é aceita a verdade da exclusão, a verdade da vontade de existir numa sociedade onde só existe quem consome (“consumo, logo existo”), por fim, a verdade de que ninguém invade a casa de ninguém porque acha divertido.


E aqueles que, mesmo tendo tido a chance de vida digna, deram uma de Adão? Para eles, o “chega de impunidade” é válido. E aqueles que assim fazem ou por comodismo ou por sentirem na vingança como que uma lascívia que visa o alcance da satisfação plena? Idem. Mas, se for necessária e útil a absolvição, que haja absolvição!


E a Justiça?! Deixe isso para o Cristianismo. A nossa deve se limitar naquilo que é suficiente para a paz terrena, no Garantismo…



Informações Sobre o Autor

Marcel Figueiredo Gonçalves

Advogado criminalista e Professor de Direito Penal em São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


Equipe Âmbito Jurídico

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