Resumo: A Lei nº 9.307/1996 regula o instituto da arbitragem em nosso país. Porém, até se chegar a ela, sucedeu um longo caminho, em escala mundial, haja vista que o processo de globalização levou a economia pátria ao enfrentamento de um ambiente mercadológico reivindicante por formas dinâmicas, ágeis e céleres de se resolverem disputas e controvérsias de diversas ordens. Advém, com isso, a relevância do estudo em voga.
Palavras-chave: Globalização. Soft law. Arbitragem.
Abstract: Law nº. 9,307 / 1996 regulates the arbitration institute in our country. But to get to it, it came a long way on a global scale, given that the process of globalization has led to the country economy facing a claimant market environment for dynamic, agile and rapid ways to resolve disputes and controversies of various orders. Comes with it, the relevance of the study in vogue.
Keywords: Globalization. Soft law. Arbitration.
Sumário: 1) Introdução; 2) A Lei nº 9.307/1996; 3) Globalização; 4) Soft law; 5) Considerações finais; 6) Referências.
1 – Introdução
“Dizer facilmente até as coisas mais fáceis de serem ditas não é nada fácil, ou melhor, é algo muito difícil entre as coisas mais difíceis.” G. Baretti [1]
A globalização, das soluções e dos problemas, inaugurou uma era marcada por revoluções, quais sejam as representadas pelas mudanças na economia, pelo progresso tecnológico, pelo avanço das comunicações, pela diminuição das distâncias, pela ausência de fronteiras e, também, pelas inéditas formas de tratamento e de efetivação das questões comerciais e empresariais.
Feita essa consideração inicial, adentramos em um ponto nevrálgico, pois as novas maneiras de realizar negócios, agora em escala mundial, pediram a reescrita dos modos desde sempre predispostos à resolução dos conflitos nascidos nessa seara. E, nesse ínterim, em alguma espécie de reducionismo doutrinal, poderíamos simplesmente repetir o que já é notório, ou seja, que a prática arbitral acelera o tempo da prestação jurisdicional, conservando relacionamentos, conciliando as partes, retirando pessoas do Judiciário, descongestionando os processos, minimizando custos correlatos à transação de interesses. Esse é o discurso comumente repassado. Mas, como chegamos a isso? Ou seja, como a arbitragem veio a se tornar importante para nós? Como o Direito passou a valorar essa ferramenta extrajudicial? É essa a problemática que enfrentaremos a seguir.
2 – A Lei nº 9.307/1996
“A maior das jornadas começa com um primeiro passo”. É a bela lição repassada pela sabedoria oriental. Logo, iniciamos o trabalho com a explicação do que é “arbitragem”, onde, sucintamente, podemos dizer que este é um meio heterocompositivo de solução de litígios que venham a tratar acerca de direitos patrimoniais disponíveis.
Nele, as partes envolvidas convencionam, por instrumento particular, que desejam ver atual ou futura demanda resolvida fora das arenas jurisdicionais sob o comando do Estado. Consoante este modelo, um árbitro, ou árbitros, previamente escolhidos pelos contratantes, julgam a causa, seguindo o procedimento escolhido pelos próprios envolvidos, para, no prazo máximo seis meses, prolatar uma sentença e pôr fim à questão.
Encerra legítimo exercício da jurisdição. O laudo arbitral é opositivo ao Judiciário, não podendo ser questionado ou rediscutido, salvo em caso de inobservância de certos preceitos de direito e de algumas exceções legais. E a Lei nº 9.307/1996 é quem disciplina a arbitragem no Brasil, tendo erigido um microssistema jurídico dos mais modernos, cumprindo plenamente o encargo de equiparar nosso país à vanguarda mundial nesse assunto.
3 – Globalização
Tornando ao assunto do título, presentemente, há que se apreciar que economia e política são aspectos inseparáveis de uma única realidade, qual seja a da globalização. Mas o que exatamente significa isso? Globalização é um processo de integração dos mercados, com claros efeitos políticos, sociais e tecnológicos, a redesenhar as bases da civilização humana. Nas palavras de Demétrio Magnoli (1997, p.7), “é o processo pelo qual o espaço mundial adquire unidade”.
