Humanização do direito de propriedade e a sua função social

Resumo: Neste trabalho é abordado o conceito de propriedade ao longo do tempo e suas diversas formas até o aspecto atual, quando verificamos uma releitura na atualidade com destinação da mesma a cumprir uma função social, com a limitação do uso da terra e restrição do interesse individualista do proprietário em prol de um interesse maior, o da coletividade. Procuramos demonstrar um panorama da constitucionalização do direito privado, retratada na mutação nos ordenamentos jurídicos que passaram a inserir em seus tecidos legislativos contornos de uma democracia social, com textos constitucionais influenciando institutos de direito privado. O humanismo e seu reflexo no direito de propriedade é abordado para demonstrar uma nova dimensão das relações jurídicas, com o deslocamento do ser humano para o centro do ordenamento jurídico, exaltando o ser humano. A propriedade e sua função social, com foco na expansão desta teoria e uma relativa abordagem histórica, é objeto tratado neste trabalho, tendo sido delimitado ao âmbito nacional, verificando-se que se pressupõe um exercício do direito de propriedade harmônico com os fins econômicos e sociais a que se destina, com objetivo de promover o bem comum e conquistar um equilíbrio entre o direito do proprietário e os interesses da coletividade.

Palavras-chave: Humanismo. Constitucionalização do Direito. Função social da propriedade.

Sumário: Introdução.  1. Escorço histórico do conceito de propriedade. 2. Constitucionalização do Direito. 3. O Humanismo e seu reflexo no direito de propriedade. 4. A propriedade e sua função social. Conclusão.

INTRODUÇÃO

Cumpre destacar que o assunto está sendo abordado sem a mínima pretensão de que este seja esgotado, sobretudo pelo fato de fazer parte do rol de temas de direito que são construídos ao longo da história, todavia, temos o propósito de, em linhas superficiais, tratar da historicidade do direito de propriedade, da constitucionalização do direito como tendência, dos reflexos do humanismo no direito de propriedade e a função social desta.

Ao final, espera-se que se possa concluir pelo reconhecimento positivo desse processo de constitucionalização do direito e a influência humanística como uma tendência do direito pós-moderno, com a funcionalização de institutos privados, proporcionando a concretude de um direito mais ético, social e humano.

1 ESCORÇO HISTÓRICO DO CONCEITO DE PROPRIEDADE

Reputo conveniente dedicar um trecho deste trabalho à propriedade, vez que assumiu ao longo do tempo diversas formas até ter a hodierna concepção atual, com destinação de cumprir uma função social.

Fustel de Coulanges[1], em sua renomada obra A Cidade Antiga, dividida em Livros internos, trata do Direito de Propriedade no Capítulo VI do Livro Segundo – A Família, e situa o assunto neste local porque o autor faz um link entre um tema e outro e, embora pareça estranho o autor vincular a propriedade à família, ele ainda a vincula à religião.

Enveredando por várias raças, Coulanges demonstra como cada uma tratava a propriedade. Citando os Tártaros, diz que estes entendiam serem proprietários de seus rebanhos, mas não do solo em que criavam estes animais. Da mesma forma, falando dos Germanos, alega que eram donos das colheitas, mas não da terra. Refere-se, ainda, aos Semitas e aos Eslavos, que da mesma maneira tratavam a propriedade das coisas.

De forma diversa os Gregos focavam no solo, pois sentiam-se proprietários absolutos dele.

Coulanges entende que três elementos relacionavam-se entre si e andaram inseparáveis ao longo do tempo, sendo a religião doméstica, a família e o direito de propriedade, pois tratava-se do fundamento do direito das pessoas em ralação à propriedade.

Citando Cícero, filósofo, advogado e político, Fustel diz que assim se expressou o romano: que outra coisa existe de mais sagrado que a morada de cada homem? Ali está o altar; aí brilha o fogo sagrado; aí estão as coisas santas e a religião.

O túmulo seguia a mesma regra que o lar e tinha grande importância na religião dos antigos, onde eram realizados os cultos aos antepassados. A família tinha um túmulo comum e até eram realizadas refeições fúnebres no local onde os membros da família iam repousando, um após o outro.

Esse lar, esse túmulo comum, esse comportamento das famílias tiveram relevante influência na definição da propriedade.

