1. Considerações introdutórias[1]
O laudo pericial é a documentação escrita da atividade desenvolvida por perito, “geralmente no âmbito de um processo, e como órgão auxiliar da administração da justiça, de que se deve socorrer o juiz, na instrução da causa, em prol da formação de seu convencimento, ‘quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico (art.145 do Código Processual Civil)’. O perito apresentará o resultado dos exames, pesquisas, investigações e diligências que realizar, em instrumento que tem o nomen iuris de laudo. O laudo é a exposição da perícia realizada e seu resultado. Nele devem vir as conclusões do perito sobre a perícia levada a efeito, precedidas, como é óbvio, da respectiva fundamentação”[2].
A produção de laudos periciais, no sistema judicial pátrio, em sua dimensão distorcida, vem causando imensos prejuízos ao erário ou às partes de um modo geral, gerando fraudes ou erros grosseiros em detrimento dos jurisdicionados, manchando, em qualquer caso, a própria Administração da Justiça[3]. Verifica-se uma pluriofensividade dessa espécie de conduta transgressora, seja por omissão, seja por ação, porque, a um só tempo, ela agride direitos individuais das partes e direitos difusos da sociedade, todos relacionados ao ideário de bom funcionamento do sistema judicial.
O presente trabalho propõe-se, pois, a refletir sobre a responsabilidade de peritos e juízes nesses ilícitos funcionais, à luz da Lei Federal número 8.429/92, Lei Geral de Improbidade Administrativa, como a designo, em face à sua abrangência. Essa Lei constitui-se em apenas um dos instrumentos de controle repressivo, mas perpassa a própria ilicitude do ato e seus possíveis desdobramentos, sendo um instrumento potencialmente eficaz para coibir o mau exercício das funções públicas e o chamado desvio de poder alçado à categoria da improbidade, diante das penalidades que comina aos agentes públicos. Não me ocuparei nem da responsabilidade penal, nem da civil, nem da chamada responsabilidade disciplinar, embora tais categorias devam, não raro, convergir com a tipologia do ato de improbidade administrativa, o qual se situa num plano intermediário. Nem toda improbidade será um crime, mas toda improbidade haverá de ser, no caso em exame, também uma infração disciplinar e um ilícito gerador de responsabilidade civil, eis a premissa adotada.
2. Ato ímprobo e o desvio de poder valorado
Tratar de improbidade administrativa, no Direito brasileiro, significa refletir sobre atos de corrupção lato sensu[4] e, também, sobre atos de grave ineficiência funcional, ambos interconectando-se no plano da imoralidade administrativa, dentro do círculo restrito de ética institucional que domina o setor público[5]. A improbidade é uma espécie de má gestão pública lato sensu, uma imoralidade administrativa qualificada[6]. O ato ímprobo configura-se através de um processo de adequação típica, que carece da integração da Lei Geral de Improbidade com normativas setoriais aplicáveis à espécie, dentro de um esquema de valoração mais profunda da conduta proibida. A improbidade é uma patologia de gravidade ímpar no contexto do Direito Administrativo Sancionador, eis que suscita reações estatais bastante severas; por isso mesmo, sua punição, no devido processo legal que lhe cabe, exige obediência a regras e princípios de Direito Punitivo, marcadamente de Direito Administrativo Sancionador[7].
O desvio de poder é uma das figuras centrais de improbidade, alcançando todo e qualquer bloco normativo previsto no bojo da Lei 8.429/92, tanto nas cláusulas gerais, quanto na casuística. A formatação do desvio de poder, na modalidade ímproba, pode ocorrer no seio de tipos que sancionam enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou pura agressão às normas, tal como se percebe nos arts.9o, 10 e 11 da Lei Geral de Improbidade. A constatação da improbidade depende da valoração que recai sobre o desvio de poder e a nota de gravidade perceptível[8].
O que denota, normalmente, o desvio de poder, na improbidade revestida de maior sofisticação, é a aparência de institucionalidade conferida ao ato abusivo, logo desmoralizada pela verificação do substrato normativo incidente; não obstante, o contraste apenas aumente a lesividade do comportamento transgressor. A institucionalidade resulta, nesse caso, da costumeira presunção de legalidade, inerente ao ato pericial, no que concerne à forma e aos deveres públicos subjacentes, em face à sua importância no sistema, circunstância essa aplicável ao ato jurisdicional. Há níveis distintos de institucionalidade de um desvio de poder, mas a nota da transgressão, mascarada por algum nível de institucionalidade ou fachada de legalidade, está invariavelmente presente nessa patologia, que se singulariza pelo status camaleônico de não pretender parecer o que realmente é[9].
Há muitos tipos de desvio de poder, eis que se trata de uma categoria historicamente relevante na própria formação do Direito Administrativo contemporâneo, na medida em que interfere no reconhecimento da chamada ilegalidade substancial, além de emprestar conteúdo à imoralidade e pessoalidade administrativas. A valoração do desvio de poder, pois, diante de seus virtuais conteúdos, integra-se num processo interpretativo complexo, que há de levar em conta os valores, as normas e os atores envolvidos. Nem todo desvio de poder é considerado improbidade administrativa, mas essa configura, normalmente, uma modalidade de desvio de poder acentuadamente grave, nas suas formas mais agressivas.
Define-se a improbidade administrativa como uma patologia associada ao mau exercício das funções públicas, decorrente de ações ou omissões do agente competente. Trata-se do desempenho de condutas por parte de agentes públicos, em desacordo com a normativa, constitucional, infraconstitucional e, eventualmente, também administrativa stricto sensu, que preside seus atos. Improbidade é, no bojo da Lei 8.429/92, em sintonia com o art.37, par.4o, da Carta de 1988, má gestão pública lato sensu, seja por desonestidade, seja por intolerável ineficiência. A densidade das proibições e sanções, dirigidas aos ímprobos, é alcançada pela obediência ao devido processo legal, que articula a funcionalidade dos princípios da legalidade, tipicidade, culpabilidade, segurança jurídica, proporcionalidade e simetria entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Nesse cenário, a conduta proibida é previsível diante dos tipos sancionadores desenhados na Lei Geral de Improbidade, considerando-se as interfaces entre normativas inerentes às normas punitivas em branco que compõem esse verdadeiro Código Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros.
A peculiaridade do ato ímprobo é o patamar especial de gravidade que ele assume em termos de valoração sobre a normativa violada, considerando-se os preceitos previstos na Lei 8.429/92, o que justificaria, assim, determinadas sanções, com severidade mais acentuada, para coibi-lo. Essa gravidade exige interpretação em franca harmonia com o devido processo legal e a última ratio do Direito Punitivo. O ato tipificado na Lei Geral de Improbidade é um ato ilícito grave, que faz fronteira, embora dele se distinga, com o ilícito penal. Trata-se de ilícito administrativo lato sensu, e não tão-somente um ilícito extrapenal. As penas cominadas aos ímprobos são conhecidas, adentrando esfera de direitos fundamentais dos acusados, e alcançando mesmo a suspensão de seus direitos políticos, interdições de direitos e até exigindo o ressarcimento ao erário[10], quando couber.
A improbidade compreende, pois, três tipos básicos de atos detalhados em tipos sancionadores abertos, em branco, na própria Lei 8.429/92: (a) aqueles que comportam enriquecimento ilícito no exercício ou em razão das funções públicas; (b) aqueles que produzem lesão ao erário; (c) aqueles que atentam contra os princípios que presidem a Administração Pública. Qualquer dessas categorias típicas produz lesão aos princípios constitucionais que dominam a Administração Pública e às regras diretamente incidentes à matéria. Os elementos especializantes resultam do enriquecimento ilícito ou da lesão ao erário. O bloco mais geral é o da lesão às normas.
A Lei Geral de Improbidade está repleta, como referi, de normas sancionadoras em branco, que se complementam por outras regras ou princípios, a partir da integração de legislações setoriais. Daí por que a violação ao dever de probidade nunca consiste na mera agressão a princípios, mas a regras e princípios. Tampouco pode haver improbidade tão-somente a partir de agressão às regras contempladas na respectiva Lei, eis que essa se socorre de outras regras e princípios, que incidem na tutela do comportamento do agente público[11].
Sustento que essas três categorias de atos ímprobos possuem estruturas típicas diferenciadas, que podem ser configuradas como: (a) bloco do enriquecimento ilícito, que supõe condutas dolosas, costumeiramente, pela redação dos tipos e porque ninguém enriquece indevidamente de forma culposa; (b) o bloco das lesões ao erário, que, até por força de deliberação legal expressa, seja nos incisos, seja no caput, podem ser tanto dolosos quanto culposos, sendo constitucional essa previsão, alicerçada em princípio democrático[12]; (c) bloco dos comportamentos atentatórios aos princípios que governam a Administração Pública, cuja aplicação subsidiária e excepcional demanda, para a maioria da doutrina, condutas exclusivamente dolosas (já estive filiado a esse entendimento), embora haja quem entenda que subsiste a possibilidade de sancionar condutas culposas[13]. A culpa, em qualquer caso, sempre há de ser, no mínimo, grave. O dolo é o administrativo, não o penal[14].
Não é, evidentemente, toda e qualquer ilegalidade comportamental que pode configurar improbidade[15]. Ao contrário, em geral, a mera ilegalidade não adentra esse terreno mais estreito. Nem mesmo toda imoralidade administrativa traduz improbidade, o que significa dizer que a patologia aqui tratada requer uma gradação dos deveres públicos, da normativa incidente à espécie e das respostas sancionatórias cabíveis. Assim, repito, somente o processo interpretativo poderá definir, concretamente, um ato ímprobo, o que não impede o reconhecimento de pautas abstratas e objetivas para os operadores jurídicos[16].
