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História dos direitos humanos e seu problema fundamental

Século XIV – Nascimento do humanismo

Na segunda metade do século XIV surgiu na Itália um movimento estético, literário e filosófico denominado humanismo. Tal movimento exaltava o valor humano como meio e finalidade. O humanismo difundiu-se por toda a Europa e caracterizou o início da cultura moderna. Para o pensamento humanista o valor fundamental de uma doutrina é o homem, seus sentimentos, sua originalidade e sua superioridade sobre os animais. O homem passou a ser visto como um ser capaz de construir seu próprio destino, um ser que constitui o centro do universo. O humanismo foi um aspecto fundamental do Renascimento, mais precisamente o aspecto em virtude do qual o Renascimento é o reconhecimento do valor do homem em sua totalidade e a tentativa de compreendê-lo em seu mundo, que é o da natureza e da história.

É possível identificar três fases distintas do movimento humanista, a saber: entre os anos de 1304 a 1374 houve a fase precedente, que prenunciava o humanismo na sua versão mais primitiva e pouco pragmática. Nesta fase, na Itália, viveu Francesco Petrarca (1304-1374), considerado o “pai do humanismo”. Giovanni Bocaccio (1313-1375) também se sobressaiu escrevendo Decameron, sua obra-prima, precursora da literatura humanista. Entre os anos de 1374 a 1494 houve a fase intermediária marcada pela queda de Constantinopla e pela morte do filósofo Pico della Mirândola (1463-1494), que se distinguiu pelo seu saber enciclopédico. “De omni re scibili” era a divisa de Pico della Mirândola. Sempre buscando o conhecimento sobre todos os ramos das ciências humanas, o humanista italiano defendeu dezenas de teses na área filosófica e teológica. Entre os anos de 1494 a 1564 tem-se o período áureo do humanismo. Marca seu término o Concílio de Trento, que dá ensejo à Contra-Reforma. O humanismo, sobretudo no seu aspecto literário, caracterizou-se pela ênfase dada à cultura antiga em contraposição à escolástica da Idade Média. O culto ao classicismo dos tempos da antiga Grécia e de Roma marcou a literatura de então.

Na Holanda o filósofo Erasmo de Roterdam (1466-1536), o “príncipe do humanismo” como era chamado, escreveu O Elogio da Loucura obra na qual teceu duras críticas à Igreja dogmática. Havia naquela época uma batalha ideológica sobrepondo o homem aos dogmas. Erasmo de Roterdam sem dúvida contribuiu para o ensejo da Reforma Protestante. Na Alemanha o movimento humanista promoveu a valorização do homem e de sua liberdade de consciência. O livre-arbítrio, em oposição ao determinismo, era defendido por muitos pensadores. A Bíblia passou a ser interpretada de forma diversa daquela tradicionalmente imposta pela Igreja Católica. Isso representava uma tentativa de restabelecer contato com as fontes originais do cristianismo.

A renovação religiosa trazida pelo Renascimento impôs a existência de um Homo religiosus  livre e consciente. As novas ideias trouxeram consequências, como a Reforma Protestante de Martinho Lutero. Na Inglaterra, Thomas More (1478-1535) foi o maior vulto humanista. Escreveu Utopia onde expôs o sonho de uma sociedade democrática, sem guerras e sem disputas de classe. Em França, Michel de Montaigne (1533-1592), filósofo cético e avesso a qualquer dogmatismo, foi um grande moralista e julgava que a arte de viver deve fundamentar-se na sabedoria cautelosa, inspirada pelo bom senso e pelo espírito de tolerância. Foi autor de Ensaios, sua melhor obra. A história contemporânea evidencia a existência de humanistas oriundos das mais diversas vertentes filosóficas. Para o pensador alemão Karl Marx, o humanismo deve ser entendido sob o prisma de uma sociedade igualitária e livre da exploração capitalista.

