Autor: Antônio Fernando da Fonseca Martins – Advogado do BNDES, MBA em Finanças pela Faculdade de Economia e Finanças IBMEC. O texto é de responsabilidade exclusiva do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do BNDES.
Resumo
O presente artigo analisa as razões subjacentes à inexistência de contratos de parceria público-privada celebrados por entidades constituídas a partir instrumentos de gestão associada (consórcio público ou convênio de cooperação) no Brasil, dado o incontestável potencial econômico para este perfil de contratação. Assumindo que uma das principais dificuldades para a concretização de projetos na prática cinge-se à definição da dinâmica mais adequada de rateio da contraprestação pecuniária a que faz o jus o parceiro privado entre os entes consorciados ou convenentes, busca-se apresentar, de forma objetiva, possíveis critérios a serem observados por gestores públicos na alocação da responsabilidade financeira a cada ente associado.
Palavras-Chave: Parceria público-privada. Gestão associada. Rateio. Contraprestação pecuniária.
Abstract
The present work analysis the reasons that explain the lack of public private-partnership contracts signed by entities formed from joint management instruments (public consortium or cooperation agreement) in Brazil, considering the huge economic potential for this kind of contract. Assuming that one of the main difficulties to the implementation of actual projects regards the definition of the most adequate apportionment dynamic of the government payments due to the private partner between the state entities involved, the essay presents, in an objective manner, possible criteria to be observed by public authorities in the allocation of the financial responsibilities between each associated entity.
Keywords: Public-private partnership. Joint management. Apportionment. Government payments.
Sumário
Introdução. I. Breve contextualização. II. O silêncio da lei e a restrição do decreto. III. Rateio e PPPs: Premissas básicas. IV. Requisitos impertinentes. V. Condições razoáveis. VI. Conclusão
Introdução
A delegação da prestação de serviços ordinariamente estatais à iniciativa privada tem se apresentado como uma alternativa relevante para a promoção de eficiência e transparência na relação com os usuários destes serviços. Contudo, os custos de transação para celebração de contratos complexos, como as parcerias público-privadas, dificultam que este mecanismo seja utilizado por uma parcela dos entes públicos brasileiros.
Neste contexto, revela-se essencial viabilizar a concretização de instrumentos de gestão associada com esta finalidade, razão pela qual nos debruçamos, a seguir, sobre um tema pouco explorado, mas que precisa estar muito bem esclarecido para que se gerem contratos de PPP efetivamente estáveis e atrativos a partir de consórcios públicos e convênios de cooperação.
I.Breve contextualização
No âmbito de uma ampla reforma da organização administrativa do Estado, a Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, determinou, ao legislador infraconstitucional, que produzisse a regulação legal das figuras jurídicas denominadas consórcio público e convênio de cooperação, deixando expresso, de antemão, que a legislação a ser elaborada deveria autorizar (e, por consequência, viabilizar) a gestão associada de serviços públicos[1].
Pretendeu-se atender tal comando, em nível nacional, por meio da edição da Lei nº 11.107, de 06 de abril de 2005, que fixou normas gerais sobre estes instrumentos associativos[2], posteriormente pormenorizadas pelo Decreto Federal nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007.
Desde então[3], entes públicos têm recorrido, com regularidade, ao consorciamento; pesquisa recente da Confederação Nacional de Municípios identificou a existência de 491 consórcios públicos no Brasil, sendo que mais de 4.000 municípios participavam, no momento da realização do levantamento, de ao menos um consórcio[4].
Em paralelo, apenas poucas semanas antes da publicação da Lei nº 11.107, enfrentava-se outro tema caro à gestão estatal, por meio da promulgação, em 30 de dezembro de 2004, da Lei nº 11.079, que introduziu no ordenamento jurídico duas novas modalidades contratuais de delegação de serviços pelo Poder Público[5], quais sejam, a concessão administrativa e a concessão patrocinada, cognominadas, individualmente ou em conjunto, parcerias público-privadas (PPPs) [6].
