Resumo: A problemática a que se volta este trabalho corresponde à imposição antecipada (anterior ao trânsito em julgado) de sanções penais a réus qualificados, por presunção, como inocentes pela Constituição Federal (art. 5º, inciso LVII). A importância das reflexões nele trazidas dimana do contexto de instabilidade jurídica decorrente da reversão jurisprudencial realizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus n. 126.292/SP, bem como nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43 e 44, processos em que esse tribunal restabeleceu o entendimento segundo o qual há consonância entre a execução penal antecipada e a presunção de inocência. Delineia-se a presunção de inocência, de forma a expor seus aspectos históricos, terminológicos e normativos. De outro lado, o trabalho expõe os contornos jurídicos da execução penal, de maneira a analisar seu pressuposto (coisa julgada), manifestações a título definitivo e provisório e, ainda, sua relação com as modalidades de aprisionamento no processo penal, além de compará-la com a execução cível. Em sua parte final, o trabalho analisa, de forma imbricada, a execução penal antecipada e a presunção de inocência, ocasião em que apresenta as questões hermenêuticas em torno da temática, entre as quais se destaca a mutação constitucional[1].
Palavras-chaves: Execução Penal Provisória. Hermenêutica. Jurisprudência. Presunção de Inocência.
Abstract: The problem analyzed in this work refers to the early imposition (before res judicata´s constitution) of criminal penalties to defendants who are, by presumption, qualified not guilty by the Federal Constitution (art. 5º, subsection LVII). The importance of the reflections gathered in it comes from the juridical instability generated by the overruling performed by the Federal Court of Justice in Habeas Corpus n. 126.292/SP´s judgment, as well as Declaratory Actions of Constitutionality n. 43 and 44. In these processes, that court restored the understanding that there´s consonance between early penal execution and presumption of innocence. The work also outlines the presumption of innocence, in order to expose it´s historical, terminological and normative aspects. On the other hand, this work presents the juridical contours of penal execution, in order to analyze its presupposition (res judicata), demonstration as definitive or provisional and, even, its relation to the imprisonment modalities on criminal proceedings, besides comparing to the civil execution process. In its final part, the work analyzes, jointly, the early penal execution and the presumption of innocence, when it presents the hermeneutics issues around the theme, among which is highlighted the constitutional mutation.
Keywords: Hermeneutics. Presumption of Innocence. Provisional Penal Execution. Overruling.
Sumário: Introdução. 1. Presunção de inocência. 1.1 Breve histórico. 1.2 Tutela normativa interna. 1.2.1 Previsão constitucional expressa. 1.2.2 Normas internacionais integradas ao direito pátrio. 1.2.3 previsão infraconstitucional. 1.3 Natureza jurídica e aspectos terminológicos. 1.3.1 Presunção de inocência (ou de não culpabilidade) como princípio jurídico e apontamentos terminológicos. 1.3.2 Presunção de inocência como garantia fundamental do direito de liberdade. 1.3.3 Tridimensionalidade axiológica. 1.4 presunção de inocência sob a ótica do Supremo Tribunal Federal. 1.4.1 Habeas Corpus n. 126.292/sp: renascimento de um marco hermenêutico-jurisprudencial. 2 Execução penal e sua antecipação. 2.1 Noção sobre execução penal (definitiva e provisória). 2.1.1 Execução penal provisória pro reo. 2.2 Pressuposto da execução penal: coisa julgada material. 2.3. Medidas supressoras do direito de liberdade (prisões lato sensu) e presunção de inocência. 2.3.1 prisões cautelares e mitigação da presunção de inocência. 2.4 Provisoriedade da execução penal em paralelo à antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional no processo civil. 3 Execução penal provisória contra reo à luz do princípio da presunção de inocência. 3.1 Apontamentos hermenêuticos. 3.1.1 instrumentalidade constitucional do processo penal como fator determinante à interpretação de suas normas. 3.1.2 Interpretação jurídica como atividade voluntária ou meramente cognitiva. 3.1.3 pluralidade normativa oriunda do art. 5º, LVII, da Constituição. 3.1.4 mutação constitucional e presunção de inocência. 3.2 Extensão cronológico-processual da presunção de inocência. 3.2.1 Duplo grau de jurisdição e efeitos dos recursos excepcionais como barreira à presunção de inocência. Conclusão. Referências.
Introdução
Este trabalho concentra-se na problemática afeta à imposição antecipada (prévia à formação de coisa julgada material) de sanções penais a réus qualificados, por presunção, como inocentes pela Constituição Federal (art. 5º, inciso LVII).
A relevância do tema provém do cenário de instabilidade jurídica eclodida pela reviravolta jurisprudencial promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Habeas Corpus n. 126.292/SP, ratificada na análise do pleito cautelar oriundo das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, e 44. Em tais processos, o STF restabeleceu o entendimento segundo o qual existe conformidade entre a execução antecipada de acórdão penal condenatório prolatado por tribunal de segunda instância e a presunção de inocência.
Além da paradigmática decisão da Corte Suprema, o objeto delineado neste estudo teve como propulsores os candentes debates doutrinários e institucionais sobre o tema, os quais, aliás, fundamentaram a instauração de projetos legislativos tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal para alteração do Código de Processo Penal (CPP) no que respeita à temática.
É o que evidencia o PLS 402/2015, apresentado ao Senado Federal pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe) a fim de reformar o Código de Processo Penal (CPP) para, entre outras alterações, “viabilizar a decretação da prisão para crimes graves a partir do acórdão condenatório em segundo grau de jurisdição, ainda que sujeito a recurso[2]”. Com semelhante intuito, no PL 4.850/2016[3], proposto à Câmara dos Deputados por iniciativa popular sufragada pelo Ministério Público Federal[4], visa-se a, inter alia, acrescer ao referido estatuto processual o art. 580-A, bem como seu parágrafo único, nos seguintes termos[5]: “Art. 580-A. Verificando o tribunal, de ofício ou a requerimento da parte, que o recurso é manifestamente protelatório ou abusivo o direito de recorrer, determinará que seja certificado o trânsito em julgado da decisão recorrida e o imediato retorno dos autos à origem. Parágrafo único. Não terá efeito suspensivo o recurso apresentado contra o julgamento previsto no caput”.
Quanto à metodologia, as reflexões realizadas neste estudo partiram do método dedutivo mediante consulta a bibliografia especializada, por meio da qual se empreendeu pesquisa de natureza qualitativa descritiva, bem como consulta a fontes jurídico-normativas.
Em face da problemática, indagou-se sobre a legitimidade jurídica, à luz da Constituição Federal de 1988, da execução penal antecipada ante a presunção de inocência prevista no direito brasileiro. De consequência, questionou-se acerca da extensão dessa presunção na persecução penal, bem como sobre a viabilidade jurídica de sua relativização.
Reputa-se adequado elucidar, desde já, o porquê de escolher-se a expressão “execução penal provisória contra reo”, inscrita no título. Contrapõe-se, por lógica, à enunciação “execução penal provisória pro reo”. A primeira será examinada durante todo o trabalho, de modo que a rubrica execução penal provisória deve ser tida como seu sinônimo, a menos que haja ressalva em sentido diverso. Já a segunda refere-se à possibilidade de concederem-se ao réu, durante o cumprimento de prisão processual, benesses próprias da fase de execução penal, tal como a progressão de regime de cumprimento de pena, conforme se demonstra na seção 2.1.1. Ainda, tomaram-se por sinônimos, quando atrelados à locução execução penal, os adjetivos antecipada e provisória, haja vista considerar-se inútil tentar distingui-los.
O primeiro capítulo destina-se ao estudo da presunção de inocência, de maneira a apresentar seu desenvolvimento histórico, posição normativa no direito brasileiro e natureza jurídica. De antemão, importa salientar que se cuida de garantia individual acolhida no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, a dispor que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A despeito disso, seu decurso histórico prévio à adentrada no catálogo de direitos da Lei Maior é marcado por avanços e regressos.
Esse caráter pendular, ademais, é comum na história das garantias individuais, cuja eficácia, segundo Bobbio (2004, p. 18), costuma cambiar à medida dos “carecimentos e interesses, das classes no poder e dos instrumentos disponíveis para sua realização”. Em igual sentido, Bonavides (2009, p. 563) ensina, ao tratar dos direitos fundamentais de primeira dimensão, que, “[…] se hoje esses direitos parecem já pacificados na codificação política, em verdade se moveram em cada país constitucional num processo dinâmico e ascendente, entrecortado não raro de eventuais recuos, conforme a natureza do respectivo modelo de sociedade, mas permitindo visualizar a cada passo uma trajetória que parte com frequência do mero reconhecimento formal para concretizações parciais e progressivas, até ganhar a máxima amplitude nos quadros consensuais de efetivação democrática do poder”.
No capítulo dedicado à presunção de inocência também foram examinadas sua natureza jurídica e terminologia, o que precedeu à exposição dos enunciados normativos – constitucional, convencionais e legais em sentido estrito – que lhe dão guarida. Ainda, colacionou-se seu desenvolvimento na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com destaque para a já mencionada mudança interpretativa realizada por esse tribunal no Habeas Corpus n. 126.292/SP e nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, e 44.
No capítulo 3, foi examinada a execução penal. Buscou-se diferenciar execução penal definitiva e provisória (ou antecipada), esta última, conforme anteriormente advertido, passível de aplicação em favor do réu. Posteriormente, foi apresentado o pressuposto da execução penal, isto é, a coisa julgada material, cuja análise demandou nova referência aos enunciados normativos em que se acha contemplada a presunção de inocência. Nesse capítulo também se exploraram os meios de encarceramento previstos no direito processual penal brasileiro (prisões provisórias e prisão-pena), de forma a cotejá-los com a apontada garantia individual.
Na parte final do capítulo 3, teceram-se comentários à execução penal provisória mediante sua comparação com a antecipação de tutela jurisdicional contemplada no Código de Processo Civil, a fim de expor suas semelhanças e incompatibilidades. Não é demais informar que toda a análise se deu sob o enfoque da presunção de inocência.
No quarto e derradeiro capítulo, foram sobrepostas as reflexões teóricas realizadas nos capítulos que lhe antecederam, de modo a penetrar-se no cerne do trabalho, isto é, a investigação sobre a compatibilidade jurídica entre a execução penal antecipada e a presunção de inocência. Para tanto, elegeram-se como marco de partida as lições hermenêuticas consideradas propícias ao estudo conjunto do referidos conceitos jurídicos.
Por conseguinte, tratou-se da diversidade normativa ensejada pelo art. 5º, LVII, da Constituição Federal e, posteriormente, desse enunciado normativo sob a perspectiva da mutação constitucional. Por fim, cuidou-se da extensão cronológico-processual da presunção de inocência, ocasião em que se examinou o princípio do duplo grau de jurisdição.
1 Presunção de Inocência
Até sua chegada aos atuais diplomas normativos e debates acadêmico, jurisprudencial e institucional, a presunção de inocência trilhou longo percurso histórico, o qual se caracteriza por fases oscilantes: ora com viés mais garantidor da liberdade individual, ora esvaziada por fatores jurídicos ou, quiçá com maior frequência, metajurídicos.
À vista disso, dedica-se este capítulo à compreensão da presunção de inocência. Para isso, visa-se à apresentação de sua gênese e desenvolvimento histórico; aspectos terminológicos; e tutela normativa, tanto no direito internacional dos direitos humanos como no direito interno.
Por fim, será delineado desenvolvimento da presunção de inocência à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em que se sobressai a recente e significativa alteração interpretativa promovida por essa Corte Constitucional acerca da relação da presunção de inocência com a antecipação do cumprimento de penas no processo penal.
1.1 Breve histórico
Sem embargo do aprofundamento teórico que se busca trazer no decorrer deste capítulo, adiante-se que a presunção de inocência corresponde a uma garantia individual do direito de liberdade. Limita, pois, o poder do poder do Estado, o qual – aduz Lopes Jr. (2016, p. 1043) – detém a “violência institucionalizada do processo e, posteriormente, da pena”. Logo, toda a análise que ora se realiza atrai-se para o direito de liberdade.
Sendo assim, comentar o trajeto histórico da presunção de inocência (espécie) é, em última análise, voltar-se à história dos direitos fundamentais (gênero). Esta, por sua vez, confunde-se, em parte, com o percurso histórico da formação do moderno Estado Constitucional e se identifica, segundo Sarlet (2012, p. 25), com a própria “história da limitação de poder”.
O marco histórico inicial da presunção de inocência hospeda-se, segundo Aury Lopes Jr. (2016, p. 78), no direito romano, especificamente nos escritos de Trajano[6], dos quais se depreende a noção da presunção de inocência como empecilho ao juízo condenatório nos casos em que houvesse dúvida do julgador. Nota-se, pois que nessa fase incipiente a presunção de inocência equivalia, tão somente, ao princípio in dubio pro reo.