“Não existe uma definição única e universalmente aceita para a globalização. Como acontece com todos os conceitos nucleares das ciências sociais, seu sentido exato é contestável. A globalização tem sido diversamente concebida como ação à distância (quando os atos dos agentes sociais de um lugar podem ter consequências significativas para “terceiros distantes”); como compreensão espaço-temporal (numa referência ao modo como a comunicação eletrônica instantânea vem desgastando as limitações das distâncias e do tempo na organização e na interação sociais); como interdependência acelerada (entendida como a intensificação do entrelaçamento entre economias e sociedades nacionais, de tal modo que os acontecimentos de um país têm um impacto direto em outros); como um mundo em processo de encolhimento (erosão das fronteiras e das barreiras geográficas à atividade socioeconômica); e, entre outros conceitos, como integração global, reordenação das relações de poder inter-regionais, consciências da situação global e intensificação da interligação inter-regional […]. O que distingue essas definições é a ênfase diferenciada que se dá aos aspectos materiais, espaço-temporais e cognitivos da globalização (HELD; McGREW, 2001, p.11-12).
A globalização caracteriza-se, portanto, pela expansão dos fluxos de informações – que atingem todos os países, afetando empresas, indivíduos e movimentos sociais -, pela aceleração das transações econômicas – envolvendo mercadorias, capitais e aplicações financeiras que ultrapassam as fronteiras nacionais – e pela crescente difusão de valores políticos e morais em escala universal. Assim, no mundo globalizado, as distâncias geográficas e temporais, encolhem-se de forma pronunciada” […] (BARBOSA, 2010, p.12-13).
Não é coisa recente, pois seu início remonta à expansão marítima europeia dos séculos XV e XVI, e, àquele período, tinha em seu arcabouço a ampliação comercial e a conquista territorial. Aos poucos, a mutação do fenômeno tornou-se clara: as disputas pelo Novo Mundo, as Revoluções Industriais, as duas Grandes Guerras Mundiais e o Neoliberalismo nos apresentaram a um semblante capitalista forçosamente avassalador e sem volta, onde a perseguição por lucros cada vez maiores – onde quer que fosse e ao menor custo possível -, a exploração do trabalho, a dominação dos meios produtivos, a massificação do consumo, o aperfeiçoamento das telecomunicações, o emprego das tecnologias ligadas à informação, o esgotamento dos recursos naturais, a desregulação de áreas privativas e essenciais ao ideal público das nações e a diminuição do valor do componente humano acabaram por sublevar a produção e o comércio internacional a categorias de relevância nunca antes vista: eram, agora, os únicos motores plausíveis do desenvolvimento (MAGNOLI, 1997).
Concomitantemente a isso, o colapso da proposta do Estado de bem-estar social, a derrocada das políticas de intervenção econômica, o enfraquecimento das normas emitidas pelos circuitos constitucionais, o rompimento das barreiras e do isolamento entre os países e a prevalência de interesses corporativos multinacionais, a ditar as escolhas possíveis, dentre as poucas opções ofertadas pelas nações centrais e desenvolvidas, impondo exigências impossíveis de serem cumpridas, tornaram a globalização dos mercados um fenômeno único em benefícios e, principalmente, em malefícios. Endividamento, privatização, reordenamento das prioridades, abandono das causas sociais, empobrecimento da população, desindustrialização, fome, miséria, poluição, violência, são algumas das expressões que integraram o desmantelamento de nações subdesenvolvidas e periféricas por todo o mundo (IANNI, 2005; VIEIRA, 1999), “como se o mundo estivesse sendo comandado cada vez mais por forças cuja compreensão nos escapa” (FURTADO, 2002, p.7).
“O que para alguns parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejado e cruel. A mobilidade galga ao mais alto nível dentre os valores cobiçados – e a liberdade de movimentos, uma mercadoria sempre escassa e distribuída de forma desigual, logo se torna o principal fator estratificador de nossos tardios tempos modernos ou pós-modernos. Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou a revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não e uma opção realista num mundo em permanente mudança. E, no entanto os efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós tornam-se plena e verdadeiramente “globais”; alguns se fixam na sua “localidade” – transe que não é nem agradável nem suportável num mundo em que os “globais” dão o tom e fazem as regras do jogo da vida. Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social” (BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.08) (apud, TORRONTEGUY; BORTOLLON, 2008, p.5547).