Para fins de alinhamento de conceitos, rememore-se que a concessão patrocinada consiste, basicamente, em um contrato de prestação de serviços públicos no qual a remuneração do parceiro privado é composta, em parte, por recursos advindos de tarifa cobrada dos usuários, e, em parte, por contraprestação pecuniária do Estado, ao passo que se define como concessão administrativa o contrato de prestação de serviços (públicos ou não), no qual “a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta” [7].
Desde o primeiro momento da vigência do diploma legal em comento, autoridades e estudiosos têm destacado o vasto campo de oportunidades econômicas para a utilização das PPPs na implantação, manutenção e gestão de ativos públicos relacionados à educação, à saúde, ao saneamento básico, à mobilidade urbana, à iluminação pública, ao sistema prisional, etc., havendo uma crescente expectativa de que este modelo de parceria com a iniciativa privada viabilize, efetivamente, um salto qualitativo na prestação dos serviços titularizados pelo Poder Público.
Estas considerações introdutórias são suficientes para evidenciar a proximidade entre os instrumentos de gestão associada e as parcerias público-privadas: ambos os institutos objetivam um aprimoramento do exercício das funções estatais, sendo que, em diversos casos, a única alternativa factível para determinados entes (especialmente, municípios pouco populosos) obterem a escala necessária[8] à estruturação de projetos de parceria público-privada reside, precisamente, na união de forças com outros entes, por meio de mecanismos formais de associação pública.
Isto posto, talvez surpreenda a constatação de que, após aproximadamente 15 anos de vigência de ambos os diplomas legais, não se identifique nenhuma experiência relevante de parceria público-privada contratada por meio de consórcio público ou convênio de cooperação (na verdade, o autor deste texto desconhece a celebração de qualquer contrato com estas características[9]; porém, tendo em vista a dificuldade de se fazer afirmações peremptórias sobre fatos desta natureza em um país com mais de 5.500 municípios e pouca transparência – ou organização – na disponibilização de informações aos cidadãos, optou-se por atenuar a assertiva mediante o uso da qualificação “relevante”).
Alguns fatores podem explicar esta realidade, notadamente a omissão legislativa no que toca à interação entre os dois institutos e o número expressivo de incertezas e objeções – decorrentes, em boa parte, deste oblívio legal – que assaltam aqueles que se aventuram a avaliar, seriamente, a implementação de projetos com este perfil.
A despeito das justas críticas à desídia na regulação da matéria, acreditamos, entretanto, que parte da dificuldade observada atualmente na concretização destes projetos resida na adoção de interpretações excessivamente cautelosas ou, por vezes, mesmo patentemente equivocadas, por gestores e consultores encarregados do desenvolvimento destas oportunidades, e postulamos, portanto, existir um espaço razoável para evolução doutrinária sobre diversos aspectos atualmente obscuros do tema.
Assim, e considerando a impossibilidade de abordar neste momento, com um grau adequado de zelo, todas as polêmicas pertinentes à matéria, pretendemos focar, neste trabalho, em um único, porém fulcral, ponto relativo à estruturação de um projeto de PPP por meio de gestão associada: o rateio, entre os entes consorciados ou convenentes, dos valores da contraprestação devida ao parceiro privado.
II. O silêncio da lei e a restrição do decreto
Apesar da Lei nº 11.107, conforme mencionado, ter sido promulgada três meses após a edição da Lei de PPPs, ao analisá-la com atenção, fica-se com a impressão de que esta ignora, por completo, a existência do instituto jurídico da parceria público-privada.
Parece-nos que a atuação do legislador neste caso possa ser mais bem compreendida a partir da análise da tramitação legislativa destes dois diplomas legais: de fato, embora a Lei nº 11.107 seja cronologicamente posterior, o projeto legislativo que deu origem a esta norma foi proposto em junho de 1999[10], mais de quatro anos antes da data da apresentação da proposta que gerou a Lei nº 11.079[11].
Tal conjuntura pode indicar que (i) a inexistência de debate sobre parcerias público-privadas ao longo da maior parte do prazo de tramitação da Lei nº 11.107, (ii) a aprovação relativamente célere da Lei nº 11.079 (à época, uma prioridade governamental) e (iii) o reduzido intervalo de tempo entre a promulgação das duas leis prejudicaram o debate e a eventual elaboração de regramento específico sobre PPPs na versão final da lei pertinente à cooperação pública.