A Lei 8.429/92 não pode ser banalizada, como tantas vezes se percebe, porque a hermenêutica que se exige para sua aplicação requer uma série de ponderações e cautelas, em obediência ao devido processo legal punitivo. Porém, tampouco resulta viável aceitar o outro extremo, vale dizer, o esvaziamento dessa legislação em relação às altas autoridades da Nação, entre as quais estão os agentes políticos. Sobre essa tendência, cabe envidar esforços para recuperar o princípio republicano, envolvendo todos os agentes públicos no ambiente probo e saudável que se pretende construir neste país. Cabe, pois, uma digressão sobre o alcance do princípio da responsabilidade em nosso sistema constitucional.
3. Princípio da responsabilidade no funcionamento do sistema judicial
O princípio da responsabilidade dos agentes públicos tem raízes constitucionais, republicanas e democráticas. Cuida-se de fixar limites ao poder daqueles que detêm competências sobre liberdades, direitos e patrimônio dos cidadãos. Agentes irresponsáveis, com imunidades absolutas, não combinam com o ideário do regime democrático ou com os valores que embasam a cultura republicana. Essa tem sido a tônica no pensamento político contemporâneo, com reflexos nas teorias constitucionais e nas teorias democráticas. A legitimidade do poder político advém, em grande medida, dos níveis de responsabilidade a que se encontra submetida a autoridade pública competente[17].
As responsabilidades, no entanto, podem ser tratadas de modo diferenciado, como têm sido historicamente, em face de prerrogativas ou garantias conferidas a certas autoridades públicas, em razão de suas importantes funções. Essas diferenciações afetam os mais variados instrumentais de responsabilização dos agentes públicos, alcançando, inclusive, a própria eficácia do sistema normativo, no qual se insere a Lei Geral de Improbidade. É necessário contextualizar a tipologia das responsabilidades dos agentes públicos, até mesmo porque as percepções jurídica e sociológica nem sempre coincidem quando do diagnóstico acerca da densidade normativa do princípio da responsabilidade[18].
Há imunidades, como as dos parlamentares[19], que se constituem freqüentemente em instrumentos de blindagem de responsabilidades, embora sejam essenciais aos regimes democráticos, na medida em que devem resguardar o exercício livre das funções, traduzindo prerrogativas da cidadania. Advogados também contam com imunidade[20] para atuar em juízo ou fora dele, no desempenho das elevadas atribuições públicas que ostentam, mas não estão imunes aos processos, tanto que não é raro se ver um advogado submetido a processo, até mesmo injusto, ao abrigo de interpretação demasiado elástica da imunidade. Altas autoridades gozam de prerrogativa de foro[21] e tal circunstância não paralisa, teoricamente, suas responsabilidades, ainda que, na prática, ela inviabilize a cobrança concreta de certos preceitos jurídicos ou éticos. Juízes e membros do Ministério Público gozam de imunidades para o desempenho de suas tarefas, o que significa dizer que contam com margens de erro juridicamente toleráveis, circunstância que vem reforçar o arcabouço da independência funcional, mas, nem por isso, são irresponsáveis perante a sociedade. É verdade que, na prática, apenas recentemente começam a surgir cobranças mais fortes no sentido de ampliar as responsabilidades das altas autoridades, incluídas aquelas das carreiras do Ministério Público e Judiciário, mas, no plano teórico-normativo, a responsabilidade existe e sempre existiu, sobretudo a partir da Carta de 1988[22].
A responsabilidade dos agentes públicos projeta-se de variadas maneiras. Não se ignora a existência de diferenças de tratamento em relação a distintas espécies de agentes públicos. Há uma tipologia de agentes públicos, dentro da qual se sobressaem os agentes políticos, dotados de autonomia e liberdade decisórias, além de estatutos jurídicos específicos[23].
O próprio controle jurisdicional dos atos estatais integra a idéia de responsabilidade do Estado perante a cidadania, incluindo sua responsabilidade patrimonial objetiva, mas não é este o objeto do presente trabalho. A responsabilidade civil lato sensu também vem à tona quando se cuida do princípio da responsabilidade. Intentam-se apurar prejuízos e deveres de ressarcimento, a partir de atos ilícitos praticados por agentes públicos, seja no bojo de ações de regresso, seja no que concerne às ações diretas. Hipóteses de dolo ou culpa autorizam essa responsabilidade do funcionário, por previsão expressa na Carta Magna, mas não cuido dessas situações no presente momento[24].
De que tipo de responsabilidade se pretende tratar aqui? A responsabilidade objeto da presente análise situa-se no campo do Direito Punitivo, mas é uma especialização funcional do sistema. No plano sancionatório stricto sensu, existe a esfera penal, na qual se desenrolam processos com vistas à imposição de sanções criminais, sendo raro, não obstante, que altos funcionários públicos venham a cumprir penas privativas de liberdade. Dessa responsabilidade também não cuidarei agora, embora tenha uma afinidade teórica com o Direito Penal, no exame de suas conexões e complexas interfaces com outros ramos jurídicos. Há a esfera administrativa stricto sensu, em que o Direito Disciplinar encontra seu locus, mas, nesse caso, também existem notáveis lacunas em relação aos funcionários dos mais elevados escalões, porque são eles que constituem as últimas instâncias dessas esferas. Além disso, o poder disciplinar do Estado, despido de tradição de juridicidade plena, tem-se prestado a distorções, abusos e omissões emblemáticas, donde a fragilidade dessa importantíssima instância de controle. Penso que haverá lugar adequado para o exame dessas esferas de responsabilização dos agentes públicos, embora o disciplinar seja espécie do gênero Direito Administrativo Sancionador e venha a ser afetado, seguramente, por uma condenação judicial lançada contra ato ímprobo[25].
Do ponto de vista abstrato, a Lei 8.429/92 atinge todos os agentes públicos brasileiros, com suas diversificadas modalidades. A possibilidade de imputação de ato de improbidade aos agentes públicos decorre do próprio Estado Democrático de Direito. Cuido, aqui, do campo da improbidade, no qual há uma pretensão punitiva judicializada, com perspectivas de severas sanções, exposto ao Direito Administrativo Sancionador que regula esse poder estatal. Sobre essa Lei, à míngua de estatísticas nacionais, não se tem um balanço correto, mas é possível sinalizar uma promissora vontade política do Ministério Público brasileiro no enfrentamento do problema da má gestão pública, com ajuizamento de ações de repercussão, multiplicação de investigações e investidas legítimas contra altas autoridades da Nação, apesar da dispersão de foco e de energias e do déficit de unidade institucional, características que têm fragilizado, de algum modo, essa importante instância. É dessa Lei que pretendo cuidar, com as definições já expostas, na esteira de uma larga dedicação ao estudo da matéria, por vislumbrá-la, ainda, com numerosas potencialidades inexploradas, especialmente em segmentos infensos à densidade jurídica do princípio da responsabilidade[26].
4. Laudo judicial e mau exercício da função pública
Não houvesse amplo espaço à impunidade em determinados segmentos, talvez fosse irrelevante aduzir que a confecção de laudos periciais traduz exercício de função pública, a qual resulta submetida aos princípios constitucionais que presidem a Administração Pública. Esta Administração, mencionada no art.37, caput, da Magna Carta, é não apenas aquela referente ao Poder Executivo, mas também a de qualquer dos Poderes da República. Sempre que houver função pública em jogo, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, entram em cena.
Além de traduzir exercício de função pública, o laudo traduz ato essencial à função jurisdicional, quando reputado necessário. Uma premissa importante diz respeito à essencialidade do laudo pericial à liberdade intelectual e cognitiva do juiz e, em última instância, à sua independência funcional e ao predicado de imparcialidade. Um juiz auxiliado por perito inidôneo, seja em razão de crônica ineficiência, seja por força de parcialidade, não tem independência para decidir. A responsabilidade do perito é tão alta quanto a do juiz, em razão dessa proximidade das respectivas funções. Os princípios e regras que dominam a atividade pericial partem de um substrato axiológico alimentado pela essencialidade do perito à Administração do sistema judicial[27].
Os peritos judiciais assumem voluntariamente elevados deveres públicos, assimilando os rigores de uma relação de sujeição especial mantida com o Estado. A propósito, recorda DINAMARCO, dizem-se auxiliares eventuais do Poder Judiciário os sujeitos que, “sem pertencerem aos quadros da Justiça, são chamados a colaborar com esta, caso a caso (peritos, avaliadores, intérpretes, etc.). Não têm vínculo permanente com o Poder Judiciário e não são sequer obrigados a aceitar os encargos que o juiz lhes comete; mas, uma vez aceito o encargo, fica o auxiliar eventual subordinado ao juiz no processo e adstrito às exigências deste e da lei quanto à lisura e tempestividade do serviço de que é incumbido. Alguns deles são profissionais liberais, servindo como peritos ou arbitradores no processo civil em geral, ou como juizes leigos, árbitros ou conciliadores perante os juizados especiais cíveis; há também os auxiliares eventuais que não necessitam de formação acadêmica, como os depositários particulares, avaliadores ou intérpretes. Tais são os auxiliares de encargo judicial, que sempre são pessoas físicas”. Daí por que o fato de um perito ser um profissional que não integra os quadros do Judiciário não o exime das elevadas obrigações públicas, inclusive da obediência ao dever de probidade administrativa que emerge tanto da Carta Magna (art.37, par.4o), quanto da legislação infraconstitucional (Lei 8.429/92). Ao contrário, o perito, diz o mesmo autor antes citado, “é um sujeito processual inserido no processo por escolha e nomeação do juiz em cada caso (CPC, art. 421). Daí ser um auxiliar eventual da Justiça. É indispensável para o exame de pessoas ou coisas, sempre que o fato a investigar dependa de conhecimentos técnicos especializados, dos quais o juiz não é portador (arts. 145 e 335). Daí a exigência legal de que a escolha recaia em profissionais de nível universitário (art. 145 § 1º) e a dispensa do perito em caso de insuficiência de conhecimentos técnicos ou científicos (art. 424, I). Nomeiam-se peritos, conforme o caso, portadores de conhecimentos de engenharia, economia, medicina, odontologia, contabilidade etc, – ou até mesmo de direito. Como todo sujeito processual (ainda que secundário), o perito tem deveres no processo: deveres quanto ao prazo para apresentar o laudo (arts. 146 e 421), quanto ao desempenho tecnicamente correto de seu encargo (art. 422) e, naturalmente, quanto à probidade e imparcialidade nesse desempenho (art. 422). Em caso de informações inverídicas, assim prestadas por dolo ou culpa, o perito responde civilmente perante o prejudicado, fica inabilitado por dois anos a realizar perícias em outros processos e incorre em crime de falsa perícia”[28], sem prejuízo, vale acrescer, de outras sanções cabíveis. A escolha discricionária do juiz, vale igualmente lembrar, aumenta a responsabilidade da autoridade judiciária em termos de controle da probidade, visto que o perito é pessoa da sua confiança técnica.
