Igualdade constitucional na violência doméstica

1. INTRODUÇÃO


A Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, com alterações no Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal.  A nova legislação de forma clara e expressa visa à proteção de apenas um segmento de pessoas, a mulher. A proteção especial da mulher atenderia a uma política internacional contra a violência doméstica.


A novel lei possui múltiplos institutos, mas será analisada preferencialmente a sua constitucionalidade, em confronto com os princípios constitucionais, com destaque para a isonomia ou igualdade, essencial para a verificação da validade ou eficácia, e segurança ou certeza da aplicação da norma jurídica, numa visão técnico-jurídica.


2. FUNDAMENTAÇÃO


É sabido que a norma jurídica é criada para disciplina da vida em sociedade e cumprimento por todos os cidadãos, sob pena de sanção, numa proposição do dever-ser (Hans Kelsen, Teoria pura do Direito; Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica; Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao Estudo do Direito). A norma penal deve ser geral e abstrata, com o objetivo de desestimular a ação reprimida e contrária à sociedade; geral, para aplicação a todo cidadão, e abstrata, por conter tipificação de conduta futura e sem especificação legislativa de um fato concreto.


 A norma jurídica tem várias classificações, mas a generalidade e a abstração são características prestigiadas da norma jurídica penal (Bobbio, Teoria, p. 183; Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal, v.1, p. 17-19; Fernando Capez, Curso de Direito Penal, v. 1, p. 32), a despeito de alguma diversidade de nomenclatura e conceituação.


 Bobbio anota que as normas gerais são “universais em relação aos destinatários”, e abstratas, “universais em relação à ação” (op. cit., p. 180-181), observando que tais requisitos têm origem ideológica, do ideal de justiça de igualdade dos homens, e seriam formadores da “norma justa” (p. 182).


 Ferraz Júnior analisa os critérios semânticos das normas jurídicas, no âmbito da validade das normas, em relação aos destinatários, à matéria, ao espaço e ao tempo. Pelos destinatários, classifica as normas em gerais e individuais, observando que aquelas se destinam “à generalidade das pessoas”. No tocante à matéria, correspondente à facti species, na tipificação da situação de fato, divide-as em abstrata e singular, dependendo da gradação, com distinção entre normas gerais-abstratas, normas especiais e normas excepcionais. A norma geral-abstrata corresponde a um “tipo genérico”, como a vedação da prisão civil por dívida; a excepcional seria a exceção da possibilidade de prisão civil por inadimplemento da obrigação alimentar; a especial seria a especialização de uma norma genérica, como o direito de luvas na locação comercial, uma obrigação comercial na esfera da obrigação civil de locação (op. cit., p. 127-128).


Para Damásio as características das normas penais são exclusividade, imperatividade, generalidade, abstração e impessoalidade. Na generalidade, “a norma atua para todas as pessoas”, erga omnes. É abstrata e impessoal, por se dirigir a fatos futuros e não apenas a um indivíduo (op. e p. citadas). 


Capez elenca as características como exclusividade, anterioridade, imperatividade, generalidade e impessoalidade. A generalidade relaciona-se à “eficácia erga omnes, dirigindo-se a todos”; a impessoalidade, “dirigem-se impessoal e indistintamente a todos” (op. e p. citadas).


 A norma visa ao atendimento do fenômeno social. A sucessão de fatos na sociedade transformou a violência doméstica num valor social relevante, criando a necessidade de intervenção legislativa para normatização de valores considerados essenciais para a melhoria da vida comunitária, dentro de um “mundo da cultura” e das condições adequadas para a formação do Direito, “bem cultural”, na relação entre fato, valor e norma, fatores da teoria tridimensional do direito de Miguel Reale (Filosofia do Direito, Saraiva, passim), com objetivo de prevenção e repressão ao delito na tarefa de Segurança Pública pelo Estado (Valter Foleto Santin, Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime, passim).