Não se identifica, porém, qualquer explicação razoável para o fato do Decreto nº 6.017 não apenas ignorar a possibilidade de utilização dos instrumentos de gestão associada na contratação de parcerias público-privadas, como também incorporar definições e regras que, extrapolando os termos legais, tornam ainda mais difícil a compatibilização entre o modelo de gestão associada e as PPPs.
Possivelmente o ponto mais problemático deste regulamento diga respeito à definição adotada para a expressão serviço público, conceituada como “atividade ou comodidade material fruível diretamente pelo usuário, que possa ser remunerada por meio de taxa ou preço público, inclusive tarifa”.
A opção pela eleição da forma de remuneração da atividade como critério de distinção, se tomada como válida[12], posto não impedir aos consórcios públicos[13], a priori, a celebração de contratos de concessão patrocinada ou administrativa, torna inaplicáveis, a estes[14], as regras legais e regulamentares pertinentes à “gestão associada de serviços públicos”, uma restrição significativa, a se julgar pelo número de vezes – 15 – em que a Lei e o Decreto mencionam a expressão.
Além do agravamento do vácuo normativo que esta restrição conceitual ocasiona, pode-se constatar um prejuízo efetivo à segurança jurídica deste arranjo contratual quando se analisa, individualmente, as normas legais e regulamentares cuja aplicabilidade teria sido afastada pela definição escolhida. Cite-se, como exemplo, o preceito constante do artigo 34 do Decreto, que excepcionaliza, para a hipótese de gestão associada de serviços públicos, a rescisão automática do contrato de programa no caso de extinção do contrato de consórcio público ou do convênio de cooperação[15].
Em relação propriamente ao rateio, objeto da nossa atenção precípua, ressalte-se que, além de não agregar praticamente nada às regras legais, o decreto em comento incorporou uma modificação, à primeira vista banal, à organização textual da norma sobre obrigações de longo prazo, que, interpretada literalmente, pode gerar danos reais à viabilização de projetos.
Na Lei n° 11.107, referida regra, fundamental para estabilidade das fontes de custeio de projetos de longo prazo, encontra-se expressa nos seguintes termos:
“O contrato de rateio será formalizado em cada exercício financeiro e seu prazo de vigência não será superior ao das dotações que o suportam, com exceção dos contratos que tenham por objeto exclusivamente projetos consistentes em programas e ações contemplados em plano plurianual ou a gestão associada de serviços públicos custeados por tarifas ou outros preços públicos” [16].
Por sua vez, o Decreto nº 6.107, que em tantos outros pontos se conformou com uma repetição literal da lei regulamentada, houve por bem segregar, neste tópico, a norma legal em dois dispositivos, da seguinte forma:
“O contrato de rateio será formalizado em cada exercício financeiro, com observância da legislação orçamentária e financeira do ente consorciado contratante e depende da previsão de recursos orçamentários que suportem o pagamento das obrigações contratadas” [17].
“O prazo de vigência do contrato de rateio não será superior ao de vigência das dotações que o suportam, com exceção dos que tenham por objeto exclusivamente projetos consistentes em programas e ações contemplados em plano plurianual” [18].
A se considerar que não se trata meramente de uma mudança de estilo, e, baseando-se numa intepretação gramatical dos dispositivos citados, seria razoável entender que o Decreto determina a celebração obrigatória do contrato de rateio em cada exercício financeiro, permitindo, no entanto, que sua vigência seja superior ao prazo do exercício naqueles projetos contemplados no plano plurianual (como são, por força legal, as parcerias público-privadas[19]).
Evidentemente, tal leitura, que desassocia vigência e celebração, se mostra desprovida de qualquer sentido lógico – qual seria a razão para se firmar um novo contrato se o anterior ainda estiver vigente? –, mas serve como exemplo das dificuldades que resultam da atecnicidade na redação das normais legais e regulamentares.
Tendo por pano de fundo o quadro normativo acima delineado, e, em especial, os princípios da razoabilidade e eficiência que norteiam a atividade administrativa, passa-se a examinar, na sequência, as especificidades do contrato de parceria público-privada que devem condicionar o estabelecimento das regras de rateio[20].