No período medieval, tal garantia foi posta de lado pela ideologia autoritária presente nas instituições estatais, cujos procedimentos de imputação de culpa ocorriam, conforme Antônio Magalhães Gomes Filho (1991, p. 11), de forma inquisitória e secreta. No mesmo sentido, anuncia Aury Lopes Jr. (2016, p. 78) que, nessa fase histórica, “a dúvida gerada pela insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve”. Havia, portanto, autêntica “presunção de culpabilidade”, a sustentar, por conseguinte, a máxima in dubio contra reo, na contramão da garantia advinda dos romanos.
Na Idade Moderna, período marcado pela hegemonia das monarquias nacionais que se formavam na Europa, o olhar estatal para a presunção de inocência não representou mudança quanto à compreensão em vigor no medievo, isto é, não se rompeu com a presunção de culpabilidade. Deveras, trata-se de cenário histórico notabilizado por governos e governantes cujo poder era absoluto, razão por que se faz nítido deduzir, nesse contexto, a parca ênfase que se dava a uma garantia individual que – já o dissemos – tem por vocação por freios à ingerência do Estado na liberdade de seus súditos.
Já no final da Idade Moderna, momento em que ensaiava a eclosão das revoluções liberalistas (sobretudo a norte-americana e a francesa), destaca-se o pensamento iluminista de Cesare Beccaria. Em sua clássica obra Dos delitos e das penas (Dei delitti e dele pene), escrita em 1764, o pensador italiano insurge-se intelectualmente contra o sistema repressivo em vigor no século XVIII para defender, entre outros ideais vanguardistas, a presunção de inocência em contraponto ao regime oficial de tortura que lhe era contemporâneo, conforme se vê no seguinte trecho (2012, p. 47): “Ninguém pode ser condenado criminoso até que seja provada sua culpa, nem a sociedade pode retirar-lhe a proteção pública até que tenha sido provado que ele violou as regras pactuadas. Qual é, portanto, o direito, senão o da força, que autoriza um juiz a punir um cidadão, enquanto ainda há dúvidas se ele é culpado ou inocente? Não é novo este dilema: ele é culpado ou inocente? Se culpado, ele deveria sofrer a pena imposta pela lei e, assim a tortura se torna inútil, pois sua confissão se torna desnecessária; se ele não é culpado, um inocente foi torturado, pois aos olhos da lei todo homem é inocente se o crime não for provado”.
É hialino, portanto, o influxo do Iluminismo na ideologia jurídica formada nesse período de transição histórica. Quanto à presunção de inocência, aponta Nicolitt (2013, p. 55) que tal relação de influência é depreendida, dentre outros fatores, por meio da inserção da aludida garantida individual na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo art. 9º prevê que “todo homem é considerado inocente, até o momento em que, reconhecido como culpado, se julgar indispensável a sua prisão […]” [7].
Dessa forma, firmou-se o caráter de excepcionalidade da intervenção do Estado na esfera individual, em compasso aos anseios burgueses que inspiravam – além do universo econômico – o campo jurídico. É dizer: em paralelo à supervalorização do direito de propriedade que se instalava no cenário econômico, com igual vigor aclamava-se o direito à liberdade individual, nitidamente ligado à garantia da presunção de inocência.
Nesse passo, Paulo Rangel (2015, p. 24), após qualificar o período iluminista como o principal marco da presunção de inocência, consigna que a mudança de paradigma em relação à fase histórica precedente decorreu da “necessidade de se insurgir contra o sistema processual inquisitório, de base romano-canônica, que vigia desde o século XII”, quadrante histórico no qual não eram destinadas aos acusados (lato sensu) quaisquer garantias.
Todavia, a presunção de inocência voltou a perder força no primeiro quartel do século XX, sobretudo em virtude dos regimes totalitários[8] surgidos nesse momento histórico, os quais se antagonizavam às premissas democráticas dimanadas da Revolução Francesa – ainda que se sustente que essas tenham vigido tão somente no plano formal.
Na Itália do início do século XX, onde ganhou ênfase o debate moderno sobre a presunção de inocência, destacaram-se, como traz Nicolitt (2013, p. 55), os estudos promovidos pelas escolas de processo. Diz o autor que a Escola Clássica, aderida por Francesco Carrara, reconhecia a presunção de inocência como “absoluta condição de legitimidade de procedimento penal”; a Escola Positivista, de seu turno, afastava a aludida presunção dos presos em flagrante e dos confessos; e, por fim, a Escola Técnico-Jurídica entendia o “processo como um meio de repressão à criminalidade” e, pois, opunha resistência à presunção de inocência.
Perfilhado à Escola Técnico-Jurídica, despontou-se como expoente intelectual Vicenzo Manzini[9], cuja obra, acolhida pela legislação processual italiana, esposa, conforme Lopes Jr. (apud, 2016, p. 78), a equiparação axiológica entre os indícios justificadores da imputação e a prova da culpabilidade, expressa na seguinte fórmula: “como a maior parte dos imputados resultavam ser culpados ao final do processo, não há o que justifique a proteção e a presunção de inocência”.
Em face da alusão ao autor italiano, saliente-se que o Código de Processo Penal brasileiro[10] (CPP) tem, conforme se infere da Exposição de Motivos do projeto legislativo que lhe deu origem[11], assumida inspiração no Codigo Rocco, diploma processual penal vigente na Itália no auge do Fascismo e cuja fonte doutrinária principal foi Vicenzo Manzini[12].
Por conseguinte, registra Mendes (2015, p. 538) que no período subsequente à Segunda Guerra Mundial a presunção de inocência foi içada, por meio de sua inserção na Declaração Universal dos Direitos Humanos[13], aprovada em 10 de dezembro 1948, à categoria de postulado universal de direito. Prevê esse documento internacional de direitos humanos, em seu art. 11, §1, o seguinte: “Artigo 11. §1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” [14].
No contexto europeu de proteção de direitos individuais, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, assinada em 1950, em Roma, também contemplou a garantia de presunção de inocência ao dispor, no seu art. 6.2, que “qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
À semelhança, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, editado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966, consigna-se que “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (art. 14.2).
Nesse passo, o sistema americano de tutela internacional de direitos humanos não se furtou a contemplar a presunção de inocência em seu catálogo protetivo de direitos individuais. É o que se infere do art. 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH – Pacto de São José da Costa Rica), subscrita no ano de 1969 por países componentes da Organização dos Estados Americanos (OEA), no qual se inscreve que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
Apresentado o iter histórico da garantia de presunção de inocência, passa-se a tratar de seus contornos contemporâneos, sobretudo aqueles pertinentes ao ordenamento jurídico brasileiro, no qual essa garantia ostenta, em princípio, tríplice posição normativa.
1.2 Tutela normativa interna
Procura-se, neste seguimento, examinar a posição normativa da presunção de inocência no direito pátrio. Nessa perspectiva, apresentam-se os enunciados normativos originalmente nacionais (previsão constitucional e infraconstitucional), bem como aqueles dimanados do direito internacional – alguns já citados na seção anterior (histórico normativo) – e acolhidos no direito doméstico. Estes últimos, posto que gestados no direito internacional, integram, em razão de seu expresso acolhimento, a tutela normativa interna da presunção de inocência, razão por que se lançou mão de tal rubrica para denominar este fragmento do trabalho.
1.2.1 Previsão constitucional expressa[15]
A análise normativa da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro tem como objeto principal o art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, a dispor que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Trata-se, conforme aduz Mendes (2015, p. 537), do marco inicial da positivação expressa da presunção de inocência na ordem jurídica interna.
A despeito disso, o ineditismo proporcionado pela atual Carta Política limitou-se à previsão formal da presunção de inocência, uma vez que, como enuncia Lima (2016, p. 80), “até a entrada em vigor da Constituição de 1988, esse princípio […] existia de forma implícita, como decorrência da cláusula do devido processo legal” [16]. Por escolha metodológica, a análise da posição normativa implícita dessa garantia no direito brasileiro é minudenciada na seção 1.4, dedicada ao exame da presunção de inocente à luz da jurisprudência do STF.
Nesse ínterim, é possível deduzir que a presunção de inocência integra o catálogo constitucional de garantias individuais, porquanto corresponde a um meio de preservação do direito de liberdade. Traduz-se, por isso, em garantia individual componente do núcleo intangível da Constituição Federal, conforme se infere do art. 60, §4º, IV, CF/88, o qual contempla as limitações materiais ao poder reformador, isto é, as cláusulas pétreas. Tal assertiva, porém, não basta à solução das controvérsias jurídicas em torno do enunciado constitucional, as quais se situam, preponderantemente, no campo interpretativo[17].
1.2.2 Normas internacionais integradas ao direito pátrio
Demonstrada a extração formal-constitucional da presunção de inocência, impende examinar sua previsão nos enunciados de direito internacional integrantes do ordenamento jurídico brasileiro. Retoma-se, dessarte, o articulado na seção 1.1, na qual se demonstrou que a garantia da presunção de inocência acha-se expressa, com vastidão, em documentos normativos que compõem, global e regionalmente, o sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
Quanto aos indigitados tratados internacionais, ressalta-se que tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Político, de 1966, quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1992, encontram-se insertos no universo normativo brasileiro, no qual adentraram, respectivamente, por meio dos decretos n. 592, de 1992 e n. 678, do mesmo ano[18]. O primeiro registra que “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (art. 14.2), ao passo que o segundo contempla idêntico enunciado no seu art. 8.2.
Cuida-se, portanto, de documentos internacionais a versarem sobre direitos humanos, o que tem despertado a doutrina a debruçar-se sobre o status de suas normas após se instalarem no sistema jurídico interno, haja vista o disposto no §2º do art. 5º da Constituição. Esse dispositivo constitucional consigna que os direitos e garantias expressamente previstos na Carta Política “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Escorando-se nessa cláusula constitucional, Flávia Piovesan (2013, p. 10) disserta que os tratados dedicados aos direitos humanos, quando ratificados pelo Estado brasileiro, penetram, materialmente, o ordenamento jurídico interno de modo a aglutinar-se à Constituição. Ostentam, pois, a partir de seu ingresso na ordem jurídica doméstica, natureza de normas constitucionais substanciais.
Essa perspectiva afasta-se da análise hermética do fenômeno jurídico-normativo e tem como fator de destaque, ainda segundo a autora (2013, p. 19), a existência de cláusulas constitucionais abertas, as quais “permitem a integração entre a ordem constitucional e a ordem internacional, especialmente no campo dos direitos humanos, ampliando […] o bloco de constitucionalidade[19]”. Este último – definem Sarmento e Neto (2012, p. 29) – corresponde ao “conjunto de normas a que se reconhece hierarquia constitucional num dado ordenamento”, a servirem, consequentemente, de paradigma do controle de constitucionalidade.
Nesse tom, conclui a Piovesan (ibidem, 2003, p. 113) que, “ao efetuar a incorporação, a Carta atribui aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional”, de maneira que “os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram […] o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados”.
Em linha diversa, há setor doutrinário, representado por Mendes e Branco (2015, p. 596), que confere aos tratados ingressos no ordenamento jurídico interno na forma art. 5º, §2º, da Constituição de 1988, acomodação normativa supralegal. É também como se posicionou, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal ao tratar da norma do Pacto de São José da Costa Rica proibitiva da prisão civil (depositário infiel) [20].
Contudo, tal disceptação doutrinária, quando direcionada à presunção de inocência, perde sua importância prática. Deveras, ainda que se negue materialidade constitucional às normas oriundas de tratados internacionais adentrados à ordem interna na forma do art. 5º, §2º, da Constituição, para então lhes atribuir caráter meramente supralegal, não se pode passar ao largo do art. 5º, LVII, da mesma Carta, o qual, por evidente, abriga norma material e formalmente constitucional. Ademais – e sem levar em conta, com intuito argumentativo, o enunciado no art. 5º, LVII, CF -, forçoso deduzir que quaisquer das aludidas correntes teóricas ensejam per se a invalidade de eventual insurgência do legislador ordinário contra a presunção de inocência, quer seja por inconstitucionalidade ou inconvencionalidade.
1.2.3 Previsão infraconstitucional
Além dos regramentos normativos constitucional e convencional acima evidenciados, importa salientar que no setor legislativo ordinário brasileiro também foi prevista a presunção de inocência. É o que se dessume do enunciado no art. 283 do Código de Processo Penal (CPP), pelo qual se condiciona a imposição de prisão-pena ao trânsito e julgado de sentença penal condenatória, nestes termos: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva” (caput com redação determinada pela Lei n. 12.403, de 04/05/2011).
À semelhança do dispositivo processual transcrito, na Lei de Execuções Penais (LEP – Lei n. 7.210, de 1984), também contemplou a presunção de inocência ao erigir como conditio sine qua non à execução penal, quer se cuide de imposição de pena corporal ou restritiva de direitos diferentes da liberdade, a formação da coisa julgada material oriunda de sentença penal condenatória. Atente-se, pois, ao que se estabelece nos artigos 105 e 147 do referido documento normativo, verbis: “Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”; e “Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares”.
Do exposto, mostra-se conteste a positivação explícita da presunção de inocência no sistema normativo brasileiro. Não significa dizer, todavia, que inexiste controvérsia quanto à atividade interpretativa que se lhe busca imprimir nos ambientes doutrinário e jurisprudencial, sobretudo no que concerne a seus limites e diálogos normativos, conforme estudado na seção 3.1.