Por conseguinte, a globalização lançou os países em uma desesperada corrida pela sobrevivência. Percebeu-se que as dificuldades eram grandes demais para serem enfrentadas sozinhas, e a abertura ao capital estrangeiro brotava como uma “solução mágica”. Proteção às economias nacionais, barreiras comerciais, entraves políticos, distância entre os mercados, empecilhos jurídicos, estatização, queda no consumo, são algumas das expressões que não mais poderiam constar do dicionário pós-moderno (HELD; McGREW, 2001). Nada importava, e as coisas estavam sendo reescritas em uma espantosa velocidade. Mudar era a escolha racional, para onde quer que se olhasse. Não havia como reagir, uma vez que “a evolução das estruturas de poder no capitalismo avançado escapa aos esquemas teóricos que herdamos do passado” (FURTADO, 2002, p. 9).
“Aqui recomeça a história. Em lugar das sociedades nacionais, a sociedade global. Em lugar do mundo dividido em capitalismo e socialismo, um mundo capitalista, multipolarizado, impregnado de experimentos socialistas. As noções de três mundos, centro, periferia, imperialismo, dependência, milagre econômico, sociedade nacional, Estado-nação, projeto nacional, caminho nacional para o socialismo, caminho nacional de desenvolvimento capitalista, revolução nacional e outras parecem insuficientes, ou mesmo obsoletas. Dizem algo, mas não dizem tudo. Parecem inadequadas para expressar o que está acontecendo em diferentes lugares, regiões, nações, continentes. Os conceitos envelheceram, ficaram descolados do real, já que o real continua a mover-se e transformar-se. Em certos momentos, ele parece repetir-se de modo enfadonho, mas em outros revela-se diferente, novo, fascinante, insólito, surpreendente. Sob vários aspectos, pode-se dizer que aqui recomeça a história” (IANNI, 2005, p.35).
Inteligentemente o capitalismo propôs, e conseguiu, diga-se que a duras penas, a construção de uma “aldeia global”, a incluir todos e, também, a criar os maiores abismos de nossa história. Uma realidade em que apenas uns poucos detêm o controle sobre alguma coisa, e submetem todos os demais aos seus desígnios. Com a meta estabelecida, qual fosse a de fazer do mundo seu próprio “quintal”, o aparato neoliberal entendeu de apropriar-se dos recursos materiais, de multiplicar exponencialmente os lucros e de diminuir a relevância do ser humano, nem que, para o alcance desses patamares, tivesse que subverter a ordem preestabelecida. Logo, o domínio das tecnologias relacionadas à informação atendeu ao propósito de difundir a falha ideia de servilismo das pessoas e das nações à perpetuação dos preceitos liberalizantes. E o descontrole não teria mais fim (IANNI, 2005).
“O global e o local se interpenetram e se tornam inseparáveis. O global investe o local, e o local impregna o global. Não se trata mais de duas instâncias autônomas que se relacionam de uma determinada maneira, influenciando-se reciprocamente, mas mantendo cada uma sua identidade. Trata-se agora de um processo que engloba, em seu movimento, o local e o global combinados. Para melhor compreender esse fenômeno, já se propôs o emprego da palavra glocal, que incorpora num conceito único as dimensões do local e do global” (VIEIRA, 1999, p.71).
Na esteira da crescente desordem, o fosso tecnológico se tornava cada vez maior, e começava a engolir os países. Winston Churchill estava certo ao dizer que “os impérios do futuro seriam os impérios da mente” [2]. Destarte, o termo “inclusão digital” poderia determinar a riqueza ou a pobreza de um país. O domínio e a transmissão do conhecimento traduziam as novas formas de conquistar, de desenvolver impérios, de manejar a sociedade. Convertido em “unidades de informação”, o crescimento econômico viabilizado pelo domínio e pela exportação da alta tecnologia invade o elenco de insumos prioritários, reduzindo o papel relativo dos demais. Investimentos em pesquisa e desenvolvimento científico são catapultados, fundamentando o novo padrão produtivo mundial por excelência. Quem pode realizá-los, assume a “ponta da lança” dessa recém-criada era mercadológica. Ciência e tecnologia se multiplicavam à nossa volta, ditando a abrangência da linguagem com que pensávamos, com que realizávamos algo. Eram, agora, extensões indispensáveis de nossa vida. O idioma dominante não era mais o inglês, nem tinha um alfabeto de 26 letras. A imposição ideológica, agora, se dava tão somente por intermédio de dois dígitos: “0” e “1” (ENRIQUEZ, 2002). O capitalismo acabou por substituir a necessidade pelo desejo, e o enigma insolúvel é tentar entender como isso aconteceu, melhor dizendo, como é que permitimos que o capital se impregnasse em nossa realidade e ditasse as condições da rendição a uma proposta tão vazia de significado como a de uma globalização unilateral, que a tudo domina, excluindo ou eliminando o que não lhe interessa (DUPAS, 2005; IANNI, 2005).
