Resumo: O texto aborda o fenmeno da globalização no seu viés neoliberal apontando os principais impactos que esta provoca no sistema jurídico de proteção dos direitos sociais e na configuração de um autêntico Estado Social especialmente no Brasil.
“Numa economia regida pelas leis da concorrência pura e perfeita, na qual o governo se abstém de qualquer intervenção, o pleno emprego está garantido… entre os sobreviventes”. Jean-Paul Fitoussi (economista francês)
O estudo acerca da teoria dos Direitos fundamentais (numa acepção dogmática de Direito constitucional) resta significativamente prejudicado se olvidarmos do contexto socioeconômico e político no qual se insere sua problemática de fundo, qual seja, sua efetiva e real concretização. Nosso objeto de análise será a globalização no estilo em que esta ainda se apresenta – neoliberal –, e suas múltiplas implicações sociais, econômicas e políticas, especialmente no Brasil.
A globalização pode ser designada como um processo de crescente interdependência entre as nações e sociedades, engendrando mecanismos de incorporação dos povos do mundo em uma única sociedade mundial. Octavio Ianni, utilizando a expressão cunhada por Marshall Mcluhan, aponta como uma das principais características da globalização o fato desta impor ao mundo uma noção de “aldeia global”, expressando uma globalidade no campo das ideias, dos padrões e dos valores socioculturais[1]. Este processo vem se desenvolvendo de forma mais intensa a partir da década de 1980, especialmente a partir do fim da chamada “Guerra Fria” e da abertura irrestrita dos países que compunham o bloco soviético à economia de mercado, através de um contínuo aperfeiçoamento das tecnologias, em especial no que concerne ao sistema de transporte, comunicação e sistema bancário, acabando por propiciar intensos fluxos de capitais, bens, informações e pessoas até então jamais vistos[2].
No bojo deste processo globalizante, tida por muitos como conditio sine qua non ou mesmo como seu sinônimo, está a ideologia do neoliberalismo, ou seja, a ideologia do livre mercado avessa a qualquer tipo de interferência político-estatal na esfera das relações econômicas. Esta visão de mundo, que dantes predominava na arena política mundial, sofreu um duro golpe após a grave desestabilização do sistema financeiro mundial, em outubro de 2008. Tal crise, que provocou (e ainda provoca) a falência de inúmeras instituições financeiras e uma grande recessão econômica nos Estados Unidos e na Europa, só foi controlada e teve seus efeitos arrefecidos a partir da interferência regulatória e da alocação de grandes somas de recursos públicos dos Estados na economia, salvando o capitalismo da bancarrota[3].
O neoliberalismo, como teoria, surgiu embrionariamente no início do século passado, especialmente desde as formulações científicas da economia a partir do indivíduo de Ludwig Von Mises (1881-1973), um dos principais representantes da escola austríaca de economia, responsável, em grande medida, pela difusão desta doutrina no período entre as duas grandes guerras[4]. Para os representantes desta escola, o projeto do liberalismo não havia fracassado, porquanto ainda havia de ser implantado em sua totalidade. Se o liberalismo tinha como função precípua o combate às sociedades pré-capitalistas – notadamente a sociedade feudal –, agora, em sua versão (neo), o inimigo se apresenta nas políticas estatizantes de matriz socialista, ou em qualquer modalidade de intervenção do Estado na economia de inspiração Keynesiana.
O mercado, na visão neoliberal, é erigido como condição da liberdade e da emancipação humana. Em outras palavras, para os fautores desta teoria, o homem só seria livre na medida em que os preços o são, e qualquer direito humano-fundamental somente teria assento se decorresse de posição no mercado. Com efeito, o mercado é apresentado como único mecanismo que, por si só, conseguiria ordenar todo o sistema social, conferindo-lhe sentido e significado. O papel do Estado, na sociedade neoliberal, estaria renegado a um segundo plano como mero aparato estatal de coerção, devendo utilizar seu poder exclusivamente com o propósito de evitar que as pessoas cometam atos lesivos à preservação e à manutenção da economia de mercado[5]. Segundo o neoliberal da escola de Chicago Milton Friedman, um governo deve:
“manter a lei e a ordem; definir os direitos de propriedade; servir de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico; julgar disputas sobre interpretações das regras; reforce contratos; promova a competição; fornecer uma estrutura monetária; envolver-se em atividades para evitar monopólio técnico e evite os efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para justificar a intervenção do governo; suplementar a caridade privada e a familiar na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de uma criança”[6].