1.3 Natureza jurídica e aspectos terminológicos
Tem-se por premissa, no estudo empreendido nesta seção, que as variantes da presunção de inocência trazidas a lume não se excluem, mas, sim, complementam-se. Por vezes, aliás, nem tampouco guardam entre si diferença ontológica, restringindo-se a distinção à nomenclatura usada pelos teóricos.
1.3.1 Presunção de inocência (ou de não culpabilidade) como princípio jurídico e apontamentos terminológicos
Sem descurar da axiologia diversificada da presunção de inocência no sistema jurídico interno (analisada na seção 1.3.2), reputa-se adequado tratá-la, em primeiro momento – e seguindo as lições da doutrina – como princípio jurídico. Afinal, cuida-se, nas palavras de Aury Lopes Jr. (2016, p. 1043), de “princípio reitor do processo penal”.
A palavra princípio tem, em geral e especificamente na literatura jurídica, denotação variada. Trata-se de vocábulo plurívoco – ou, segundo José Afonso da Silva (2009, p. 91), “equívoco”-, a oscilar entre categorias jurídicas com terminologia diversificada, tais como, conforme Lima (2016, p. 78), “normas, regras e postulados”. Não se ignora o esforço teórico, sobretudo na doutrina constitucionalista, a fim de distinguir tais setores epistemológicos, análise essa que, por transcender ao escopo deste trabalho, nele não será aprofundada.
Nada obstante, parte-se da vertente doutrinária[21] pós-positivista, que confere qualidade normativa aos princípios jurídicos. A estes, portanto, não se atribui mero caráter ético-valorativo ou programático, dimensões que, conforme aponta Bonavides (2009, p. 259), constituíram, respectivamente, as fases jusnaturalista e positivista da história de normatividade dos princípios.
Prossegue Bonavides (2009, p. 290), ao tratar da normatividade – e, pois, juridicidade, dos princípios -, verbis: “Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos [os princípios], sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo tempo positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, norma das normas”.
No particular, é inegável a heterogeneidade de enfrentamento jurisprudencial e acadêmico da presunção de inocência, por vezes qualificada mediante as seguintes expressões: (i) “não-consideração prévia de culpabilidade[22]”; (ii) “presunção de não culpabilidade”, como o faz Mougenot (2012, p. 580)[23]; (iii) ou, conforme prefere Pacelli (2015, p. 48), “estado de inocência”. Em compasso às últimas opções terminológicas mencionadas, posiciona-se Mirabete (2006, p. 23), aludindo à cátedra de Eugênio Florian: “[…] que se entende hoje […] é que existe apenas uma tendência à presunção de inocência, ou, mais precisamente, um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. Assim, melhor é dizer-se que se trata do “princípio de não-culpabilidade”. Por isso, a nossa Constituição Federal não “presume” a inocência, mas declara que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” […], ou seja, que o acusado é inocente durante o desenvolvimento do processo e seu estado só se modifica por uma sentença final que o declare culpado. Pode-se dizer […] que existe até uma presunção de culpabilidade ou de responsabilidade quando se instaura a ação penal, que é um ataque à inocência do acusado e, se não a destrói, a põe em incerteza até a prolação até a prolação da sentença definitiva” (destaques do autor).
Cremos que a divergência terminológica entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade decorre, ao menos em parte, da diversidade de fontes normativas das quais dimana o princípio, quais sejam: a Constituição Federal, em seu art. 5º, LVII, e a Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (Pacto de São José da Costa Rica), internalizada pelo Decreto n. 678, de 6/11/1992, art. 8º, n. 2[24].
De um lado, consta do aludido dispositivo constitucional que “ninguém será considerado culpado […]”, despontando-se, desse enunciado normativo, a noção de presunção de não culpabilidade. De outro, registra-se no dispositivo convencional que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência […]”, o que melhor se agasalha ao “nomen” presunção de inocência.
A despeito da divergência teórica – despida de reflexos práticos -, tratar-se-ão, neste texto, ambas as expressões como sinônimas. Isso porque, conforme assinala Piovesan (2013, p. 113), a norma prevista no art. 8º, n. 2, da CADH, tem natureza constitucional por força do art. 5º, §2º, da Constituição da República[25], o que demonstra a equivalência das presunções de não culpabilidade e inocência.
Ao fim e ao cabo, percebe-se na doutrina de Badaró (2003, p. 282), acerca da suposta distinção entre os conteúdos da presunção de não culpabilidade e de inocência, que é “inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias – se é que isso é possível”.
De outro lado, há autores que nem sequer atribuem à norma em foco natureza de princípio jurídico (norma-princípio), mas, sim, cunho regulatório (norma-regra). É o que se extrai da doutrina de Rangel (2013, p. 32), o qual entende que o conteúdo do art. 5º, LVII, da Constituição Federal, “não pode ser entendido como princípio da presunção de inocência, mas sim como regra constitucional que inverte, totalmente, o ônus da prova para o Ministério Público” bem como, acresce-se, para o querelante se acaso se tratar de ação penal de iniciativa privada ou ação penal privada subsidiária da pública.
1.3.2 Presunção de Inocência como Garantia Fundamental do Direito de Liberdade
Demonstrou-se, na seção 1.2.1, que a presunção de inocência foi erigida, por expressa disposição constitucional (art. 5º, inciso LVII), à condição de garantia fundamental do direito de liberdade. Impõe-se, ante isso, sua análise sob o pálio da Constituição da República.
Daí que, com esteio na doutrina de Sarlet (2012, p. 18), deve a presunção de inocência ser divorciada, sob o prisma constitucional, das categorias dogmáticas direitos naturais e direitos humanos – neste último caso, exceto quando enxergada sob a ótica da proteção internacional dos direitos humanos[26] -, uma vez que as últimas expressões transcendem à abordagem constitucional (estatal). Esta, afinal, corresponde ao estudo dos direitos e garantias plasmados em um diploma constitucional – na espécie, a Constituição Federal de 1988 – os quais têm como marca, segundo aponta Bobbio (2004, p. 22), a historicidade e a relatividade.
De mais a mais, a presunção de inocência inclui-se no rol de direitos fundamentais de primeira geração (ou dimensão), aos quais se refere Bonavides (2009, p. 563) como “direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional”, em especial os “direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente”.
Certo é que o referido princípio, porque alberga um direito individual fundamental, tem nítido caráter limitativo da ingerência do Estado na liberdade de seus subordinados. Assim sendo, afirma Tavares (2012, p. 723) que tal norma está umbilicalmente ligada ao “Estado Democrático de Direito, já que, se assim não o fosse, estar-se-ia regredindo ao mais puro e total arbítrio estatal”. Tal entendimento é compartilhado por Moraes (2016, p. 201), bem como pela jurisprudência outrora sedimentada no Supremo Tribunal Federal[27].
Nesse quadrante interpretativo, destaca Aury Lopes Jr. (2016, p. 79) que a presunção de inocência é o princípio ao qual se comete a regência de todo o sistema processual penal. A qualidade desse sistema, segundo o autor, varia à medida com a qual se observa o citado princípio.
À vista desses elementos, é sob o ângulo prioritário de direito fundamental (concebido em norma constitucional interna) que se norteará a corrente investigação acadêmica, valendo, ainda, colacionar a síntese conceitual proposta por Lima (2016, p. 80), para quem a presunção de inocência “consiste […] no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade apresentadas pela acusação (contraditório)”.
Exposta a noção genérica do que se considera presunção de inocência, passa-se a apresentar as vertentes de significação que lhe são próprias no direito processual penal, com vistas a aproximá-la da problemática a que se dedica o estudo, i.e, a execução antecipada das sanções penais.
1.3.3 Tridimensionalidade Axiológica[28]
Serão expostas, neste seguimento, as três principais acepções do princípio da presunção de inocência encontradas na doutrina processual penal, todas embasadas na norma do art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, quais sejam: (i) regra de garantia política do estado de inocência; (ii) regra de julgamento no caso de dúvida (in dubio pro reo); e (iii) regra de tratamento ao longo do processo. Esta última, conforme se verá, tem clara relação com o cerne deste trabalho.
Como primeira significação, aponta Nicolitt (2013, p. 55) que a presunção de inocência pode ser vista como um dever de garantia política (estado de inocência), o qual foi consagrado na ordem jurídica brasileira em diversos dispositivos normativos, a exemplo do art. 5º, inciso LVI, da Constituição de 1988, no qual se hospeda o princípio da inadmissibilidade da obtenção e provas por meios ilícitos.
Assevera Badaró (2003, p. 285) que, enquanto regra de julgamento, a presunção de inocência é enxergada sob uma perspectiva técnico-jurídica afeta ao direito processual penal. Corresponde ao dever de o magistrado, “sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo”, lançar mão do juízo absolutório. Trata-se, portanto, da imprescindibilidade de certeza ao juízo condenatório ou, contrario sensu, a obrigatoriedade do in dubio pro reo. Este, já foi visto, consistiu na seminal acepção do princípio em análise.
Por fim, apresenta-se o último – e mais pertinente à temática do presente trabalho – sentido da presunção de inocência. Trata-se de sua qualificação como um dever de tratamento, a traduzir-se na imposição de que o Estado trate, por presunção, o indivíduo submetido à persecução penal (investigado, indiciado, denunciado ou réu) como inocente até lograr-se demonstrar, de forma exaustiva, sua responsabilidade penal.
Nesse último prisma, não obstante recaírem sobre o sujeito indícios (ou mesmo provas, porém antes da formação de coisa julgada) do cometimento de infração penal, não pode(ria) ele, no decorrer da persecutio criminis, ser “diminuído social, moral nem fisicamente diante de outros cidadãos não sujeitos a um processo” (Nicolitt 2013, p. 56). A valer o contrário, ratificar-se-ia a equiparação axiológica esposada por Manzini[29], isto é, a correspondência de significados entre os indícios que justificam a imputação e a prova da culpabilidade.
Em complemento, colhe-se na doutrina de Aury Lopes Jr. (2016, p. 79) que a presunção de inocência como dever de tratamento bifurca-se em dimensões, quais sejam: uma endoprocessual e outra extraprocessual. Na primeira, interna à relação processual, a garantia determina ao juiz o dever de destinar a integralidade da carga probatória ao ocupante do polo ativo do processo (Ministério Público ou querelante) [30]. Sendo assim, a inocência presumida impõe que eventual dúvida na formação da cognição necessária ao juízo condenatório implique, obrigatoriamente, a absolvição do réu[31]·.
Note-se que tal enfoque analítico da presunção de inocência identifica-se com o dever de tratamento de que trata Badaró (2003, p. 280), isto é, o princípio do in dubio pro reo, cuja incidência adstringe-se à esfera processual penal. Essa afirmativa também se sustenta na doutrina de Tavares (2012, p. 720).
Na segunda ótica (extraprocessual) – a qual, por evidência, reflete a dimensão externa do processo penal -, a presunção de inocência demanda a tutela do réu em face de agentes alheios ao processo penal (mídia, sociedade, entidades, órgãos públicos etc.), sobretudo no que respeita à excessiva publicidade e consequente estigmatização[32] do imputado.
Sobre isso, leciona André Ramos Tavares (2012, p. 723) ao descrever a íntima relação da presunção de inocência e o Estado Democrático de Direito: “Essa presunção do princípio da presunção de inocência não se circunscreve ao âmbito do processo penal, mas alcança também, no foro criminal, o âmbito extraprocessual. Ao indivíduo é garantido o não tratamento como criminoso, salvo como reconhecido pelo sistema jurídico como tal. Portanto, a autoridade policial, carcerária, administrativa e outras não podem considerar culpado aquele que ainda não foi submetido à definitividade da atuação jurisdicional” (grifamos).
Feita a compilação dos aspectos significativos de que se vale a doutrina para investigar a presunção de inocência, deve-se pontuar que este trabalho, cujo foco se traduz no cotejo entre essa garantia e a execução antecipada da pena, pautar-se-á pela análise da aludida presunção como uma imposição de tratamento a ser conferido aos indivíduos criminalmente imputados, conforme se expõe nos capítulos subsequentes.
1.4 Presunção de inocência sob a ótica do Supremo Tribunal Federal
Em homenagem à imprescindível aproximação entre o (con)texto acadêmico e a conjuntura fática que o circunda, não se pode deixar de apresentar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto à temática deste. Conforme se demonstrou nas seções antecedentes, cuida-se de garantia com inegável extração constitucional (art.5º, LVII, CF/88), ao passo que àquela Corte foi cometido, pelo legislador constituinte (art. 102, caput, CF/88), o papel precípuo de sentinela das normas constitucionais.
Sendo assim, é singelo deduzir que as teses afixadas pelo STF – mormente em controle abstrato de constitucionalidade[33] – de regra repercutem nas demais esferas do Poder Judiciário, razão por que importa expor o transcurso do princípio da presunção de inocência sob as lentes dessa Corte Constitucional.