“Quando o sistema social mundial se põe em movimento e se moderniza, então o mundo começa a parecer uma espécie de aldeia global. Aos poucos, ou de repente, coforme o caso, tudo se articula em um vasto e complexo todo moderno, modernizante, modernizado. E o signo por excelência da modernização parece ser a comunicação, a proliferação e generalização dos meios impressos e eletrônicos de comunicação, articulados em teias multimídia alcançando todo o mundo. A noção de aldeia global é bem uma expressão da globalidade das ideias, padrões e valores sócio-culturais, imaginários. Pode ser vista como uma teoria da cultura mundial, entendida como cultura de massa, mercado de bens culturais, universo de signos e símbolos, linguagens e significados que povoam o modo pelo qual uns e outros situam-se no mundo, ou pensam, imaginam, sentem e agem” (IANNI, 2004, p.119).
E esse era apenas um dos pilares da mudança em curso, pois a normatividade exigida pelos mercados e a autorregulação privada usurparam das mãos do Estado a tarefa desenvolvimentista. Nada obstante, o preço a ser pago pelo afamado crescimento era alto demais. Insurrecionava-se contra o domínio e o controle estatal dos vários aspectos de nossa existência, e a esfera jurídica era tão somente um dos elos da corrente a ser atacado e mitigado, apenas mais um flanco no campo de batalha do livre mercado, haja vista que atrapalhava os planos dessa incomum nova ordem. Não interessava a ninguém, aqui considerados o capital, os detentores do poder, as empresas estrangeiras e a alienada sociedade, que os governos interferissem na geração de renda e empregos oportunizada pelos investimentos produtivos desse capitalismo planetário. E a matizada globalização alçava-se a um estágio jamais pensado, e muito perigoso: o desinteresse pelo Estado, como promotor e interventor dos assuntos econômicos do próprio país (DUPAS, 2005).
Desorganizado, heterogêneo, assimétrico, ilógico, desumano, sem território ou regras e extremamente hostil, o capital constituído por conglomerados e grupos multinacionais, fluxos financeiros especulativos e organizações internacionais (a exemplo do Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio e do Banco Mundial), avançava sobre as nações, desestabilizando e dissolvendo tudo aquilo que não lhe interessava diretamente. A engenhosidade desse modelo residia justamente nisso, ou seja, na descontinuidade e na ausência de moralidade. Dessa forma, decisões acerca de investimentos ou sobre a instalação ou não de indústrias passam a fazer às vezes de fiel da balança, especificando condições, jogando com a opinião pública, atacando as prerrogativas legais, minando a ecologia e a sustentabilidade. E o pior, tais ajustes tinham que ser levados em conta pelas nações, pois tamanha manipulação tornara-se essencial à conservação de suas economias e à perpetuação desse irracional sistema exploratório (DUPAS, 2005, IANNI, 2005).
O Estado era refém dessa circunstância globalizante, assumindo posição marginal e de mero estímulo a tamanho “quadro de horrores”. Fomentar o crescimento econômico é sua tarefa, mesmo que outros custos (sociais, trabalhistas, ambientais, políticos) imperem. Compreenda-se que “fomentar” implica em ceder, escancarar as portas, não obstaculizar o avanço do capital estrangeiro. De um papel ativo, deveria ele, a partir de então, adotar e gerir uma postura passiva e subalterna, complacente com a revolução que se processava diante dos olhos de todos, até por que “abrir é ruim, fechar pode ser pior”. Souza (2007, p.252), ao tratar da expansão das exportações e da mudança econômica, diz que “os governos têm contribuído com o desenvolvimento de muitos países, mas o Estado não pode resolver tudo. São os indivíduos que promovem o desenvolvimento, impulsionando as variáveis-chave pelos impulsos autônomos. […]”. Douglass C. North (2010, p.18), completa: “É a interação entre as instituições e as organizações que modela a evolução institucional de uma economia. Se as instituições são as regras do jogo, as organizações e seus empresários são os jogadores”.
