Nome do autor: Antonio José Cacheado Loureiro. Professor de Direito da Universidade do Estado Amazonas. Mestrando em Direito Ambiental (Universidade do Estado do Amazonas). loureiro.antonio@yahoo.com.br
Resumo: O artigo tem por objeto o estudo do princípio da presunção de inocência, bem como a análise da decisão proferida no processo de Habeas Corpus 126.292/SP pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que diz respeito ao referido princípio e que culminou em modificação jurisprudencial da Corte Constitucional, tratando de suas consequências em âmbito constitucional, convencional e infraconstitucional. O artigo busca, também, expor o confronto das correntes favoráveis e contrárias à decisão, contrapondo as visões garantistas e pro societate. Além disso, visa este trabalho propor soluções para as incongruências com o ordenamento jurídico vigente.
Palavras-chave: Princípio da Presunção de Inocência; Condenação em Segunda Instância; Supremo Tribunal Federal; Modificação de Jurisprudência.
Abstract: This paper has as its object the study presumption of innocence, as well the analysis of the Supremo Tribunal Federal’s decision delivered on the Habeas Corpus 126.292/SP process, which is related to presumption of innocence principle and changed the jurisprudence of the Constitucional Court, talking about its consequences in constitucional, conventional and legal sphere. This paper also intends to show the confrontation between different legal points of view to the decision, contrasting the garantist and the pro societate point of view. Furthermore, this paper seeks for a way to remedy the incongruities with the legal order.
Keywords: Presumption of Innocence; Second Instance Condemnation; Supremo Tribunal Federal; Jurisprudence Modification.
Sumário: Introdução. 1. Princípio da Presunção de Inocência ou da Não-Culpabilidade. 1.1 Conceito de Princípio. 1.2 Princípio da Presunção de Inocência ou da Não-Culpabilidade. 2. Análise da Decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 126.292/SP, sob a Ótica do Garantismo. 3. Análise da Decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 126.292/SP, sob a Ótica do Reducionismo ou Punitivismo. Conclusão.
INTRODUÇÃO
No dia 17 de fevereiro de 2016, foi julgado o Habeas Corpus 126.292 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Tal julgamento culminou em uma polêmica decisão. Por um placar de 7 x 4, o STF alterou seu entendimento sobre a presunção de inocência, acolhendo o sistema do duplo grau de jurisdição e, por conseguinte, se afastando do modelo do trânsito em julgado, adotado pela Constituição Federal. Assim, passa a ser possível iniciar a execução penal tão logo seja confirmada a condenação no 2º grau de jurisdição, gerando muita polêmica na seara jurídica brasileira.
O ordenamento jurídico brasileiro tem como pedra fundamental a Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição cidadã. A Carta Política da República traz em seu corpo uma série de direitos e garantias de extrema importância para a defesa dos indivíduos contra o próprio Estado e para o bom andamento de suas relações privadas. Sendo as garantias constitucionais individuais o objeto deste trabalho.
Urge, preliminarmente, diferenciar direitos e garantias fundamentais. Para Rui Barbosa, os direitos são disposições declaratórias e as garantias são disposições assecuratórias que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Segundo Marcelo Novelino (2015, p. 445):
“Os direitos podem ser compreendidos como valores que, considerados importantes em uma determinada sociedade, são consagrados expressa ou implicitamente no plano normativo. As garantias, apesar de ligadas a um determinado valor, ou a valores indeterminados, possuem um aspecto instrumental. São mecanismos de limitação do poder na defesa dos direitos. Mais que um fim em si mesmas, são instrumentos a serviço de um direito principal, substancial”.
Tal entendimento é acompanhado por José Afonso da Silva (2011, p.413) “em suma, os direitos são bens e vantagens conferidos pela norma, enquanto as garantias são meios destinados a fazer valer esses direitos, são instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens”. Assim, podemos perceber que as garantias funcionam como mecanismo de efetivação dos direitos, são meios de tutela desses direitos.