Conforme aponta Mendes (2015, p. 536), os primeiros debates jurisprudenciais acerca da presunção de inocência no Brasil antecedem a constituição atual. Tais discussões seminais, ocorridas tanto no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como no Supremo Tribunal Federal (STF), tiveram como fator determinante a relação entre o art. 153, §36, da Constituição de 1967/69 e o art. 11, §1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
O aludido dispositivo constitucional outrora em vigor (Constituição de 1967, art. 153, §36) – cuja abrangência foi alargada pela Constituição de 1988 (art. 5º, §2º) – conforme abordado na seção 1.2.2 – dispunha que “a especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota”.
Por sua vez, o art. 11, §1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948 – cuja incorporação no direito brasileiro não era consensualmente aceita na vigência da ordem constitucional anterior – expressa que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei […]”.
Nesse cenário, prossegue Mendes (2015, p. 538), o leading case[34] acerca do tema deu-se em processo subjetivo[35] no qual o STF reformou acórdão do TSE que declarara, com base na incorporação da garantia de presunção de inocência mediante o diálogo entre a norma da Constituição de 1967/1969 e o comando da DUDH acima reproduzidos, a inconstitucionalidade de norma[36] que autorizava a inelegibilidade de indivíduos tão somente em razão de estarem no polo passivo duma relação processual penal.
Traz-se a lume, a fim de sintetizar a posição então adotada pelo STF (por maioria de votos), trecho do voto subscrito pelo Ministro Moreira Alves: “A presunção e inocência […] justifica uma série de direitos processuais em favor do acusado no processo penal moderno. Tomada, porém, em seu sentido literal, traduziria, nas expressões vigorosas de Manzini […], ideia desazadamente paradoxal e irracional […]. Nesse sentido – sem o qual a inconstitucionalidade em causa perderia sua base de sustentação – não posso considerar a presunção de inocência como daqueles princípios eternos, universais, imanentes, que não precisam estar inscritos na Constituição, e que, na nossa, teriam guarida na norma residual do §36 do art. 153. O ataque que sua literalidade tem sofrido pelos adeptos mais conspícuos dos princípios que floresceram à sua sombra o demonstra. Os fatos – admissão universal das providências admitidas contra a pessoa ou os bens do réu (prisão, sequestro, arresto, apreensão de bens) – o evidenciam. Se é indisputável que a presunção de inocência não impede o cerceamento do bem maior, que é a liberdade, como pretender-se que possa cercear a atuação do legislador no terreno das inelegibilidades, em que, por previsão constitucional expressa, até os fatos de ordem moral podem retirar a capacidade eleitoral passiva. Não tenho, portanto, dúvida alguma sobre a constitucionalidade da letra “n” do inciso I do art. 1º da Lei Complementar n. 5/70”[37].
Dessa maneira, no precedente acima trazido foi elidida a tese da incorporação da presunção de inocência à ordem jurídica pátria pela citada cláusula constitucional de remissão normativa (art. 153, §36 da Constituição de 1967/1969). Ademais, “ainda que assim fosse, entendeu-se que a não culpabilidade não era apta a impedir a adoção de medidas restritivas a direitos de eventuais acusados no processo eleitoral” (ibidem, p. 340).
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual, conforme visto, inaugurou de forma expressa a tutela da presunção de inocência na nossa ordem jurídica (art. 5º, LVII), poder-se-ia pensar que foram solucionadas as divergências outrora acesas. Todavia, permaneceu a instabilidade da jurisprudência da Corte Constitucional quanto à garantia de que se cuida. É o que se vê adiante.
Em agosto de 2008, a discussão sobre a presunção de inocência foi retomada pelo STF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 144, do Distrito Federal, que versava sobre a recepção constitucional de norma[38] pela qual se consideravam inelegíveis candidatos no pleito eleitoral tão somente em razão da propositura de processo contra si. Na ocasião, aquele Tribunal afirmou a “impossibilidade constitucional de definir-se, como causa de inelegibilidade, a mera instauração, contra o candidato, de procedimentos judiciais, quando inocorrente condenação criminal transitada em julgado” [39].
Firmada a tese no processo eleitoral, o STF trasladou-a para o processo penal comum, em 2009, por meio do paradigmático Habeas Corpus n. 84.078-MG. Nesse processo, relatado pelo Ministro Eros Grau, o plenário do STF, por maioria (7 x 4), rejeitou a viabilidade de execução de penas anteriormente ao esgotamento das instâncias jurisdicionais, incluídas as extraordinárias, sem prejuízo do encarceramento acautelatório. Tal entendimento, contudo, ruiu, em 2016, ante a nova interpretação aplicada pela mesma Corte Suprema ao aludido enunciado constitucional.
1.4.1 Habeas Corpus n. 126.292/SP: Renascimento de um Marco Hermenêutico-jurisprudencial
No julgamento do HC 126.292/SP, o Pleno do STF, em 17 de fevereiro de 2016, legitimou, por maioria de votos[40], o cumprimento de pena privativa de liberdade após a prolação de acórdão condenatório, ainda que pendente o julgamento de recursos excepcionais, isto é, anteriormente à formação da coisa julgada material.
Promoveu, portanto, a Suprema Corte brasileira, nítida reviravolta jurisprudencial – ou overruling[41] -, se comparado o novel entendimento àquele demarcado no julgamento do Habeas Corpus n. 84.078-MG, de 2009, anteriormente comentado. É o que se verifica na tese inscrita no acórdão[42] do HC 126.292/SP, a seguir transcrita: “EMENTA: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1.Execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal 2.Habeas corpus dengado”. (grifamos)
Em face da controvérsia judicial eclodida no julgamento do HC 126.292/SP, e com o intuito de superar o entendimento nele encampado, foram ajuizadas, em 2016, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC´s) n. 43 e 44. Esta, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB); aquela, pelo Partido Nacional Ecológico (PEN); ambas sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio[43].
Buscava-se, nessas postulações de controle abstrato/concentrado de constitucionalidade, confirmar a presunção de conformidade constitucional da norma prevista no art. 283 do Código de Processo Penal (CPP), a dispor, após a redação que lhe conferiu a Lei n. 12.403/2011, que “[…] Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Em resposta, o STF, por maioria de votos, indeferiu as medidas cautelares pleiteadas nas aludidas demandas, de modo a afirmar – em cognição sumária, uma vez que trata de julgamento ad cautelam – que a norma do art. 283 do CPP não afasta a possibilidade de executar-se a pena após acórdão condenatório, ainda que pendente o julgamento de recursos extraordinários. Ou seja, a Suprema Corte reiterou seu posicionamento plasmado no julgamento do HC 126.292/SP[44], de maneira a densificar os indícios de que de fato tenha havido reversão jurisprudencial.
O Ministro Marco Aurélio, relator das aludidas ações de controle, votou[45] pela concessão da medida cautelar, de maneira a obviar a execução penal antes do trânsito em julgado (provisória). Embora vencido em suas razões, cabe trazer à colação fragmento do voto do Ministro relator: “[…] A literalidade do preceito [art. 5º, LVII, CF] não deixa margem para dúvidas: a culpa é pressuposto da reprimenda, e a constatação ocorre apenas com a preclusão maior. O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas. A Carta Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em execução de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender. A exceção corre à conta de situações individualizadas nas quais se possa concluir pela incidência do disposto no artigo 312 do Código de Processo Penal. O abandono do sentido unívoco do texto constitucional gera perplexidades, presente a situação veiculada nestas ações: pretende-se a declaração de constitucionalidade de dispositivo que reproduz o prescrito na Carta Federal. Não vivêssemos tempos estranhos, o pleito soaria teratológico; mas, infelizmente, a pertinência do requerido na inicial surge inafastável. Ao editar o dispositivo em jogo, o Poder Legislativo, mediante a Lei nº 12.403/2011, limitou-se a concretizar, no campo do processo, garantia explícita da Lei Maior, adequando-se à compreensão então assentada pelo próprio Supremo. Evidencia-se a repercussão negativa do entendimento assentado na apreciação do habeas corpus nº 126.292: reverteu-se a compreensão da garantia que embasou a própria reforma do Código de Processo Penal. Revela-se quadro lamentável, no qual o legislador alinhou-se ao Diploma Básico, enquanto este Tribunal dele afastou-se Descabe, em face da univocidade do preceito, manejar argumentos metajurídicos, a servirem à subversão de garantia constitucional cujos contornos não deveriam ser ponderados, mas, sim, assegurados pelo Supremo, enquanto última trincheira da cidadania”.
Em consonância com voto do Relator, a Ministra Rosa Weber, amparada na “clareza do texto constitucional[46]”, consignou que o a norma do art. 283, do CPP, traduz-se em espelhamento do disposto nos incisos LVII e LXI da Constituição Federal.
No mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello[47] encampou a linha argumentativa prevista no voto do Ministro Marco Aurélio, pois, em sua visão, a virada jurisprudencial promovida pelo Supremo Tribunal Federal “reflete preocupante inflexão hermenêutica de índole regressista no plano sensível dos direitos e garantias individuais, retardando o avanço de uma agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais”. Lançaram-se, ainda, no voto do decano da Corte, os seguintes questionamentos retóricos:
“Quantos princípios proclamados pela autoridade superior da Constituição da República precisarão ser sacrificados para justificar a decisão desta Suprema Corte proferida no julgamento do HC 126.292/SP?
Quantas liberdades garantidas pela Carta Política precisarão ser comprometidas para legitimar o julgamento plenário do Supremo Tribunal Federal que, ao instituir artificial antecipação do trânsito em julgado, frustrou, por completo, a presunção constitucional de inocência?
Quantos valores essenciais consagrados pelo estatuto constitucional que nos rege precisarão ser negados para que prevaleçam razões fundadas no clamor público e em inescondível pragmatismo de ordem penal?
Até quando dados meramente estatísticos poderão autorizar essa inaceitável hermenêutica de submissão, de cuja utilização resulte, como efeito perverso, gravíssima e frontal transgressão ao direito fundamental de ser presumido inocente?
Enfim, Senhora Presidente, é possível a uma sociedade livre, apoiada em bases genuinamente democráticas, subsistir sem que se assegurem direitos fundamentais tão arduamente conquistados pelos cidadãos em sua histórica e permanente luta contra a opressão do poder, como aquele que assegura a qualquer pessoa a insuprimível prerrogativa de sempre ser considerada inocente até que sobrevenha, contra ela, sentença penal condenatória transitada em julgado?”
O Ministro Teori Zavackski, outrora relator do HC n. 126.292-SP, repisou seu entendimento exposto no writ, para afirmar em seu voto[48] que “[…] a presunção de inocência […] é uma garantia de sentido processualmente dinâmico, cuja intensidade deve ser avaliada segundo o âmbito de impugnação próprio a cada etapa recursal, em especial quando tomadas em consideração as características próprias da participação dos Tribunais Superiores na formação da culpa, que são sobretudo duas: (a) a impossibilidade da revisão de fatos e provas; e (b) a possibilidade da tutela de constrangimentos ilegais por outros meios processuais mais eficazes, nomeadamente mediante habeas corpus.
Ainda na ótica o Ministro, “[…]A dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema de justiça criminal do país. Se de um lado a presunção de inocência – juntamente com as demais garantias de defesa – devem viabilizar ampla disponibilidade de meios e oportunidades para que o acusado possa intervir no processo crime em detrimento da imputação contra si formulada, de outro, ela não pode esvaziar o sentido público de justiça que o processo penal deve ser minimamente capaz de prover para garantir a sua finalidade última, de pacificação social”.
De seu turno, o Ministro Edson Fachin, reiterando seu posicionamento aventado no julgamento do HC n. 126.292/SP, também votou pelo indeferimento do pleito cautelar. Coligem-se, dentre os argumentos de que lançou mão em seu voto[49], (i) a necessária consideração, na busca pela racionalidade do sistema penal, do princípio da vedação de proteção deficiente; (ii) a inexistência de efeito suspensivo nos recursos extraordinário e especial, a permitir a exequibilidade provisória do acórdão penal condenatório, porquanto exauridas as instâncias ordinárias; (iii) a imprescindível conexão da disposição do art. 282 do CPP “a outros princípios e regras constitucionais que, levados em consideração com igual ênfase, não permitem a conclusão segundo a qual apenas após esgotadas as instâncias extraordinárias é que se pode iniciar a execução da pena […]”; (iv) a inexistência de “verdadeira antinomia entre o que dispõe o art. 283 do CPP e a regra que confere eficácia imediata aos acórdãos proferidos por Tribunais de Apelação” (art. 637 do CPP c/c a dos arts. 995 e 1.029, § 5º, ambos do CPC).
Por fim, vale reiterar que não houve, ainda, julgamento do mérito das aludidas ações declaratórias de constitucionalidade, mas apenas a apreciação dos pedidos cautelares[50]. Entretanto, não se pode ignorar que os votos prolatados no HC n. 126.292-SP e nas ADC´s 43 e 44 indicam, com clareza, a reversão do entendimento do STF sobre o momento processual de superação da presunção de inocência, retomando, pois, a tese que perdurou no período compreendido entre a publicação da Constituição e o HC n. 84.078-MG, de 2009.
Demonstrados os argumentos de que lançou mão o Supremo Tribunal Federal para promover a relativização da presunção de inocência – por meios do Habeas Corpus n. 126.292/SP e das ações declaratórias de constitucionalidade n. 43 e 44, apresentados na Seção antecedente -, cabe, antes de investigar a conformação constitucional da tese firmada por esse tribunal -, apresentar as questões pertinentes ao regime de execução penal.