A economia, para os neoliberais, é tratada como uma condição indispensável para a liberdade política e para democracia, no sentido de que sem liberdade econômica não haveria condição de possibilidade para a existência de uma real liberdade política. Para Friedrich August von Hayek, discípulo de Von Mises, em qualquer sociedade cujo funcionamento está subordinado ao planejamento central, a democracia resta prejudicada, uma vez que elevam-se as questões que dependam de um consenso geral e que muitas vezes terá que ser imposta ao povo a vontade de uma pequena minoria, transformando a promessa de maior liberdade em servidão política[7].
Embora tais promessas de liberdade do mercado livre tenham conquistado um número significativo de adeptos no mundo acadêmico, suas implicações práticas revelaram-se nefastas para a maior parte da população mundial, com um incremento escrachante da concentração de riqueza, assim como da exclusão social que vem marginalizando seguimentos inteiros da população[8]. Como bem apontam Hans Peter Martin e Harald Schumann, a globalização neoliberal transformou o mundo em uma sociedade de 20 por 80, ou seja, apenas 20% da população mundial é necessária para manter a atividade econômica em movimento; para os outros 80%, a liberdade prometida pelo mercado se resume em pouco mais do que pão e circo[9].
O neoliberalismo saiu das cercas universitárias e assumiu o poder político em maio de 1979, através da eleição de Margaret Thatcher, representante do partido conservador britânico, cujo plano de governo se assentava em três pilares, quais sejam a redução de impostos, a reforma administrativa e o controle dos gastos público. Logo em seguida, em 1980, assume o poder nos Estados Unidos Ronald Reagan que, embasado nas teorias de Milton Friedman e, consectário dos ideais de Thatcher na Inglaterra, estabelece o que poderíamos dizer de triunfo do liberalismo em escala mundial em sua dupla faceta: no plano político e no plano econômico. A partir de então, certos termos passaram a fazer parte do cotidiano político e social dos países que compunham o cognominado “mundo livre”, como desregulamentação, flexibilização, privatização etc., comprimindo o Estado a um patamar mínimo, privilegiando os princípios da eficiência e da produtividade econômica em detrimento dos princípios sociais democraticamente negociados.
Com efeito, na medida em que o Estado vai perdendo força com o impacto da globalização neoliberal, ocorre um enfraquecimento de seu domínio sobre as variáveis que influenciam a economia, deteriorando, destarte, sua capacidade de formulação e implementação de políticas públicas. A margem de atuação governamental se torna coarctada a níveis que pouco ou nada transcendem à política monetária e fiscal de combate à inflação e redução da taxa de juros para estimular o mercado, aliada ao assistencialismo.
Outro aspecto que merece destaque é o que se refere à própria noção de soberania, relativizada/aviltada pelo neoliberalismo, deslocando o locus do poder político, que outrora cabia ao Estado, e a consequente formulação das diretrizes de atuação governamental, ao jugo dos poderes econômicos privados, destacando-se os monopólios e oligopólios das multinacionais, amparados, por suas vez, pelas instâncias de regulação jurídica e econômica internacional, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
O Estado vem perdendo sua capacidade como ente formulador e implementador de políticas públicas na área social, de tal sorte que seu papel como interventor e regulamentador econômico, no sentido de promover um certa igualdade social, típico do État Providence ou do Welfare State – se preferirmos a nomenclatura norte-americana –, não tem encontrado ressonância na maioria dos governos contemporâneos que adotaram, em maior ou menor medida, os postulados básicos do neoliberalismo e do receituário programático do “consenso de Washington”. Este formato de Estado mínimo, condizente com a ideologia neoliberal, vem solapando a ideia de um Estado Social de Direito garantidor/promotor dos direitos sociais, à revelia de todo arcabouço jurídico constitucional estatal e da manifestação democrático-eleitoral, na medida em que retira do Estado o seu poder de regulação, privilegiando a autossuficiência do mercado que, ao longo da avalanche neoliberal da década de 1990, demonstrou a sua tendência orgânica de produzir miséria e exclusão.
O Estado social pode ser entendido como um produto do fracasso do liberalismo clássico em realizar as promessas da modernidade para a população em geral na medida em que o capitalismo se desenvolvia. Vários fatores são elencados como influenciadores para a derrocada do liberalismo, dentre os quais podemos citar a proletarização massiva advinda da revolução industrial, as duas grandes guerras, impondo aos Estados uma atuação de controle da situação econômica e social, especialmente no campo militar, além da crise econômica de 1929 e os impactos nos movimentos populares europeus com a emergência da revolução russa (7 de novembro de 1917). O Estado, destarte, passou a assumir responsabilidades organizativas e diretivas da nação, deixando de exercer o mero papel de absenteísmo, restringido ao poder geral de legislar e ao poder de repressão policial.