As garantias constitucionais podem ser, conforme a doutrina de José Afonso da Silva, de duas ordens: garantias constitucionais gerais e garantias constitucionais especiais. As primeiras dizem respeito ao sistema de freios e contrapesos dos poderes, visando impossibilitar os arbítrios do Poder Público. Por sua vez, as garantias constitucionais específicas são as positivadas na Constituição, conferindo aos titulares de direitos fundamentais meios ou instrumentos para exigir a plena consecução de tais direitos.
O Direito Penal e o Direito Processual Penal são informados, assim como os demais ramos do Direito, pelos princípios e normas constitucionais. Logo, deve-se, sempre, buscar a adequação entre a norma penal, material ou processual, e os dispositivos da Constituição Federal de 1988, uma vez que qualquer incongruência entre tais normas é repudiada pelo sistema jurídico brasileiro.
Na seara penal, o trato do poder no Estado Democrático de Direito deve ocorrer de forma controlada, buscando evitar os excessos dos eventuais investidos no exercício do poder Estatal. O Direito Processual Penal assegura a todos os indivíduos as garantias e os meios necessários para uma adequada defesa de seus direitos, os quais se encontram, como supracitado, na Constituição Federal. Verificada a necessidade de uma aplicação do processo penal de maneira mais justa, escolheu o Constituinte incluir certas instituições jurídicas processuais penais na Carta de Outubro. Sendo assim, verifica-se um mister mais abrangente que encarrega o Direito Processual Penal não somente a aplicação pura e simples do Direito Penal, mas a aplicação adequada, a que traga a correta medida razoável ao caso concreto.
O sistema de garantias constitucionais de natureza penal tem como escopo tutelar a liberdade de locomoção do indivíduo, a liberdade pessoal frente ao Estado, frente à máquina Estatal. Dessa forma, por se tratar de um bem jurídico tão valioso, o Constituinte fez por bem positivar diversos princípios, erigindo-os como garantias ao indivíduo, seja no papel de acusado seja no papel de réu. Entre tais garantias estão: legalidade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, juiz natural, legalidade da prisão, publicidade, presunção de inocência, além de outros mais. Sendo a presunção de inocência ou não-culpabilidade, o foco deste trabalho, e a análise da decisão do STF, proferida no HC 126.292/SP, decorrência deste estudo principiólogico.
Assim, O primeiro capítulo do presente trabalho tratará do princípio da presunção de inocência, tratando de suas particularidades, sob a ótica da doutrina tradicional e majoritária e, também, sob a ótica garantista extremada, hoje, corrente minoritária no Brasil. Além disso, será explorada a evolução do princípio e suas novas vertentes.
No segundo e no terceiro capítulo, será realizada a análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 126.292/SP, em duas partes, sempre com amparo na doutrina e no Direito Convencional. A primeira, no capítulo 2, será chancelada pela doutrina garantista (minimalista e extremada), apresentando os principais argumentos contrários à decisão e como esta afeta e, provavelmente, afetará o ordenamento jurídico pátrio. O capítulo 3 analisará a decisão sob o prisma do punitivismo, ou seja, a corrente tradicional brasileira, trazendo à baila o posicionamento dos ministros do Supremo e da doutrina acerca dos institutos pertinentes ao tema.
1 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA OU DA NÃO-CULPABILIDADE
Segundo Alexy (2011, p.57) “princípios são mandamentos de otimização, isto é, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”.
Para Cassar (2014, p.73) “princípio é a postura mental que leva o intérprete a se posicionar desta ou daquela maneira”.
Princípios são proposições que informam determinado campo do saber. Transportando tal conceito para o campo jurídico são elementos de sustentação do ordenamento jurídico, elementos estes que lhe dão coerência interna. Servem como fundamento e são responsáveis pela gênese de grande parte das regras que, por consequência, deverão ter sua interpretação e aplicação condicionadas por aqueles princípios, dos quais se originaram (LOUREIRO, 2018, p.01).