A tradição familiar fazia com que cada família criasse em sua casa o próprio altar para o culto de seu fogo sagrado que os mantinha unidos e ele deveria ser eterno e isso criava um dever de proteção ao local e tornava aquele solo também sagrado e, consequentemente, gerando um dever de proteção, tendo início com os termos, como chamados eram os marcos, depois foram sendo construídos pequenos muros de pedra, depois uma cabana de proteção, até que eram feitas edificações mais complexas com o fim de proteger o fogo sagrado das famílias, surgindo a ideia de limites das áreas.

Ainda de acordo com Coulanges[2], colocado o termo na terra, estava, por assim dizer, a religião doméstica implantada no solo, para indicar que este chão ficava, para todo o sempre, propriedade da família.

De maneira diferente agia o povo Grego, que disponibilizava das colheitas, mas não dispunha livremente de sua terra, porque detinha a propriedade do solo.

Os Etruscos[3] também ligava a propriedade à religião e assim afirmava:

“Aquele que tocar ou deslocar o marco será condenado pelos deuses; a sua casa desaparecerá e a sua raça extinguir-se-á; a sua terra não produzirá mais frutos; o granizo, a ferrugem, os calores da canícula destruir-lhe-ão as colheitas; os membros do culposo cobrir-se-ão de úlceras e cairão por consumpção”.

Conclui, Coulanges, afirmando que a religião doméstica quem ensinou o homem a apropriar-se da terra e a assegurar-lhe o seu direito sobre a mesma.

Não obstante este determinismo de caráter coletivo e familiar da propriedade, por questões econômicas e com o passar do tempo, esta coletividade é substituída pela propriedade privada.

A característica familiar da antiguidade passa, na idade média, a ter a prevalência do sistema feudal, com o poder descentralizado nas mãos dos senhores feudais e a economia baseia-se na agricultura com o trabalho de servos, que eram tratados como seres secundários, tanto que eram vendidos com a terra.

Os valores medievais e, evidentemente, o sistema feudal, perdem espaço com o surgimento do mercantilismo e a formação de fortes Estados nacionais na Idade Moderna.

Com a emergência do capitalismo, um sistema econômico com fundamento na propriedade privada dos meios de produção e na obtenção de lucros ganha força e prevalece até os dias atuais, embora manifestos comunistas entendiam que a propriedade não poderia ser considerada mera mercadoria, mas deveria ser tratada como um bem de produção em benefício comum.

Trata-se do embrião da ideia de função social da propriedade, que na idade contemporânea passa a ter status de princípio jurídico constitucional, quando são insertos, em um primeiro momento, na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1919[4], da Alemanha.

A mutação da concepção da propriedade no Estado Brasileiro, deixando esta de ter interesse exclusivamente individualista, surge com a influência das Cartas Alemã e Mexicana já em nossa Constituição de 1934 e, posteriormente, após a segunda grande guerra, quando atos de repressão de liberdades e violadores de direitos humanos foram evidenciados, ocasionando uma tomada de posição por parte da Organização das Nações Unidas que emite a Declaração Universal de Direitos do Homem de 1945, instrumento protetivo do ser humano e garante do direito do homem à propriedade.

A função social somente ganha campo em nosso ordenamento na Carta de 1934, em seu artigo 113, n. 17, que normatizava a garantia o direito da propriedade, não podendo ser exercido contra o interesse social ou coletivo[5].

Empós o marco constitucional de 1934 vem o Estatuto da Terra[6] de 1964, com o câmbio da legislação, da doutrina e da jurisprudência, até chegarmos em nossa Carta Magna de 1988 e nosso derradeiro Código Civil de 2002, que nos conduziram até o formato atual da propriedade no Brasil, que indica o caminho a uma propriedade com o objetivo de atingir uma funcionalidade social.

2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

Consoante delineado em linhas anteriores, verificou-se uma mutação nos ordenamentos jurídicos no período pós-segunda guerra, quando diversos Estados, mormente os Europeus, passam a inserir em seus tecidos legislativos contornos de uma democracia social, inclusive com textos constitucionais influenciados por normas antes vistas apenas na seara do Direito Civil.

Verificou-se, ainda, influência internacional de outras fontes aos ordenamentos internos dos Estados, inclusive, com o princípio da queda dos absolutismos estatais e estremecimento das soberanias.

