Heloá da Conceição Nunes[1]
RESUMO
O presente artigo trata sobre a possibilidade ou não de Emenda à Lei Orgânica Municipal dos Municípios situados em Estados sujeitos à intervenção federal. Busca-se, por meio da interpretação literal da Constituição Federal e da aplicação da Jurisprudência firmada no âmbito do Supremo Tribunal Federal (utilizando o princípio da simetria), sobre a necessidade de observância da reprodução obrigatória do devido Processo Legislativo nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, suscitar o debate acerca da impossibilidade de Emenda às Leis Orgânicas Municipais nesse período. Tema esse, ao que nos consta, pouco debatido, talvez em virtude do ineditismo prático da medida de intervenção federal, mas que pode encontrar defensores e opositores, como demonstraremos ao longo do texto.
Palavras-chave: Intervenção Federal. Emenda à Lei Orgânica Municipal. Normas de Reprodução Obrigatória. Princípio da Simetria. Devido Processo Legislativo.
IMPOSSIBILITY OF AMENDMENT TO THE MUNICIPAL ORGANIC LAW OF MUNICIPALITIES IN STATE UNDER FEDERAL INTERVENTION: CONSTITUTIONAL INTERPRETATION OR MUNICIPAL ENGESSMENT?
ABSTRACT
This article deals with the possibility or not of amending the Municipal Organic Law of Counties located in States that suffer federal intervention. Through the literal interpretation of the Federal Constitution and the application of jurisprudence established in the scope of the Supreme Court (using the principle of symmetry) about the necessity of the compulsory reproduction of due legislative process in the Constitutions of the States and in the Municipal Organic Laws in that period. To our knowledge, this is a little debated theme, perhaps because of an unusual practice of federal intervention, but that can find defenders and opponents, as we will demonstrate throughout the text.
KEYWORDS: Federal intervention. Amendment to the Municipal Organic Law. Mandatory Reproduction Standards. Principle of Symmetry. Due Legislative Process.
Sumário: Introdução. 1. Intervenção Federal. 2. Lei Orgânica Municipal. 3. Processo Legislativo. 4. Impossibilidade de emenda à Lei Orgânica Municipal em Municípios cujo Estado está sob intervenção federal: interpretação ou engessamento?. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Em 16 de fevereiro de 2018, por meio do Decreto nº 9.288/2018, fora decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública, com vigência até 31 de dezembro de 2018.
O Estado do Rio de Janeiro conta com 92 (noventa e dois) Municípios, e com o decreto de intervenção federal no respectivo Estado surge a dúvida se as Leis Orgânicas desses 92 (noventa e dois) Municípios poderiam sofrer Emendas – ainda que não haja nelas previsão expressa sobre o tema.
Desse modo, objetiva-se, de forma explicativa e breve, trazer o conceito dos temas que podem ajudar a responder essa questão – intervenção federal, Lei Orgânica Municipal e Processo Legislativo -, e, ao fim, mais detidamente, expor nossa opinião acerca do caso em tela, bem como os possíveis questionamentos sobre essa posição.
O presente artigo se atém a analisar somente as Leis Orgânicas Municipais tendo em vista a divergência acerca da natureza jurídica das mesmas – se seriam consideradas Constituições como as dos Estados ou não. Isso se deve principalmente ao fato de 23 (vinte e três) das 26 (vinte e seis) Constituições Estaduais e a Lei Orgânica Distrital – a única reconhecidamente com status de Constituição Estadual -, preverem em seus textos que suas cartas não podem ser objeto de Emenda no período de intervenção federal.
Ao mesmo tempo em que seria tarefa hercúlea checar se todas as Leis Orgânicas Municipais dos mais de 5.000 (cinco mil) Municípios brasileiros dispõem de igual dispositivo jurídico, entendemos que, em decorrência do princípio da simetria e da reprodução obrigatória do Processo Legislativo, seria desnecessária referida previsão normativa para que se defenda a impossibilidade de Emenda à Lei Orgânica Municipal em Estado sob vigência de intervenção federal, como será abordado adiante.
1.Intervenção Federal
A intervenção federal encontra previsão nos artigos 34 a 36 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), in verbis:
“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I – manter a integridade nacional; II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando: I – deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; II – não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) IV – o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.
Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: I – no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário; II – no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral; III – de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) § 1º O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas. § 2º Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembléia Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas. § 3º Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade. § 4º Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.”
Como leciona Flávia Bahia (2011, p.363), a intervenção federal possui natureza político-administrativa, sem ser, no entanto, completamente discricionária, haja vista que o Chefe do Executivo só poderá decretar a intervenção nas hipóteses previstas na Constituição – que são hipóteses taxativas.
Segundo Bahia (2011, p.363/364): “O princípio que norteia a intervenção é o da não intervenção, pois ela é a antítese da autonomia, tendo em vista que afasta momentaneamente a atuação autônoma do Estado, Distrito Federal ou Município. Seu objetivo é proteger a estrutura federativa contra os abusos e os atos das ordenações jurídicas parciais que contrariem as normas constitucionais presentes nos arts. 34 e 35 da CF/1988. Visa a preservar a soberania do Estado Federal, sendo, portanto, uma medida política de exceção, que poderá restringir temporariamente qualquer um dos poderes do ente federativo, sendo possível ser realizada no Executivo, no Legislativo e ainda no Judiciário.”.
No caso da intervenção federal, a mesma só pode ser decretada pelo Presidente da República, e só poderá recair sobre Estados, Distrito-Federal ou Municípios localizados em Território-Federal (não é possível que haja intervenção federal em Município integrante de Estado-membro).
Por ser medida excepcional que interrompe a autonomia da entidade federada que sofre a intervenção, e, visando à preservação da rigidez constitucional, o art. 60, §1º, da CRFB/88 traz, além do estado de defesa e do estado de sítio, a vigência de intervenção federal como limitação circunstancial à Emenda da Constituição: “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…) § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.”.
Assim, devido ao fato de a decretação de intervenção federal representar um momento de exceção do Estado, a limitação à reforma do texto constitucional visa garantir sua proteção contra possíveis alterações descabidas que possam afrontar a normalidade constitucional.
Desde a promulgação da Carta de 1988, esta é primeira vez que se decreta a intervenção federal em um Estado-membro (ainda que, no caso do Estado do Rio de Janeiro, a decretação de intervenção seja restrita à área de segurança pública).
Deve-se esclarecer que a intervenção federal ora vigente não se confunde com o que fora chamado de intervenção federal no Município do Rio de Janeiro em 2005, quando, por meio do Decreto nº 5.392/05, fora declarado estado de calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro, passando alguns Hospitais Municipais para a gestão Federal. Conforme o disposto no art. 35 da CRFB, a União não pode intervir diretamente nos Municípios de Estados-membros. Logo, a expressão cunhada para retratar esse episódio fora usada erroneamente, como se observa do julgamento pelo STF do Mandado de Segurança 25.295-2 DF, que concedeu a ordem para os Hospitais Municipais retornarem para a gestão e administração do Município do Rio de Janeiro.
Assim, devido ao ineditismo da medida, e, a despeito da limitação à área de segurança pública da intervenção federal ora vigente no Estado do Rio de Janeiro, questiona-se se a proibição de Emenda à Constituição na vigência de intervenção federal prevista no art. 60, §1º, da CRFB/88 afeta também às Leis Orgânicas Municipais.
Para isso, faz-se necessário entender um pouco do que vem a ser a Lei Orgânica Municipal.
2.Lei Orgânica Municipal
Embora haja correntes doutrinárias diversas no que tange a afirmar se os Municípios podem ou não serem considerados entidades integrantes da Federação brasileira, fato é que dispõe o art. 1º, caput, da CRFB/88: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos(…)”, e em seu art.18, caput, dispõe que: “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”.
Assim sendo, os Municípios como entes autônomos possuem capacidade de se auto-organizar, autolegislar, autogovernar e auto-administrar. Nesta seara, a auto-organização municipal ocorre por meio da Lei Orgânica Municipal (LOM) que, de acordo com o art. 29, caput da CRFB/88, é a lei que rege o Município, e deve atender aos princípios insculpidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual: “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos (…)”.
Há, porém, divergência no que tange à consideração das Leis Orgânicas Municipais como Constituições (tal como as Constituições Estaduais[2]) e consequentemente em como se aplicaria o Poder Constituinte Decorrente, haja vista a necessidade de observância dos princípios elencados na Constituição Federal e também na Constituição Estadual.