O princípio da presunção de inocência tem suas origens no Direito romano, mas foi seriamente violado e até recebeu sentido inverso no período inquisitório da Idade Média. Basta lembra que durante a santa inquisição a dúvida criada pela insuficiência de provas correspondia, de fato, a uma semiprova, que autorizava um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve. Em verdade tratava-se de uma presunção de culpabilidade. No Brasil, a presunção de inocência está positivada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988, sendo considerado macroprincípio do processo penal e, sob sua ótica, podemos inferir a qualidade de um sistema processual por meio do seu nível de observância. Cumpre ressaltar que a presunção de inocência foi, a nível mundial e histórico, insculpida na Declaração dos Direitos do Homem de 1789. (LOPES, p. 268, 2014)
De acordo com José Afonso da Silva (2011, p.439), o princípio da presunção de inocência, positivado no artigo 5°, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, é “uma garantia constitucional relacionada ao Direito à segurança penal, segundo a qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Para Rogério Sanches (2014, p.188) “tal princípio versa sobre a vedação do afastamento da inocência de alguém até o trânsito em julgado do processo, que somente ocorre após o esgotamento recursal”. O doutrinador Alexandre de Moraes complementa afirmando que “dessa forma, há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal”. Logo, violar tal mandamento é atentar contra o texto constitucional, conduta esta contrária ao papel de guardião da Constituição, conferido ao Supremo Tribunal Federal. Assevera, ainda, Marcelo Novelino (2015, p.455):
“A presunção de não culpabilidade (ou presunção de inocência), enquanto instrumento de proteção da liberdade, tem por finalidade evitar juízos condenatórios precipitados, protegendo pessoas potencialmente culpáveis contra eventuais excessos das autoridades públicas. Apesar de geralmente esta garantia ser denominada de princípio da presunção da inocência, a rigor, ela possui a estrutura de uma regra e é aplicada como tal nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. No âmbito processual penal, a presunção de não culpabilidade impede que o Estado trate como culpado aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível”.
De forma bastante acertada Bechara e Campos (2005, p.1) comentam “melhor denominação seria princípio da não culpabilidade. Isso porque a Constituição Federal não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em julgado”. Também nesse sentido, Brasileiro Lima (2015, p.12):
“Comparando-se a forma como referido princípio foi previsto nos Tratados Internacionais e na Constituição Federal, percebe-se que, naqueles, costuma-se referir à presunção de inocência, ao passo que a Constituição Federal em momento algum utiliza a expressão inocente, dizendo, na verdade, que ninguém será considerado culpado. Por conta dessa diversidade terminológica, o preceito inserido na Carta Magna passou a ser denominado de presunção de não culpabilidade”.
O princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade decorre do princípio da jurisdicionalidade, uma vez que se a jurisdição é atividade imprescindível para a colheita da prova de que determinado sujeito cometeu uma infração penal, até que essa prova não seja produzida, mediante os ditames do devido processo legal, nenhuma infração penal pode ser considerada praticada e ninguém pode ser considerado culpado nem submetido a uma sanção penal. O princípio da presunção de inocência é de suma importância para o desenvolvimento e manutenção de um Estado Democrático de Direito, é um dos alicerces da sociedade constituída.
Tal princípio deve ser garantido firmemente, pois o mesmo é uma escolha garantista favorável à defesa da imunidade dos inocentes, ainda que, consequentemente, algum culpável acabe se evadindo das penas lei, já que o escopo deste princípio é a garantir aos inocentes a preservação de sua intangibilidade penal, sendo possível que a sua observância de forma a garantir a máxima efetividade de seu conteúdo acarrete a referida situação indesejada. O temor, até mesmo o medo, que a Justiça provoca nos cidadãos é sinal inegável de perda da legitimidade política da jurisdição e de sua regressão para um caminha de autoritarismo e arbitrariedade, trazendo caos e insegurança jurídica, anulando a força normativo-política da Constituição (FERRAJOLI, 2014, p.549).
O garantista Aury Lopes (2014, p.268) explana:
“Se é verdade que os cidadãos estão ameaçados pelos delitos, também o estão pelas penas arbitrárias, fazendo com que a presunção de inocência não seja apenas uma garantia de liberdade e de verdade, senão também uma garantia de segurança (ou de defesa social), enquanto segurança oferecida pelo Estado de Direito e que se expressa na confiança dos cidadãos na Justiça. É uma defesa que se oferece ao arbítrio punitivo”.