III.Rateio e PPPS: premissas básicas
Como é cediço, o modelo de parceria público-privada objetiva viabilizar o atendimento de demandas de interesse público mediante a delegação da prestação de serviços a operadores privados que se interessem por empreendimentos capazes de gerar receitas previsíveis, estáveis e de baixo risco, nos quais a amortização do investimento ocorra em prazo distendido.
Mostra-se, portanto, essencial, para o bom funcionamento deste modelo, que se demonstre a disponibilidade de recursos para o projeto, razão pela qual a Lei nº 11.079 encerrou requisitos específicos que pudessem assegurar a sustentabilidade econômico-financeira do contrato, exigindo (i) a inclusão de seu objeto no plano plurianual, (ii) a demonstração de estimativa de fluxos suficientes para pagamento da contraprestação durante a vigência do contrato, (iii) elaboração de estimativa do impacto orçamentário-financeiro da parceria durante toda vigência contratual e (iv) a avaliação acerca da compatibilidade entre as obrigações contratuais e a lei de diretrizes orçamentárias e o orçamento anual.
Na verdade, ainda que inexistentes estes imperativos legais, afigura-se razoável supor que exigências semelhantes se imporiam pela prática contratual, uma vez que nenhum agente econômico racional assumiria obrigações, mormente aquelas que implicam em elevado dispêndio de recursos, sem ter uma mínima segurança acerca da capacidade da contraparte cumprir os encargos contratuais ao longo do tempo.
Evidentemente, para a promoção destas análises financeiras, revela-se indispensável saber o valor da contraprestação pecuniária assumida, que pode tanto ter sido previamente fixada no edital, como ter constituído a variável de licitação; em qualquer caso, tal cifra é conhecida antes da assinatura do contrato de concessão e com base nela o ente público deve comprovar a higidez do projeto.
Ora, sendo a remuneração[21] do parceiro privado na PPP definida antes do início da vigência do vínculo, convém, por consequência, que, nas hipóteses de contratação por instrumentos de gestão associada, o rateio dos recursos necessários à satisfação desta verba também esteja prévia e objetivamente determinado; se não por outro motivo, ao menos a fim de permitir que os entes consorciados ou convenentes possam demonstrar o atendimento das exigências dos incisos I a V do artigo 10 da Lei nº 11.079.
Atente-se que não nos referimos, neste ponto, à mera predefinição de parâmetros de rateio (o que ocorre, por exemplo, quando se estabelece que cada ente arcará com a remuneração dos serviços efetivamente prestados em seu território); para a contratação de um projeto de concessão, tal nível de irresolução se revela inapropriado.
Com efeito, nas parcerias público-privadas, é preciso que os valores concretos de responsabilidade de cada ente consorciado ou convenente já estejam determinados nos instrumentos jurídicos da cooperação, e não somente parâmetros que sirvam para orientar decisões posteriores sobre o tema.
Naturalmente, afigura-se ilusório imaginar que um investidor privado aceitaria, por um preço minimamente razoável, se sujeitar, mensalmente ou em outro intervalo de tempo de vencimento da contraprestação, a assistir repetidamente uma disputa entre os entes públicos sobre a responsabilidade de cada um em relação à contraprestação faturada.
Esclareça-se que a rejeição a esta divisão a posteriori não deve ser lida como um repúdio a eventual previsão de regras de repactuação do rateio; estas podem se justificar em determinados cenários, desde que, imprescindivelmente, reflitam parâmetros objetivos e gerem eventos infrequentes ao longo da vida contratual (um rateio que se baseie, por exemplo, no número de habitantes de cada ente pode, a princípio sem fomentar qualquer insegurança contratual, incorporar uma revisão decenal a partir da comparação entre o crescimento populacional previsto e o crescimento efetivo apurado por órgão censitário oficial).
Assentando-nos, afinal, nas premissas de que o rateio necessita ser previamente estabelecido e contratualmente blindado de conflitos, passamos a investigar, nos dois próximos capítulos, os critérios mais adequados para definição da reponsabilidade financeira de cada ente em contratos de PPP celebrados por meio de gestão associada.