Jean-Paul Sartre, pai do existencialismo contemporâneo, afirmou ser o existencialismo um humanismo. Segundo Sartre (2014), o existencialismo ateu entende o homem como sendo o único responsável por sua existência. Não há um Deus, logo não há essência a priori: a existência precede a essência. O homem cria a sua própria moral e se define como homem em razão das escolhas que faz. Outros pensadores consagraram-se como cristãos humanistas. Pierre Teilhard de Chardin, Jacques Maritain e Jean Guiton são alguns exemplos. No Brasil, Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, é um nome a ser lembrado. Jacques Maritain (1946), autor de Princípios duma política humanista, descrevia o verdadeiro humanismo como aquele sistema capaz de fazer florescer no âmago do ser humano todas as suas virtudes, que lhes são próprias enquanto filho de Deus. Maritain foi um dos mentores da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Atualmente, o humanismo pode ser entendido como qualquer movimento filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do homem. Segundo Abbagnano (2003), humanismo significa “qualquer tendência filosófica que leve em consideração as possibilidades e, portanto, as limitações do homem, e que, com base nisso, redimensione os problemas filosóficos”. Ser humanista significa, portanto, valorizar o ser humano, defendendo-o das injustiças sociais impostas pela ordem vigente. Significa, ainda, colocar o homem e sua dignidade acima de tudo na complexidade das relações sociais. É o homem sobrepondo-se aos dogmas, preconceitos e instituições injustas. Desta vertente filosófica conhecida como humanismo surgiu um interesse pelos valores e pelos direitos humanos.

 

História dos direitos humanos

A Magna Carta da Inglaterra do século XIII vem sendo apontada como precursora das futuras declarações de direitos humanos. Muito embora não constitua uma afirmação universal de direitos humanos, o referido documento teve o mérito de restringir o poder absoluto do monarca, consagrando os direitos dos barões e dos prelados ingleses. Não obstante o fato de a Inglaterra ter dado o impulso inicial, foi na América do Norte que surgiu a primeira Declaração de Direitos, em 12 de janeiro de 1776, cuja cláusula primeira proclamava: “todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes”.

Em 26 de agosto de 1789 a Assembleia Nacional Francesa aprovou sua “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, que devido às repercussões da Revolução Francesa, exerceu maior influência que a declaração norte-americana, apesar de estar nesta fundamentada. A referida Declaração foi inspirada nos ideais iluministas e humanistas e proclamava a igualdade dos homens, a liberdade individual e o direito de resistência à opressão. Abalou as estruturas do absolutismo europeu, refletindo-se nos movimentos revolucionários que abalaram o mundo no século XIX.

No século XX, a Constituição da República de Weimar, promulgada em 11 de agosto de 1919 e na qual tiveram destaque os direitos sociais, serviria de base para o futuro reconhecimento dos direitos fundamentais. A ideia de uma nova declaração de direitos surgiu no final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 10 de dezembro de 1948 a terceira Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o documento intitulado “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Ao proclamar os direitos fundamentais, a ONU tornou evidente não se tratar de concessão ou reconhecimento, esclarecendo que a existência de tais direitos independe de qualquer vontade ou formalidade uma vez que eles são inerentes a pessoa humana, nenhum indivíduo, entidade, governo ou Estado tem legitimidade para retirá-los ou restringi-los.

A União Europeia tem seu sistema de direitos humanos fundado na “Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais”, adotada em Roma, Itália, em 1950. Já em 1961, foi assinada a Carta Social Europeia que trata dos direitos econômicos e sociais.

Em 1977 na capital da Argélia, no continente africano, foi aprovada a “Declaração Universal dos Direitos dos Povos”. Ao enunciar princípios referentes aos direitos de todos os povos, esta declaração expressava a necessidade de garantia à autodeterminação política, ao desenvolvimento econômico, à cultura, ao meio ambiente e aos direitos das minorias. Teve a preocupação fundamental de construir uma nova ordem internacional, mais solidária e cooperativa. Ainda no continente africano foi instituída a Organização de Unidade Africana e assinada a “Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos”, em 1981.

