Sumário: 1 Introdução. 2 Da seletividade do imposto. 3 Sujeito ativo da ação de repetição de indébito. 4 Conclusão.
1 Introdução
Costuma-se distinguir mercadoria, bem material sujeito à incidência do ICMS, de serviço, bem imaterial sujeito à incidência do ISS.
Entretanto, a Constituição Federal previu a tributação pelo ICMS das operações relativas a energia elétrica ao vedar no § 3º do art. 155 a incidência de qualquer outro imposto que não seja o ICMS. Não fora a expressão previsão constitucional dos serviços tributáveis pelo Estado-membro – serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (art. 155, II da CF) – poder-se-ia argumentar que o fornecimento de energia elétrica, bem imaterial, configura prestação de serviço. O certo é que a venda de energia elétrica, que estava incluída no antigo imposto único, de competência impositiva da União – IUCLL – foi transferida para o Estado-membro.
Dispõe, também, a Lei Complementar nº 87/96, lei de regência nacional do ICMS, que o ICMS incide sobre a entrada de energia elétrica no Estado destinatário por meio de operações interestaduais sempre que não for destinada à comercialização ou à industrialização (art. 2º, § 1º, III). Quando destinada à comercialização ou à industrialização, a operação interestadual é imune (art. 155, § 2º, X, b da CF).
Dentre os inúmeros aspectos que o tema suscita examinaremos, neste artigo, dois deles: o da seletividade e o do sujeito ativo na ação de repetição.
2 Da seletividade do imposto
Dispõe o art. 155, § 2º, III da CF que o ICMS “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”.
Não se trata de imposto seletivo, mas de imposto cujas alíquotas poderão ser seletivas em função da essencialidade dos bens objetos de circulação mercantil.
Não concordamos com o posicionamento de alguns estudiosos, que a partir da distinção entre normas de estrutura e normas de conduta, inclui o retro citado inciso III, do § 2º do art. 155 da CF dentre as primeiras, para sustentar que o legislador ordinário deve, necessariamente, observar a seletividade em função da essencialidade das mercadorias ou serviços. A seletividade integraria, por assim dizer, o próprio processo legislativo.
Em que pese o esforço e a erudição demonstrados por defensores dessa corrente não se pode inverter o significado etimológico da palavra “poderá”, que não deve ser confundida com a palavra “será”, que consta em relação ao IPI (art. 153, § 3º, I da CF). O ICMS poderá ser seletivo, ao passo que, o IPI deverá ser seletivo. É o que determina a Carta Magna. Não vejo como possa sustentar que a seletividade do ICMS integra o processo legislativo, com fundamento no conceito de norma de estrutura que não tem pertinência ao caso sob exame.
Mais grave, ainda, a confusão feita entre o verbo “poder” com o substantivo “poder” para sustentar que quando o Texto Magno confere um poder está a conferir ipso fato um dever. É certo que existe o poder-dever dos entes políticos como bem salienta o festejado jurista Celso Antonio Bandeira de Mello. Só que aí se trata de poder enquanto força imanente do Governo para atingir a finalidade do Estado. Nada tem a ver com a disposição constitucional sob comento que emprega a palavra “poderá” como futuro do verbo poder.
Mas, a faculdade de implementar a seletividade das alíquotas do imposto não significa liberdade do legislador em impor alíquotas mais gravosas para mercadorias e serviços considerados essenciais. É como um preceito constitucional de natureza programática, que surte efeito por seu aspecto negativo, isto é, o legislador ordinário não poderá editar normas que a contravenha, mas poderá deixar de implementá-la.
Se é verdade que não há definição legal do que sejam mercadorias e serviços essenciais não é menos verdade que a Constituição não conferiu ao legislador ordinário margem de liberdade para adoção de critério político destoante do conceito de essencial, de necessário, de indispensável em termos de realidade social vivenciada em nosso país. Basta imaginar um black-out por apenas 24,00 horas para que possamos ter a idéia de quão essencial a energia elétrica para a moderna sociedade em que vivemos. A melhor forma de descobrir a violação do princípio da seletividade é a de examinar a legislação confrontando mercadorias e serviços com as respectivas alíquotas.
No que se refere à venda de energia elétrica a legislação do Estado de São Paulo prevê seguintes alíquotas: a) 12% em relação ao consumo residencial de até 200 kwh por mês; b) 25% em relação ao consumo residencial acima de 200 kwh por mês; c) 12% em relação à energia utilizada no transporte público; e d) 12% em relação à energia utilizada em propriedade rural onde haja exploração agrícola ou pastoril e esteja inscrita no cadastro de contribuintes do ICMS.