IV. Requisitos impertinentes
Principiando por um enfoque negativo sobre a questão, registramos que, a nosso sentir, não cabe exigir nem (i) a demonstração de uma repartição exata de custos entre os entes associados, tampouco (ii) que o benefício decorrente da associação seja, em termos absolutos ou proporcionais, idêntico entre todos. Expliquemo-nos.
Em relação ao primeiro ponto, se está diante, praticamente, de uma impossibilidade fática: pense-se, por exemplo, na tentativa de projetar, com precisão, a divisão das horas de trabalho de cada funcionário da concessionária entre os entes associados ou de identificar, na modelagem, aquele beneficiado por cada ínfima aquisição de material.
Ademais, mesmo que fosse possível precisar a parcela referível a cada associado, o detalhamento destes custos na modelagem do projeto, além de representar um esforço inútil, poderia fomentar futuras divergências entre os entes associados sobre o critério de rateio escolhido vis-à-vis os resultados concretos da concessionária, uma vez que projeções, por melhores que sejam, nunca se conformam integralmente com a realidade.
Do mesmo modo, também a equalização de benefícios, que de início pode parecer uma premissa razoável, se revela, analisada em contexto, uma exigência despropositada.
De fato, além de não haver base legal para que gestores ou órgãos de controle demandem que os entes consorciados ou convenentes tenham idêntico benefício da cooperação, deve-se reconhecer que a ausência de igualdade nos ganhos com a gestão associada consiste em resultado natural e esperado de uma associação entre entes desiguais.
Permitimo-nos recorrer a um exemplo para facilitar a compreensão desta afirmação: suponha-se que a concessão de determinado serviço pelos municípios “A”, de 500.000 habitantes, e “B”, de 200.000 habitantes, se contratada de forma isolada por cada um, demandaria o pagamento de uma contraprestação mensal, respectivamente, de R$ 600 mil e R$ 300 mil.
Imagine-se que os gestores responsáveis, entretanto, antevejam a oportunidade de associação como meio de reduzir custos e fomentar sinergias na prestação do serviço, concluindo, a partir de análises técnicas e de negociações exaustivas, que a contratação pode ser realizada em conjunto (por um consórcio formado pelos dois municípios) por um valor mais atrativo, equivalente a R$ 700 mil/mês, definindo-se que R$ 510 mil seriam de responsabilidade de “A” e R$ 190 mil seriam de responsabilidade de “B”.
Neste caso, pode-se constatar que o benefício que A obtém da parceria se apresenta, em termos absolutos e proporcionais, menor do que o obtido por “B” (“A” economiza
R$ 90 mil/mês, correspondentes a 15% do dispêndio original, ao passo que “B” economiza R$ 110 mil/mês, equivalentes a cerca de 37% da verba necessária para a contratação autônoma).
Neste contexto, indaga-se: poderia o gestor do município “A” ser questionado se a associação for concretizada nestes termos? Seria correto afirmar que o município “A” está pagando qualquer forma de subsídio ao município “B”?
A nosso ver, ambas as perguntas devem ser respondidas negativamente.
Com efeito, o gestor público de “A” conseguiu, por meio de uma estratégia constitucionalmente admitida e legalmente incentivada, uma economia significativa dos recursos públicos de seu município, não havendo, a princípio, nada que censure sua conduta.
Ressalte-se que procuramos, propositalmente, utilizar números no exemplo que demonstrassem uma circunstância recorrente na prática, qual seja, a de que existindo uma escala mínima ou ideal para viabilização de determinada infraestrutura, quanto mais distante um ente estiver deste parâmetro, maior será o benefício que obterá da associação com outros, e vice-versa.
De mais a mais, a capacidade de assunção de responsabilidades é diretamente proporcional à envergadura financeira e à saúde fiscal dos entes associados, o que, na prática, também tende a militar em favor de uma redução mais acentuada das responsabilidades dos entes de menor porte na entidade associativa.
Cuidando-se, portanto, de uma predisposição natural ou economicamente fundamentada, qualquer tentativa de forçar uma pretensa equalização provavelmente imporá um ônus financeiro desproporcional a alguns dos entes consorciados ou convenentes, o que pode, facilmente, inviabilizar o acordo, em prejuízo de todos.