Traçando um paralelo a este tema e tratando de soberania, Luigi Ferrajoli[7] demonstra que esse fenômeno é visível, também, quando realizamos uma reconstrução histórica das origens e dos percursos da soberania no mundo moderno, antes de um poder absoluto do Estado, que não reconhecia nenhum outro poder acima de si, todavia, o que se vê ao longo dos últimos tempos é uma crescente dissolução da soberania no interior dos Estados e a afirmação dos Estados Democráticos de Direito.

Quanto ao absolutismo estatal Mazzuoli[8] afirma que “(…) é mais sabido que os direitos dos Estados não são absolutos. Às vezes, tanto os costumes como os tratados internacionais impõem certas restrições às prerrogativas básicas dos Estados, tendo em vista o bem comum da sociedade internacional. Tais restrições aos direitos dos Estados ora afetam sua soberania interna, ora sua soberania externa”.

Sabe-se que considerando a natureza do bem jurídico tutelado há uma forma dualista e clássica de divisão do direito, sendo o ramo do Direito Público e o ramo do Direito Privado, enfatizando que aquele acautela valores de interesse de caráter coletivo e este destina-se a acautelar os interesses de particulares.

De forma tradicional, o Direito Civil, ramo do Direito Privado, incorporava princípios individualistas, como a autonomia da vontade, a liberdade contratual e a propriedade privada e, como acima asseverado, são de caráter protetivo de interesses do indivíduo.

Em dias atuais verifica-se o personalismo da abordagem civilista, que transmuda seu ponto essencial, antes dedicado ao patrimônio, passando a ser preenchido pelo próprio ser humano. Nesta esteira de entendimento afirma Fachin[9] que “o personalismo coloca o ser humano no centro do sistema jurídico, retirando o patrimônio dessa posição de bem a ser primordialmente tutelado, ao contrário do que faz o individualismo proprietário. E prossegue asseverando que deve haver a superação do individualismo por um solidarismo jurídico, que valorize a coexistencialidade”.

Em razão dos motivos antes descritos, tem-se verificado o fenômeno de migração de institutos antes vistos somente na seara do Direito Privado e que agora podem ser observados no Direito Público, como exemplo é o exercício do direito de propriedade, escopo deste trabalho, antes de natureza eminentemente privada, hoje tendo valor de interesse coletivo.

No início do século XX entra em declínio o constitucionalismo liberal, com substancial mudança de foco da visão jurídica quanto à realidade social presente, dando início ao câmbio para o constitucionalismo social, que exalta o indivíduo em detrimento do patrimônio, o qual perde seu local no topo da ordem constitucional, ocasionando relevante transformação no trato do povo com o Estado, uma vez que as constituições passam a ter marcante influência no diversos ramos do direito.

Esse fenômeno é conhecido como a Constitucionalização do Direito, e, em nosso caso delimitado trata-se do Direito Civil, quando verificamos que a propriedade é regrada pela função social que deve exercer. Não ocorre somente em relação à propriedade, porque as constituições modernas não mais regulam apenas princípios e garantias fundamentais das pessoas ou tratam de política, mas contemplam em seus tecidos textuais regras atinentes às relações de natureza privada. Isso pode ser notado em nossa Constituição de 1988, quando em seu texto podemos verificar normas antes estampadas apenas no Direito Civil.

Da mesma maneira temos que o Direito Civil passa a incorporar valores e princípios de ordem eminentemente constitucional, como pode ser observado em casos em que deve ser garantida a dignidade da pessoa humana.

Com base nesta migração de institutos e incorporação de valores e princípios, verifica-se uma Constituição destinada a concretizar direitos e garantias fundamentais, alçando o Estado a protetor de seus cidadãos e torna-lo garante de direitos sociais, revelando um sistema simbiótico de normas que guardam relação com sistemas social-democráticos.

A Constituição Federal[10] de 1988 disciplina o conceito de propriedade e a sua função social, instituto que antes dizia respeito apenas a interesses privados e agora passa a integrar valor para a coletividade.

Logo no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, a Carta estabelece o direito de propriedade e que esta deve atender uma função social, vejamos:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”.

Conjugando os dois incisos percebe-se que a utilização e o desfrute da propriedade devem ser exercitados pelo dono de acordo com os interesses da sociedade, pois devem atender a uma função social.