Para Marcelo Novelino (2016, p.71/72), o entendimento majoritário em relação ao Distrito Federal – haja vista exercer atividades atribuídas aos Estados e aos Municípios – é que sua Lei Orgânica Distrital, além de retirar fundamento de validade direto da Constituição da República, também teria natureza de Constituição como os demais Estados. No entanto, em relação aos Municípios, parece predominar o entendimento diverso.
Embora a Lei Orgânica Municipal seja a lei máxima dentro do território municipal, a mesma não é considerada Constituição pela doutrina majoritária. Novelino (2016, p.556) destaca, além da subordinação material, a inferioridade hierárquica da LOM frente à Constituição Estadual.
Samuel Fonteles (2015, p.122) destaca, quanto às Leis Orgânicas, que: “Ainda que a terminologia ‘Lei Orgânica’ tenha causado uma perplexidade inicial, porque leis orgânicas municipais não têm sido consideradas como constituições municipais, o certo é que tem prevalecido a concepção pela qual a Lei Orgânica Distrital é, na essência, uma Constituição Distrital, devendo ser tida como uma emanação do Poder Constituinte Decorrente. O Pleno do Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o tema: ‘A Lei Orgânica do Distrito Federal constitui instrumento normativo primário destinado a regular, de modo subordinante – e com inegável primazia sobre o ordenamento positivo distrital – a vida jurídico-administrativa e político-institucional dessa entidade integrante da Federação brasileira. Esse ato representa, dentro do sistema de direito positivo, o momento inaugural e fundante da ordem jurídica vigente no âmbito do Distrito Federal. Em uma palavra: a Lei Orgânica equivale, em força, autoridade e eficácia jurídicas, a um verdadeiro estatuto constitucional, essencialmente equiparável às Constituições promulgadas pelos Estados-membros’ (ADIn-MC 980/DF).”
Porém, embora a LOM seja dotada de autoridade dentro do Município, há divergência se ela – por majoritariamente não ser reconhecida como constituição – seguiria as mesmas orientações das Constituições Estaduais e da Constituição Federal em seu processo de alteração.
Assim sendo, faz-se necessário saber o que dispõe o Processo Legislativo Pátrio para tentar compreender referida divergência.
3.Processo Legislativo
Em obediência ao princípio da simetria (ainda que esse seja alvo de críticas), as regras referentes ao Processo Legislativo insculpidas na Constituição Federal são de reprodução obrigatória nas Constituições Estaduais (vide ADI 1546-0 SP) e nas Leis Orgânicas Municipais, e devem ser observadas, ainda que não expressas em seus textos, tendo em vista principalmente o que dispõe o art. 11, parágrafo único do ADCT e os artigos 25, caput e 29, caput da CRFB, que determinam que as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais devem atender aos princípios estabelecidos na Constituição Federal, e nesta e na Constituição Estadual, no caso dos Municípios, in verbis: “Art. 11, ADCT. Cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta. Parágrafo único. Promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual. Art. 25, CRFB. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. Art. 29, CRFB. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos (…).”.
Novelino (2016, p.73), citando Horta, define: “As denominadas normas de observância obrigatória (normas centrais ou normas de reprodução) impõem limitações condicionantes ao poder de organização dos Estados-membros e estabelecem paradigmas para a elaboração das normas das constituições estaduais, conferindo-lhes homogeneidade. A difusão dessa espécie normativa afeta a liberdade criadora do Poder Constituinte Decorrente que, não raro, limita-se a reproduzir normas da Constituição Federal (HORTA,1999)”.
Fonteles (2015, p.134), ao abordar a dupla dimensão do princípio da simetria, dispõe: “O postulado simétrico é corolário do federalismo e, de início, decorre da homogeneidade mínima imposta pela aliança. Assim, concretiza-se por intermédio das normas de reprodução obrigatória. Portanto, terá aplicação quando as normas da Constituição da República versarem acerca da tripartição das funções, das comissões parlamentares de inquérito, do processo legislativo, entre outros temas cujo exame escapa aos objetivos deste trabalho.” (Grifo Nosso).