Na década de 1990 foi assinada a “Carta de Paris”, no âmbito da Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa, ocasião em que se estabeleceram normas precisas sobre os direitos do homem e das minorias. Em 1992 a “Convenção Americana sobre os Direitos Humanos” – conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica” – uniu inúmeras nações em torno do ideal de fortalecimento da defesa dos Direitos Humanos na América Latina. Desta convenção e de tantas outras realizadas no decorrer da história, o Brasil foi signatário.

 

O que são direitos humanos

Por direitos humanos entendemos um conjunto de faculdades e instituições que em determinado momento histórico concretiza as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional. O jurista Celso de Albuquerque Mello refere-se aos direitos humanos dizendo que esses direitos são concebidos de forma a incluir aquelas reivindicações morais e políticas que no consenso contemporâneo, todo ser humano tem o dever de ter perante sua sociedade ou governo, reivindicações essas reconhecidas como de direito e não apenas por amor, graça ou caridade (MELLO, 2001).

Os direitos humanos distinguem-se dos concretos. O direito positivo é de competência do Estado, que busca igualar fracos e fortes, garantindo-lhes salário digno, moradia, educação, assistência à saúde, etc. Por outro lado os direitos humanos existem numa área livre da intervenção estatal. Há deveras um expressivo número de espécies de direitos humanos e a cada ano vão surgindo novos grupos. Há também diferentes classificações. Uma conhecida classificação é feita sob o ponto de vista histórico de surgimento, considerando quatro gerações de direitos, a saber: direitos de primeira, segunda, terceira e quarta gerações. Não obstante, tem havido críticas à expressão “geração de direitos”.

Parte da doutrina jurídica entende que melhor seria utilizar a expressão “dimensão”, e nesse sentido leciona Wolfgang Sarlet: não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos fundamentais (SARLET, 2001). De fato não está correto pensar que os direitos humanos se substituem ao longo do tempo, pois na verdade há um processo de cumulação e expansão permanente. Vejamos em síntese as quatro dimensões de direitos fundamentais:

Direitos humanos de primeira dimensão são os direitos civis e políticos (proibição da tortura ou tratamento desumano ou degradante, a proibição da escravidão, a liberdade de opinião e as atividades políticas e trabalhistas), são direitos clássicos, negativos, pois exigem uma abstenção de parte do Estado (o Estado não pode prender, não pode processar, não pode tributar, etc.), os quais foram universalizados pela Revolução Francesa do século XVIII. Correspondem à fase inicial do constitucionalismo ocidental, mas prevalece nas constituições ainda nesse terceiro milênio.

Direitos humanos de segunda dimensão são os direitos econômicos, sociais e culturais, surgidos a partir de meados do século XIX, com a Revolução Industrial e o surgimento de grandes massas de operários trabalhando sob o mesmo teto fabril. Estes direitos somente podem ser desfrutados com o auxílio do Estado, são eles: o direito ao trabalho em condições justas e favoráveis, o direito de pertencer a sindicatos, o direito à educação e cultura, o direito a um nível adequado de vida, o direito à seguridade e seguro social.

Direitos humanos de terceira dimensão são também denominados direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem do indivíduo como titular, destinando-se à proteção de grupos humanos. Assim os beneficiários são não só os indivíduos, mas também os povos. Esses direitos surgiram após a segunda guerra mundial. São exemplos o direito a um ambiente sadio, o direito à paz, o direito ao desenvolvimento e o direito aos bens que constituem o patrimônio comum da humanidade.

Direitos humanos de quarta dimensão representam o direito à vida das gerações futuras, o direito a vida saudável, o desenvolvimento sustentado, o direito à informação, direito a democracia, etc. É importante salientar que nem todos os autores reconhecem a existência de uma quarta dimensão ou geração de direitos. Outra questão intrigante relativa aos direitos humanos foi levantada pelo jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2001), quando advertiu para o risco de uma possível vulgarização dos direitos humanos: “é preciso atentar para o fato de que a multiplicação de direitos fundamentais vulgariza e desvaloriza a ideia” (FERREIRA FILHO, 2001).