2 Execução penal e sua antecipação
Este capítulo tem por escopo delinear os contornos jurídicos da execução penal – definitiva e antecipada – bem como seu pressuposto, isto é, a coisa julgada material. Ainda, busca-se diferenciar as modalidades de aprisionamento – cautelar e definitivo – previstas no processo penal brasileiro, de sorte a relacioná-las à presunção de inocência. Por último, faz-se um paralelo analítico entre a execução penal provisória e a antecipação da tutela jurisdicional presente no processo civil, de maneira a mostrar suas semelhanças e diferenças.
2.1 Noção sobre execução penal (definitiva e provisória)
Grosso modo, a persecução penal revela-se num caminho procedimental-processual que se compõe, em regra, de três fases, a saber: (i) a investigativa, com o inquérito policial ou outro procedimento equivalente; (ii) a cognitiva (processo de conhecimento), em que o titular da ação penal deduz a um órgão jurisdicional competente sua pretensão condenatória; e, sendo essa pretensão acolhida e ocorrida a preclusão máxima, abre-se a última fase, (iii) a executória (processo de execução), na qual se visa a impor ao réu (rectius, apenado) as sanções decretadas na fase anterior.
À evidência, o que se está a destacar é a terceira fase da persecutio criminis, isto é, a execução penal, conceituada por Guilherme Souza Nucci (2016, p. 781) como a “fase do processo penal, em que se faz valer o comando contido na sentença condenatória penal, impondo-se, efetivamente, a pena privativa de liberdade, a pena restritiva de direitos ou a pecuniária”.
Visto isso, pode-se inferir, contrario sensu, também a noção de execução penal antecipada (ou provisória), qual seja: a imposição ao réu, a título definitivo, em momento processual anterior ao trânsito em julgado da decisão judicial condenatória (sentença ou acórdão), das sanções penais aplicadas por essa, independentemente da análise dos fundamentos e requisitos para a segregação cautelar.
2.1.1 Execução Penal Provisória Pro Reo
Conforme já se assinalou na parte introdutória (bem como no próprio título), o ponto fulcral deste trabalho diz respeito à execução penal provisória contrária aos interesses do réu (contra reo), os quais, numa palavra, correspondem à preservação de sua liberdade. Fácil deduzir, por isso, que tal acepção se contrapõe à antecipação da execução penal que lhe favorece (execução penal provisória pro reo).
Essa distinção mostra-se pertinente haja vista não ser incomum no processo penal brasileiro que o acusado possa gozar, durante o período em que cumpre prisão processual (sobretudo a prisão preventiva), de benefícios próprios da fase processual executória, a exemplo da progressão de regime prisional e da aplicação imediata de regime menos gravoso, conforme autorizam os enunciados n. 716[51] e 717[52] da súmula da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal. Ainda, a própria Lei de Execução Penal, no parágrafo único de seu art. 2º, permite que suas regras sejam aplicadas ao preso provisório.
Almeja-se com isso demonstrar que, diferentemente da relação entre execução penal provisória contra reo e presunção de inocência – cuja problemática anima todo este trabalho -, a harmonia entre a execução penal antecipada em favor do réu e a referida garantia é constatada por um simples esforço interpretativo, qual seja, a compreensão de que garantias constitucionais não podem ser utilizadas – pois são garantias! – contra seus destinatários. É como se manifesta Dezem (2017, p. 321), a dissertar que em tais casos aplica-se “a ideia de que direito fundamental não pode ser utilizado contra seu titular. Daí porque, estando o acusado preso, não pode ser utilizada a presunção de inocência contra o titular do direito”.
Nesse mesmo tom, Nucci (2016, p. 678) defende a consonância entre execução penal provisória em favor do réu e a presunção de inocência, pois os “direitos e garantias fundamentais […] servem para a proteção do indivíduo, e não para prejudicá-lo, o que aconteceria caso fosse utilizado como causa impeditiva da execução provisória”.
2.2 Pressuposto da execução penal: coisa julgada material
Expôs-se que, diferentemente das prisões processuais, a imposição da prisão penal faz-se mediante cognição exauriente. Daí que se condiciona a prisão-pena, nos termos dos artigos 5º, LVII, da Constituição Federal, 283, do Código de Processo Penal e 105, da Lei de Execução Penal – todos já expostos na seção 1.2 -, à formação da coisa julgada material[53].
A coisa julgada encontra-se definida no art. 6º, §3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb – Decreto-lei n. 4.657, de 1942)[54] e, com mais tecnicidade jurídico-processual (embora sem contradizer a norma do referido Decreto), no art. 502, caput, da Lei n. 13.015, de 2015 (Código de Processo Civil), a prever que se denomina “coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.
Nesse prisma, Aury Lopes Jr. (2016, p. 742), com base nas lições de Enrico Tullio Liebman, explica que “[…] a coisa julgada não é o efeito ou um efeito da sentença, mas uma qualidade e um modo de ser e de manifestar-se de seus efeitos. É algo que se agrega a tais efeitos para qualificá-los e reforçá-los em um sentido bem determinado. Não há que se confundir uma qualidade dos efeitos da sentença com um efeito autônomo dela, e nisto consiste a autoridade da coisa julgada, que se pode precisamente definir como a imutabilidade do mandamento proveniente da sentença. Não se identifica com a definitividade ou intangibilidade do ato que pronuncia o mandamento; é, em câmbio, uma qualidade especial, mais intensa e mais profunda, que afeta o ato e inclusive seu conteúdo, e o torna, desse modo, imutável, não só no seu aspecto formal, mas também dos efeitos desse mesmo ato”.
Sem olvidar as peculiaridades que diferenciam a coisa julgada penal da coisa julgada cível, sobretudo em virtude da vocação garantista da primeira,[55] o que se buscou neste espaço foi tão somente trazer a denotação do instituto jurídico em análise (a res judicata), cuja incidência espraia-se a todos os ramos do direito processual[56]. Esse esboço conceitual terá relevância ao tratar-se da extensão cronológico-processual da presunção de inocência e sua relação com os efeitos dos recursos interpostos às instâncias jurisdicionais extraordinárias (seção 3.2.1).
2.3. Medidas supressoras do direito de liberdade (prisões lato sensu) e presunção de inocência
Na ordem jurídico-criminal brasileira, os meios aptos a suprimir o status libertatis dos imputados (indiciados, processados ou apenados), isto é, os instrumentos de aprisionamento (lato sensu), podem ser analisados de forma bifurcada. De um lado, tem-se a prisão-pena (prisão penal), afeta à temática em foco (execução penal); de outro, há as prisões provisórias (ou cautelares).
As prisões provisórias são espécies de medidas cautelares de natureza pessoal impostas no curso do processo penal, a subdividirem-se em prisão em flagrante, prisão preventiva e prisão temporária[57]. A prisão-pena, por sua vez, é produto da condenação criminal, ou seja, resultado do desfecho do processo penal, desde que, após a fase instrutória, tenha sido dado provimento à pretensão acusatória[58].
Ademais, as prisões cautelares têm como características, conforme Lima (2016, p.1125): (i) a acessoriedade; (ii) a preventividade; (iii) a instrumentalidade hipotética, pois são um “instrumento do instrumento”, i.e, do processo penal, cuja eficácia é por elas perseguida; (iv) a provisoriedade, a desdobrar-se em sua revogabilidade; (v) a não definitividade, como consectário lógico da provisoriedade; (vi) a referibilidade “a uma situação de perigo que visa suplantar”; e (vii) a sumariedade, quanto à profundidade da cognição nelas realizada.
Em suma, nas prisões cautelares o magistrado lança mão, ante a urgência inerente à medida (periculum libertatis), de cognição sumária, na medida em que se limita a certificar-se da existência de materialidade delitiva e indícios de autoria (fumus comissi delicti). Já na prisão-pena tem de haver, necessariamente, atividade cognitiva exauriente, uma vez que o provimento (definitivo) da pretensão acusatória condiciona-se à certeza jurídica do cometimento do crime pelo acusado, dado que a dúvida lhe é benéfica (in dubio pro reo).
Em face disso, a prisão-pena condiciona-se à formação da coisa julgada material, explanada na seção anterior. Em sentido oposto, tal exigência passa ao largo das prisões provisórias, pois, considerara a instrumentalidade que lhe é inerente, condicioná-las à preclusão máxima acarretaria seu esvaziamento.
Assim, impende constatar que a noção de prisão-pena, quer se cumpra no momento processual pertinente ou de forma antecipada, afasta-se do regime jurídico das prisões provisórias por não encerrar quaisquer caracteres de instrumentalidade ou cautelaridade, mas, sim, verdadeira satisfação (tutela satisfativa) antecipada da pretensão punitiva. Em virtude disso se mostra curial examinar a relação entre as prisões provisórias e a presunção de inocência.
2.3.1 Prisões Cautelares e Mitigação da Presunção de Inocência
Demonstrada a instrumentalidade intrínseca às prisões provisórias (são instrumento do instrumento), tem-se que, ipso facto, sua aplicação não depende da formação de coisa julgada material. Ante isso, poder-se-ia questionar se tais medidas compatibilizam-se à garantia de presunção de inocência.
De início, depreende-se que própria Lei Maior autoriza a decretação de medidas cautelares de natureza pessoal na parte inicial de seu art. 5º, LXI. Com esse raciocínio, Lima (2016, p. 83) enuncia que a imposição de prisão cautelar concilia-se à norma do art. 5º, LVII, da Constituição, “desde que a medida cautelar não perca seu caráter excepcional, sua qualidade instrumental, e se mostre necessária à luz do caso concreto”. Ainda, Mirabete (2006, p. 26) consigna: “ao contrário do que já se tem afirmado, não foram revogadas pela norma constitucional citada [princípio da não culpabilidade] os dispositivos legais que permitem a prisão provisória”.
Por sua vez, Capez (2016, p. 117) endossa a posição dos supracitados autores para aduzir que o dever de tratamento dimanado do princípio da presunção de inocência não elide a possibilidade, sempre excepcional, de imporem-se prisões processuais[59]. Essa vertente interpretativa tem acolhida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende do aresto a seguir colacionado: “[…] A liberdade, não se pode olvidar, é a regra em nosso ordenamento constitucional, somente sendo possível sua mitigação em hipóteses estritamente necessárias. Contudo, a prisão de natureza cautelar não conflita com a presunção de inocência, quando devidamente fundamentada pelo juiz a sua necessidade” (STJ, RHC 45.638/RR, 5ª T., rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 8-5-2014, DJe de 21-5-2014).
Da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também se extrai opção hermenêutica consoante à conciliação entre as modalidades prisionais impostas ad cautelam e a presunção de inocência: “A presunção de inocência, ou de não culpabilidade, é princípio cardeal do processo penal em um Estado Democrático de Direito. Teve longo desenvolvimento histórico, sendo considerada uma conquista da humanidade. Não impede, porém, em absoluto, a imposição de restrições ao direito do acusado antes do final processo, exigindo apenas que essas sejam necessárias e que não sejam prodigalizadas. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite a prisão preventiva quando as circunstâncias concretas da prática do crime revelam a periculosidade do agente e o risco à ordem pública. Precedentes (STF, HC 115.623/SP, 1ª T., rela. Mina. Rosa Weber, j. 28-5-2013, DJe 125, de 1º-7-2013).
[…] em face do princípio constitucional da não culpabilidade, a custodia acauteladora há de ser tomada como exceção, cumprindo interpretar os preceitos que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos, especialmente aqueles prontos a colaborarem com o estado na elucidação do crime” (HC 85.455, rel. Min. Marco Aurélio).
Portanto, as prisões provisórias, cuja aplicação tem lugar anterior à definição da responsabilidade penal do imputado, consubstanciam-se em instrumentos aptos a mitigar o princípio da presunção de inocência, desde que a observância de seus pressupostos (periculum libertatis e fumus comissi delicti) e requisitos legais tenha sido demonstrada, in concreto[60], por meio de decisão jurisdicional motivada. Não se trata, portanto, de garantia absoluta.
2.4 Provisoriedade da execução penal em paralelo à antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional no processo civil
Assentadas as diferenças entre prisões processuais e prisão-pena, há de se constatar que esta última, se admitida sua execução a título provisório, aproximar-se-ia do regime cível de execução antecipada das decisões jurisdicionais, o qual se manifesta, entre outras formas, por meio da tutela provisória de urgência antecipada e tutela de evidência, regulamentadas nos artigos 294 a 310 da Lei n. 13.105, de 2015 (Código de Processo Civil – CPC). Isso porque, em ambos os regimes executivos, cível e penal, haveria um ponto de interseção: a satisfação antecipada da pretensão (acusatória num caso, patrimonial noutro[61]) deduzida em juízo.
Urge notar que, mesmo no âmbito processual civil – em que, no mais das vezes, se pleiteiam direitos de natureza patrimonial -, preocupou-se o legislador em condicionar a antecipação da concessão da tutela à reversibilidade dos efeitos da decisão que a defere. É dizer: impõe-se a possibilidade de retornar-se ao status quo ante[62]. Deveras, nos termos do art. 300, §3º, do CPC, “a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão”. De forma semelhante, dispõe o art. 302, caput, cumulado com o inc. I, da mesma lei processual, que, “independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se […] a sentença lhe for desfavorável”.