Prossegue nossa Carta Magna em relação à propriedade e sua função social no artigo 170, que trata da ordem econômica, vejamos:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade.”

É no artigo 186 que a Constituição disciplina como será exercida a função social, conforme adiante segue:

“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

O regramento inserto no texto constitucional brasileiro em relação à propriedade demonstra o constitucionalismo de institutos de direito privado, com a restrição e limitação do formato do exercício da propriedade em nosso ordenamento jurídico, quando atribui ao proprietário o dever de estabelecer uma destinação social aos seus bens, constituindo uma harmonia da funcionalização da propriedade privada com interesse social, gerando uma humanização das relações jurídicas.

3 O HUMANISMO E SEU REFLEXO NO DIREITO DE PROPRIEDADE

Abordamos em linhas anteriores o processo de constitucionalização do Direto Civil, entretanto, outro fenômeno que merece consideração nesta seara é a humanização do direito, que é a condução do princípio da dignidade da pessoa humana para o centro do ordenamento jurídico.

O humanismo surgiu no século XIX e, a partir de então, vários institutos passaram a ser tratados sob a perspectiva de interesses sociais, sendo que o objeto deste trabalho, a propriedade, também foi influenciada por este fenômeno, passando o proprietário a exercitar seu direito com equilíbrio entre seu próprio interesse e os direitos coletivos.

Imperioso demonstrar o conceito de humanismo:

Humanismo é a filosofia moral que coloca os humanos como principais, numa escala de importância. É uma perspectiva comum a uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade, aspirações e capacidades humanas, particularmente a racionalidade[11]”.

Com a humanização do direito, com um delineamento de conteúdo social, emerge um novo formato de Direito Privado, sem foco no egoísmo, no individualismo e na patrimonialização, com abertura de campo para uma concepção antropocentrista, valorizando e protegendo o indivíduo.

O professor Patryck de Araújo Ayala[12] afirma que vivenciamos “a proliferação de transformações do poder público estatal para a formação de um Estado social, e a imposição de tarefas diferenciadas no contexto de novas necessidades de proteção – agora associadas a objetivos de oferecer não mais proteção civil, mas proteção social em face das diversas modalidades de degradação social da pessoa humana”.

Tornou-se perceptível nas constituições mais atuais contornos de uma diretriz voltada para o social e humanista.

Como vimos, dois fenômenos ocorrem paralelamente, sendo o primeiro a constitucionalização do direito civil e o segundo a privatização ou civilização do direito público e, como exemplo desta, cito as parcerias público-privadas, podendo ocorrer uma interligação do sistema, consubstanciado em uma espécie de ajuste em prol do indivíduo em consequência do diálogo existente entre o direito e o meio social.

Sabe-se que para o fim a que se destina a nossa Carta Magna se propõe a construir uma sociedade livre, justa e solidária e, sob esse prisma, é que deve ser analisada a propriedade.

Verificamos alhures que a forma de propriedade passou por várias mutações com o passar do tempo, entre coletiva, individual, absoluta, relativa, até sua concepção atual, com feições mais humanizadas, ou, até aonde efetivamente pretendemos chegar.

De maneira diversa de teorias como a da democratização, nacionalização ou da socialização que fundam-se no acesso aos meios de produção ou na titularidade do domínio, a humanização tem por objeto o exercício do direito da propriedade, com a restrição deste, todavia, respeita o domínio privado.

Assim, a teoria da humanização do direito de propriedade foca na intensidade do exercício desse direito real, disciplinando que não pode este exercício ocorrer à discrição do titular, porque há limites impostos nos direitos subjetivos de terceiros.

A humanização do direito de propriedade estabelece que o exercício deste direito deve ser realizado de forma funcionalizada, em harmonia com suas finalidades econômicas e sociais, porque é fundamental para a realização das necessidades básicas do ser humano e o titular do direito deve exercê-lo respeitando limites, caso contrário comete abuso e ofende interesse social e ambiental.

A propriedade agrária assume, portanto, importância fundamental, pois trata-se de instrumento vocacionado para a promoção do bem estar social e para a produção de riquezas, devendo o domínio ser um bem com a função de atender necessidades coletivas e não ser exercido de forma contrária aos interesses da sociedade.