Gilberto Dupas (2005, p.41), com propriedade, acerta em cheio o alvo, esclarecendo que “o principal instrumento de poder das corporações transnacionais e do capital global é a capacidade de dizer não: saio, não entro, não fico mais. Essa decisão constitui-se num ato político por excelência e basta para originar imensos traumas”. Assevera ele que “o poder de não investir é brandido como uma imensa ameaça. O que sanciona esse poder é o princípio da não alternativa” (DUPAS, 2005, p.41). Celso Furtado complementa que “as estruturas transnacionais debilitam progressivamente os Estados nacionais” (FURTADO, 2002, p.10). Portanto, sem antever saída, restava um só caminho.
“As empresas transnacionais são entidades que transcendem as fronteiras dos Estados Nacionais e sua lógica de operação e suas estratégias não estão condicionadas por razões de Estado, mas sim pela busca de mercados atraentes e melhores condições de investimento, estejam elas onde estiverem. O fluxo contínuo do capital financeiro igualmente não respeita as fronteiras nacionais, e os Estados não têm mais condições de controlá-lo, assim como a rede global das comunicações está acima das possibilidades de gestão local. A informação e o dinheiro não têm pátria” (FORJAZ, 2000, p.42-43).
E esse fenômeno e suas consequências têm assumido proporções nunca antes vistas, de modo que os choques do petróleo, a queda do muro de Berlim, o encerramento da Guerra Fria, a implosão da União Soviética, a quebra dos Tigres Asiáticos, a integração da China nos fluxos internacionais de mercadorias e investimentos, a crise imobiliária nos Estados Unidos e os problemas econômicos da União Europeia são alguns dos fatos que, nas quatro últimas décadas, tiveram reflexos imediatos no plano econômico internacional, nas esferas pública e privada, servindo para demonstrar tão somente duas coisas: que a fronteira entre os países era invisível e que o Estado-nação parecia ter se tornado, enfim, uma obra histórica (MAGNOLI, 1997).
“O Estado-Nação não é mais o que costumava ser. Ignorado pelos mercados globais de capital, transigente com as corporações multinacionais, à mercê dos mísseis intercontinentais, a pobre coisa pode apenas olhar para o passado, nostálgica dos seus dias de glória […]. Parece inconcebível que tão diminuta criatura possa por muito tempo continuar sendo a unidade básica das relações internacionais, a entidade que firma tratados, participa de alianças, desafia inimigos, vai à guerra. Não estará, seguramente, o Estado-Nação a caminho de se dissolver em algo maior, mais poderoso, mais capaz de encarar as consequências da tecnologia moderna: alguma coisa que será a nova e poderosa unidade básica do mundo de amanhã?” (The Economist, 1995, p.15, apud, MAGNOLI, 1997, p.33).
Entendia-se que a soberania territorial do Estado restava duplamente atingida: em sua “dimensão externa”, através do fenômeno da globalização e da constituição de poderosas entidades supranacionais; em sua “dimensão interna”, em função dos múltiplos processos de localização, regionalização e particularização de procedimentos jurídicos informais. “Despido de soberania, o poder estatal perdia sua alma e sua razão de ser, caminhando para um inevitável desfalecimento” (MAGNOLI, 1997, p.34). E a pergunta que não queria calar, a que não deixava ninguém em paz, aquela que seguia roubando o sono dos líderes mundiais, era tão somente a seguinte: seria este o panorama do fim do Estado?
“O historiador Paul Kennedy, que ganhou notoriedade escrevendo sobre a ascensão e a queda das grandes potências, agora acredita que o Estado é o “tipo errado” de unidade para lidar com os desafios do futuro: “Para alguns problemas, ele é grande demais para funcionar com eficiência; para outros, é pequeno demais” (MAGNOLI, 1997, p.37-38).”