Sem embargo, esta transição do Estado liberal ao Estado social deveu-se, fundamentalmente, a duas razões. Em primeiro lugar, a burguesia, no comando do poder político e econômico desde a abolição do Ancien Régime, começou a se sentir ameaçada pelas fortes tensões sociais existentes e que aumentavam com o passar do tempo, possibilitando, assim, uma maior flexibilização do regime liberal. Em segundo lugar, encontra-se os altos benefícios, em termos de elevação da acumulação, desenvolvimento e expansão do capital, resultantes da estruturação básica da infraestrutura financiadas com verbas públicas como, por exemplo, a construção de usinas hidrelétricas, estradas, financiamentos etc.[10]
Neste contexto é que surge o Welfare State, ou Estado de bem-estar social, que, segundo Bobbio, se caracteriza por garantir tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação e educação assegurados a todos os cidadãos, não como simples caridade, mas como autênticos direitos da cidadania[11]. As constituições, que no período liberal se destinavam a traçar a estrutura básica do Estado e a garantir os direitos individuais de liberdade, neste momento, passam a incidir em áreas antes reservadas à atuação privada, ampliando as ações estatais no campo econômico e na direção das instituições políticas e da própria sociedade no sentido de promover uma certa igualdade social. O Estado de bem-estar social, nas palavras de Morais, é aquele que:
adjudica a ideia de uma comunidade solidária, onde ao Poder Público cabe a tarefa de produzir a incorporação dos grupos sociais aos benefícios da sociedade contemporânea. Nesta função de patrocínio da igualdade, transfere-se ao Estado um novo atributo que contrasta com o poder ordenador, qual seja a solidariedade[12].
De acordo com Leal, os poderes públicos, neste formato de Estado interventor/regulador, passam a avocar para si a responsabilidade de uma tutela política mais eficaz, objetivando mitigar as desigualdades e os conflitos sociais através da direção da vida econômica de determinados setores produtivos[13]. Neste diapasão, destaca-se a atuação do Poder Executivo em relação aos demais poderes, tendo em vista a sua proximidade aos anseios sociais da comunidade que gerencia. Este modelo de Estado social começou a ser construído, no âmbito constitucional, pelas constituições do México de 1917 e da Alemanha de 1919, reconhecendo um extenso rol de direitos sociais assim como diretrizes para atuação estatal no cumprimento destes direitos.
O constitucionalismo social, que a partir do segundo pós-guerra foi amplamente aceito e reforçado pelos países da democracia ocidental, vem passando por crises de diversas matrizes que dificultam o exercício de seu papel como conformador da realidade concreta. Morais aponta três crises pelas quais passa o Estado social, quais sejam, a crise fiscal-financeira, a crise ideológica e a crise filosófica[14].
Em meados da década de 1970, o mundo se deparou com uma forte crise econômica de matriz energética, que resultou num aumento abrupto e elevado dos preços dos barris de petróleo, à época, sem comparação, a principal fonte de energia mundial. Os Estados sofreram impactos violentos em suas contas públicas, que logo se tornaram deficitárias comprometendo as estruturas de políticas públicas de caráter social. Havia um descompasso entre receitas e despesas públicas, instaurando-se um círculo vicioso, no qual, diante da conjuntura da crise econômica, era impendido ao Estado uma menor incidência tributária, enquanto que se aumentava a debilidade pública e as necessidades sociais. Neste contexto destacamos a crise da seguridade social, notadamente no âmbito da previdência social e no sistema de saúde, que se agravaram na medida do envelhecimento populacional.
Outra crise instalada no seio do Estado Social de Direito, e que exsurge na década de 1980, é a que diz respeito a sua legitimidade no que tange a forma de organização e gestão desta forma de Estado. Morais a denomina como “crise ideológica” possibilitada pelo aumento vertiginoso da democratização do espaço público da política, acarretando uma maior quantidade e complexidade das demandas sociais, que muitas vezes não conseguem ser satisfeitas a partir de um corpo técnico-burocrático do Estado.