Na esteira do dever de probidade administrativa, adentrando a própria moralidade inscrita no art.37, caput, da Magna Carta, o legislador infraconstitucional estatuiu, no art. 146 do Código Processual Civil, que “o perito tem o dever de cumprir o ofício, no prazo que Ihe assina a lei, empregando toda a sua diligência; pode, todavia, escusar-se do encargo alegando motivo legítimo”. No art. 147, o mesmo diploma processual fixa: “O perito que, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas, responderá pelos prejuízos que causar à parte, ficará inabilitado, por 2 (dois) anos, a funcionar em outras perícias e incorrerá na sanção que a lei penal estabelecer”. Nesta última referência, o legislador não apenas abre a porta da via penal, como, implicitamente, de todo o sistema punitivo.
A sanção judicial de inabilitação, imponível diretamente pelo juiz do processo ao perito, traduz controle do mau exercício da função pública por este último e não afasta a incidência das sanções disciplinares cabíveis, no campo da tutela interna corporis do profissional, por seu órgão de classe. De outro lado, a menção à responsabilidade civil lato sensu é corolário lógico do modelo de repartição de competências, até porque envolve a perspectiva do direito individual da parte lesada, a qual pode ajuizar as ações que julgar cabíveis. Fica, pois, evidentemente, salvaguardada qualquer outra esfera punitiva legalmente habilitada a interferir e tutelar o fato ilícito, dentro de sua ótica peculiar. O ordenamento jurídico consagra mecanismos diversificados e simultâneos de tutela do bem jurídico em exame. A tutela da probidade encontra respaldo constitucional direto no art.37, par.4o, da Magna Carta, alcançando, inegavelmente, os peritos. Há uma ênfase, de qualquer sorte, na obrigatoriedade de os peritos atuarem de modo ético e imparcial. No art. 422 do CPC, se diz que o perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso. Os assistentes técnicos são de confiança da parte, não sujeitos a impedimento ou suspeição” (alterado pela L-008.455-1992).
O laudo pericial pressupõe a honestidade, imparcialidade e certos níveis básicos de preparo funcional do perito, o que envolve a obediência a regras jurídicas elementares ligadas à interdição à arbitrariedade dos funcionários públicos, motivação e transparência. Tais normas repercutem nos deveres positivos e negativos dos peritos. Trata-se de exigir desses profissionais certos deveres públicos, marcadamente aqueles relacionados à probidade administrativa, requisito geral de toda e qualquer função pública. Tanto a atuação escrupulosa quanto a diligente, em correspondência com o dever de prestar informações verídicas, podem integrar, desde que devidamente valoradas, os círculos concêntricos da moralidade e probidade administrativas[29].
Embora também gozem de prerrogativas inerentes às funções, ostentando liberdades, autonomias e consideráveis margens de erro profissional, os peritos, enquanto auxiliares do Judiciário, possuem responsabilidades por seus erros, equívocos ou transgressões, intencionais ou não. Cuida-se de agentes públicos para fins de responsabilidade, podendo incorrer, inclusive, no cometimento de crimes privativos de funcionários públicos[30].
Os atos que os peritos praticam, na realização das tarefas inerentes às funções, configuram produto do exercício de função pública e estão jungidos ao dever de probidade. Os peritos têm independência, autonomia e imparcialidade na concretização de suas funções, eis que emitem laudos técnicos, mas por isso mesmo ficam vinculados a deveres públicos imanentes à natureza das funções desempenhadas. As conclusões dos laudos não vinculam os Juízes[31], mas resultam necessariamente balizadas pelo princípio da responsabilidade de seus autores, eis que espelham valorações de conteúdo técnico, com alta relevância para o correto deslinde das matérias controvertidas. Os peritos interferem, portanto, fortemente na Administração da Justiça, ostentando imensas responsabilidades. Deles dependem, em grande medida, a liberdade intelectual e a autonomia decisória dos juízes, nas causas que reclamam perícias[32].
Não se há de imaginar que os peritos estejam imunes aos equívocos, nem se pretendem fomentar ferramentas desumanas de cobrança. Ao contrário, laudos são impugnados diariamente, assim como são desconsiderados. Nem por isso, obviamente, haverá responsabilidade pessoal dos peritos, em sendo constatado equívoco. Se é certo que ninguém pode ser automaticamente responsabilizado por ilegalidades ou equívocos funcionais, sem uma gradação correta da ilicitude do ato, também é inegável que transgressões escancaradamente graves, teratológicas, absurdas, irrazoáveis, até mesmo com aparência de má fé, podem ensejar suporte para respostas punitivas ou ressarcitórias. A autonomia dos peritos repousa nos estreitos limites da Ciência a que estão submetidos, ao abrigo do dever de fundamentação de seus atos, circunstância aplicável, mutatis mutandis, aos juízes e outras autoridades semelhantes.
Se não houver controle sobre os laudos abusivos, cabe então cogitar a responsabilidade dos juízes. Em última instância, sempre caberia cogitar a responsabilidade do próprio Estado. Não há dúvida de que juízes respondem, em tese, por atos de improbidade, em face de comportamentos funcionais ilícitos. Esta assertiva está de acordo com o pensamento exposto por segmentos representativos de importantes instituições democráticas, que se posicionam contrariamente à restrição do alcance da Lei 8.429/92 aos agentes públicos comuns, dela excluindo os agentes políticos. Nesse caso, tanto a Associação Nacional dos Procuradores da República, quanto a Associação Nacional do Ministério Público ou a Associação dos Magistrados Brasileiros sustentam a inviabilidade da tese de se restringir o alcance da Lei Geral de Improbidade, porquanto isonomia e a razoabilidade seriam feridas ao se retirarem os agentes políticos do alcance dessa normativa republicana. Ademais, a responsabilidade dos juízes é um dos pilares mais antigos da civilização[33].
E por qual razão os juízes, tanto quanto os membros do Ministério Público e outros agentes políticos, estão submissos à normativa da Lei 8.429/92? Ora, como sustento desde 1997[34], essa legislação cuida de atos de todo e qualquer Poder da República. Não há imunidades. Atos administrativos, jurisdicionais ou legislativos demandam critérios técnicos de correto exercício das funções públicas típicas. O mau exercício das funções acarreta abertura às responsabilidades e às sanções correspondentes. Uma decisão judicial teratológica, absurda, francamente arbitrária, desprovida de fundamentos elementares, cerceando, restringindo ou simplesmente afetando direitos, remete ao problema de má administração da justiça[35]. O dever de probidade diz respeito ao exercício da função administrativa, legislativa e jurisdicional, dentro de padrões corretos e minimamente ajustados às regras institucionais vigentes. Qualquer dessas funções há de ser exercida com probidade administrativa.
4.1. Lealdade institucional no cumprimento dos deveres de ofício
Observada a submissão de todos os agentes públicos ao princípio constitucional da responsabilidade, num ambiente republicano, bem assim, especificamente, aos cânones da Lei 8.429/92, cabe examinar quais os deveres públicos fundamentais que hão de ser violados para configuração de um ato ímprobo. Nesse caso, forçoso reconhecer que um amplo espectro de deveres pode ser cobrado dos operadores jurídicos e dos funcionários públicos lato sensu. Para fins de enquadramento na categoria da improbidade administrativa, não obstante, o enfoque há de ser concentrado, situando-se os deveres dos peritos e dos juízes no plano da lealdade institucional e, na seqüência, em suas dimensões fundamentais: (a) dever de honestidade e (b) dever de eficiência. Tais deveres estão interligados e, no contexto adequado, podem, inclusive, ser cobrados simultaneamente de funcionários públicos cuja ineficiência apareça como suporte ou fachada da desonestidade. A valoração desses deveres, no bojo da Lei Geral de Improbidade, é que acarreta o suporte fático e normativo para desencadeamento de investigações e processo sancionador pela prática de atos ímprobos, os quais estão conectados ao dever de probidade administrativa, o núcleo desta reflexão.
Lealdade, segundo corretamente anotam os comentaristas do vernáculo jurídico, vem do latim legalitas, é dizer, o mesmo que fidelitas, esboçando as noções de confiança, sinceridade e conformidade com as leis. No plano ético, a lealdade expressa o ideário de coerência do indivíduo consigo mesmo; no plano jurídico, cuida-se da adequação à ordem estabelecida, externa, social ou política. Opõe-se a lealdade à falsidade. Porém, no terreno jurídico, o dever de lealdade está imanente ao princípio da boa fé. No campo do Direito Administrativo, é dever básico dos funcionários públicos obedecer à lealdade. Equivale à fidelidade. Define-se a fidelidade como a vontade de agir constantemente no interesse da administração e de lhe evitar, tanto quanto dependa do sujeito, todo dano, perigo ou diminuição do prestígio. É a obrigação de operar no interesse exclusivo da administração. Todo empregado deve lealdade ao patrão que lhe contratou. O funcionário que desempenha as funções superficialmente, passageiramente e sem energia, age contra o dever, mesmo quando executa o que lhe é ordenado[36].