Sob a ótica do julgador, a presunção de inocência deve ser um princípio da maior importância, sobretudo no tratamento processual que o magistrado deve dispor ao acusado. Logo, isso deve direcionar o trabalho do juiz para, não só a manter uma postura abstêmica, ou seja, não o declarando culpado, mas sim a ter uma postura garantidora, uma postura ativa, tratando como inocente, de fato e de direito, ainda que em determinados casos tal conduta seja difícil. Porém, o papel do juiz é o de garantidor, sua postura deve ser garantista, uma vez que seu papel é observar e aplicar a Constituição, bem como as demais leis que integram o ordenamento jurídico brasileiro.
Podemos inferir da presunção de inocência que o convencimento do magistrado deve ser formado em contraditório, sempre, informando, ainda, o sistema acusatório o mister do julgador, observando o esquema dialético, consagrando-o como, já supracitado, um juiz garantidor ou um juiz de garantias. Cumpre elucidar que o princípio em tela também é aplicável no processo administrativo, uma vez que este também pode resultar em sanções de natureza administrativa, como multas, por exemplo (LOPES, 2014, p.269).
Partindo de uma análise constitucional, Vegas Torres (2002, p.35) indica as três principais manifestações da presunção de inocência:
Assim, em razão do explanado, a presunção de inocência, enquanto macroprincípio do processo penal, deve receber máxima efetividade em todos os seus aspectos, mas sobretudo no que tange à carga probatória e às normas que regulamentam o tratamento do acusado, buscando evitar o estigma do mesmo e os recorrentes arbítrios das prisões cautelares.
A presunção de inocência atinge, frontalmente, a carga probatória, sendo do acusador essa incumbência, tanto nas ações penais privadas como nas ações penais públicas, devendo haver cuidado com a publicidade abusiva e demais medidas cautelares, como as prisões, já supracitadas.
Em síntese, da presunção de inocência decorre um verdadeiro dever de tratamento processual, que atua em duas dimensões: interna e externa ao processo.
A partir da dimensão interna, é um dever de tratamento imposto ao magistrado, impondo que a carga probatória seja integralmente do acusador, uma vez que se o réu é inocente, não há nada a ser provado e a dúvida leva indubitavelmente à absolvição. Também é nessa dimensão que ocorrem as restrições ao uso e abuso das prisões cautelares, pois como condenar e encarcerar alguém que não teve a condenação transitada em julgada.
A dimensão externa impõe uma maior proteção contra os malefícios da publicidade abusiva e a estigmatização do penalmente imputado. Isso quer dizer que a presunção de inocência, bem como as demais garantias constitucionais referentes à imagem, à dignidade e à privacidade devem ser utilizada como instrumentos democráticos de combate à abusiva exploração da mídia no derredor da infração penal e do processo judicial.
2 ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HC 126.292/SP, SOB A ÓTICA DO GARANTISMO
Sabe-se, como já supracitado, que no dia 17 de fevereiro de 2016, foi julgado o Habeas Corpus 126.292 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e que esse julgamento culminou em uma decisão bastante polêmica. Por um placar de 7 x 4, o STF modificou sua jurisprudência, já consolidade, sobre a presunção de inocência, passando a acolher o sistema do duplo grau de jurisdição e, por conseqüência lógica, afastando-se do modelo, já pacificado, do trânsito em julgado, adotado pela Constituição Federal de 1988. Dessa forma, passou a ser possível iniciar a execução penal tão logo seja confirmada a condenação no 2º grau de jurisdição, restando evidente a violação constitucional praticada.
Segundo o Excelso Supremo Tribunal Federal, a decisão proferida não violaria a presunção de inocência, já que não se trata de execução provisória, nem de prisão de natureza cautelar, mas, de execução definitiva, ou seja, trata-se, de fato, do início de cumprimento de pena. O que é insustentável. Com tal afirmação, foram ignorados diversos postulados basilares de nosso Estado Democrático de Direito, entre estes, destaca-se a vedação ao retrocesso.