Esclareça-se, adicionalmente, que não há qualquer subsídio envolvido na hipótese relatada no exemplo: as partes dividem (de forma não linear) ganhos decorrentes da associação, que não existiriam se esta não fosse concretizada, ou seja, não há um ganho atribuível a “A” ou “B”, mas um ganho conjunto, que necessita ser repartido numa negociação entre as partes.
Cremos que se justifica a ênfase dada a este ponto, pois interpretações rigoristas (repita-se, sem base legal) que pretendam impor rígidos limites a esta negociação terminam por gerar, invariavelmente, um receio nos gestores públicos responsáveis, o que pode paralisar, na origem, iniciativas auspiciosas à população.
V. Condições razoáveis
Apresentada nossa opinião acerca de exigências indevidas, passamos a expor as balizas negociais que, a nosso sentir, se harmonizam ao ordenamento e às finalidades da gestão associada.
Essencialmente, pensamos que as instâncias de aprovação da parceria público-privada e os órgãos de controle devem exigir a comprovação (i) de que a execução associada das atividades seja mais vantajosa que a execução isolada e (ii) de que haja alguma relação próxima entre o parâmetro escolhido para o rateio e a natureza dos serviços a serem prestados.
Por princípio, dada as exigências de fundamentação do ato administrativo[22], não se vislumbra de que maneira uma parceria que não traga ganhos a determinado associado possa se justificar perante seus cidadãos. Recorde-se que a cooperação entre entes públicos não é um fim em si mesmo, mas um meio para se aperfeiçoar a prestação dos serviços estatais.
Se restar claro que um município poderia conceder autonomamente o serviço com menor custo, seu ingresso numa associação importaria, ao fim e ao cabo, numa transferência de renda de seus contribuintes para os de outras localidades, uma espécie de doação construída totalmente ao arrepio da legislação.
Saliente-se, todavia, que esta tende a ser uma hipótese bastante infrequente na prática, uma vez que a associação tem o potencial de gerar ganhos a todos os consorciados ou convenentes, ainda que, conforme explicamos no capítulo precedente, em graus diferentes a cada um.
Uma situação limítrofe diz respeito aos casos em que a prestação autônoma do serviço se mostraria mais econômica ao município, mas, ainda assim, por conta de externalidades ou outras condições peculiares, o ganho total do município com a associação justifique sua implementação.
De novo, vemo-nos constrangidos a recorrer a um exemplo: imagine-se que determinado município tenha a opção de implantar, por PPP, uma unidade de saúde que atenda adequadamente a sua população e que, após as análises financeiras pertinentes, se constate que esta alternativa seja menos dispendiosa do que a construção, por meio de consórcio público, de um grande hospital que atendesse sua população e a dos municípios circunvizinhos.
É possível que o gestor municipal, ao se deparar com este cenário, note, porém, que na ausência de oferecimento de um atendimento adequado de saúde numa unidade regional, moradores de cidades próximas iriam procurar atendimento na unidade de saúde a ser implantada no município, saturando-a e comprometendo a qualidade dos serviços prestados e o orçamento inicialmente previsto.
Pode-se dizer que a gestão associada, neste caso, se justifica por uma inviabilidade fática da prestação autônoma do serviço, ainda que esta opção seja, em teoria, mais econômica. Evidentemente, haverá aí a necessidade de um esforço argumentativo maior por parte do gestor, a fim de convencer os stakeholders de que esta é, realmente, a opção que melhor atende aos interesses dos munícipes.
Por fim, parece-nos imprescindível que o parâmetro utilizado para o rateio e a natureza do serviço prestado se inter-relacionem em algum grau; cuida-se, aqui, fundamentalmente, da razoabilidade que deve nortear a eleição do critério de rateio.
Na Cartilha de Consórcios Públicos de Saneamento Básico, publicada pela Funasa[23], constam alguns exemplos de regras de rateio adotadas em experiências concretas que, apesar de se referirem a um setor específico e não envolverem contratos de PPP, representam uma amostra interessante de critérios a serem considerados em futuras parcerias; no rol ali descrito, são citados o número de habitantes de cada município, o número de ligações de água e o volume de resíduos produzidos.