A ideologia liberal proclamava que o bem público correspondia a um conjunto de bens privados. O indivíduo singular, ao potencializar o seu lucro, contribuía para a prosperidade geral, sem altruísmo privado, mas pelo jogo de forças no mercado, conduzido por uma invisible hand. O bem-estar geral significava a soma dos diversos casos de bem-estar individual. O comércio era um agente civilizador capaz de gerar virtudes cívicas, contenção de gastos e racionalidade. O Estado-nação ocupava um lugar figurativo na política internacional, surgindo como uma organização de segunda linha, competente apenas para intervir em última instância. A política funcionava de palco, com atores e temas predefinidos, sem surpresas para o capital. O Poder Público era o principal capitalista a comandar capitais, passando a servir aos dois componentes da demanda desenvolvimentista: consumo e investimento. A manipulação de instrumentos fiscais e monetários tinha como principal objetivo salvar postos de trabalho e reter capital. O Estado preocupava-se em manter atividades ditas “fundamentais” ao equilíbrio econômico, as quais davam harmonia ao sistema capitalista e perpetuavam as desigualdades sociais. Fato é que não sabíamos muito bem para onde estávamos caminhando e o futuro era um corredor escuro e cada vez mais instável.
Mas ainda não bastava… O mercado queria mais, muito mais, exigindo uma fórmula de sustentação jurídica que rompesse com o antigo paradigma, na qual se elevasse a primazia da economia sobre o direito, eliminando os obstáculos à livre vontade privada, com o respeito ao ambiente mercadológico… E o cerco estava sendo fechado.
4 – Soft law
Visto isso, a situação fugira completamente do que se poderia esperar, controlar ou até mesmo imaginar, pois não se tratava mais apenas de um problema envolvendo a prestação jurisdicional, mas era o próprio Estado, e seus aparelhos e instituições, que se viam abalados e diminuídos em importância, perante o capital e o mercado, e o fato do Poder Judiciário não ser célere, eficiente e apropriado à contemporaneidade era apenas um dos reflexos dessa nova conjectura – ao menos é o que apregoava a lógica capitalista dominante (DUPAS, 2005).
Então, conceitos como soft law se desenvolvem ao redor do mundo em resposta às demandas econômicas, e o juízo arbitral, enquanto técnica de uso e emprego da jurisdição, se tornou expressão maior dessa tendência, representando uma novidade bastante útil aos reclames do capital. Leis que dão ampla força à arbitragem e aos laudos arbitrais são aprovadas em diversos países. As sentenças baseadas em direito estrangeiro passam a ser reconhecidas sem quaisquer óbices. Indústrias são montadas e fluxos de investimentos são transferidos, da noite para o dia, consoante a presença ou não de leis arbitrais bem estruturadas. As empresas multinacionais e as “nações centrais” reclamavam isso. Não havia tempo a se perder (DUPAS, 2005; LIMA, 2008).
E esse é apenas mais um dos aspectos da “terceira onda” renovatória do processo, a recolocar a questão aos eixos pretendidos pelo capital (NOGUEIRA, 2000). Daí que os esquemas legais que reoxigenam a noção de acesso à Justiça, também atendem a esse conjunto de ultimatos neoliberais, de maneira que a arbitragem oportuniza a derradeira escapada aos ditames e amarras do Estado, favorecendo lucros maiores e mais rápidos.
“Como a política pressupõe escolhas submetidas a um marco normativo, e como esses quadros de referência jurídica se multiplicam e sofrem mutações, é óbvio que no novo direito a importância de distinções outrora fundamentais, como a entre o público e o privado, vem perdendo consistência” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Reinstitucionalização da ordem econômica no processo de globalização. Revista dos Tribunais. Cadernos de direito constitucional e ciência política, São Paulo, n.18, jan./mar., 1997, p.89-90) (apud, NOGUEIRA, 2000, p.20).
Tudo fazia parte de um plano maior. E a mutação estava completa. O sistema capitalista, na modernidade globalizada, arquitetou um direito “flexível”, “ameno”, “leve”, caracterizado por uma repaginação dos conceitos de resolução de conflitos, adaptado ao que espera o capital, construído e direcionado para o usufruto exclusivo dos operadores econômicos, e que viabilize – não atrapalhe – a completa inserção do Estado-nacional nos padrões mundiais da nova ordem internacional (DUPAS, 2005). Em síntese, o reconhecido dinamismo dessa economia é engendrado pela interação de forças que expressam interesses aparentemente contraditórios, a saber: a) uma que atrai tudo para si, e outra, b) centrípeta, a atirar para fora o que não lhe serve ou interessa diretamente (FURTADO, 2002).