Considerando os valores inseridos na Constituição Federal, humanizar o direito de propriedade e não proporcionar o seu exercício em caráter absoluto é medida que se impõe, para permitir que sirva de instrumento de interesse da coletividade, centralizado nos valores humanos e que possa atingir sua função social.

4 A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL

A Leon Duguit[13] é creditada a difusão do conceito jurídico do termo função social da propriedade, sendo que este sustentava que a propriedade não era um direito, mas se tratava de uma função social, conforme sustentou em memorável palestra proferida em Buenos Aires, na Argentina, em 1911.

Para Duguit a propriedade deixa de ter um caráter absoluto e o proprietário, por ser portador de um bem de valor – a propriedade, vincula-se a um dever de cumprir uma função social e se o proprietário exercesse o direito sobre a propriedade cumprindo sua missão social era considerado legítimo, todavia, caso contrário poderia haver a interferência estatal para obrigá-lo a cumprir sua função social.

Embora em nossas Cartas Constitucionais de 1934, 1946 e de 1967 tivéssemos delineamentos acerca da função social da propriedade, vimos em linhas anteriores que no Estatuto da Terra de 1964 foi assegurado o acesso à propriedade, desde que o fosse com uso funcional da terra e a última Constituição, de 1988, é que o tema foi abordado de forma ampla, não tratando o tema somente em nível de conceituação, mas estabeleceu requisitos e a alçou a patamar de princípio e a vinculou ao setor econômico e aos direitos e garantias fundamentais.

Em sua obra Contornos Constitucionais da Propriedade Privada, Gustavo Tepedino[14] traça um paralelo entre a função social da propriedade segundo as Constituições brasileiras de 1967 e a atual, sendo que naquela a função social da propriedade era tratada como princípio da ordem econômica e social e nesta, a de 1988, é considerada como direito e garantia fundamental, estando disciplinada no art. 5º, inciso XXIII, que estabelece que a propriedade atenderá a sua função social e no art. 186 diz como será exercida esta função.

Para compreensão da expansão da teoria da propriedade como função social, evidentemente que há necessidade de verificação histórica desta, uma vez que o percurso percorrido é marcante e revela uma concepção fundada em aspectos sociais e econômicos do tempo e lugar em que exercido o direito.

No Brasil a evolução do direito de propriedade caminha para a funcionalização, forte em valores do tecido constitucional que norteia rumo à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, enaltecendo que o princípio da função social encontra-se em constante evolução.

Ainda no plano ocidental verifica-se a presença da teoria da propriedade como função social na Carta Constitucional Mexicana de 1917 e também na Constituição de Weimar de 1919, na Alemanha, cujo texto desta já afirmava naquela época que a propriedade gera obrigações e que seu uso deve ao mesmo tempo servir ao bem estar social.

Em razão de conflitos internos ou mesmo por atuação externa, as mais modernas constituições do continente americano incluíram a função social da propriedade rural em seus ordenamentos jurídicos, como o Chile em 1981, a Colômbia em 1991, o Peru em 1993 e o Paraguai em 1994.

Evidente que no mundo capitalista o direito ao exercício da propriedade é garantido pelo ordenamento jurídico, todavia, este deve ser limitado, considerando que a propriedade se trata de um bem comum e o Estado deve fazer prevalecer o interesse social sobre o individual.

No aspecto visto hoje, a função social é originada na evolução do homem e de seus valores, ao atribuir à propriedade o sentido de bem comum e estabelecer uma ordem que limita o uso, sem ameaçar o direito ao exercício da propriedade, porque cria um equilíbrio entre o interesse individual com o que busca a sociedade, conforme afirmou Marquesi[15], o indivíduo deve fazer uso da propriedade “de uma forma útil à sociedade, usando-o como um instrumento de riquezas e visando à felicidade de todos”.

Como já asseverado neste trabalho, no Brasil o sentido de que a terra como bem de produção deve satisfazer a sociedade está inserto em nosso Código Civil, no art. 1228, onde é tratada a propriedade e a sua finalidade social, em harmonia com o que estabelece a Constituição Federal.

O Brasil é um país de onde da terra é retirado o alimento e sustento do povo, de modo que esta terra não deve ser considerada como um bem a satisfazer poucos nos moldes do individualismo tradicional e sim como um bem comum do povo, pois garante a sobrevivência desta geração e deve ser utilizada para garantir a sobrevivência das gerações futuras.