O princípio do não retrocesso, de acordo com Pedro Lenza (2014, p.414) e Marcelo Novelino (2015, p.524), impede, em tema de direitos fundamentais, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. Assim, pode-se afirmar que a decisão não observou o princípio em tela, pois, em 2009, a Suprema Corte alterou sua jurisprudência para adotar o sistema constitucional do trânsito em julgado em desfavor do modelo do duplo grau de jurisdição, ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro retrocede com o teor dessa decisão e isto não pode ser admitido, sob pena de violar outros princípios e postulados que sustentam o Estado.
O direito à liberdade é um dos bens jurídicos mais valorosos em nosso ordenamento jurídico e qualquer vedação a tal direito deve ser fundamentada e excepcional, ou seja, a privação do direito à liberdade é medida extrema e que só pode ser autorizada em casos excepcionais.
De acordo com Daiana Machado (2016, p.01):
“Considera-se a inocência presumida uma garantia fundamental e um instituto essencial ao exercício da jurisdição, uma vez que funciona como instrumento limitador do poder estatal, garantindo proteção à dignidade da pessoa humana. Desconsiderar tal presunção é ofender garantia assegurada na Lex Fundamentalis, significando verdadeiro retrocesso no tocante aos direitos fundamentais, que devem ter seu núcleo essencial preservado, inclusive contra ingerência indevida até mesmo por parte do Poder Judiciário. Ainda que se argumente que a existência de numerosos recursos provoca morosidade nos julgamentos, o que fortaleceria a impunidade, certo é que se trata de um argumento não jurídico, o qual deve ser repelido com ações do Estado em seu sistema criminal, com alteração da legislação e sistema carcerário, entre outras medidas de política criminal, sem que isso sirva de argumento para afastar uma garantia constitucionalmente assegurada”.
Embora ocorrida a mudança de jurisprudencial aqui em comento, seria perfeitamente, plenamente possível manter o entendimento de que, uma vez presentes os requisitos da prisão preventiva, o réu poderia ser encarcerado sem que tal fato ilustrasse uma violação ao princípio da presunção de inocência. Isso é aceitável até mesmo pelos garantistas extremados, que buscam adequar o atual sistema processual penal às garantias previstas pela Constituição e Tratados de Direitos Humanos.
No entanto, é imanente ao bom funcionamento do sistema democrático brasileiro a possibilidade de alterações jurisprudenciais. Porém, faz-se mister que ocorra alteração de fato ou de direito que sirva de base para a mudança e que, sobretudo, se respeite a segurança jurídica, o que, claramente, não ocorreu no caso em análise.
O conteúdo do Habeas Corpus 126.292/SP, que não é diferente da grande maioria já decididos pelo Supremo Tribunal Federal desde o ano de 2009 (ano em que foi pacificada, anteriormente, a jurisprudência acerca do tema), não demonstra alterações de fato ou de direito capazes de justificar uma mudança dessa magnitude no seio da Corte Constitucional brasileira. Ainda no que tange à decisão, o Ministro relator do processo acolheu a tese de que, a partir do momento da confirmação do acórdão condenatório em segunda instância, extingue-se o alcance do campo de incidência do princípio da não culpabilidade, explicando que os recursos cabíveis em instância superior, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, não são o meio adequado para discutir matérias fáticas e probatórias, mas apenas de direito.
Não obstante, o art.5º, inciso LVII, não traz, não cria qualquer distinção entre a natureza (ou o momento) da decisão que transita em julgado, impondo somente que a culpa do acusado seja declarada com a impossibilidade de interposição de recursos, ou seja, a Constituição condiciona a culpabilidade à formação da coisa coisa julgada penal. Não há que se falar, por exemplo, que um capítulo da decisão que trate sobre matéria fática se torne imutável, enquanto outro, tratando de questão constitucional, seja passível de discussão através da via recursal.
Ainda que a matéria a ser discutida pela Corte Constitucional deva limitar-se à matéria direito, basta a existência de possibilidade de alteração para impedir que ocorra o trânsito em julgado da decisão condenatória, devendo, então, o réu ser tratado como não culpado, vedando-se a aplicação da prisão cautelar, bem como das outras medidas, desde que o réu não preencha as condições que autorizam a aplicação de tais medidas, podendo aguardar em liberdade o prosseguimento de seu processo (MACHADO, 2016, p.01).