O diploma legal de violência doméstica é todo focado na proteção à mulher, do preâmbulo ao final do texto, com conteúdo específico relativo à condição feminina. O legislador previu a possibilidade de criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14) e vedação de algumas penas alternativas (cesta básica ou prestação pecuniária) ou substituição da pena por multa (art. 17). A mulher pode ser beneficiada por medida judicial de urgência (art. 18) e até por prisão preventiva do agressor (art. 20). Ao agressor de mulher, podem ser impostas várias medidas restritivas de direitos (arts. 22 a 24), prisão preventiva (art. 42) e agravante por violência contra a mulher (art. 43). E mais: o agressor de mulher pode ser obrigado a freqüentar programas de recuperação e reeducação (art. 45).


Por outro lado, algumas alterações legislativas não falam especificamente da mulher, na abordagem de relações domésticas, em conduta normativa adequada, como o art. 44, que aumentou a pena de lesão praticada contra familiares, estipulando a detenção de 3 meses a 3 anos (art. 129, §9º) ou o acréscimo do §11 ao mesmo artigo 129, que previu aumento de pena de um terço se a vítima for portadora de deficiência.


O princípio da legalidade pressupõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da Constituição Federal, CF). A lei é dirigida a todos, independentemente de cor, sexo, idade, proveniência ou outra característica pessoal.  A própria Carta Magna prevê que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, retratada no princípio da igualdade ou da isonomia (art. 5º, caput).


 A respeito de privilégio por disciplina legal e impugnação da validade de normas, por falta da condição de generalidade (“gerais”), Tercio Sampaio Ferraz Júnior enfatiza que “uma lei cuja norma discipline a conduta de uma entidade individualizada, ignorando outras que se achem na mesma situação, cria um privilégio, que contraria o preceito constitucional de que todos devem ser iguais perante a lei” (Introdução, p. 127).


 Note-se que na sociedade conjugal os direitos e deveres são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, §5º, da Constituição Federal), reforçando a igualdade dos membros do casal, sem privilégios ou discrepâncias de posições jurídicas. O sexo das pessoas não é motivo de diferenciação, pois o constituinte previu que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I, CF), sinal de que a condição de gênero humano não pode afetar os bônus e ônus sociais.


 Acrescente-se que no Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana é um dos seus fundamentos (art. 1º, III, da Constituição Federal, CF), sendo objetivos fundamentais republicanos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF). A diferença de tratamento entre homem e mulher afronta ao sistema democrático, os seus fundamentos e objetivos.


 Em relação à violência doméstica, o constituinte delineou a garantia de assistência à família a cada um dos integrantes e mecanismos de coibição da violência doméstica e familiar (art. 226, §8º, CF). O dispositivo prevê: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Todos os integrantes da família merecem garantia e proteção, por meio de assistência e de coibição da violência.


Como se vê, a pretexto de proteger a mulher, numa pseudopostura “politicamente correta”, a nova legislação é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e mulher, ao prever sanções a uma das partes do gênero humano, o homem, pessoa do sexo masculino, e proteção especial à outra componente humana, a mulher, pessoa do sexo feminino, sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa aparente formação de casta feminina.


Pelo texto normativo, a mulher (sexo feminino) vítima será beneficiada por maiores mecanismos de proteção e de punição ao homem (sexo masculino) agressor enquanto o homem vítima será prejudicado pela ausência de instrumentos de proteção especial e menor sanção à mulher agressora. Se a mulher for agredida, recebe proteção policial e medidas protetivas; ao homem agredido, não há previsão de proteção policial nem medida protetiva. O homem agressor pode ser preso preventivamente por violência doméstica e obrigado a freqüentar programas de recuperação e reeducação; não há previsão legal em relação à mulher agressora. Há previsão até de um tribunal especial para o homem agressor, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com finalidade de julgamento e execução de causas relativas à violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 14), indicando que a mulher agressora seria julgada por outro juiz natural, pela simples condição sexual, em visível afronta ao princípio de vedação de juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF).