Ainda sob o viés comparativo, não se pode negar que se mostra dificultosa a transposição do referido requisito da antecipação de tutela próprio do processo civil (reversibilidade) para o processo penal, cujo móvel corresponde, em face do princípio da necessidade[63], à imposição do preceito secundário do tipo penal aos infratores da ordem jurídico-penal. Em síntese, quer-se demonstrar isto: ao passo que no processo civil o êxito da pretensão deduzida corresponde, de regra, a um acréscimo patrimonial do autor, no processo penal, por sua vez, o acolhimento da pretensão acusatória equivale, no mais das vezes, à perda da liberdade do imputado.
Daí que se mostra pertinente a indagação do Ministro Marco Aurélio no julgamento do HC n. 126.292/SP[64]: “[…] perdida a liberdade, vindo o título condenatório e provisório – porque ainda sujeito a modificação por meio de recurso – a ser alterado, transmudando-se condenação em absolvição, a liberdade será devolvida ao cidadão? Àquele que surge como inocente?
De consequência, parece certo que, no processo penal – instrumento necessário à privação da liberdade do imputado -, não se mostra atendido o requisito processual civil da reversibilidade da tutela jurisdicional cuja antecipação se requer, porque se avulta notória a impossibilidade de remediar eventual pena antecipadamente imposta se acaso for reformado o título executivo que a determinou.
3 Execução penal provisória contra reo à luz do princípio da presunção de inocência
Exposta a moldura jurídica da execução penal antecipada/provisória e da presunção de inocência, cabe demonstrar as reflexões que circundam a ligação desses conceitos. Busca-se, ante isso, entrelaçar os aportes teóricos respeitantes à investigação da sintonia entre a presunção de inocência e a transposição do aprisionamento definitivo para a fase cognitiva do processo penal (execução penal provisória). Para tanto, não se pode passar ao largo da compreensão interpretativa imanente ao problema (seção 3.1).
Nessa perspectiva hermenêutica, analisar-se-á a norma prevista no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República – que hospeda a presunção de inocência –, de maneira a expor os conceitos jurídicos que lhes são afetos, a exemplo da atuação interpretativa do Poder Judiciário e mutação constitucional. Antes, porém, esboça-se a instrumentalidade constitucional do processo penal como influxo de sua interpretação.
Por último, examina-se neste capítulo a extensão cronológico-processual da presunção de inocência (seção 3.2), contexto em que ganham relevo as questões atinentes ao princípio do duplo grau de jurisdição e aos efeitos dos recursos processuais penais interpostos aos tribunais superiores (seção 3.2.1).
3.1 Apontamentos hermenêuticos
3.1.1 Instrumentalidade constitucional do processo penal como fator determinante à interpretação de suas normas
Para que uma constituição seja efetiva, isto é, aplicada, faz-se indispensável, de acordo com Ferreira Filho (2009, p. 377) interpretá-la, na medida em que o Direito é uma ciência eminentemente linguística. Sendo assim, e considerando a notória supremacia das normas constitucionais sobre as demais integrantes da ordem jurídica, não se pode conceber qualquer ramo da ciência jurídica, em um Estado Democrático de Direito regido por uma constituição, sem a filtragem constitucional das normas e institutos jurídicos nele presentes.
No processo penal brasileiro, a imprescindibilidade desse peneiramento normativo-constitucional é evidente. Isso porque os preceitos axiológicos originalmente encampados no Código de Processo Penal têm, conforme se lê na Exposição de Motivos do projeto legislativo que lhe deu origem[65], inegável inspiração no Codigo Rocco, diploma processual italiano construído sob a influência intelectual de Vicenzo Manzini. No tocante à presunção de inocência, o processualista italiano defendia, conforme aponta Aury Lopes Jr. (2016, p. 78), a inexistência de fundamento a essa garantia, já que “a maior parte dos imputados resultavam ser culpados ao final do processo”.
É translúcida, portanto, a dissonância axiológica e epistêmica entre a ideologia tonificada na origem do diploma processual penal brasileiro e a Constituição Federal de 1988, cujo catálogo de direitos e garantias individuais – em que se situa a presunção de inocência (art. 5º, LVII) – ultrapassa, segundo Sarlet (2012, p. 90), até mesmo o rol de direitos humanos previstos nos documentos internacionais. Em virtude disso, destaca-se a feição do processo penal como meio de concretização dos direitos previstos na Constituição da República; aquele, pois, é instrumento desta.
É o que advoga Aury Lopes Jr. (2016, p. 50) ao enunciar que a existência do processo penal democrático tem como fundamento de legitimação “sua instrumentalidade constitucional, ou seja, o processo enquanto instrumento a serviço da máxima eficácia de um sistema de garantias mínimas”. Depreende, assim, que essa instrumentalidade intrínseca ao processo penal deve refletir-se também – e principalmente – na interpretação de suas normas e institutos, isto é, como um fator condicionante da atividade interpretativa que se lhe pretenda aplicar.
De mais a mais, considerando o já apresentado assento constitucional da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII), não se pode perder de vista que, quando se busca analisar a compatibilidade dessa garantia com algum instituto jurídico, norma ou vertente interpretativa, está-se a realizar, em verdade, investigação da conformidade constitucional de tais expedientes. Logo, cuida-se de questão constitucional, de modo que é sob o pálio da Lei Maior que seu exame deve ser realizado.
Em síntese, não se pode divorciar a interpretação do processo penal (conjunto de normas-instrumentais) da Constituição (conjunto de normas-fim), razão por que se mostra tão importante a hermenêutica constitucional ao tema deste trabalho, correspondente a garantia constitucional do processo penal (presunção de inocência).
3.1.2 Interpretação jurídica como atividade voluntária ou meramente cognitiva
Sob a ótica de alguns doutrinadores, a interpretação do Direito é atividade intelectual de atribuição (e não mera descrição) de conteúdo, sentido ou objetivo a um enunciado normativo. Sendo assim, seria inegável existência da subjetividade (do intérprete) na empreitada hermenêutica à qual se lança. É o que ensina Tavares (2012, p. 102) ao afirmar que “[…] a interpretação do Direito é a operação intelectiva por meio da qual a partir da linguagem vertida em disposições (enunciados) com força normativa o operador do Direito chega a determinado e específico conteúdo, sentido e objetivo desse enunciado, em face de um caso concreto (real ou hipotético) […]. A interpretação não é uma atividade descritiva, mas sim construtiva; não se ‘extrai’ o significado do enunciado normativo, como pretendia a clássica teoria do Direito a partir de Blackstone e que foi reforçada por ideologias e correntes teóricas ao longo da História […]”.
Na mesma linha teórica, Barroso (2010, p. 191) sustenta ser inafastável, na atual quadra histórica do pensamento jurídico, o papel de inovação da ordem jurídica que encerra a jurisprudência. Tal raciocínio parece ter guarida também na obra de Didier (2016, p. 153) ao conceituar jurisdição como “a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo (reconstrutivo), reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas concretamente deduzidas […]” (grifo nosso).
Em sentido diverso, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2009, p. 381/382) disserta que a interpretação é ato de conhecimento (não de vontade), embora pressuponha a existência de um elemento invariável e estranho ao enunciado normativo, i.e, a boa-fé do intérprete[66]. Eis a crítica do mencionado constitucionalista à vertente doutrinária que esposa ser a interpretação um ato criativo do intérprete: “Mesmo que a interpretação seja um ato de vontade, o intérprete não pode arbitrariamente dar o sentido que quiser à norma; há um limite que advém exatamente da linguagem, sob o pressuposto da boa-fé. Como diz Umberto Eco, ´a interpretação consiste em ler sob o controle do que está escrito`. Fugir disto é identificar o aplicador com o legislador (o que contraria a separação de poderes, uma das bases do constitucionalismo). […] Na verdade, frases como ´a interpretação é ato de vontade`, ´o intérprete produz a norma` são extremamente enganosas. Justificam-se quando significam, ´entre vários sentidos possíveis, dada a ambiguidade do enunciado, que o intérprete escolhe um deles; e, como escolher é ato de vontade, a interpretação é um ato de vontade`; ou, ´ lendo o enunciado, o intérprete dá sentido às expressões de que ele usa e, assim, produz o sentido da norma, por isso ele produz a norma`(que não é evidentemente o conjunto de sinais impressos no papel). Mas são absurdas se querem dizer que o intérprete faz a norma de acordo com sua vontade, ou o justo que pressupõe. Ou, pelo menos, renegam o sistema do Estado de Direito, porque negam o primeiro de seus princípios – o de legalidade; contestam a democracia, na qual a lei é expressão da vontade geral; abandonam a separação de poderes, que reserva ao legislador o estabelecimento da lei” (grifamos).
Trata-se, portanto, de compromisso do hermeneuta (sobretudo o juiz) com as regras e princípios constantes do Diploma Básico, compreensão que deve prevalecer no enfrentamento analítico do tema vertido neste trabalho (presunção de inocência de execução penal provisória), ante sua reiterada envergadura constitucional, conforme já se frisou no item antecedente.
Não sendo assim, na esteira das lições de Ferreira Filho supramencionadas, usurpar-se-ia o papel do editor das normas constitucionais (o Legislador), o que, indiretamente, desprestigiaria seu mandante (o próprio povo). Por conseguinte, violar-se-iam, a um só tempo, princípios do Estado Democrático de Direito: legalidade, democracia e separação entre os Poderes (funções) da República.
A despeito disso, pode-se deduzir que os adeptos de ambos os eixos temáticos acima apresentados compartilham um aspecto conclusivo, qual seja: a vinculação do intérprete às balizas linguísticas (semânticas) do enunciado normativo por ele interpretado. Em face disso, faz-se mister buscar o equilíbrio entre tais vertentes doutrinárias, ou seja: reconhecer o caráter construtivo da atividade do intérprete jurídico sem desconsiderar as barreiras, sobretudo semânticas, impostas pelo enunciado objeto de interpretação.
Admite-se, contudo, que não se trata de tarefa tão singela quanto se possa supor, pois, consoante alerta Barroso (2010, p. 195), a relação entre o enunciado de norma (texto ainda por interpretar) e o produto normativo nem sempre tem fronteiras facilmente identificáveis pelo intérprete. É nesse terreno de instabilidade hermenêutica que se situam os contornos da interpretação constitucional da presunção de inocência no processo penal, conforme adiante se mostra.
3.1.3 Pluralidade normativa oriunda do art. 5º, LVII, da Constituição
Na abordagem ora proposta, traz-se como premissa a distinção, apresentada por Barroso (2012, p. 196/197), entre dispositivo (fragmento de legislação), enunciado normativo (proposição jurídica no papel) e norma, que se traduz no “produto da incidência do enunciado sobre os fatos da causa, fruto da interação entre texto e realidade”. Dito isso, percebe-se que um único enunciado pode, a depender do suporte fático que se lhe pretenda subsumir, ensejar pluralidade normativa.
Essa diagnose distintiva tem nítida aplicabilidade ao objeto de análise deste trabalho (presunção de inocência). Por isso se pode afirmar que o enunciado normativo materializado no art. 5º, LVII (dispositivo), da Lei Maior, dá azo à manifestação de diversas normas, e.g: (i) em caso de dúvida sobre a suficiência de elementos probatórios trazidos pela acusação, deve o juiz proferir sentença absolutória (regra de tratamento, in dubio pro reo), nos termos do art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal[67]; (ii) o encargo probatório é cometido à acusação, razão por que não se impõe ao réu a prova de sua inocência; (iii) é vedado à Administração Pública excluir “candidato de concurso público que responde a inquérito ou ação penal sem trânsito em julgado da sentença condenatória.[68]”; etc.
Reafirme-se, ainda em consonância com Barroso (2010, p. 195), que a delimitação do enunciado normativo, enquanto texto ainda não interpretado, nem sempre é facilmente percebida pelo intérprete. Parece enquadrar-se nessa compreensão a relação entre o enunciado constante do art. 5º, LVII, da Constituição (presunção de inocência) e a execução antecipada da pena no processo penal. Para demonstrar tal complexidade exegética, basta perceber que esses conceitos, outrora tidos por contraditórios entre si pelo Supremo Tribunal Federal, hodiernamente são vistos, pela mesma Corte Constitucional, como harmônicos[69].
Não obstante, deve-se ter em mente que a diversidade normativa decorrente do art. 5º, LVII, da Constituição Federal, não pode desbordar os lindes semânticos do enunciado constitucional. É dizer, adaptando a doutrina de Streck (2014, p.85) ao tema em análise, que a enunciação promovida pelo citado dispositivo (texto) não pode estar absolutamente descolada de seu produto normativo, pois, caso contrário, “o direito seria aquilo que os juízes dizem que é”. Ainda, sustenta o autor (2014, p. 89) que “[…] não há textos sem contextos. O texto não (r)existe na sua “textitude”. Ele só “é” na sua norma. Mas essa norma tem limites. Muitos. E, por quê? Pela simples razão de que não se pode atribuir qualquer norma a um texto ou, o que já se transformou em bordão que inventei há algum tempo, ‘não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa’”.