A decisão em comento estende seus efeitos aos âmbitos constitucional, como já visto, convencional, infraconstitucional e executivo, este último no que se refere à questão do sistema carcerário.
Sobre as consequências no sistema prisional, um dos votos vencidos, o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, ressaltou em seu voto que a alteração de entendimento da Corte irá causar um aumento do número de presos, onerando, ainda mais, o sistema penitenciário brasileiro, praticamente falido, que já sofre com uma das maiores populações carcerárias do mundo (aproximadamente 600 mil presos) e com a precariedade de seu aparelhamento.
O alto índice de reforma de decisões de segundo grau pelo STJ e pelo próprio STF reflete, por si só, o descabimento da decisão. Dessa forma, a execução provisória da pena é alarmante, pois caso reformada, causará prejuízo irreparável na vida das pessoas que forem encarceradas injustamente. Esse é o entendimento esposado pelo ministro Marco Aurélio, também voto vencido no julgamento.
Deve-se ainda registrar que o princípio da presunção de inocência recebe status de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, parágrafo 4°, da Constituição Federal de 1988. Sendo assim, qualquer proposta de emenda à Constituição tendente a modificar ou até mesmo esvaziar o sentido do princípio deve ser repudiada (LENZA, 2013, p.367).
Por fim, cumpre elucidar o fato de que a decisão desrespeitou tratados de Direitos Humanos que o Brasil é signatário, como o Pacto de San Jose da Costa Rica, podendo o país vir a sofrer sanções internacionais. Além de compatíveis com a Constituição, as normas internas devem estar em conformidade com os tratados internacionais ratificados pelo governo e em vigor no país, condição a que se dá o nome de controle de convencionalidade. Controle de suma importância para fortalecer a rede de proteção aos direitos e garantias dos indivíduos. Assim, a modificação jurisprudencial do Supremo reputa-se inconvencional, pois, como cediço, vai contra Tratados ratificados pelo Brasil.
O penalista Cezar Bitencourt (2016, p.01), criticando a posição do Supremo Tribunal Federal, no caso em tela, de forma contundente, assevera:
“O Brasil votou na Assembleia Geral da ONU de 1948, e aprovou a Declaração dos Direitos Humanos, na qual estava insculpido o principio da presunção de inocência, embora somente com a Constituição Federal de 1988 o Brasil incorporou expressamente a presunção de inocência como principio basilar do seu ordenamento jurídico. Contudo, com a aprovação pelo Congresso Nacional, pelo Decreto Legislativo nº27 de 1992, e com a Carta de Adesão do Governo Brasileiro, anuiu-se à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecido como Pacto de São José da Costa Rica, que estabeleceu em seu art. 8º, I, o Principio da Presunção de Inocência, ao afirmar que: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
Na verdade, o Brasil tem dois textos legais, no plano constitucional, que asseguram o princípio da presunção de inocência, na medida em que o art. 5º, § 2º da CF/88 atribui essa condição/natureza de constitucional ao Tratado Internacional devidamente aprovado no país. E, não se pode negar, tanto o Pacto de São José da Costa Rica, como o art. 5º, LVII, da CF/88, reconhecem, expressamente, a vigência desse princípio”.
3 ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HC 126.292/SP, SOB A ÓTICA DO PUNITIVISMO OU REDUCIONISMO
O Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição Federal de 1988, ao julgar o Habeas Corpus 126.292, deu azo a uma profunda alteração de um entendimento sedimentado de sua jurisprudência, no que se refere à possibilidade de execução provisória da pena, matéria que estava em paz desde o início do ano de 2009, quando foi julgado o Habeas Corpus 84.078/MG.
No julgado em comento (HC 84.078/MG), a Corte Constitucional decidiu, de forma não unânime, vale ressaltar, que um condenado só poderia ser preso após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e que a respectiva execução penal provisória estaria impossibilitada de ter início antes de esgotadas as vias recursais, com a evidente ressalva, é claro, de estarem, no caso concreto, preenchidos os requisitos da prisão preventiva. Tal entendimento perdurou por 07 anos e foi alvo de críticas, ainda naquela época por defensores da corrente punitivista (GARCEZ, 2016, p.01).