De fato, o critério populacional – ou de número de usuários, quando o serviço for divisível – parece combinar justiça fiscal e simplicidade de apuração numa medida interessante, que habilita sua utilização em muitas das iniciativas de associação que se possa conceber, sem prejuízo, evidentemente, dos parceiros buscarem critérios mais específicos ao serviço concedido (para não ficarmos restritos a exemplos do setor de saneamento, cite-se, a título de ilustração, a aparente razoabilidade da utilização do número de pontos de luz como critério de rateio em PPPs de iluminação pública).
O que não pode ser aceito, em qualquer caso, é que o parâmetro escolhido fuja à racionalidade ou a realidade da prestação dos serviços, como o seria o caso, por absurdo, de uma PPP intermunicipal de serviços educacionais que adotasse o número de automóveis ou de árvores em cada município como critério de rateio.
Registre-se, entretanto, que salvo no caso de arranjos claramente despropositados, convém conceder o benefício da dúvida aos gestores públicos em situações discutíveis, uma vez que, afinal, o critério de rateio resulta de uma negociação entre os entes, calcada não apenas em cálculos teóricos ou ilações abstratas, mas, também e principalmente, na efetiva capacidade de contribuição de cada ente consorciado ou conveniado.
VI.Conclusão
Os instrumentos de gestão associada, em especial os consórcios públicos, e as parcerias público-privadas têm obtido, cada qual em sua esfera, algum sucesso no aprimoramento da gestão pública no país, mas a conciliação dos dois institutos em projetos concretos, em que pese um potencial promissor, ainda se mostra uma realidade distante.
Acreditamos que, sem embargo de alterações normativas que poderiam ser úteis à segurança jurídica de futuros projetos, os entes públicos ressentem-se de maior aprofundamento do tema na doutrina, razão pela qual se espera que cada vez mais autores se debrucem sobre as questões aqui apresentadas.
Referências:
Mapeamento dos Consórcios Públicos Brasileiros. Confederação Nacional dos Municípios, out. 2018. Disponível em: <https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/Mapeamento%20dos%20cons% C3%B3rcios%20p%C3%BAblicos%20 brasileiros.pdf>
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.
Cartilha de Consórcios Públicos de Saneamento Básico: explicitando os caminhos, as experiências e as vantagens da cooperação interfederativa no saneamento / Ministério da Saúde; Fundação Nacional de Saúde; Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2017.
[1] Artigo 241 da Constituição Federal: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.
[2] A Lei 11.107/05 não traz definições de consórcio público ou convênio de cooperação, o que é feito apenas por seu decreto regulamentador: segundo este instrumento, consórcio público seria a “pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na forma da Lei no 11.107, de 2005, para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum, constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos” e o convênio de cooperação, o “pacto firmado exclusivamente por entes da Federação, com o objetivo de autorizar a gestão associada de serviços públicos, desde que ratificado ou previamente disciplinado por lei editada por cada um deles”.
[3] Insta esclarecer que consórcios públicos já existiam antes da lei regulamentadora e da própria emenda constitucional (e alguns destes continuam em operação, não submetidos à legislação posterior). De fato, apesar da nova disciplina constitucional e legal ter contribuído para disseminação desta tecnologia jurídico-institucional, não se entendia antes ser proscrita a associação entre entes públicos.
[4] Mapeamento dos Consórcios Públicos Brasileiros. Confederação Nacional dos Municípios, out. 2018. Disponível em: <https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/Mapeamento%20dos%20cons%C3%B3rcios%20p%C3%BAblicos%20 brasileiros.pdf>. Acesso em 23 mar. 2019. Interessante notar que uma impressão corrente, confirmada por este estudo, é de que há uma concentração de consórcios no setor de saúde (38% do total), o que se explica por motivos relacionados à governança do Sistema Único de Saúde (SUS).
[5] Estas duas modalidades vieram se somar à concessão comum, disciplinada pela Lei nº 8.987/95.