Por todo o exposto até o presente, indaga-se se as Leis Orgânicas Municipais – que majoritariamente não são consideradas Constituições -, não devem se sujeitar ao Poder Constituinte Decorrente. No entanto, como fora visto no art. 29, da CRFB/88, as Leis Orgânicas Municipais devem atender aos princípios estabelecidos na Constituição Federal e nas Constituições dos Estados. Por isso, entende-se que por ser o Processo Legislativo norma de reprodução obrigatória e, pelo fato de as Leis Orgânicas Municipais buscarem seu fundamento de validade na Constituição Federal e na Constituição Estadual, as Leis Orgânicas Municipais também devem se submeter ao Processo Legislativo insculpido na Carta Magna, incluindo o processo de reforma da Constituição.
Nesse sentido, dispõe o STF: “EMENTA: EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL EM FACE DE CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. PROCESSO LEGISLATIVO. NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA. CRIAÇÃO DE ÓRGÃOS PÚBLICOS. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. INICIATIVA PARLAMENTAR. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. PRECEDENTES. 1. A orientação deste Tribunal é de que as normas que regem o processo legislativo previstas na Constituição Federal são de reprodução obrigatória pelas Constituições dos Estados-membros, que a elas devem obediência, sob pena de incorrerem em vício insanável de inconstitucionalidade. 2. É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que padece de inconstitucionalidade formal a lei resultante de iniciativa parlamentar que disponha sobre atribuições de órgãos públicos, haja vista que essa matéria é afeta ao Chefe do Poder Executivo. 3. Agravo regimental não provido. (STF – RE: 505476 SP, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 21/08/2012, Primeira Turma, data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJ-e-176 DIVULG 05-09-2012 PUBLIC 06-09-2012)” [Grifo Nosso]
A respeito das normas de reprodução obrigatória, dispôs o Ministro Luis Roberto Barroso, no julgamento da Rcl:17954 PR: “(…) 5.Nada impede, porém, que o Tribunal de Justiça fundamente suas conclusões em norma constitucional federal que seja ‘de reprodução obrigatória’ pelos Estados-membros. Assim se qualificam as disposições da Carta da República que, por pré-ordenarem diretamente a organização dos Estados-membros, do Distrito Federal e/ou dos Municípios, ingressam automaticamente nas ordens jurídicas parciais editadas por esses entes federativos. Essa entrada pode ocorrer, seja pela repetição textual do texto federal, seja pelo silêncio dos constituintes locais – afinal, se sua absorção é compulsória, não há qualquer discricionariedade na sua incorporação pelo ordenamento local.” (Grifo Nosso)
No mesmo julgamento, o Ministro citou o seguinte precedente: “AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL CONTESTADA EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. NORMA DE REPETIÇÃO OBRIGATÓRIA. OMISSÃO DA CONSTITUIÇÃO MARANHENSE. A omissão da Constituição Estadual não constitui óbice a que o Tribunal de Justiça local julgue a ação direta de inconstitucionalidade contra Lei Municipal que cria cargos em comissão em confronto com o artigo 37, V, da Constituição do Brasil, norma de reprodução obrigatória. Agravo regimental provido. (RE 598.016 AgR/MA, Rel. Min. Eros Grau)” [Grifo Nosso]
Observa-se, portanto, que o Processo Legislativo, em decorrência do princípio da simetria, é norma de reprodução obrigatória nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais.
4.Impossibilidade de emenda à Lei Orgânica Municipal em Municípios cujo Estado está sob Intervenção Federal: interpretação ou engessamento?
Tendo em vista o exposto no item anterior, e, pelo fato de a subseção que trata da Emenda à Constituição pertencer ao Título IV (Da organização dos Poderes), Capítulo I (Poder Legislativo), Seção VIII (Do Processo Legislativo) da CRFB/88, entendemos que as normas Constitucionais referentes à Emenda à Constituição sejam de reprodução obrigatória nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, ainda que não expressas, como já defendido pelo STF.
Se a intervenção federal ocorre em determinado Estado da Federação, se não é possível emendar a Lei Maior da Nação; se não é possível emendar a Constituição do Estado que está sofrendo a intervenção federal, por que seria possível permitir Emenda às Leis Orgânicas dos Municípios que estão contidos nesse Estado, sofrendo assim, ainda que reflexamente, as consequências fáticas da intervenção federal?