O eminente jurista Caio Mário da Silva Pereira[16] trata com maestria este assunto quando disciplina que em relação “à propriedade, outro dos três mais significativos pilares estruturais do Direito Civil, não parece restar mais dúvida, na atualidade, a respeito de que ela não é uma função social, mas que – isso sim – tem uma função social que lhe é inerente, significando que se encontrará o proprietário obrigado a dar uma determinada destinação social aos seus bens, concorrendo, assim, para a harmonização do uso da propriedade privada ao interesse social”.

Verifica-se que no século passado, sobretudo no cerrar de suas portas, e avança neste novo, uma tendência do direito de propriedade e a funcionalização deste, com sua alçada a patamar de regra fundamental, influenciando todo o ordenamento infraconstitucional.

Em âmbito nacional pressupõe-se que o direito de propriedade seja exercido em harmonia com os fins econômicos e sociais a que se destina, sendo certo que o direito de propriedade não pode, jamais, ser privilégio de uns, mas sim deve obedecer critérios humanistas e justos, para efetivamente ser um direito que contemple a todos os indivíduos da coletividade.

CONCLUSÃO

Neste trabalho procuramos, de modo sintético, abordar o conceito de propriedade ao longo do tempo e suas diversas formas até o aspecto atual, quando podemos verificar uma releitura na atualidade com destinação da mesma a cumprir uma função social, com a limitação do uso da terra e restrição do interesse individualista do proprietário em prol de um interesse maior, que é o da coletividade.

O segundo capítulo destinou-se ao trato da constitucionalização do Direito, retratada na mutação nos ordenamentos jurídicos que passaram a inserir em seus tecidos legislativos contornos de uma democracia social, inclusive com textos constitucionais influenciando institutos de direito privado e aqueles sendo influenciados por normas antes vistas apenas na seara do Direito Civil.

Quando abordamos o humanismo e seu reflexo no direito de propriedade, já no capítulo terceiro, entendemos que houve um deslocamento do princípio da dignidade da pessoa humana para o centro do ordenamento jurídico, emergindo um novo formato de Direito Privado com uma concepção antropocentrista, com destacada valorização do indivíduo.

No quarto capítulo é tratada a propriedade e sua função social, com foco na expansão desta teoria e uma restrita abordagem histórica. Com delimitação ao âmbito nacional verificou-se que se pressupõe um exercício do direito de propriedade harmônico com os fins econômicos e sociais a que se destina, sem o sacrifício de direito alheio.

Essa nova releitura do exercício do direito de propriedade tem a finalidade de promover o bem comum, com o objetivo de se conquistar um equilíbrio entre o direito do proprietário e os interesses da coletividade.

Pensar no momento atual e nas futuras gerações, fazendo uso racional e adequado da terra, sem abuso dos recursos naturais, promovendo a funcionalização da propriedade com a promoção do bem estar social é dever de cada um, para que se possa edificar uma sociedade mais humanizada.

 

Referências
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TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
Notas:
[1] COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 56 et seq.
[2] COULANGES, Fustel de. op. cit. p. 65.
[3] IBIDEM.,  p. 66.
[4] PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais. A preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917. p. 120.
[5] CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 660.
[6] ESTATUTO DA TERRA. Lei 4.504/1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm>. Acesso em 16 ago. 2014.
[7] FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. VIII.
[8] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 8. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 554.
[9] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 46.
[10] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 39. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[11] Conceito definido na Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Humanismo>.  Acesso em 17 ago. 2014.
[12] AYALA, Patryck de Araújo. Devido Processo Ambiental e o Direito Fundamental ao Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 158.
[13] BERNARDES, Juliano Taveira. Da função social da propriedade imóvel. Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 151, 4 dez. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4573>. Acesso em: 25 ago. 2014.
[14] TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 267 et seq.
[15] MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos Reais Agrários e Função Social. Curitiba: Ed. Juruá. 2001, p. 95.
[16] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Civil – alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001, p. 70.

Informações Sobre o Autor

Lídio Modesto da Silva Filho

Juiz de Direito em Mato Grosso e mestrando em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT


Equipe Âmbito Jurídico

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