O dever de lealdade não guarda nenhuma conexão necessária com atitudes transgressoras intencionais, visto que depende, estruturalmente, dos deveres exigíveis dos funcionários públicos. O atendimento aos interesses públicos ou gerais pressupõe, aliás, uma série de comportamentos que transcendem os estreitos limites das infrações dolosas. A lealdade expressa um ideário que perpassa tanto os mais variados níveis de honestidade quanto, em medida pouco explorada, níveis significativos de eficiência funcional. Observe-se que a honestidade e a eficiência relacionam-se intimamente com o dever de lealdade institucional, o qual encontra previsão expressa somente no art.11, caput, da Lei Geral de Improbidade. Entretanto, é no Direito Administrativo francês, na palavra de Maurice HAURIOU, ao tratar da moralidade administrativa, que a deslealdade institucional tem lugar, a começos do século XX, como desvio funcional passível de censura jurisdicional[37].
Nenhuma dúvida pode haver no sentido de que a lealdade expressa e sempre expressou a honra na função pública e seu oposto significa precisamente uma espécie de desonra, a traição, numa medida específica. Pode-se dizer que a lealdade é um dever imanente ao princípio de moralidade administrativa (art.37, caput, CF), traduzindo uma série de limites aos agentes públicos. Embora só esteja implícito na CF, e explícito na Lei 8.429/92, esse é o dever fundamental dos agentes públicos, no universo da moral administrativa e, mais concretamente, da Lei Geral de Improbidade.
O dever de lealdade institucional traduz a idéia de confiança, inserida no regime democrático, que baliza as relações entre eleitores e escolhidos, administradores públicos e administrados, funcionários públicos em geral e os destinatários de suas decisões, jurisdicionados e juízes, governantes e governados. Quebrada a confiança, pelo rompimento do dever de lealdade institucional, existe um grau mais elevado de violação da moral administrativa, tendo em conta a ponderação dos deveres em jogo[38].
Quando se faz presente a inobservância do dever de lealdade institucional, a partir da vulneração do conjunto de normas que o compõem, é certo que se pode constatar um rompimento de regras sensivelmente valorizadas. O dever de lealdade institucional traduz a observância obrigatória de uma série de normas essenciais ao vínculo que o agente mantém com o setor público. A essencialidade das normas ao vínculo institucional traduz sua importância superior no universo axiológico. Essas normas se inserem no círculo da moralidade administrativa, obrigatoriamente, numa dimensão específica e concentrada. A agressão perpetrada contra essas normas nucleares dá ensejo ao enquadramento do sujeito na categoria de desleal, o que pode ocorrer tanto pela via dolosa, quanto pela culposa.
As atividades periciais, nesse contexto, tal como ocorre em alguns Estados da federação, ao menos no plano normativo, estão regradas administrativamente por uma série de deveres que compõem o substrato da lealdade institucional, deveres que podem ser agredidos e desrespeitados tanto culposa quanto dolosamente. Cuida-se de deveres imanentes ao princípio da moralidade administrativa[39].
A deslealdade institucional resta aberta, então, tanto às transgressões intencionais quanto involuntárias. Com efeito, nesta valoração peculiar de um campo mais restrito da moral administrativa, os elementos que integram o esquema conceitual do dever de lealdade institucional são o dolo e a culpa, além da objetiva percepção da importância maior dos deveres públicos ínsitos à lealdade do agente para com o setor público. Note-se que os Códigos Éticos, no campo profissional, costumam englobar, com paridade de tratamento, deveres de diligência e de integridade, porque ambas categorias integram o ideário ético de uma atividade comprometida com superiores valores da coletividade[40].
Nas atitudes dolosas, o agente trai o dever de lealdade institucional, incorrendo em uma vulneração de normas de moral administrativa. Nas atitudes culposas, o agente trai, de igual modo, a lealdade institucional, que lhe exige prudência e cuidado no trato de interesses que não lhe pertencem, porque o setor público, dentro de certos limites, não tolera a incompetência administrativa e esta é uma modalidade de deslealdade e de imoralidade administrativa[41].
É necessário analisar os deveres de honestidade e eficiência, aplicáveis tanto aos peritos quanto aos juízes, no contexto da lealdade institucional, para culminar no reconhecimento do suporte à improbidade. A ilegalidade, com efeito, configurada como deslealdade institucional, pode conduzir o agente público à responsabilidade por ato ímprobo, diante de um iter que pressupõe pautas objetivas de violência à normatividade da Lei 8.429/92 e regras subjacentes. O desvio de poder não se perfaz apenas por comportamentos dolosos, mas também por condutas tipicamente culposas ou situadas nas fronteiras de um dolo penal e administrativo[42]. O mais comum é que tais categorias ganhem enorme flexibilidade e assumam uma dinâmica veloz na distribuição do ônus probatório e na previsão normativa correspondente. Daí por que, no caso em exame, as condutas dos peritos podem oscilar, sutilmente, entre categorias como a culpa, a culpa grave, o erro grosseiro, a teratologia ou o dolo administrativo, nas suas variadas modalidades; por isso, vê-se claramente a complexidade dos conteúdos potenciais do conceito de perito inidôneo, que perpassa regras, princípios e valores diversos na legislação especializada do Código Processual Civil[43].
O dolo, que pode marcar o desvio de poder, não é, necessariamente, marcado por uma intencionalidade voltada ao enriquecimento ilícito, à persecução de interesses privados; pode também se constituir em uma intenção que recaia sobre os elementos da figura típica. Essa possui amplitude variável, comportando desvios calcados na inobservância deliberada de deveres de ofício, inclusive com a persecução de interesse público diverso daquele previsto na regra de competência ou com o completo desprezo pelas finalidades públicas que norteiam as funções. A deslealdade institucional é o eixo central dessas categorias cinzentas, que alcançam desde as intenções mais nefastas e reprováveis, até outros tipos de parcialidade e de inclinações pessoais menos evidentes; não obstante, todas as condutas aqui delineadas, a partir de um certo estágio, têm em comum o vício da quebra de confiança do agente público para com o Estado, alicerçado na violação de deveres constitucionais, legais e administrativos. A divisão aqui desenhada, repartindo duas grandes categorias, como a honestidade e a eficiência, tem caráter puramente didático, porque, em realidade, tais deveres se tornam compreensíveis no contexto de um somatório de deveres públicos. Descabe, neste espaço, traçar as bases de uma teoria dos deveres públicos, mas é possível registrar que a honestidade e a eficiência constituem pilares fundamentais da probidade administrativa[44].
4.1.1. Dever de honestidade
O histórico enciclopédico sobre o conceito de honesto é elucidativo: “Do latim honestus, análogo de honoratus – honrado, cujo conceito originário é honor – honra. Honesto é quem age com honra, equilíbrio moral. Trata-se assim de conceito ético-moral, que se projeta na interação social, assumindo a forma de valor jurídico, o qual foi ilustrado historicamente por intermédio dos dois preceitos do jurista romano Ulpiano: (a) viver honestamente (honeste vivere); (b) não prejudicar a ninguém (alterum non loedere). Esses dois preceitos são de ordem moral, enquanto o terceiro é de ordem jurídica: (c) dar a cada um o que lhe pertence (cuique suum tribuere), este baseado na alteridade, socialidade, politicidade: qualidades da objetividade social que representa a justiça – conteúdo da forma jurídica. Como antítese do honesto, temos o desonesto cujas raias mais alongadas são tingidas de ilicitude penal”[45].
Desta singela referência histórica emergem algumas importantes premissas vigentes nos dias de hoje: (a) a honestidade é, ao mesmo tempo, um dever moral e jurídico, de conteúdo indeterminado, carente de valorações, oscilante conforme se trate de uma ou outra tipologia ético-normativa; (b) a honestidade pressupõe compromisso com o ideário de não causar prejuízos injustificáveis a terceiros; (c) a honestidade guarda conexões profundas com o substrato e o ideário da justiça, tanto que ser honesto é, também, o ser justo; (d) desonestidade comporta muitos matizes e variações, tanto que suas raias mais alongadas é que adentram a esfera penal, o que supõe muitos tipos de desonestidades e de respostas punitivas[46].
Dos juízes se exige honestidade em patamares elevados, ao ponto de configurar dever imanente à dignidade das funções. O conjunto de impedimentos e causas de suspeições já revela, por si só, o tratamento dispensado ao dever de honestidade dos juízes. Some-se a esse contexto a robusta teia de incompatibilidades e de exigências ético-normativas para as elevadas funções e encontramos, com facilidade, o lugar axiológico privilegiado da honestidade na carreira judicial. Diz-se que dos juízes seria exigível bem mais do que a honestidade, porque o parecer honesto também constituiria atributo obrigatório. Então, pode-se imaginar dispensável um exame mais acurado desse dever público, em se tratando de magistrados. No entanto, é perceptível a dificuldade em agregar conteúdos mais densos a esse dever, numa considerável quantidade de casos nebulosos. Daí a importância de uma análise focada e percuciente.
É sabido que os peritos, por seu turno, na condição de agentes públicos e de auxiliares do Judiciário, possuem o basilar dever funcional de integridade. Trata-se do dever de obediência a preceitos jurídicos e ético-normativos de honestidade funcional. Cuida-se de um dos deveres mais óbvios e, no entanto, inexplorados, em termos de conteúdos virtuais variáveis.