Pode-se argumentar que tal previsão ocasionaria um engessamento dos Municípios, que têm competência para tratar de assuntos locais, próximos à comunidade. Além disso, pode-se arguir também que a intervenção federal não ocorre no Município, pois por determinação constitucional, somente os Estados-membros estão autorizados a intervir em seus Municípios.
O tema foi objeto de questão de ordem suscitada pelo Vereador do Município do Rio de Janeiro, Cesar Maia, na votação da Emenda à Lei Orgânica Municipal nº 32/2016, formulada na 38ª sessão ordinária em 23 de maio de 2018, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ocasião em que o mesmo solicitou à Presidência e à Mesa da Câmara Municipal que encaminhassem questão de ordem à Procuradoria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro sobre a possibilidade de a LOM-RJ ser emendada naquele período, haja vista que o Estado do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal desde fevereiro. O Vereador alegou que a interpretação conferida em alguns Municípios é a de que a LOM não pode ser emendada em vigência de intervenção federal, e por isso tinha dúvidas se o Projeto de Emenda à Lei Orgânica em questão poderia ser votado num regime de intervenção.
Na mesma sessão, o Vereador Davi Miranda pediu a palavra para ler o que dizia ser um parecer – sem identificar sua autoria -, em que se defendia a possibilidade de a LOM ser emendada quando da vigência de intervenção federal.
Tendo em vista a questão de ordem suscitada pelo Vereador Cesar Maia, a Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro emitiu o parecer nº 03/2018 – JLGMB, aduzindo que quando da análise dos dispositivos legais concernentes à emenda no art. 60, §1º, da CRFB; art. 111, §3º, da CERJ (“Art. 111 – A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: […] § 3º. A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.”) e art. 68, §1º, da LOM-RJ (“Art. 68 – A Lei Orgânica poderá ser emendada mediante proposta: […] § 1º – A Lei Orgânica não poderá ser emendada na vigência de intervenção estadual, de estado de defesa ou de estado de sítio.”), em nenhum deles está literalmente expressa a impossibilidade de emenda à LOM quando da vigência de intervenção federal, o que, segundo a PGCMRJ, afastaria de plano uma interpretação literal nesse sentido, defendendo em seu parecer que a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro não ensejaria qualquer consequência jurídica ao processo legislativo do Município do Rio de Janeiro.
No entanto, no plano fático, territorial, a tendência é que, existindo intervenção federal em um Estado, de uma maneira ou outra essa refletirá também nos Municípios – como a exemplo da intervenção federal no Rio de Janeiro, em que as ações de segurança pública com o aparato de tropas Federais e militares deveria se estender por todo o território do Estado, assim, em todos os Municípios do Estado, para pôr termo ao comprometimento da ordem pública e restabelecer a segurança à população.
Nesse sentido, por meio da interpretação literal do art. 60, §1º da CRFB/88, e, levando em consideração a reprodução obrigatória do Processo Legislativo nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, esposamos a tese de que as Leis Orgânicas Municipais dos Municípios cujo Estado está sob vigência de intervenção federal não podem ser emendadas, sob pena de afronta direta ao dispositivo constitucional.
Diante do exposto, e das considerações elencadas, acreditamos ser a interpretação literal do art. 60, §1º, da CRFB a decisão mais acertada quanto ao tema da intervenção federal. Defendemos assim a tese de que na vigência de intervenção federal não se pode emendar a Constituição Federal, a Constituição do Estado que está sofrendo a intervenção, nem as Leis Orgânicas dos Municípios desse Estado.
Salienta-se ainda que o mesmo raciocínio não se aplica aos outros Estados nem Municípios da Federação que não estão sob o crivo da intervenção federal, pois além de a mesma ser medida de extrema exceção, o decreto interventivo deve especificar sua amplitude (art. 36, §1º, da CRFB/88), sendo assim, seria temerária interpretação extensiva para além do Estado para qual fora editado referido Decreto. Caso contrário, nessa hipótese sim estaríamos diante de um engessamento de Estados e Municípios.