[6] Com efeito, trata-se aqui de definição legal, porém estrita, da expressão parceria público-privada, uma vez que, de um ponto de vista doutrinário, não seria equivocado denominar de parceria público-privada as diferentes formas de cooperação entre o Estado e particulares. Ao longo do texto, contudo, esclarece-se que a expressão deve ser entendida no seu sentido mais específico.
[7] Lei nº 11.079/04: “Art. 2o. Parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa. § 1o Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado. § 2o Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens”.
[8] A própria Lei 11.079/04 veda a celebração de parcerias cujo valor seja inferior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Na prática, porém, o problema não está tanto em limitações legais, mas na inviabilidade econômica da utilização deste mecanismo contratual – que possui, necessariamente, altos custos de transação – para empreendimentos que não importem na aplicação de recursos significativos. Na sequência do texto, abordamos também a restrição derivada dos altos custos fixos de operação de determinas infraestruturas.
[9] Referimo-nos à hipótese específica descrita no texto. São conhecidas iniciativas próximas, porém distintas, como de companhias estaduais de saneamento, notadamente a COMPESA e a CESAN, que delegaram, por PPP, parcela do objeto para que foram contratadas pelos municípios (não há aí o consórcio público), e de consórcios públicos, como o Consórcio de Transporte Grande Recife, que delegaram serviços por meio de concessão comum (neste caso, falta a PPP).
[10] Projeto de Lei 1.071/1999. Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb /fichadetramitacao?idProposicao=16220>. Acesso em: 23 mar. 2019.
[11] Projeto de Lei 2.546/2003. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ficha detramitacao?idProposicao=144047>. Acesso em: 23 mar. 2019. Como pode se constatar, o projeto foi apresentado em novembro de 2003.
[12] Com efeito, parece haver, neste ponto, uma efetiva exorbitância ou impropriedade do decreto, dado que a lei federal regulamentada se referia, em diferentes passagens, tanto a “serviços públicos” quando a “serviços públicos custeados por tarifas ou outros preços públicos”, denotando que a remuneração por tarifa ou preço público não seria uma condição essencial da noção de serviço público.
[13] Ao contrário do que ocorre com os convênios de cooperação, alternativa proscrita para a delegação de serviços por meio de PPP, dado que a própria definição de convênio de cooperação inclui o conceito de serviço público.
[14] Dependendo de como se interpretar o conceito, o objeto das concessões patrocinadas ainda poderia ser considerado serviço público, uma vez que remunerado, em parte, por tarifa.
[15] Artigo 34: “O contrato de programa continuará vigente mesmo quando extinto o contrato de consórcio público ou o convênio de cooperação que autorizou a gestão associada de serviços públicos”.
[16] §1º do artigo 8º da Lei 11.107/05. Maria Sylvia Zanella de Pietro considera natural a exceção aos serviços custeados por tarifas ou outros preços públicos, “uma vez que, nestes casos, os recursos não são provenientes do orçamento do ente consorciado”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 245.
[17] § 1º do artigo 13 do Decreto 6.107/07.
[18] Artigo 16 do Decreto 6.107/07.
[19] Inciso V, da alínea “c”, do inciso I do artigo 10 da Lei nº 11.079/04.
[20] Na utilização do termo rateio ao longo do trabalho não se deve ler uma referência ao denominado contrato de rateio; sem entrar numa discussão que escapa a nosso objetivo, ressalte-se apenas que, em determinados casos, aventa-se a possibilidade de que a transferência dos recursos – pagamento pela prestação dos serviços – se dê no âmbito do contrato de programa.
[21] Caberia falar, mais propriamente, em teto da remuneração, uma vez que os contratos comumente trazem a vinculação de parcela da contraprestação ao desempenho efetivamente apurado.
[22] “Sendo um elemento calcado em situação anterior à prática do ato, o motivo deve sempre ser ajustado ao resultado do ato, ou seja, aos fins a que se destina. Impõe-se, desse modo, uma relação de congruência entre o motivo, de um lado, e o objeto e a finalidade, de outro”. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016. p. 123.
[23] Cartilha de Consórcios Públicos de Saneamento Básico: explicitando os caminhos, as experiências e as vantagens da cooperação interfederativa no saneamento / Ministério da Saúde, Fundação Nacional de Saúde; Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. p. 45.
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