No tocante ao dever de honestidade funcional, a Lei Geral de Improbidade dele se ocupa explicitamente no art.11, mas sua gênese é constitucional, enraizando-se no dever de obediência à moralidade e probidade administrativas, consoante dicção do art.37, caput e parágrafo 4o, da Magna Carta. A análise tradicional resulta demasiado centrada nas hipóteses de clássica corrupção, na modalidade do enriquecimento ilícito. Sem embargo, é necessário agregar uma coloração um pouco mais complexa a esse dever, tornando-o mais substancioso e denso, dinâmico e extenso. Não se trata apenas de coibir transgressões que adentram a delicada seara do enriquecimento sem causa aparente, ou das solicitações de vantagens econômicas indevidas, embora estas constituam modalidade repugnante e merecedora de incansável sancionamento. Cuida-se, em verdade, de examinar comportamentos menos escancarados e mais sutis, freqüentemente travestidos de roupagem legal, embora desonestos e altamente transgressores da normativa vigente. A via hermenêutica, aqui eleita, revela potencial multiplicidade de graus inerentes à desonestidade profissional, sutilezas e nuanças relevantes, mas conduz, por igual, ao diagnóstico de uma patologia passível de severas sanções administrativas, a saber, a improbidade desenhada na Lei 8.429/92, sem prejuízo aos demais ilícitos típicos ou atípicos que se configurem nas zonas intermediárias ou extremas.
A honestidade ventilada como dever jurídico não se confunde com a correção moral do agir humano. Atos imorais poderão não ser considerados desonestos, na perspectiva jurídica. Trata-se, pois, aqui, de um dever público associado aos princípios da legalidade e moralidade administrativas, nos termos da Carta Magna de 1988. A honestidade profissional é aquela vinculada a preceitos jurídicos, os quais resultam valorados no universo axiológico do sistema constitucional. Tratar de honestidade profissional equivale a mergulhar no exame da ética institucional ou da chamada moral fechada das instituições, espaço propício para a criação e consolidação legal ou jurisprudencial de deveres normativos aos sujeitos[47].
Para dizer uma obviedade, nesse cenário, repita-se: o perito não pode emitir um laudo em troca de vantagem indevida, qualquer que seja sua natureza, econômica ou não, oferecida por uma das partes ou por terceiros, para favorecê-la no processo. Sobre essa hipótese, não pairam dúvidas: a vedação decorre cristalina do ordenamento jurídico. Por isso, nem mesmo se pretende focar uma tal situação, com prioridade, neste trabalho. Indiscutivelmente, pratica crime o perito que se pauta por esse tipo de comportamento, assim como o juiz que vende suas decisões, donde logicamente incorrerão, ambos, na improbidade administrativa. Se um juiz é inexplicavelmente condescendente com um perito firmatário de laudos francamente abusivos e dissonantes da normativa que rege tais atos, acolhendo-os, deve-se especular em torno às razões dessa postura jurisdicional, nos canais competentes. De qualquer modo, a parcialidade do perito, no favorecer uma das partes, pode encontrar raízes ideológicas, sentimentais ou corporativas, qualquer delas a indicar configuração de indícios de improbidade[48].
A desonestidade pode fazer fronteira com outros terrenos, é verdade, e nem sempre haverá de ensejar configuração de ato ímprobo. Forçoso, no entanto, é reconhecer a impossibilidade de o perito atuar de forma parcial, como se fora parte no processo, denotando interesse na causa. Também é vedada ao perito a conduta de imiscuir-se nas áreas reservadas aos juízes, adentrando espaços de valorações subjetivas, investigações, inquirições, porque a perícia não é substitutiva ou sucedânea da função jurisdicional, sendo esta última indelegável. De acordo com jurisprudência encampada pelo extinto Tribunal de Alçada gaúcho, por sua 2a Câmara Cível, caracteriza desvio de função o comportamento do perito que se aproxima da parcialidade inerente aos movimentos das partes ou busca invadir seara privativa dos juízes, em qualquer caso avançando limites e extrapolando de sua finalidade em prejuízo evidente de sua função auxiliar. Em suma, tanto configura o desvio de função a conduta de o perito assumir ares de juiz, quanto a de assumir ares de parte, qualquer delas a tornar imprestável a perícia . Cuida-se de uma maneira parcial de atuar[49].
A parcialidade traduz, geralmente, desonestidade funcional, ainda que não contenha intencionalidade de enriquecimento ilícito. É possível imaginar que um perito idealista queira promover redistribuição de renda e erradicar a pobreza do país através de laudos contrários às partes dotadas de poderio econômico. Um perito não pode, todavia, emitir laudo em conformidade apenas com seus personalíssimos critérios, para satisfazer seus anseios ideológicos, em detrimento de outros critérios objetivamente exigíveis, ignorados ou desprezados no caso concretamente submetido ao seu crivo. Isso, porque os critérios objetivos omitidos pelo perito deveriam ser tomados em consideração até mesmo ex officio, na resolução justa do problema que lhe fora endereçado pelo juiz e, ipso facto, pela sociedade como um todo. A ideologia pode servir de base para um impulso parcial, ilícito e ímprobo, visto como a conduta do perito revela-se não apenas viciada e prejudicial à parte lesada no processo, mas fundamentalmente perniciosa à boa administração da justiça e ao correto funcionamento do sistema judicial.
4.1.2. Dever de eficiência
Semanticamente, a palavra eficiência designa a capacidade, força e aptidão para obter um determinado efeito, confundindo-se, freqüentemente, com eficácia. É um dos requisitos apuráveis no período de estágio probatório dos funcionários públicos, desde o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, conforme Lei número 1.711, de 28 de outubro de 1952, art.15, parágrafo 1o, IV[50].
Hodiernamente, sabe-se que a eficiência, erigida à categoria de princípio constitucional que preside a Administração Pública (art.37, caput, CF), traduz uma série de deveres explícitos e implícitos aos agentes públicos, dentre os quais destacam-se o comprometimento com a busca de resultados concretos, a satisfação de requisitos idôneos na realização de condutas, bem assim a adoção de medidas potencialmente eficazes próprias do padrão de bom gestor ou funcionário. A eficiência é um requisito de aferição do merecimento funcional e da qualidade dos serviços prestados pelos agentes públicos, sejam aqueles reputados como permanentes no setor público, sejam os que estiverem investidos apenas transitoriamente das funções públicas.
Observa-se que a eficiência é um parâmetro de responsabilidade dos agentes públicos em geral. Não se pode abdicar do exame em torno ao atendimento ao dever de eficiência funcional, visto que seu rompimento traduz suporte aos mais variados tipos de responsabilidade, desde a disciplinar até a penal. Tal como ocorre com a desonestidade, que comporta graus variáveis de intensidade e conteúdos, também a ineficiência perpassa numerosos estágios axiológicos, de tal sorte que sua configuração há de ser aquilatada de modo fundamentado e criterioso, com o escalonamento necessário de suas faixas de incidência[51].
Se resulta ser ímprobo um perito que vende seus laudos, e sobre isso não há dúvida, diante da previsão expressa da própria Lei Geral de Improbidade[52], também o é o intoleravelmente incompetente, que incorre em erros crassos, grosseiros, teratológicos. Cuida-se, não obstante, de situações freqüentemente vizinhas: o erro crasso pode servir de fachada para a desonestidade mais abjeta. Ambientes dominados por ineficiência endêmica são, não raramente, infectados com espantosa naturalidade pelo vírus da corrupção[53].
Não raro, a desculpa do profissional corrupto ou desonesto é a incursão no erro grosseiro, como se houvesse liberdade para tanto; por isso, resulta freqüentemente patética a assertiva de que o sujeito não sabia, simplesmente errou e não poderia ser punido pela transgressão, quando todos os indícios e provas apontam uma indesculpável e absurda desídia funcional, merecedora de todas as censuras. Não é por outro motivo, vale insistir, que se percebe a íntima relação entre ambientes descontrolados, dominados por ineficiência crônica, e ambientes desonestos; portanto, observa-se que a desonestidade potencializa-se em meio ao descalabro e à ineficiência disseminada e tem múltiplas vertentes, desde a parcialidade, até a virtual convergência de interesses, profissionais ou de outra índole, entre o perito e o tipo de problema que lhe é apresentado para resolver.
Assim, erros indesculpáveis podem vir acobertados pelo manto da suposta ignorância ou amparados pela alegação de obediência a critério inexistente na legislação de regência da perícia, mas também podem constituir fachadas confortáveis para outras transgressões ocultas. Por isso mesmo, a Lei 8.429/92 cuida não apenas de atos desonestos, como já tive oportunidade de aduzir, mas também de atos intoleravelmente incompetentes, produto da desídia de funcionários indignos de permanecerem no setor público ou de nele atuarem mesmo provisoriamente[54].
Tanto é indigno o corrupto, o desonesto, quanto o inepto, aquele que é absolutamente incapaz de reunir condições mínimas para satisfazer os elevados encargos de suas atribuições públicas. O funcionário gravemente negligente e incapaz de exercer suas funções representa, não raro, como tive ocasião de referir em várias oportunidades, no contexto das transgressões praticadas no setor público, uma erva daninha tão potencializada quanto o próprio corrupto. Esse, sendo tecnicamente preparado, trará gigantescos prejuízos ao Estado naqueles casos em que estiver comprado. Porém, o outro, que resulta ser absolutamente inepto e despreparado, traz diariamente prejuízos, em todos seus atos e omissões, à sociedade e ao Estado, além de facilitar e incentivar a multiplicação de corruptos. Parece-me chocante a espantosa indiferença que domina significativa parcela de agentes públicos, diante dos resultados necessários à satisfação dos interesses gerais da sociedade. Esse sentimento de desprezo e de indiferença para com o outro – aqui simbolizado no jurisdicionado e nos valores imanentes à gestão do sistema judicial – pode ser tão nefasto quanto a intenção transgressora, em termos de prejuízos concretos.
A proibição de erros grosseiros, inaceitáveis, irrazoáveis, é, por si só, decorrente da necessidade de se impor castigo ao iter pertinente à desonestidade funcional em patamares mais acentuados. Há uma antecipação punitiva em busca da repressão aos ambientes de descalabro e descontrole no setor público. A Lei Geral de Improbidade pune o mau gestor público lato sensu, coibindo condutas perigosas aos valores relacionados com a honestidade no setor público, mas também resultam reprimidos comportamentos transgressores altamente nocivos ao valor da eficiência funcional mínima.