Salta aos olhos que a alíquota de 25%, prevista na letra b retro, desatende à faculdade prevista no preceito constitucional sob análise, porque a presumível capacidade contributiva do consumidor de energia elétrica domiciliar é irrelevante para implementação da alíquota seletiva. O que importa é apenas a sua seletividade em função da essencialidade da mercadoria e do serviço. Como é possível sustentar que a energia elétrica é essencial para quem apresenta baixo consumo e não o é para quem apresenta um elevado consumo?
No estágio atual da civilização, a energia elétrica é sempre um bem essencial. Sua ausência acarretaria a paralisação do processo produtivo e nem haveria circulação de riquezas. A energia elétrica é a força motriz que gera o desenvolvimento econômico-social.
Por isso, não comporta gravame maior em relação a outros bens tributados pelo ICMS. Digo bens para abranger mercadorias e serviços como prescreve a Constituição, e não, mercadorias ou serviços. Impõe-se o confronto conjunto de mercadorias e serviços para eleger o critério de seletividade em função da essencialidade dos bens. Nesse sentido também é a lição de José Eduardo Soares de Melo: “Note-se que a essencialidade consiste na distinção entre cargas tributárias, em razão de diferentes produtos, mercadorias e serviços, traduzidos basicamente em alíquotas descoincidentes” (ICMS –Teoria e prática, 7ª ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 266).
A discriminação do consumo de energia domiciliar acima de 200 kwh violenta, pois, duplamente o preceito constitucional que faculta a seletividade de alíquotas, penalizando consumidores que mais se utilizam de bens duráveis representados por aparelhos elétricos e eletrônicos, atingindo indiretamente os setores produtivos desses bens. E mais, sequer leva em conta o consumo per capita, pois cada família tem número diferente de membros.
O que o legislador infraconstitucional fez foi aumentar a alíquota do ICMS, onde a arrecadação é mais fácil, invertendo o sentido da faculdade conferida pelo legislador constituinte. Adotou-se um critério político para definição de política tributária assentada no critério da arrecadação mais rendosa e a custo zero, insusceptível de sonegação.
Sem dúvida, essa alíquota de 25% incidente sobre o consumo de energia domiciliar que, na prática, corresponde a uma alíquota real de 33,35%, porque o ICMS incide sobre si próprio, é inconstitucional. Não é razoável supor que essa energia elétrica seja menos necessária ou menos importante do que a generalidade das mercadorias gravadas com a alíquota de 18%, ou que essa mesma energia só é essencial até o limite de 200kwh por mês. Cabe ao Judiciário, se provocado, pronunciar-se quanto à quebra do princípio da seletividade que não está inserido dentro da margem de discrição do legislador ordinário, que não pode inverter o significado da expressão “seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”, atentando contra o princípio da razoabilidade que, por si só, já é um limite ao exercício da atividade legislativa.
3 Sujeito ativo da ação de repetição
Se esse ICMS de 25% é inconstitucional ele pode ser objeto de ação de repetição.
Quem pode requerer essa ação?
A Jurisprudência, coerente com a tese de que a relação processual deve ser instaurada entre as mesmas partes da relação material, tem considerado o consumidor de energia elétrica como parte ilegítima para pleitear a restituição do imposto (Resp 983.814/MG, Rel. Min. Castro Meira, J. em 4/12/2007; RMS 23.571/RJ, Rel. Min. Castro Meira, J. em 6-11-2007; RMS nº 19.121/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJU de 12-9-2005; RMS 7.004/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 3-6-2002; Resp 279.491/SP, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ de 10-2-2003).
Se for parte ilegítima para pleitear a restituição do indébito estará igualmente impedido de propor qualquer outra ação contra a Fazenda visando a não incidência dessa alíquota escorchante, visto que, o contribuinte do imposto é a empresa fornecedora (vendedora) de energia e não o consumidor, impropriamente batizado pela doutrina como “contribuinte de fato” numa clara confusão entre o jurídico e o econômico. Falar-se em “contribuinte de direito” e em “contribuinte de fato” seria o mesmo que referir-se a “juiz de direito de direito” e a “juiz de direito de fato”. A primeira expressão configura um pleonasmo, a segunda, uma figura estranha no mundo do Direito, portanto, sem qualquer relevância jurídica.