Por derradeiro, ainda com Morais, está a crise filosófica do Estado social, a qual questiona os próprio fundamentos nos quais está assente o Estado de bem-estar. Este projeto de Estado, segundo o autor, falhou na construção de sua base antropológica que deveria ser dotada de agentes imbuídos de uma compreensão coletiva e compartilhada da sociedade, dentro de uma perspectiva compromissada com os demais indivíduos de ser-estar no mundo, ao invés de transformar o indivíduo liberal em cliente da administração pública[15]. Esta crise se manifesta pela desagregação da base deste modelo de Estado, calcada na solidariedade, enfraquecendo o conteúdo dos direitos sociais, as estratégias de políticas públicas e as demais fórmulas de intervenção estatal.
Portanto, a crise do Estado de bem-estar social extrapola a questão da ausência de recursos financeiros para a implementação das políticas públicas requeridas pelos direitos sociais, indo de encontro com o indispensável rearranjo das relações intersubjetivas que vai além do consenso democrático das regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos, mas que transmita a ideia de um viver comunitário, onde os interesses individuais estejam indissociáveis aos interesses de toda a coletividade. Em suma, na esteira do que leciona Elías Díaz, uma sociedade apenas pode ser qualificada como democrática e que, por consequência, assegure os direitos de toda a população, se garantir “una participación real de las masas em el control de las decisiones y em los rendimientos de la producción; si esa participación real no hay sociedad democrática[16].
Com efeito, as consequências da minimização do Estado nos países onde ocorreu o Estado Social são completamente diversas do que nos países, como o Brasil, em que este processo não foi implementado. Para Lenio Streck, o intervencionismo estatal, condição de possibilidade para a realização da função social do Estado de bem-estar, no Brasil, não passou de um simulacro. O Estado interventor serviu apenas para a acumulação de capital e renda para as elites brasileiras. No dizer de Streck:
“o Estado interventor-desenvolvimentista-regulador, que deveria fazer esta função social, foi – especialmente no Brasil – pródigo ( somente ) para com as elites, enfim, para as camadas médio-superiores da sociedade, que se apropriaram/aproveitaram de tudo deste Estado, privatizando-o, dividindo/loteando com o capital internacional, os monopólios e os oligopólios da economia”[17].
Em decorrência da opressão socioeconômica e da crescente exclusão social, especialmente nos países em que não houve a etapa do Estado Providência e que, segundo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, verifica-se uma autêntica situação de “fascismo societal”[18], se torna insatisfatória a resposta dada pelo “stablishment” às promessas não cumpridas da modernidade no sentido de um retorno ao Estado (neo)Liberal, mediante privatizações do patrimônio público, flexibilização de direitos historicamente conquistados e o contínuo enfraquecimento do Estado sob o argumento da maior eficiência econômica e de um correlato desenvolvimento social. A nosso sentir, faz-se mister uma profunda mudança de paradigma na concepção do Estado, cuja função acerca da questão social seja transportada da área do direito penal e da repressão policial para a área da formulação de políticas públicas de inclusão social, que, por sua vez, requer um Estado forte e regulador.
Cumpre deixar consignado que não temos a intenção – de forma alguma – de fazer uma apologia antiglobalização, negando os avanços que este processo tem trazido para a humanidade no campo das tecnologias, na difusão do ideário dos direitos humanos, na crescente interação entre os povos etc. O que se pretende, de fato, é evitar as consequências perversas, especialmente no campo social, provindas de uma globalização neoliberalizante que se traduz em uma construção ideológica utilizada pelos países centrais e pelos organismos internacionais com o intuito de imporem seus interesses hegemônicos, e das corporações econômicas que eles representam, aos chamados Estados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Compartilhamos com o pensamento de Sperber, no qual o que causa dificuldade não é a globalização em si, mas aquilo que vem junto a esse processo como, por exemplo, a diminuição dos padrões sociais em matéria de trabalho e de consumo, em termos de exploração e de invasão e subordinação cultural etc.[19] Ademais, a história nos serve de alerta quando tratamos da ideologia pura e perfeita do laissez faire, conquanto sua ortodoxia levou o mundo, em outubro de 1929, a uma profunda depressão econômica e, como corolário, possibilitou, dentre outros fatores, o surgimento do fascismo na Itália e da sua versão nacional-socialista na Alemanha[20].
Mestre em Direito do Estado pela PUCRS. Professor de Direito Constitucional e Internacional do Centro Universitário Metodista IPA – RS. Advogado e parecerista em Porto Alegre e Brasília
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