A corrente punitivista, embora tenha perdido bastante força no século XXI, defende medidar austeras e extremadas, muitas vezes sacrificando direitos e garantias fundamentais, temos como exemplo de sua influência, a Lei de Crime Hediondos e a Lei da Prisão Temporária, legislações que trazem severas medidas punitivas, que ao longo da última década tem sofrido com Ações Diretas de Inconstitucionalidade, culminando na inconstitucionalidade de diversos dispositivos.
Vale ressaltar que, conforme a doutrina de Nestor Távora (2013, p. 127), “a regra é a liberdade e o cárcere, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, deve ser tratado como medida de exceção, uma vez que o cerceamento cautelar da liberdade só pode ser autorizado em situações de extrema necessidade e fundamentado pelos requisitos previstos em lei”. Dessa forma, em razão da excepcionalidade da medida (prisão cautelar), seus fundamentos devem ser reavaliados para que seja evitado o cumprimento de pena sem sentença transitada em julgado.
Conforme versa as normas de Direito Convencional, existem dois sistemas aplicáveis à presunção de inocência, ou melhor, duas vertentes, possibilitando, então, a execução da pena. O primeiro é o sistema do trânsito em julgado da decisão condenatória (garantismo extremado), o outro é o do duplo grau de jurisdição (punitivismo). Assim ensina Luiz Flávio Gomes (2016, p.01):
“No primeiro sistema, somente depois de esgotados todos os recursos (ordinários e extraordinários) é que a pena pode ser executada (salvo o caso de prisão preventiva, que ocorreria teoricamente em situações excepcionalíssimas). No segundo sistema, a execução da pena exige dois julgamentos condenatórios feitos normalmente pelas instâncias ordinárias (1º e 2º graus). Nele há uma análise dupla dos fatos, das provas e do direito, leia-se, condenação imposta por uma instância e confirmada por outra”.
Sabe-se que quase a unanimidade dos países do ocidente adotam o sistema do duplo grau de jurisdição. Não obstante, de acordo com o já aduzido, a Constituição Federal de 1988 acolheu entre nós o sistema do trânsito em julgado da decisão condenatória. Assim, de acordo com o penalista William Garcez (2016, p.01):
“Dessa forma, em tratados e convenções internacionais, temos que o princípio da presunção da inocência deve “existir”, mas o seu “momento terminativo” fica a livre escolha de cada país. O princípio da presunção da inocência, no plano internacional, portanto, significa que deve ser garantido à pessoa ser tratada como não criminosa até que ela seja reconhecida dessa forma pelas normas do direito interno, é simples.Cabe referir, nesse ínterim, que o direito internacional deixa que cada país regule as balizas da presunção da inocência ao seu modo, de acordo com o seu ordenamento jurídico, não vinculando a legislação interna das nações a nenhum dos sistemas existentes. A única exigência internacional é que a presunção da inocência seja observada, como corolário lógico da dignidade da pessoa”.
Inclusive, no tocante ao direito internacional, ao exarar o seu voto no Habeas Corpus 126.292, o ministro Teori Zavascki citou manifestação da ex-ministra Ellen Gracie, no julgamento do Habeas Corpus 85.886, quando observou que “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte”.
Seguindo em seu raciocínio, e atraindo-o para o âmbito constitucional, o referido ministro, relator do processo, ressaltou em sua decisão que “até que seja prolatada a sentença penal, confirmada em segundo grau, deve-se presumir a inocência do réu. Mas, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ ou STF, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito” e, prossegue afirmando que “ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”. Cumpre, ainda, ressaltar a parte final do voto proferido pelo ministro Zavascki, que guarda em seu conteúdo um precioso argumento para os punitivistas:
“A execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias”.