A irrazoabilidade e até a irracionalidade da legislação tributária, que inverte e perverte o sentido da faculdade conferida pela Carta Política, exacerbando a carga tributária de bens e serviços essenciais, resulta menos do desconhecimento de princípios norteadores do Direito e mais do desprezo pelo Estado dos valores fundamentais do Direito, expressos pelos princípios da boa-fé e da lealdade.
O Estado sabe de antemão, que o contribuinte do ICMS, empresa fornecedora de energia elétrica (art. 34, § 9º do ADCT e art. 9º, § 1º, II da LC nº 87/96) , não iria ingressar em juízo para questionar um imposto que ela repassa com maior tranqüilidade para o consumidor, que não tem o direito de ação contra o fisco. Aliás, não só, o ICMS é repassado, como também, os valores recolhidos pela fornecedora a título de PIS/PASEP e COFINS, como consta da “conta de luz”. Todos os valores desses tributos integram, juntamente com o valor de energia consumida, o preço final a ser pago pelo consumidor.
Então, pergunta-se, qual o remédio jurídico para o consumidor que arca com o ônus de um imposto inconstitucional?
Vale a pena debruçar-se sobre o sentido da norma disposta no art. 166 do CTN que assim dispõe:
“A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la” (grifamos).
Da expressão grifada pode-se concluir que o texto sob exame conferiu o direito à repetição, em caráter exclusivo, a quem provar ter assumido o encargo financeiro do tributo. E essa prova está estampada na própria “conta de luz”, onde consta a inclusão do valor do ICMS, do PIS/PASEP e da COFINS no preço final a ser pago pelo consumidor.
Se o consumidor tem o direito material, há de haver uma ação que o assegure. Essa ação é a de repetição. O CTN, pois, permite, excepcionalmente, que o consumidor, que não foi parte na relação material entre o fisco e contribuinte, pleiteie a restituição diretamente contra o fisco. Esse fato em nada prejudica o contribuinte, que já recebeu por antecipação o valor do crédito tributário objeto de restituição.
Esse posicionamento, na verdade, encontra respaldo em pelo menos um precedente jurisprudencial do STJ:
“O consumidor final é o sujeito passivo da obrigação tributária, na condição de contribuinte de direito e, ao mesmo tempo, de contribuinte de fato, e portanto, parte legítima para demandar visando a inexigibilidade do ICMS sobre os valores relativos à demanda contratada de energia elétrica” (Resp nº 829490/RS, Rel. Min. Teori Albino Lavascki, DJU de 29-5-2006, p. 205).
Em que pese a utilização das expressões “contribuinte de direito” e “contribuinte de fato”, que combatemos e a circunstância de a questão ter versado sobre a incidência do ICMS sobre a “demanda contratada” ou “demanda de potência” e não sobre aquela energia efetivamente consumida, o julgado é de suma importância a fim de abrir um caminho para combater a astúcia legislativa timbrada por má-fé e repugnada pelo Direito. Não existe e nem pode existir direito fundado em má-fé.
É perfeitamente razoável e justa, sob todos os aspectos, a exceção aberta pelo art. 166 do CTN, que permite ao consumidor substituir o contribuinte no pólo ativo para pleitear diretamente da Fazenda o tributo inconstitucional economicamente suportado.
A alegação de que o acolhimento dessa tese ensejaria efeito multiplicador da lide, com milhares de consumidores batendo às portas do judiciário, além de não configurar um argumento jurídico, não tem respaldo na realidade atual em que há possibilidade de uma ação de natureza coletiva e também a edição de Súmula com efeito vinculante.
4 Conclusão
A cobrança do ICMS à alíquota de 25% incidente sobre o consumo de energia domiciliar superior a 200kwh por mês viola duplamente o preceito constitucional da seletividade em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços porque:
a) a energia elétrica não pode ser considerada, à luz da realidade social vigente, um bem supérfluo ou menos importante em confronto com a generalidade das mercadorias gravadas pela alíquota de 18%;
b) a energia elétrica consumida além de 200 hwh por mês não pode ser considerada supérflua ou menos importante do que aquela consumida até o limite de 200kwh por mês. Não há critério razoável para essa distinção que é arbitrária.
Cabe ao consumidor ingressar com a ação declaratória de inexigibilidade do ICMS de 25%, cumulada com a de repetição de indébito sob o amparo do art. 166 do CTN, que confere essa faculdade a quem fizer a prova de que suportou o encargo financeiro do tributo, bastando para tanto a simples apresentação da “conta de luz”.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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