Da mesma forma, pela literalidade do art. 60, §1º, da CRFB/88, a contrario sensu, entendemos que esse raciocínio não se aplica quando da intervenção dos Estados nos Municípios, pois a Constituição Federal só proíbe a emenda quando da ocorrência de intervenção federal, não dispondo nada sobre intervenção estadual, devendo nesse caso serem observadas a Constituição Estadual e respectivas Leis Orgânicas – sendo esse um estudo para outro artigo.
Conclusão
Com tudo o que fora exposto, defendemos a impossibilidade de Emenda às Leis Orgânicas Municipais dos Municípios cujo Estado sofre intervenção federal.
Por ser um tema que carece de doutrina e jurisprudência face seu ineditismo pós Constituição de 1988 (após vasta pesquisa sobre esse tema em específico, só logramos êxito em encontrar um artigo, de autoria de André Luiz Maluf, que esposa o mesmo entendimento, e nenhuma jurisprudência sobre o caso), entendemos ser válida a discussão sobre a possibilidade ou não de Emenda à Lei Orgânica Municipal em Municípios cujo Estado sofre Intervenção Federal.
O presente artigo fora 90% escrito no mês de novembro/2018, e quando de sua finalização, no início do mês de dezembro/2018, o então presidente Michel Temer, pela segunda vez em 10 (dez) meses, decretou intervenção federal no Estado de Roraima, até 31/12/2018, por meio do Decreto nº 9.602/2018.
Referido decreto, diferentemente do caso do Estado do Rio de Janeiro, dispõe que essa intervenção se estende por todo o Poder Executivo do Estado de Roraima, não se restringindo apenas à área de segurança pública – embora também tenha por objetivo pôr termo à grave comprometimento da ordem pública. Nas palavras do presidente, a medida fora tomada em consenso com a então Governadora do Estado, Suely Campos, sendo a única forma de repasse de recursos da União para o Estado, haja vista o caos que o Estado vem enfrentado desde o início da migração de venezuelanos, e o colapso no sistema prisional e nas contas públicas do Estado que culminou na greve de vários setores do funcionalismo público por falta de pagamento.
Objetiva-se com este artigo suscitar a discussão do presente tema tangenciado pela intervenção federal. Terminávamos dizendo que claramente não se esperava que no futuro do Brasil houvesse uma nova intervenção federal, no entanto, não se imaginava que após 30 anos da CRFB/88, em 10 meses o Brasil presenciasse a decretação de duas intervenções federais.
Esses eventos demonstram a importância do estudo do tema da intervenção federal, e a pertinência da especificidade do presente artigo para que se construam e pacifiquem interpretações acerca da possibilidade (ou não) de emenda às Leis Orgânicas Municipais de Municípios cujo Estado sofre intervenção federal.
Ainda assim, continuamos a esperar que no futuro do Brasil não seja necessário que se decretem novas intervenções federais, mas, se houver, entendemos ser a interpretação adotada no presente artigo a mais adequada ao caso.
No mesmo sentido, esperamos contribuir para o debate doutrinário acerca da interpretação legislativa do caso em comento, que poderá ser confirmado ou não pelo Judiciário quando de sua provocação sobre o tema.
*Agradeço à Dra. Beatriz Sousa Gonçalves, pelos questionamentos jurídicos e debates sobre o tema; à Ana Carolina Nunes e ao Dr. Carlos Otávio da Conceição pela preciosa revisão crítica do texto.
Referências
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________. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (ADI) 1546-0 SP, Disponível em:<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=385539> Acesso em: 03/11/2018.
________. ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS da CRFB/1988 (adct). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#adct >Acesso em 03. nov de 2018.
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[1] Advogada. Graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale em convênio com a Universidade Cândido Mendes (UCAM). Atualmente Assessora Jurídica na Procuradoria Geral do Município de Duque de Caxias – RJ.
[2](…) Lei Orgânica do Distrito Federal. (…) A Lei Orgânica tem força e autoridade equivalentes a um verdadeiro estatuto constitucional, podendo ser equiparada às Constituições promulgadas pelos Estados-membros, como assentado no julgamento que deferiu a medida cautelar nesta ação direta.[ADI 980, rel. min. Menezes Direito, j. 6-3-2008, P, DJE de 1-8-2008.]
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