O Ministro Luiz Fux também foi um dos que votou a favor da reforma jurisprudencial e citou “a sociedade não aceita mais essa presunção de inocência de uma pessoa condenada que não para de recorrer”. Ainda no que tange à votação, o ministro Luís Roberto Barros também mostrou-se partidário do sistema do duplo grau de jurisdição lecionando que “em boa parte dos países a exigência é de, no máximo, dois graus de jurisdição para o cumprimento da prisão e que qualquer acusado em processo criminal tem direito a dois graus de jurisdição. Esse é o processo legal”, e encerra colacionando seu entendimento, “a partir daí (segunda instância em diante) a presunção de não culpabilidade estaria desfeita”.
Por fim, conclui-se que o maior argumento dos punitivistas é que a presunção de inocência permanece integral no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, o que, de fato, ocorreu segundo William Garcez (2016, p.01):
“Foi uma nova interpretação quanto ao momento terminativo da presunção da inocência. Antes da decisão proferida no HC 126.292, tinha-se o entendimento de que a presunção da inocência vigorava até o “trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, agora, passou-se a ter o entendimento de que a presunção da inocência vigora até a “confirmação da sentença condenatória em segundo grau”.
CONCLUSÃO
O princípio da presunção de inocência deve ser observado, nos exatos termos da Constituição Federal de 1988, ou seja, deve-se seguir a corrente garantista, que, de fato, é a mais acertada.
O garantismo e sua efetivação tem evoluído em nosso sistema jurídico ao longo do século XXI, basta analisar as decisões dos Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) e acreditamos que esse é o caminho correto. A defesa das normas constituicionais, os direitos e garantias positivados no texto da Carta Maior precisam de efetivação máxima. Tais Direitos e Garantias constituem verdadeiras linhas de defesa contra os arbítrios do Poder Público, umas vez que esta foi a intenção da Constituição Federal de 1988, justamente, criar mecanismos de proteção contra o Poderes que constituiu, pois se o poder emanou e continua a emanar do povo, é este o soberano, e não, as autoridades.
Não obstante, o povo deve seguir os comandos do Estado, pois, como se sabe, doou parte de suas prerrogativas em prol do bem-comum e é o Estado que administra esses interesses. Logo, é legítima a autoridade do Estado e é, em razão dessa autoridade, que a Constituição institui o sistema de Garantias. Sendo a Presunção de Inocência uma delas.
O princípio da presunção de inocência é o princípio reitor, por excelência, do processo penal, sendo esta uma particularidade frente ao processo civil. No processo penal estamos tratando de um dos bens jurídicos de maior valor em nosso ordenamento, que é a liberdade. Não observar este princípio ou até mesmo invertê-lo é uma regressão para tempos medievais, tempos de ignorância, tempos em que a presunção, no processo penal, era de culpabilidade, ou seja, o contrário do que temos hoje positivado constitucionalmente.
Dessa forma, como manda a boa hermenêutica, devemos ampliar, a fim de buscar a máxima efetividade, o sentido e o alcance das normas que tutelam a liberdade e a Constituição brasileira de 1988 adotou, claramente, ainda que em exceção às demais Constituições ocidentais, o sistema do trânsito em julgado.
Tal sistema garante que aquele que está respondendo a um processo penal só poderá ser considerado após o trânsito em julgado da sentença, podendo responder ao referido processo em liberdade, pois até a sentença transitar em julgado, o réu presume-se inocente, presume-se livre de culpa.
O Supremo Tribunal Federal, com a devida vênia, erroneamente seguindo os anseios populares adotou o sistema do duplo grau de jurisdição, alterando o momento limite em que a presunção de inocência deve ser observada. A Suprema Corte não deve ceder aos clamores sociais em troca de desrespeitar direitos e garantias, os fins, por mais sedutores que sejam, não podem justificar os meios empregados. É papel do Supremo Tribunal Federal ser contra-majoritário, afinal, como guardião da Constituição deve defender seu conteúdo e interpretá-la devidamente, não pode querer “agradar”, este não é e nunca foi o papel do STF.
Assim, faz-se mister
A função dos agentes policiais e os serviços oferecidos em âmbito de delegacia não podem ser banalizados. Não é qualquer ocorrência, qualquer caso que deve ser recebido pelos agentes e levado à ciência da autoridade policial, no caso, o delegado de polícia.
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