Por fim, importa frisar que as questões hermenêuticas ora ventiladas nutrem umbilical relação com a manifestação do poder constituinte difuso por meio do processo de mutação constitucional, à qual se dedica análise no item subsequente.
3.1.4 Mutação constitucional e presunção de inocência
Antes de averiguar-se a possibilidade de mutação da norma constitucional prevista no art. 5º, inc. LVII, da Lei Maior – o que se mostra sobremodo relevante ante a reversão jurisprudencial realizada pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema (v. subseção 1.4.1) -, faz-se adequado apresentar os contornos jurídicos desse fenômeno afeto à interpretação das normas constitucionais, i.e, a mutação constitucional.
Para Barroso (2010, p. 123/124), conquanto as normas constitucionais tenham por vocação a perenidade, não lhes foram conferidos os atributos da eternidade e imutabilidade. Assim sendo, é comum que as constituições, prevendo possíveis – e prováveis – alterações no corpo social por ela regido, instituam mecanismos para a alteração de seu texto (poderes de reforma e revisão constitucional) [70].
Para além desse expediente normativo-procedimental, o qual se afasta da situação jurídica em destaque (presunção de inocência) na medida em que a consideramos integrante do núcleo intangível da Carta Política, voltam-se os olhos para o também possível processo de modificação informal, ou difusa, das normas constitucionais, isto é, a mutação de normas constitucionais (ou simplesmente mutação constitucional).
Cuida-se, segundo registram Sarmento e Neto (2012, p. 259), de processo cuja percepção se demonstra por “modificações significativas nos valores sociais ou no quadro empírico subjacente, que provocam necessidade de adoção de uma nova leitura da Constituição ou de algum de seus dispositivos”. É também o que se vê na obra de Barroso (2010, p. 124), a consignar que mutação constitucional consiste em “mecanismo que permite a transformação do sentido e do alcance de normas da Constituição, sem que se opere, no entanto, qualquer modificação do seu texto”.
Assim, o fenômeno interpretativo da mutação constitucional guarda íntima relação com a plasticidade das normas constitucionais a que visa incidir, isto é, a maleabilidade para adequarem-se às concretudes da vida em sociedade, sejam elas políticas, culturais, ou econômicas. Sobre a plasticidade imanente à Constituição Federal de 1988, assevera Raul Machado Horta (apud Bulos, 2014, p. 103): “[…] a plasticidade permitiria a permanente projeção da constituição na realidade social e econômica, afastando o risco da imobilidade que a rigidez sempre acarreta. A Constuição plástica estará em condições de acompanhar, através do legislador ordinário, as oscilações da opinião pública e da vontade do corpo eleitoral. A norma constitucional não se distanciará da realidade social e política. A Constituição normativa não conflitará com a Constituição real. A coincidência entre norma e a realidade assegurará a duração da Constituição no tempo”.
Em complemento a essa tese, encontra-se na cátedra de Ferreira Filho (2009, p. 383) que a definição da interpretação jurisprudencial “não exclui […] que, mudando os tempos ou em face de novos argumentos, o tribunal altere o entendimento a respeito da norma”. É certo que, se assim não o fosse, ver-se-iam engessadas as normas constitucionais, as quais, por conseguinte, se tornariam paulatinamente ineficazes. Logo, a mutação das normas constitucionais as mantém vivas, adequadas ao tempo e espaço nos quais são interpretadas, de maneira a preservar a perenidade da Constituição.
A importância desse fenômeno na análise da presunção de inocência, sobretudo no tocante a seus limites, é clara. Tal assertiva serve, por exemplo, à aferição da viabilidade jurídica da decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 126.292/SP, mediante o qual repristinou sua jurisprudência acerca da abrangência normativa do art. 5º, LVII, da Constituição.
Em prol da clareza que se pretende imprimir ao tema, importa sintetizar o que fora exposto na seção 1.4[71] a fim de demonstrar que, tendo em conta um único enunciado normativo (inscrito no art. 5º, inc. LVII, da CF/88), extraíram-se (ou criaram-se, se se preferir), pelo STF, em diferentes pontos históricos, duas normas diametralmente opostas. Veja-se, portanto, o iter de oscilação pretoriana: a) da promulgação da Constituição até o julgamento do HC n. 84.078-MG em 2009, prevaleceu a tese da compatibilidade entre a presunção de inocência e a execução penal provisória; b) do julgamento do HC n. 84.078-MG em 2009, até 2016, repudiou-se exequibilidade penal em momento anterior ao esgotamento das instâncias jurisdicionais, incluídas as extraordinárias, sem prejuízo do encarceramento acautelatório; e c) a partir do julgamento do HC 126.292/SP, em 2016, confirmado pelo desfecho das cautelares das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43 e 44, voltou-se a legitimar o cumprimento de pena privativa de liberdade após a prolação de acórdão condenatório, ainda que pendente o julgamento de recursos excepcionais, ou seja, anteriormente ao trânsito em julgado.
Embora sem lançar mão da expressão mutação constitucional, parece ter sido essa a tônica argumentativa a inspirar a jurista Ada Pellegrini Grinover, em entrevista concedida ao sítio eletrônico Conjur[72], a encampar a novel tese do Supremo Tribunal Federal concernente à execução penal antecipada. Eis o trecho da declaração: “[…] A lei deve ser aplicada de acordo com as mudanças da realidade. No momento em que a Constituição de 1988 foi promulgada, ela precisava ser libertária, garantista – até exagerou neste ponto, porque criou tantos direitos que tudo foi constitucionalizado e pode ir para o Supremo. A situação era outra quando se interpretou como presunção de inocência a não possibilidade de prisão depois da sentença. Os processos penais não duravam tanto tempo, a criminalidade era outra. Não era a criminalidade econômica, mas a do ladrão de galinhas, do assassino passional […]trata-se de uma interpretação evolutiva. Leia Eros Grau, leia Luís Roberto Barroso sobre isso. O relator [ministro Teori Zavascki] fundamenta a decisão sobretudo no Direito Comparado, porque isso não existe em legislação nenhuma, e no princípio da proporcionalidade de um bem em relação a outro”.
Delineado o fenômeno da mutação constitucional e apresentada sua interligação com o tema vertido neste trabalho (presunção de inocência e execução penal antecipada), vale compilar algumas advertências da doutrina. A primeira, trazida por Bulos (2014, p. 230), é a de que mutação constitucional não se identifica com a substituição do texto constitucional por outro, haja vista que, por meio daquela, “as normas constitucionais mudam sem alterar uma vírgula, sequer, do texto originário da constituição”.
Ainda, o mesmo autor (2014, p. 435) salienta que o poder constituinte difuso – poder fático, latente, mediante o qual se manifesta a mutação constitucional – tem como atributo a continuidade, a ser entendida como “o poder difuso emerge, com vigor, nos casos de lacunas constitucionais, em que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário têm a missão, senão o dever sacrossanto, de fazer valer a constituição. Daí o caráter de continuidade do poder difuso, pois, nos casos de vazios normativos, ele permite que a obra do constituinte inicial e do reformador seja complementada, por meio da interpretação e até dos usos e costumes. Assim, os Poderes Públicos continuam a obra do constituinte originário, colmatando os espaços em branco do produto constitucional normado”. (destaques no original).
Portanto, impõe-se ao intérprete, ao lançar mão do processo de mutação constitucional, respeitar a moldura semântica do enunciado constitucional cuja atualização ao mundo concreto se busca. Nesse rumo, afirma Streck (2014, p. 17) que, mesmo nos casos em que haja polissemia no texto normativo a ser interpretado, “isso não significa que o processo hermenêutico admita discricionariedades e decisionismos. É possível encontrar resposta corretas em direito, justamente pelo caráter antirrelativista da hermenêutica filosófica”.
À luz disso, deduz-se que a tese pela qual se busca harmonizar o conteúdo do art. 5º, LVII, da CF/88, não encontra guarida no processo de mutação constitucional. Deveras, a levar-se em consideração o aludido enunciado constitucional (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado…”), forçoso perceber que a pretensão de extrair-lhe norma nitidamente contraditória (“não viola a presunção de inocência o cumprimento da pena anteriormente à formação da coisa julgada”), longe de representar modificação informal de sua significação por meio do poder difuso (mutação constitucional), equivale a, isto sim, alijar sua substância mediante a substituição do texto constitucional por outro.
3.2 Extensão cronológico-processual da presunção de inocência
Consoante disposto na seção 2.2, a execução penal tem como pressuposto básico a formação da coisa julgada material. Em razão disso, deduz-se que o trânsito em julgado da decisão penal condenatória, a autorizar o cumprimento da pena, corresponde, em princípio, ao término da presunção de inocência do imputado, o qual, com a execução, adquire a qualidade de condenado (apenado). Afinal, executar a pena é, em essência, tratar o indivíduo como culpado.
Contudo, doutrina e jurisprudência têm elegido outros marcos processuais – prévios à constituição da coisa julgada – a servirem de barreira a essa garantia e, pois, autorizar a exequibilidade provisória das decisões penais condenatórias. Nesse contexto, destacam-se o princípio do duplo grau de jurisdição e os efeitos dos recursos processuais penais interpostos às cortes superiores.
3.2.1 Duplo grau de jurisdição e efeitos dos recursos excepcionais como barreira à presunção de inocência
A presunção de inocência foi erigida como garantia individual por meio de diversos diplomas internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro[73]. Viu-se que, entre eles, destaca-se a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa), da qual se infere que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (art. 8.2).
Além disso, esse tratado contempla o direito ao duplo grau de jurisdição, na medida em que contempla, entre o rol de garantias mínimas, o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior” (art. 8.2, alínea “h”). No direito processual penal brasileiro, tais impugnações correspondem ao manejo de apelações criminais a serem julgadas pelos Tribunais de Justiça dos Estados e Distrito Federal (TJ´s) – na Justiça Estadual e Distrital, respectivamente – e Tribunais Regionais Federais (TRF´s), no âmbito da Justiça Federal comum[74].
Ante isso, cabe indagar se o duplo grau de jurisdição – entendido como a possibilidade de insurgência recursal a um tribunal de segunda instância – basta para afastar a presunção de inocência e, portanto, executar-se em definitivo, a partir desse momento, a pena. Nesse ponto, veja-se a manifestação da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) a respeito da modificação da jurisprudência do STF quanto à exequibilidade antecipada de acórdãos penais condenatórios (Habeas Corpus n. 126.292-SP): “[…] Trata-se de um julgamento histórico que corrobora a garantia individual ao duplo grau de jurisdição, prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica de 1969) e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966. A decisão tem o mérito de reavivar as relevantes funções do Supremo Tribunal Federal do Superior Tribunal de Justiça – conforme previsto pelo constituinte -, bem como prestigia as instâncias ordinárias, propiciando a execução definitiva das causas já apreciadas pelo juiz singular e revistas pelo tribunal competente”[75].
Nessa perspectiva, a decisão sobre a pretensão recursal do jurisdicionado mediante um colegiado de julgadores (do TJ ou TRF) autorizaria a imediata execução dos acórdãos penais condenatórios prolatados por esses tribunais, ainda que pendentes (sem trânsito em julgado) eventuais recursos extraordinários (lato senso) manejados contra tais atos decisórios. Ou seja, as impugnações recursais às cortes superiores – isto é, os recursos extraordinário e especial, interpostos ao STF e ao STJ, respectivamente[76] -, uma vez que se apresentam em momento posterior ao duplo grau de jurisdição, não obstariam à execução penal.
Ainda nesse ambiente argumentativo, surge em prol da exequibilidade (imediata) de acórdãos penais condenatórios a tese de que aos recursos excepcionais não foi conferido efeito suspensivo. Para tanto, costuma-se eleger como esteio argumentativo a redação do art. 637 do CPP, segundo o qual “o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”.
É o que assinalou o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto[77] a favor da prisão anterior ao trânsito em julgado, prolatado no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43 e 44: “[…] O reconhecimento da legitimidade da prisão após a decisão condenatória de segundo grau não viola o princípio da reserva legal, uma vez que não se trata de criação, pelo STF, de nova modalidade de prisão sem previsão em lei, mas de modalidade extraída do art. 637 do CPP: a prisão como efeito da condenação enquanto pendentes os recursos especial e extraordinário. Não tendo o recurso especial (REsp) e o recurso extraordinário (RE) efeito suspensivo, tem-se como decorrência lógica a possibilidade de se dar início à execução penal”.
Na doutrina, Renato Marcão (2016, p. 742) esposa igual opinião. Para o autor, embora a execução provisória da pena, sem a justificação de aprisionamento cautelar, fira a presunção de inocência, “[…] na hipótese de recurso especial ou extraordinário, porquanto destituídos de efeito suspensivo, é cabível a execução provisória da pena eventualmente imposta no juízo inferior, sem que disso se possa extrair conclusão que aponte para violação ao princípio constitucional da presunção de inocência”.