A gravidade do comportamento que reivindica o erro grosseiro até pode não ser comparável à de uma transgressão francamente desonesta, produto de um atuar doloso, voltada ao enriquecimento ilícito. Porém, o processo tipificatório regulará a incidência da proporcionalidade, ditando a funcionalidade da norma repressiva, em sintonia com a culpabilidade do agente e com o tipo de ilícito cometido. O importante é notar que ambas transgressões podem e devem ser castigadas: (a) as que buscam enriquecimento ilícito; (b) as que evidenciam, na melhor das hipóteses, erros grosseiros indesculpáveis. Essa aproximação entre tipos dolosos e culposos já é uma realidade, também, no Direito Penal, em suas vertentes funcionalistas e mesmo na liberdade de conformação legislativa dos ilícitos[55].
4.2. Sinais exteriores da improbidade e do elemento subjetivo da conduta: um guia para o diagnóstico da enfermidade
O desvio de poder ímprobo, no contexto aqui desenhado, é aquele que traduz a discrepância entre o exercício da função pública e a finalidade ou substrato lógico-normativo que lhe dá sustentação. Esse tipo de desvio tem natureza objetiva e transcende o exame das intenções específicas do funcionário, vindo à tona a importância das obrigações e de suas conexões com a razoabilidade e proporcionalidade. Ao contrário do desvio de finalidade, que é espécie de desvio de poder e pressupõe atuações intencionais, em busca de objetivos específicos, o gênero comporta uma falta de correspondência entre o ato praticado e os deveres que norteiam a competência funcional do agente público. A intenção, no desvio de poder, é a coincidência dos elementos volitivo e cognitivo com o desprezo pelos deveres de ofício, seja esse por ação, ou por omissão. O dolo administrativo pode absorver, nesses domínios tão rígidos, grande parcela dos elementos que ordinariamente integram figuras culposas. A subjetividade do agente, ademais, emerge dos elementos objetivos de sua conduta, porque são esses últimos que revelam e indicam o formato real da intencionalidade do sujeito, invertendo o ônus probatório.
O laudo viciado por desvio de poder discrepa, de forma irracional, de situações semelhantes, tornando-se um falso paradigma, sem bases técnicas ou científicas, não raro adentrando o campo do absurdo ou da teratologia. É possível simplesmente analisar precedentes e efetuar comparações, de modo a desmascarar o laudo e escancarar sua fragilidade no contexto normativo. Resulta viável, também, testar o raciocínio, a lógica e os critérios do perito, para fins de análise das conseqüências daí decorrentes em casos similares, visualizando como se comportaria o sistema judicial em situações análogas, com a incidência dos critérios eleitos pelo perito.
Uma decisão arbitrária não tem vocação universal, nem mesmo geral, caracterizando-se, isto sim, como totalmente particular e casuísta, uma vez que se destina a violar direitos no caso concreto e jamais a estabelecer paradigmas justos e racionais. Daí por que emerge a importância de se analisarem os critérios eleitos pelo perito, em sintonia com as regras técnicas vigentes e predominantes, bem assim, quando houver conexão com apuração de valores por serviços prestados, com as regras de mercado, cujos conteúdos e contornos devem, no mínimo, ser ventilados e discutidos no laudo pericial[56].
Com efeito, é curioso observar que determinados laudos periciais, embora mergulhem na análise de valores por serviços prestados ou contratados, cujo arbitramento compete ao juiz fixar, simplesmente ignoram ou desprezam os parâmetros de mercado. Repare-se que as leis do mercado, que disciplinam a ordem econômica, servem de balizamento obrigatório para laudos que repercutem em dívidas, esteja ou não o Poder Público no pólo passivo. A lei geral que veda o enriquecimento sem justa causa, como se sabe, encontra suas raízes no ambiente de mercado, onde se define o que é “justo” ou “injusto” em termos de valores contratuais ou negociais. Ignorar ou repudiar a obrigatória análise das leis vigentes no mercado, para arbitrar determinados valores, em razão de serviços ou contratos, configura sério indício de grave ilicitude comportamental do perito.
Veja-se que um laudo pericial deve ser, por excelência, um juízo técnico fundamentado, balizado por regramento normalmente científico, racionalmente rastreável, o que supõe uma pretensão à universalidade, dentro de expectativas legítimas por isonomia e justiça, diante da interferência que produz no entendimento do juiz. Quando o laudo se baseia em concepções estritamente subjetivas e obscuras, alicerçadas em percepções privativas do perito acerca de valores totalmente abertos ou indecifráveis, o ato deixa de ser técnico e passa a ostentar outra funcionalidade, extremamente discricionária, acobertando uma de duas alternativas: (a) um despreparo profissional intolerável em um perito; (b) a parcialidade do perito em relação ao objeto de sua peritagem. Em qualquer delas, não obstante, há desvio de poder, sendo que, no segundo caso, ele ganha formas que vão desde a corrupção até os favorecimentos contaminados por convicções ideológicas ou corporativas[57].
Deve-se adotar o raciocínio baseado na analogia, nos precedentes e nas conseqüências de um laudo. Se um dado problema nunca é resolvido à luz de determinados critérios, e só num certo e específico caso concreto ou apenas por um determinado perito vem a sê-lo, resulta óbvia e procedente a preocupação em torno do princípio isonômico e do princípio que veda a arbitrariedade dos Poderes Públicos, ambos ligados ao devido processo legal. O sistema judicial não é casa de apostas, onde possam os atores mover-se pela sorte da distribuição do foro e dos entendimentos completamente aleatórios de peritos, juízes e outros personagens. Um laudo que não resiste às críticas mais elementares, não subsiste diante de balizamentos técnicos aplicáveis ao caso e, nesse contexto, destoa por completo de um conjunto significativo de precedentes análogos, é um laudo vazio e precário, revelador de uma transgressão importante. Um ato desprovido de compromisso com as conseqüências que dele legitimamente se espera, é um ato que agride a ordem normativa, porque afeta os pilares da segurança jurídica. A inconsistência técnica do laudo, quando beira ou adentra o arbítrio ou a incontrolável subjetividade de seu subscritor traduzem sintoma de enorme relevância, justamente por indicarem uma agressão emblemática ao que há de mais peculiar a esse ato institucional: sua natureza essencialmente técnica e, portanto, racional, compromissada com legítimas expectativas inerentes à segurança das relações.
Atente-se para a existência de notáveis sinais exteriores de desvio de poder quando da presença de interesses importantes em jogo. A falta de atributos técnicos, a penetração no campo da subjetividade desenfreada, a ausência de precedentes e de parâmetros de razoabilidade, a produção de conseqüências absurdas, todos esses traços são indicativos de uma ilicitude digna de atenção por parte das autoridades fiscalizadoras. Tais traços apontam para a presença de sinais inequívocos de desvio de poder. Por isso, quando um laudo vem à tona despido de lastro técnico e com tais características negativas, é de se perguntar: o que o perito ganharia ou poderia ganhar, em tese, com isso? Essa é uma especulação interessante para avaliação da improbidade administrativa, embora seja dispensável para outros fins, v.g, controle de nulidade, desencadeamento de poder disciplinar do juiz em relação ao perito, entre outras.
Não se trata de buscar o reconhecimento da corrupção, sempre que houver indícios de ilicitude num laudo, mas de aprofundar, mais ainda, o exame do desvio de poder, na base das presunções dominadas pela lógica do razoável. Quando alguém erra em desfavor de terceiro, o sinal nem sempre aparece tão claro; porém, quando o erro acaba por beneficiar fortemente quem errou, há que se concluir pela presença de mais um sinal ilustrativo do desvio de poder de natureza ímproba, independentemente de comprovações cabais acerca da intencionalidade final do sujeito, eis que essa, na perspectiva aqui delineada, interessa ao Direito Penal, não ao Direito Administrativo Sancionador.
A evidência de uma possível ilicitude ocorre quando um laudo é francamente dissociado de critérios técnicos aceitáveis e ainda gera uma curiosa associação dos honorários do perito com o montante de recursos envolvidos nos efeitos que produz, uma vez homologado pelo juízo. Consiste em um exercício muito simples de percepção, demandando, em geral, cálculos matemáticos. É necessário salientar que laudos abusivos podem coincidir com pesados montantes de recursos econômicos em jogo. É menos usual constatar laudos teratológicos ou arbitrários em processos despidos de interesses econômicos vultosos. Então, quando há grandes interesses econômicos, a atenção dos juízes e dos agentes do Ministério Público, sem falar nos advogados, há que ser redobrada.
Um sinal interessante, que induz à caracterização de um laudo abusivo, em se tratando de aquilatar os interesses econômicos em jogo, diz respeito à configuração do suporte do enriquecimento sem justa causa, ou desproporcional, de uma parte (beneficiária do laudo) em detrimento de outra. Um laudo ilícito, confeccionado com desvio de poder, sem suporte em regras técnicas e racionais, pode refletir o enriquecimento sem justa causa de alguém. Cuida-se de uma equação aparentemente singela: o laudo gera o enriquecimento vertiginoso, sem justa causa, de uma parte em detrimento da outra. Independentemente de o perito ser beneficiário formal de honorários, o certo é que a desproporção no enriquecimento de uma parte em detrimento de outra é sinal gritante de virtual desvio de poder. Eventual enriquecimento do perito, se houver, pode ocorrer por caminhos ocultos, nem sempre ao alcance do olhar fiscalizatório.
É claro que dificilmente haverá apenas uma simples e ordinária negligência do perito, no sentido clássico da expressão, quando presente essa hipótese do enriquecimento sem justa causa de uma pessoa em detrimento de outra, à custa de um laudo arbitrário e francamente abusivo. Não se pode presumir que as pessoas sejam ingênuas, mormente profissionais que estejam a atuar num processo que envolva interesses econômicos significativos. Ademais, como referi, um perito tem obrigação de conhecer, necessariamente, certos níveis mínimos de regras para o desempenho de suas elevadas e nobres funções.