O capital foge do Judiciário. Pare. Releia atentamente a frase que inicia esse parágrafo. É sério. Com a perpetuação de tal postura, as grandes questões comerciais e empresariais da atualidade já estão, há algum tempo, fora das arenas jurisdicionais sob comando estatal, pois a economia moderna requer uma forma de fazer justiça que refoge aos padrões aplicados desde sempre (VENOSA, 2005). “Os agentes econômicos tendem a escolher seus juízes e a serem julgados com a aplicação de um direito específico adaptado às necessidades do comércio internacional em que atuam” (LEMES; CARMONA; MARTINS, 2007, p.260). E a arbitragem propicia isso, atendendo a essa demanda manifesta por decisões paraestatais. Eis a solução de um problema e, quem sabe o início de outros, ainda mais graves, pois “o mundo tem aprendido que a economia global apresenta riscos muito maiores do que poderíamos imaginar” (DUPAS, 2005, p.46).
“O poder do capital se amplia sem enfrentar diretamente as leis nacionais e sem o consentimento explícito de parlamentos ou governos, graças às novas tecnologias da informação que oferecem a possibilidade de encolher os horizontes temporais e abolir as distâncias. O agente econômico global, por ser transnacional, estende seu poder explorando sistematicamente as brechas e os nichos de diferentes sistemas jurídicos nacionais. Operando nesses interstícios legais, os grandes grupos vão construindo seu próprio arcabouço legal, incluindo os padrões e as normas em relação ao trabalho, os contratos e os processos de arbitragem internacional. As antigas soberanias do Estado-nação passam agora a ser compartilhadas entre Estados e atores econômicos. O poder vai deixando de ser público e acaba, de fato, ocupando vazios criados pela lógica global e editando as novas normas de direito internacional. Assim, as empresas transnacionais passam a tomar decisões quase políticas. Governos e opinião pública vão se transformando em espectadores das tomadas de decisão corporativas maximizantes do lucro, sem nenhuma legitimação democrática. E questões vitais vão ficando suspensas (DUPAS, 2005, p.84).
Mas a globalização econômica permite também aos atores econômicos novos recursos de legitimação. Para maximizar seu poder eles necessitam reforçar as conexões entre capitalismo e direito – “privatização” do direito e da autoridade, novas regras e instrumentos legais que garantam a execução dos contratos e assegurem a regulamentação dos conflitos – e entre capital e Estado, o que lhes tem sido bem suprido pelo neoliberalismo de Estado. A importância crescente dos processos de arbitragem internacional faz supor o surgimento de um direito transnacional que vai se constituindo independente das legislações nacionais ou internacionais, uma espécie de lei global sem os Estados. Os acordos fazem os contratos dependerem de instâncias de arbitragem independentes dos Estados nacionais, uma zona autônoma de direito que convive com a legislação política. A desestatização da legitimidade passa pela criação de um direito autônomo, transnacional, cuja função é permitir a legitimação – legal e não, social ou política – do capital (DUPAS, 2005, p.117).
Todos os que têm contato com o meio empresarial, como os grandes conglomerados que atuam em todo o globo, sabem que a empresa multinacional ou a grande empresa mui raramente se utiliza e se utilizará do Poder judiciário para suas questões fundamentais, qualquer que seja o país envolvido. Há, na verdade, nesse meio uma verdadeira idiossincrasia em torno da ação judicial. […] Na verdade, muitas querelas e quesilhas, por vezes de amplo espectro, surgem entre elas: seus advogados simulam com frequência todas as possibilidades de litígio, que efetivamente nunca vêm a ocorrer. Há uma razão muito clara para isso. Não fosse a morosidade, a imprevisibilidade e vicissitudes da ação judicial, qualquer processo judicial entre empresas desse nível expõe sua marca, deprecia seus produtos e serviços e prejudica a atuação mercadológica de cada uma delas. Por isso mesmo, a razão primeira dessa fuga ao Judiciário é eminentemente mercadológica. Desse modo, podemos afirmar, sem risco de exagero, que as grandes questões jurídico-econômicas de caráter eminentemente privado não são relegadas ao juiz, não formam assim jurisprudência, não vão dar ao Judiciário, que continuará decidindo a respeito de questões de menor grau ou importância para essas pessoas jurídicas. Mas há, efetivamente, outras razões ponderáveis para essa postura, como, por exemplo, retaliação do mercado e vantagem para os concorrentes que não participam da refrega. No entanto, em tantas e tantas questões concretas que enfrentamos envolvendo empresas desse porte, mormente para a situação do direito pátrio, essa fuga ao Judiciário também se revela pela instabilidade de nossos julgados, pela ausência de credibilidade nas instituições políticas, parca confiança no Judiciário, não só de nosso País, diga-se, demora excessiva na decisão final e, fundamentalmente, todas as questões que envolvem esses grandes grupos de produção e serviços trazem matérias que exigem elevado conhecimento técnico e demandam também conhecimentos de macro e microeconomia” […] (VENOSA, 2005, p.31-32).