Há uma tendência entre os organismos internacionais em elencar direitos fundamentais sem critérios específicos. É o caso do direito ao turismo, direito ao desarmamento, direito ao sono, direito de não ser morto em guerra, direito de não estar sujeito a trabalho aborrecido, direito à coexistência com a natureza, direito de livremente experimentar modos de viver alternativos, entre outros. Não é raro encontrar juristas que se posicionam contra essa inflação de direitos fundamentais. Exige-se o estabelecimento de critérios para que se reconheça um direito como direito humano fundamental. O direito humano é um direito universal, inerente a condição humana do homem de todas as partes do mundo e em todos os tempos. Ferreira Filho (2001) propõe os seguintes critérios para se elencar um direito humano: o direito deve ser fundamental, deve ser universal, o direito deve ser suscetível de uma formulação suficientemente precisa para dar lugar a obrigações da parte do Estado e não apenas para estabelecer um padrão.

 

Problema fundamental dos direitos humanos

Historicamente o governo brasileiro pouco fez em defesa das garantias fundamentais de seus cidadãos. A experiência da ditadura militar entre os anos de 1964 e 1985 deixou resquícios de autoritarismo muito presentes na atualidade. Basta correr as páginas dos jornais para perceber que o desrespeito aos direitos humanos continua sendo uma realidade flagrante no Brasil, muito embora seja o país signatário de documentos internacionais de garantia desses direitos fundamentais. Nesse sentido, convém salientar o posicionamento de Norberto Bobbio para quem atualmente o problema fundamental dos direitos humanos está na dificuldade dos governos em construir condições para a realização dos direitos proclamados. “A busca dos fundamentos para os direitos do homem não terá nenhuma importância histórica se não for acompanhada pelos estudos das condições, dos meios, e das situações nas quais este ou aquele direito possa ser realizado” (BOBBIO, 1992).

Não obstante os obstáculos enfrentados, governos de diferentes países vêm demonstrando interesse pela defesa dos direitos humanos. O corolário da adesão à causa das garantias fundamentais dos cidadãos leva a crer que a fundamentação política desses direitos perdeu seu interesse. Não se trata mais de buscar razões, mas de construir condições para a realização dos direitos proclamados. Segundo Bobbio, para empenhar-se na criação dessas condições é preciso que se esteja convencido de que a realização dos direitos do homem é uma meta desejável, mas não basta essa convicção para que aquelas condições se efetivem. Muitas dessas condições não dependem da boa vontade nem mesmo dos governantes: somente a transformação industrial num país, por exemplo, torna possível a proteção dos direitos ligados às relações de trabalho (BOBBIO, 1992).

Como se sabe as frequentes críticas relativas aos direitos fundamentais não questionam a carência de uma fundamentação teórica, mas o não cumprimento dos dispositivos encontrados nas Declarações de Direitos Humanos que vêm sendo promulgadas. Ao que parece o problema fundamental em relação aos direitos humanos hoje não é tanto o de justificá-los, mas o de concretizá-los.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 1992.

 

BOCCACCIO, Giovanni. O Decamerão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

 

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001.

 

MARITAIN, Jacques. Princípios duma política humanista. São Paulo: Agir, 1946.

 

MELLO, Celso de Albuquerque. Curso de direito internacional público. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

 

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Editora 34, 2016.

 

MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Edipro, 2014

 

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. Porto Alegre: L&PM, 2008.

 

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis (RJ): Vozes, 2014.

 

 

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Autor:

Roberto Carlos Simões Galvão, Bacharel em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Pós-Graduação em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual de Londrina. Licenciatura em Sociologia pelo Programa Especial de Formação de Docentes. Mestrado em Fundamentos da Educação pela Universidade Estadual de Maringá.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Equipe Âmbito Jurídico

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