A investigação das intenções – eis a clássica via penal em teste – não é, no universo que examino, o único caminho para desvendar a natureza ilícita de um laudo e suas respectivas responsabilidades, nem mesmo o melhor deles. Já mencionei as peculiaridades do dolo administrativo, ordinariamente travestido de erro grosseiro, na modalidade do desvio de poder, que dispensa investigações acerca do comportamento doloso em seu conteúdo clássico, tipicamente penal. Em tal cenário, emerge a culpa grave, que faz fronteira muito estreita com o dolo, daí por que as parecenças naturais e os laços íntimos. Porém, repita-se, o dolo administrativo ganha suas nuanças, relativamente ao dolo penal, em face das peculiaridades das figuras típicas contempladas na Lei 8.429/92, no bojo das relações de sujeição especial. O que diferencia uma categoria da outra é, a final, o próprio tipo sancionador e a especialidade da relação de sujeição mantida pelo Estado com o destinatário de suas normas. Daí por que, vale insistir, na improbidade administrativa o dolo é estruturalmente mais aberto do que o congênere da seara penal, quando o sistema penal cuida dos crimes contra a Administração Pública.
O prosseguimento no exame mais profundo da subjetividade do agente pode até ser uma alternativa, mas certamente não exclui a análise mais imediata e eficaz do desvio de poder, inclusive no que concerne ao revestimento da improbidade administrativa. O referido aprofundamento pode ser interessante na via penal, ou mesmo pode emergir com espantosa naturalidade no bojo de uma instrução processual em investigação ou ação de improbidade, mas não transparece como indispensável ao início das investigações ou, inclusive, para o ajuizamento de ação civil.
Cabe um registro mais específico em relação ao setor público, no qual os laudos abusivos, proferidos com prejuízo ao erário, ainda indicam, como sinal exterior freqüente, o comportamento negligente de profissionais da advocacia pública, a concorrer à causação do ato, por ação ou omissão. Em tais casos, o Poder Público fica, não raro, desprovido de defesa adequada e o laudo costuma transitar em julgado já na primeira instância ou no próprio tribunal local, quando houver impugnação ou discussão eficaz em torno ao seu conteúdo.
Se o montante dos interesses econômicos for muito significativo, será inevitável a tramitação do feito envolvendo o Poder Público junto às instâncias superiores, o que pode produzir desdobramentos peculiares. Em tal caso, é possível que algum dos atores no processo plante vícios ou irregularidades, desde a origem, com deslealdade institucional, em prejuízo ao Poder Público, para que as instâncias superiores não consigam exercer os controles adequados. O plantio desses vícios é um sinal representativo, que há de ser levado em consideração. Com os vícios devidamente instalados, o processo judicial pode percorrer todas as instâncias imagináveis, mas possivelmente haverá óbice de natureza formal ou processual para a correta discussão dos critérios adotados no laudo pericial. Nesse contexto, o Direito Processual se vê como ferramenta de blindagem ao exame de aspectos substanciais, impedindo a análise dos vícios intrínsecos a esses laudos ilícitos. Assim sendo, esse laudo acaba sendo consumado, chancelado formalmente pelo Judiciário, em vista de critérios jurídico-processuais, mesmo que sua confecção seja produto de ações criminosas ou ímprobas.
5. Conseqüências da presença de indícios de improbidade: observações gerais
O que se pode dizer, diante desse contexto, é que tanto o perito, quanto o juiz responsável pela homologação originária do laudo revestido de sinais de improbidade, podem ser chamados à responsabilidade pelos canais competentes, independentemente do trâmite do processo noutras instâncias. A desconsideração do laudo é matéria a ser equacionada à luz do Direito Constitucional e do Direito Processual incidentes à espécie. A apuração das responsabilidades, seja na dimensão punitiva, disciplinar ou ressarcitória, em suas várias ramificações, é passível de ser equacionada por instâncias distintas daquelas que homologaram indevidamente o laudo viciado[58].
No monitorar a improbidade, sabe-se que as relações entre ambientes descontrolados e desonestidade funcional são estruturalmente íntimas. Os esquemas de prevenção devem funcionar eficazmente, coibindo transgressões previsíveis. Daí por que age com acerto o tribunal que opta pelo monitoramento administrativo das atividades dos peritos, inclusive no tocante aos valores de honorários e conflitos de interesses, além, é evidente, de toda a problemática relativa à capacidade técnica, sempre em homenagem ao princípio da independência intelectual ou cognitiva dos juízes e dos princípios constitucionais que governam a Administração Pública[59].
É necessário enorme rigor, igualmente, no monitoramento de juízes e peritos que atuem em áreas politicamente estratégicas ou economicamente sensíveis, nas quais, em especial, os laudos periciais tenham terreno fértil para proliferação. A normativa geral, que prevê deveres e responsabilidades, é sempre um instrumento idôneo, mas carente de complementações na via administrativa e no terreno das fiscalizações concretas. Sabe-se que a impunidade deita suas raízes na crise operacional do sistema punitivo, mais do que na própria crise do sistema normativo legislado[60].
Juízes que apreciam causas de enorme vulto econômico, com auxiliares peritos na confecção de laudos técnicos, reclamam uma incidência mais detalhada de monitoramento correicional. Isso, porque tais autoridades tornam-se mais vulneráveis e expostas às influências ostensivas ou sutis de segmentos poderosos. Daí por que as áreas relativas a falências, cível, direito econômico, direito tributário, entre outras muitas, podem merecer uma atenção especial. O que deve ser monitorado, todavia, é o conjunto de processos que comporte volume considerável de interesses econômicos ou políticos em jogo, e não meramente as varas especializadas ou comuns. O monitoramento mais eficaz é aquele que foca os processos judiciais e seus resultados. Adotando postura crítica e atenta, pode-se detectar, no bojo de algumas ações judiciais, sintomas eloqüentes de improbidade, em qualquer de suas formas. Os agentes políticos monitorados não devem alimentar nenhum sentimento negativo, porque a fiscalização mais rigorosa é conseqüência do próprio funcionamento do sistema.
Sobre o enriquecimento ilícito e as ferramentas legais ou administrativas de prevenção ou repressão, registre-se que um perito, ao trabalhar em casos de alta repercussão econômico-financeira, deve ter seus bens inventariados, sua evolução patrimonial acompanhada, tal como ocorre com os agentes públicos expostos ordinária e rotineiramente à Lei 8.429/92, inclusive os juízes e agentes do Ministério Público. Esse monitoramento, sem embargo, não deve ser meramente formal, burocrático, devendo alcançar o plano substancial da efetividade, além de integrar uma rotina desses funcionários públicos transitórios, alcançando familiares, companheiros, parentes e amigos que se mostrarem suficientemente próximos para acobertar transferências indevidas de bens, patrimônios ou valores[61].
Não há dúvida de que atitudes suspeitas devem ensejar investigações cuidadosas e prudentes, comprometidas com o rastreamento de um padrão de vida incompatível com os vencimentos do sujeito, seja ele perito, seja juiz, seja qualquer outra espécie de agente público. Os mecanismos de prevenção encontram um ambiente mais idôneo para seu funcionamento eficaz, desde que haja compromisso com a transparência e os controles administrativos permanentes e contínuos. Nesse passo, pautas de eficiência colaboram, decisivamente, para o fomento à honestidade profissional. Nota-se a interdependência dessas categorias: quanto maior a ineficiência crônica, maiores os índices de transgressões desonestas e descontroladas.
Uma vara judicial que não estabeleça controles, nem denote preocupação com um ambiente transparente, ágil e responsivo, torna-se o campo mais atrativo para negociações ilícitas, fomentando transgressões de toda espécie. Um Poder Judiciário que não conte com órgão correicional especializado e atuante, permitirá, sem dúvida, a proliferação de transgressões intoleráveis num Estado Democrático de Direito.
De outro lado, é necessário adotar estratégia inteligente no mapeamento da corrupção. Não é eficaz pretender rastrear uma evolução patrimonial indevida ou desproporcional de agente público, se não houver um foco correto e um juízo de proporcionalidade na eleição das metas. O olhar atento, crítico e direcionado às situações mais preocupantes e sintomáticas resulta necessário, até mesmo como imperativo de racionalidade das atividades correicionais lato sensu. Tal estratégia implica uma certa seletividade do Direito Punitivo, em detrimento de uma vinculação cega a demandas irrazoáveis ou despidas de conteúdo flagrantemente grave[62].
Quanto ao perito, não gozando esse de nenhuma espécie de prerrogativa de foro, uma vez verificados indícios de improbidade, imperiosa a remessa de informações ao Ministério Público com atribuição na área, para fins de instauração do pertinente inquérito civil. É necessário, também, estancar o laudo abusivo e não homologá-lo, ou desconsiderá-lo no que concerne aos efeitos pretendidos por seu autor. Os controles devem incidir em sua plenitude.
Constatada a presença de indícios de participação de autoridade judiciária, ao homologar indevidamente o laudo ilícito, diante dos sinais já apontados, cabe, evidentemente, além das medidas gerais pertinentes, adotar algumas providências especificamente voltadas à tutela do dever de probidade administrativa. Torna-se necessário efetuar comunicação à corregedoria do tribunal competente, bem como ao Ministério Público com atribuição para investigar e ajuizar ação de improbidade.
Emerge, aqui, o discutido tema da prerrogativa de foro dos juízes e autoridades similares, vale dizer, os chamados agentes políticos. O STF sufragou entendimento no sentido de que seria inconstitucional a prerrogativa de foro para os agentes políticos. Divirjo da orientação encampada pela Suprema Corte, porque entendo que a prerrogativa de foro para agentes políticos, que gozem de idêntica prerrogativa na seara criminal, não é abusiva nem discriminatória, menos ainda extrapola as competências do legislador infraconstitucional. Isso porque Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador devem guardar simetria. E não seria nada absurdo conceder, por lei, prerrogativa de foro a agentes políticos por atos de improbidade administrativa, quando esses mesmos agentes estivessem contemplados com tal prerrogativa em face de ilícito criminal. O congestionamento que haveria nos tribunais seria problema político, a ser equacionado com reformas estruturais nas cortes estaduais e federais.