Parece-nos, entretanto, que, à luz da Constituição (especialmente seu art. 5º, LVII), tais premissas teóricas (duplo grau de jurisdição e inexistência de efeito suspensivo nos recursos excepcionais) não têm o condão de autorizar a execução penal provisória.
Assim, importa perceber que, diferentemente da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Constituição de 1988 tratou com maior rigor o afastamento da presunção de inocência, porquanto o condicionou ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, inciso LVII), e não somente à análise da pretensão recursal em segunda instância jurisdicional.
No tocante ao princípio do duplo grau de jurisdição, deduz-se não haver real contradição entre o texto constitucional e o aludido documento internacional de direitos humanos, pois esse, precavendo-se contra a possibilidade de aplicação de seus enunciados em prejuízo dos indivíduos destinatários dos direitos e garantias neles dispostos, prevê em seu art. 29, alínea “b”, ao cuidar das normas de interpretação, o seguinte: “Art. 29. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: […]. b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados”.
A adoção da tese mais garantidora, em caso de conflito entre a Constituição e o tratado, é depreendida do princípio pro hominen[78], o qual impõe como resolução da (aparente) antinomia em exame a aplicação da norma mais favorável, isto é, aquela escolhida pelo legislador constituinte no art. 5º, inciso LVII. Nesse sentido, Grinover, Filho e Fernandes (2009, p. 71) registram que “as garantias constitucionais e as da Convenção Americana se integram e se completam; e, na hipótese de ser uma mais ampla que a outra, prevalecerá a que melhor assegure os direitos fundamentais”.
Daí que se depreende, na linha dos mencionados doutrinadores, que a garantia expressa no art. 5º, LVII, da Carta Federal, ainda que se queira reputá-la infeliz escolha política se comparada à Convenção Americana de Direitos Humanos, transcendeu ao alcance do duplo grau da instância jurisdicional-penal, o qual, à evidência, dá-se em momento anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
No que diz respeito à alegada falta de suspensão da eficácia nos recursos extraordinário e especial, também não se lhe deve conferir aptidão para permitir a execução antecipada da pena, seja pela revogação tácita do art. 637 do Código de Processo Penal; pela erronia do pressuposto de que todo o exame de matéria fática exaure-se na nas instâncias ordinárias (isso não foi enfrentado no trabalho); ou, e mais importante, pela inconformidade ao que enuncia o art. 5º, LVII, da Constituição.
Não se nega que tais instrumentos recursais, cujas hipóteses de cabimento foram previstas na própria Constituição Federal[79], destinam-se à uniformização jurisprudencial quanto à interpretação das normas constitucionais (recurso extraordinário) bem como do extrato legal infraconstitucional da ordem jurídica interna (recurso especial), razão por que em seu julgamento, conforme salienta Dezem (2017, p. 694), não se autoriza o mero reexame de fato[80].
Todavia, Dezem (2017, p. 694) ressalta que o simples reexame de matéria de fato, impossível nos julgamento desses recursos, não se confunde com a “análise jurídica complexa da matéria de fato”. Em complemento, prossegue o autor: “os recursos ditos extraordinários não se prestam a simples análise da matéria de fato, mas ela poderá ser analisada quando o ponto não é simples questão de fato, mas a questão jurídica ligada a ela”. De forma similar, sustenta Manzano (2012, p. 54) que, a despeito de inexistir eficácia suspensiva nos recursos extraordinário e especial, “no processo penal, diferentemente do processo civil, não existe execução provisória, a qual feriria o princípio da presunção de inocência”.
Por fim, sob o prisma infraconstitucional, deve-se levar em conta a disposição dos artigos 105, da Lei de Execuções Penais (LEP), e 283, do Código de Processo Penal (LEP). Tais dispositivos, já analisados na seção 1.2, contemplam normas que vão de encontro ao que enuncia o art. 637 do CPP, uma vez que, ao contrário desse, condicionam a execução penal ao trânsito em julgado da decisão penal condenatória. Ainda, note-se que o último dispositivo mencionado (art. 637 do CPP) também é sobreposto pelos demais sob o prisma cronológico-legislativo[81].
Posto isso, e levando-se em conta a norma inscrita no art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[82], cabe deduzir que a disposição do art. 283, do CPP, e 105, da LEP, além de se harmonizarem à moldura constitucional (art. 5º, LVII), implicaram a revogação tácita da norma do art. 637, do estatuto processual[83].
Conclusão
O estudo realizado neste trabalho teve como fator propulsor os questionamentos afetos à investigação, sob o prisma constitucional, da compatibilidade jurídica entre a dita execução penal antecipada (ou provisória) prejudicial ao réu e a garantia da presunção de inocência expressamente inscrita no art. 5º, inciso LVII, da Carta Política de 1988.
Sob esse prisma, elegeu-se como ponto de partida o exame da presunção de inocência, ou, se se preferir, presunção de não culpabilidade, visto ser, conforme Badaró (2003, p. 282), inútil tentar distinguir tais conceitos. Para tanto, foi sintetizado o percurso histórico dessa garantia, compreendido desde seu nascedouro no direito romano até o ingresso ordenamento jurídico interno, no qual ostenta tríplice estatura normativa: constitucional, supralegal (convencional) e legal stricto sensu.
A despeito disso, demonstrou-se haver divergência doutrinária quanto à supralegalidade. Isso porque alguns autores sustentam tratar-se, em tais casos, de normas materialmente constitucionais. É o que advoga Flávia Piovesan (2003, p. 113) ao afirmar, com fulcro no art. 5º, §2º, da CF/88, que, “[…] ao efetuar a incorporação, a Carta atribui aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional […] os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados”.
Entretanto, inexiste irrelevância prática da dissonância doutrinária, se fixada à presunção de inocência. Afinal, mesmo que se afaste a materialidade constitucional das normas provenientes de tratados internacionais ingressadas na ordem jurídica brasileira mediante a cláusula de remissão normativa inscrita no art. 5º, §2º, da CF/88 – como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos -, não se pode ignorar o disposto no art. 5º, LVII, também da CF/88, a abrigar norma material e formalmente constitucional.
É dizer, não é de todo necessário controlar a convencionalidade de eventual insurgência legal ou interpretativa quanto à garantia da presunção de inocência, uma vez que a CF/88 previu com maior largueza essa garantia ao condicionar sua superação ao “trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII).
Na seção 1.1, foi trazido o iter cronológico da presunção de inocência, ocasião em que se evidenciou seu caráter cambiante no decorrer da história: em dado momento, sobressaiu na garantia da liberdade individual; noutro, foi asfixiada por escolhas políticas ou manobras interpretativas. Tal assertiva justifica-se por se tratar de garantia individual, categoria que, conforme ensina Bobbio (2004, p. 22), tem como características a historicidade e a relatividade.
Ainda no capítulo inicial, trouxeram-se reflexões pertinentes à taxonomia jurídica da presunção de inocência. Essa, conforme se discorreu, ostenta status jurídico multifacetado, a fragmentar-se, por exemplo, nas categorias de princípio jurídico, regra imposta ao juiz e garantia individual do direito de liberdade. Tal categorização plural da presunção de inocência também foi verificada, no plano terminológico, quando se expôs sua tridimensionalidade axiológica, pela qual aquela é vista como (i) regra de garantia política do estado de inocência; (ii) in dubio pro reo; ou (iii) dever de tratamento na persecução penal.
Posteriormente às observações acerca da tutela normativa e terminologia da presunção de inocência, essa foi examinada à luz da jurisprudência do STF. Sobressaiu, nesse quadrante, a reversão jurisprudencial (overruling) promovida por essa corte constitucional no julgamento do Habeas Corpus n. 126.292/SP e no enfrentamento dos pedidos cautelares formulados nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, e 44. Mediante tais processos, foi restaurada a tese de que existe conformidade entre a execução antecipada de acórdão penal condenatório prolatado por tribunal de segunda instância e a presunção de inocência.
Em sequência (capítulo 3), elucidaram-se os contornos jurídicos da execução penal. De início, foi trazida a distinção entre execução penal definitiva e o que se pretende por execução penal provisória, esta última passível de aplicação pro reo. Cuidou-se também do pressuposto da execução penal, a coisa julgada material, a que aludem os enunciados normativos nos quais é plasmada a presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF; art. 283, CPP; art. 105, LEP).
Apresentou-se, também no espaço destinado à análise da execução penal, a relação entre o encarceramento cautelar e a presunção de inocência. Viu-se que essa garantia pode ser mitigada em tais hipóteses, desde que observada a excepcionalidade – concretamente fundamentada – da imposição do encarceramento provisório do imputado. Daí que, à luz da lição Bobbiana supracitada (relatividade), não se trata de garantia absoluta.
No final do capítulo 3, cotejaram-se a execução penal provisória e a antecipação de tutela jurisdicional prevista no processo civil (tutela provisória de urgência antecipada e tutela de evidência), ambos os regimes a guardarem como ponto comum a satisfação antecipada a pretensão deduzida em juízo. No âmbito executivo cível, porém, elege-se como requisito legal a reversibilidade dos efeitos da decisão que defere antecipadamente a tutela (art. 300, § 3º, do Código de Processo Civil).
À luz disso, e considerando a evidente consequência oriunda do acolhimento da pretensão acusatória no processo penal, isto é, a imposição de pena privativa de liberdade, demonstrou-se a impraticabilidade da transposição do aludido requisito cível ao processo penal, na medida em que, por evidente, a supressão do status libertatis não é reversível.
No capítulo quarto, foi feita análise imbricada dos conceitos jurídicos que intitulam o trabalho: execução penal provisória em prejuízo do réu e presunção de inocência. Para tal exame, partiu-se das questões hermenêuticas reputadas pertinentes ao tema, ocasião em que se averiguou a pluralidade normativa proveniente do art. 5º, LVII, da Lei Maior. Ademais, expôs-se a ligação desse enunciado constitucional com a execução penal antecipada sob o ângulo da mutação constitucional.
Ao final, tratou-se da extensão cronológico-processual da presunção de inocência, de sorte a enfatizar seu liame argumentativo com o princípio do duplo grau de jurisdição. Tal reflexão foi animada pelo cotejo entre o disposto no art. 5º, LVII, da CF/88, e a previsão do referido princípio no Pacto de São José da Costa Rica . Porquanto afeta a essa questão, a eficácia dos recursos processuais penais interpostos às cortes superiores também foi comentada.
Sem olvidar as respeitáveis vozes em sentido contrário, provenientes de setores doutrinários[84], institucionais[85] e jurisprudenciais,[86] depreende-se do estudo realizado que inexiste respaldo constitucional – e, pois, jurídico – à execução penal antecipada contra reo no ordenamento jurídico brasileiro, o qual contempla expressa e indubitavelmente a presunção de inocência enquanto não terminada a persecução penal. O art. 5º, LVII, da Constituição Federal, é translúcido ao afirmar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Não menos claro é o enunciado do art. 283 do Código de Processo Penal, o qual espelha a locução constitucional ao dispor que “[…] ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Daí que, ante a moldura linguística do enunciado constitucional, a pretensão de extrair-lhe norma inversa (conforma-se à constituição o cumprimento da pena anteriormente à formação da coisa julgada), longe de representar interpretação constitucional, corresponde a ilegítima revogação de toda sua substância normativa. Nesse diapasão, disserta Streck (2014, 85) que o produto normativo extraído do enunciado não pode desbordar de forma absoluta de seus lindes semânticos. Do contrário, há decisionismo, isto é, arbitrariedade do intérprete.
Ademais, não há falar que a possibilidade de execução penal provisória contra reo encontra fundamento na doutrina da mutação constitucional. Esse fenômeno, conforme anuncia Bulos (2014, p. 230), não se confunde com a substituição do texto constitucional por outro, pois, por meio dele, “as normas constitucionais mudam sem alterar uma vírgula, sequer, do texto originário da constituição”.
Portanto, o restabelecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da tese de que há conformidade entre a execução penal provisória e a presunção de inocência prevista no referido dispositivo constitucional acarreta, a um só tempo: violação ao princípio da separação dos Poderes em razão da evidente legiferação positiva realizada pelo STF; negativa de eficácia à Constituição, cuja determinação é diametralmente oposta à tese firmada. Enfim, mutatis mutandis, a mencionada compreensão pretoriana dá suporte no direito brasileiro ao caricato comentário do juiz Wendell Holmes, da Suprema Corte dos Estados Unidos, ao expressar, segundo demonstra Filho (2009, p. 383), que “a Constituição dos Estados Unidos é o que a Suprema Corte diz que ela é”.
Por fim, vale reiterar que não se está a negar legitimidade social aos argumentos em torno da relativização da presunção de inocência (sensação de impunidade, insegurança, criminalidade…). Ocorre que, conforme alerta Pacelli (2017, p. 235), ao tratar do art. 283 do CPP, o óbice à execução penal provisória enunciado nesse dispositivo, “como regra, está absolutamente correto, em face das nossas determinações constitucionais, das quais podemos até discordar; jamais descumprir” (destaque no original). Do contrário, far-se-ia tábula rasa do texto supremo, a ensejar, além de todo o exposto, sensível abalo ao Estado Democrático de Direito, cujo ponto de equilíbrio é a força normativa das normas constitucionais.
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