É notório que a maioria dos crimes envolve pessoa do sexo masculino. Também a violência doméstica geralmente reflete agressão de homem contra mulher, esta normalmente mais frágil fisicamente, mas também ocorre o contrário. Porém, o direito não pode fornecer tratamento diferenciado a um ou outro sexo, mas sim prevenir e reprimir a violência doméstica em desfavor de todos os membros familiares e não apenas de um dos seus componentes, a mulher. A sanção deve ser igual ao agressor masculino ou feminino. A proteção e repressão devem ser dirigidas a todos, com a utilização de termos como “cônjuge” ou “convivente” ou “familiar” ou equivalentes, observando que são adequados os termos como “criança”, “adolescente” ou “idoso”, comuns de dois gêneros, para expressão legislativa de outros diplomas legislativos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003). Os termos “mulher” e “homem” são discriminatórios, como seria criança do sexo feminino, ou idoso do sexo feminino, se houvesse a proteção maior a jovem e idoso do sexo feminino, pela simples condição sexual, na linha apontada pela Lei 11.340. Entretanto, a palavra “homem”, empregada em textos normativos, é comum de dois gêneros e tradicionalmente interpretada como “homem e ou mulher” em relação aos direitos e obrigações normativos, com aplicação aos dois sexos.


Em termos de política pública, é óbvio que podem ser criadas medidas especiais e diferenciadas para cada um dos gêneros humanos, como na área de Saúde a realização de exames e terapias para a maternidade ou câncer de útero e afins, em relação às mulheres, ou de outra parte, em relação à manutenção e terapia de doenças do aparelho reprodutivo masculino. O eventual tratamento diferenciado em tais circunstâncias seria mera adaptação ao fenômeno biológico e natural, pois seria absurdo e sem sentido tratar da gravidez ou maternidade ou a realização do exame papanicolau em relação ao gênero masculino.


Portanto, para que a nova legislação esteja de acordo com os princípios constitucionais da igualdade, da isonomia entre pessoas de sexos diferentes e de cônjuges e até a dignidade da pessoa humana, o gênero “mulher” previsto na legislação deve ser alterado para outro termo comum de dois gêneros, como cônjuge ou convivente ou coabitante ou familiar. A repressão à violência doméstica deve ser em favor de todos os membros, inclusive o homem, pessoa do sexo masculino. 


Uma outra solução seria a interpretação da palavra “mulher” como “cônjuge” ou como “mulher e homem”, sob pena de inconstitucionalidade, pois a normatização privilegia apenas uma categoria humana, a mulher, e traz ônus legais à categoria do homem, pessoa do sexo masculino.


3. CONCLUSÃO


Assim, concluo:


1) O benefício legal exclusivo de um gênero da espécie humana, a mulher, e o maior rigor legal ao homem, pessoa do sexo masculino, constante da Lei 11.340, ferem os princípios constitucionais da igualdade, da isonomia entre pessoas de sexos diferentes e de cônjuges, devendo ser alterada a nomenclatura legal para termo adequado comum de dois gêneros;


2) A possibilidade de transposição de eventuais vícios constitucionais, é através da interpretação do termo “mulher”, constante da Lei 11.340/2006, como “cônjuge” ou “convivente” ou “coabitante” ou “familiar”, ou para tratar de “mulher ou homem”, de forma que a mulher e o homem sejam protegidos e reprimidos igualmente pelo sistema legal, por eventual violência doméstica em desfavor do outro, pois a violência doméstica pode ser sofrida por cada um dos membros da família, não apenas a mulher.


 


Bibliografia:

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 2ª ed., Bauru: Edipro, 2003.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, v.1

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1994.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, 1 v.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 1986.

SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. São Paulo: RT, 2004.

Informações Sobre o Autor

Valter Foleto Santin

Promotor de Justiça em São Paulo, Doutor em Processo e Professor do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da FUNDINOPI.


Equipe Âmbito Jurídico

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