Em suma, a globalização proposta pelo neoliberalismo clamou por um direito adequado à proposta da conquista e da expansão do capital. Nesse sentido, reformas legislativas foram incentivadas e ocorreram no seio dos países, de maneira a possibilitar que a ferramenta da arbitragem fosse devidamente valorizada e incluída na ordem do dia das discussões. Sem que se pudesse desconfiar, grandes corporações passaram a manusear os Estados, como peças em um tabuleiro, rumo a esse ideal, por intermédio da circulação de investimentos operado à surdina e que deixa a todos atônitos, inviabilizando os controles fiscais e desprezando fronteiras e territórios. Exaurindo os meios de que podia utilizar-se, o nexo exigido à manutenção da implacável “aldeia global” estimulou uma renovação processual, atribuindo aos sistemas judiciários ao redor do planeta a culpa por uma prestação jurisdicional ineficiente e prejudicial à cidadania e ao ambiente empresarial. Emanou, desse processo de expansão, o soft law, em uma espécie de “direito mundial”[3] recodificado. E, como num “conto de fadas” às avessas, as nações tiveram que adaptar-se a um cenário em que o transnacionalismo supera, em relevância, as estratégias e os planos estatais. Logo, foi o próprio capitalismo que se mutacionou para que pudesse ter alguma sobrevida. Nós aceitamos.
5 – Considerações finais
E a peça está terminada… Aplausos são ouvidos… Descem as cortinas… É o fim. Não… Ainda não, pois temos ainda que expor que as reformas pelas quais passou e passa a legislação de nosso país visam a atender ao reclame neoliberal, no qual o revigorado capitalismo estabeleceu as regras processuais que lhes dizem respeito, com a “arbitragem” assumindo um status de relevância anteriormente nunca antes experimentado. Essa forma extrajudicial de resolver os litígios atende diretamente aos interesses do capital. Afinal, perder “tempo”, consoante as regras internacionais do mercado, representa um grande prejuízo.
Nesse estratagema, um tripé de fatores atuou diretamente: a) os inéditos problemas jurídicos apresentados pela contemporaneidade, onde a sociedade e o capital estrangeiro exigiram formas melhores e mais ágeis de tratar suas questões e controvérsias; b) a necessidade de adequar nossa Justiça ao que acontecia mundo afora, até para que o Brasil figurasse como atrativo aos preciosos investimentos transnacionais e c) o reconhecimento das dificuldades vivenciadas pelo Judiciário, o qual, preso a um ritualismo incompatível com a modernidade, conduziu a uma reação, com a aprovação da Lei nº 9.307, no ano de 1996, a construção da Emenda Constitucional nº 45, de 2004 e a reescrita do Código de Processo Civil de 1973, em vias de realização.
Tamanha renovação da Justiça teve que ser efetivada, de um jeito ou de outro, para o bem ou para o mal. Foi esse o grande legado repassado pela globalização. Foi essa uma imposição do pós-modernismo legal. E, vencido o desafio, afirmaremos que a “arbitragem” encerra o pilar edificante da inédita estrada processual, apta a sobrelevar o “tempo” e a “precisão de desenvolver-se economicamente”, enquanto alguns dos determinantes atuais de nossa existência, a um nível de relevância jamais conhecido, devendo tais componentes, a partir de então, serem devidamente considerados e respeitados, quando do trato dos mais diversos assuntos jurídicos. Basta lembrar que o prazo máximo para prolação de uma sentença arbitral é de seis meses. Poderá o judiciário competir com isso?
Referências
Advogado Especialista em Direito Tributário e Mestre em Ciências Jurídicas
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