Defendi abertamente a constitucionalidade da prerrogativa de foro, até por compreender que seria inadmissível um promotor de justiça investigar e acusar o procurador-geral de justiça ou o presidente do tribunal de justiça. Seria contraditório que um membro do Ministério Público Federal pudesse investigar e acusar seus colegas, ou os magistrados federais, inclusive desembargadores ou o próprio procurador-geral da república, subvertendo todo o arcabouço normativo que disciplina as relações de simetria e hierarquia nas instituições. No entanto, a meu juízo, equivocadamente, as Associações Nacionais do Ministério Público, dos Procuradores da República e dos Magistrados Brasileiros, defenderam tese em sentido oposto, pugnando pelo banimento da prerrogativa de foro e completa isonomia de todos os agentes políticos, os quais deveriam ser submetidos ao juiz natural, que seria o juiz de primeiro grau[63].
O momento requer respeito à orientação do STF, por mais absurda que pareça a perspectiva aberta. Houve muita pressão política, no sentido legítimo, para que a Suprema Corte decidisse como veio a decidir. Tenho convicção, aliás, de que a tendência será o STF esvaziar a responsabilidade dos agentes políticos, confundindo crimes de responsabilidade e atos de improbidade, para impedir que as altas autoridades da Nação se vejam investigadas, processadas e julgadas ao arrepio da prerrogativa de foro que ostentam na esfera criminal. Cabe às cúpulas dos Ministérios Públicos, especialmente, orientar seus membros para que somente investigações idôneas tenham lugar, diante de indícios respeitáveis, coibindo, assim, o chamado abuso do poder investigatório. Sem embargo, não se há de confundir prudência com timidez ou omissão, porque ao Ministério Público nem sempre resulta confortável instaurar investigações que tragam repercussões a magistrados ou outros membros ministeriais, circunstância essa que merece reparos constantes.
6. À guisa de conclusão:
Seguindo a linha de investigação anunciada no preâmbulo, finalizo estas reflexões com proposição de algumas premissas importantes, a saber:
(a) juízes e peritos, como os demais agentes públicos brasileiros, estão submetidos ao princípio constitucional da responsabilidade, não devendo se beneficiar de nenhuma espécie de imunidade absoluta por ocasião do desempenho de suas funções, uma vez que tais funcionários podem praticar, em tese, atos de improbidade, no exercício indevido de suas funções públicas, inexistindo óbice a esse enquadramento;
(b) laudos periciais podem ser produzidos de forma desonesta ou intoleravelmente desidiosa, qualquer delas a configurar, em tese, pela gravidade das circunstâncias, improbidade administrativa, tipificada na Lei 8.429/92, sujeitando-se o infrator às sanções ali cominadas, quais sejam, perda da função pública, suspensão de direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com a Administração Pública ou dela receber benefícios ou incentivos, fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, nos prazos fixados no art.12 e respectivos incisos da Lei Geral de Improbidade;
(c) as transgressões que envolverem enriquecimento ilícito ou sem causa aparente ensejam, além das demais sanções cabíveis, perda dos bens ou valores havidos ilicitamente, suporte para rastreamento de bens, ativos, dinheiros, valores e direitos em poder de terceiros ligados ao infrator, quando houver suspeita de desvios e acobertamentos indevidos;
(d) juízes e peritos que tiverem atuado com erro, ainda que não sejam enquadráveis nas malhas da Lei Geral de Improbidade, podem ser responsabilizados pelos ressarcimentos pertinentes aos danos morais e materiais causados, seja às partes lesadas diretamente, seja à sociedade e seus interesses difusos, além de ficarem expostos às medidas correicionais pertinentes, tanto na via disciplinar, quanto no âmbito dos controles externos;
(e) juízes que, ao arrepio de fundamentação idônea, homologam laudos manifestamente ilícitos, podem ser responsabilizados por ato de improbidade administrativa, além de se submeterem a outras instâncias de responsabilização, sendo que o entendimento do STF é no sentido de que tais autoridades não gozam de prerrogativa de foro quando acionados pela prática de improbidade, o que equivale a dizer que caberá às autoridades ordinárias a investigação, processamento e julgamento do magistrado ímprobo, em conjunto, se necessário, com demais funcionários públicos envolvidos e simultaneamente à adoção de outras medidas de cunho punitivo.
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Notas
[1] Agradeço o auxílio de Vinicius Diniz Vizzotto, advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS.
[3] Ainda que o prejuízo direto ocorra em detrimento da parte
ex adverso, sem desfalcar os cofres públicos, o prejuízo maior sempre será em desfavor da Administração do sistema judicial, porquanto o perito é auxiliar do juiz e tem compromisso com a verdade. Não há, evidentemente, estatísticas oficiais a respeito dessa espécie de transgressão, até porque o universo judicial ainda é bastante incipiente no trato de ilícitos
internos com metodologia científica. Inexistem bancos de dados sobre laudos periciais anulados ou não homologados por ilicitude flagrante. Porém, existem abundantes experiências forenses, eventualmente reproduzidas na mídia, que revelam os gigantescos espaços discricionários de peritos e juízes, no manejo de suas competências. Pode-se arriscar uma hipótese: existe a sensação de que os laudos periciais ilegais não sofrem controles adequados, especialmente no âmbito do Direito Penal, Direito Administrativo Sancionador e até mesmo do Direito Civil
lato sensu, no qual se amparam as ações de indenização por danos materiais e morais. Estamos, pois, numa daquelas áreas sintomaticamente desérticas, nas quais o olhar do intérprete propõe basicamente o óbvio, porém de maneira tendencialmente original ou originária. Esse talvez seja o papel que pretenda assumir aqui: o de suscitar discussão sobre tema raramente discutido publicamente, mas freqüentemente debatido na prática. Sobre a escassez de estatísticas na gestão pública brasileira, confira-se MEDINA OSÓRIO (2004), ocasião em que abordei algumas das principais dificuldades operacionais do Estado brasileiro, em qualquer de suas esferas, no âmbito da gestão interna, externa e estratégica. O tema da crise do sistema judicial pátrio foi ampliado e consideravelmente aprofundado em trabalho intitulado “’O novo sistema judicial brasileiro’: significantes e significados”, em obra coletiva de Direito Administrativo que coordenei, em conjunto com Marcos Juruena Villela Souto, em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
[4] Trata-se de encarar a corrupção, do ponto de vista sociológico, como transgressão a regras ético-normativas, pela qual o agente público, aqui considerado
lato sensu, busca satisfazer fins privados com o uso indevido de seus poderes decisórios. Essa é a definição adotada por organismos internacionais como Banco Mundial, Transparência Internacional ou Fundo Monetário Internacional, com pequenas e insignificantes variações. Essa definição está, também, na raiz histórica da corrupção enquanto fenômeno inerente à humanidade, como nos diz, num magistral trabalho, o italiano Luciano PERELLI (1999). Por tal razão é que o Direito Administrativo, enquanto conjunto de normas que regulam as atividades típicas da Administração, em qualquer de suas esferas, pressupõe o atendimento do interesse público em detrimento da satisfação dos interesses particulares dos agentes, consoante as clássicas lições de FAGUNDES
(1957) ou CIRNE LIMA (1987). A expressão “corrupção” não é, na literatura especializada, normalmente, manejada no seu sentido penalístico, mas preponderantemente no sociológico ou no administrativo, como se pode perceber pela leitura de alguns importantes escritos de uma das maiores autoridades mundiais do assunto, como o é MENY (1997; 1996; 1993; 1992). A corrupção, nessa medida, é apenas uma das facetas da improbidade, estando longe de significar, ademais, enriquecimento ilícito (esta categoria é tão-somente uma das modalidades da corrupção). Essa é a orientação que se percebe em abundantes manifestações da Organização das Nações Unidas. Para não nos estendermos em demasia neste ponto, basta recordar do emblemático Código Internacional de Conduta para os Funcionários Públicos, aprovado pela ONU através da Resolução 51/59, de 12 de dezembro de 1996, disponível em <
http://www.tc.cv/docs/Rev2.DOC>, sendo a data de acesso 20.10.2004. Deveres de diligência estão ali consagrados, o que supõe admissibilidade de infrações culposas, ao lado das clássicas transgressões dolosas que compõem o quadro normativo da corrupção pública. Consulte-se, a propósito, outro documento das Nações Unidas, confeccionado e aprovado posteriormente pela Assembléia Geral, no seu
Quincuagésimo quinto período de sesiones, pela
Tercera Comisión, como Tema 105 do programa, intitulando-se o documento:
Un instrumento jurídico internacional eficaz contra la corrupción. A/C.3/55/L.5, 14 septiembre 2000. Anexo:
Lista indicativa de instrumentos jurídicos internacionales, documentos y recomendaciones contra la corrupción. Indica-se a necessidade de criminalizar comportamentos corruptos e corruptores, bem assim criar ambientes institucionais saudáveis e transparentes, mas os conceitos manejados transcendem, largamente, os estreitos limites do Direito Penal. Num sentido similar andou, e vem andando, permanentemente, a União Européia, como se percebe no documento intitulado:
Posición coordinada de la Unión Europea en lo tocante a la preparación de la futura Convención de las Naciones Unidas contra la corrupción y del Segundo Foro Global de Lucha contra la corrupción y promoción de la probidad. Bruselas, 28 febrero de 2001. 4 f.
[5] Sobre improbidade administrativa e seu contorno “bipolar” (apanha os extremos dos comportamentos patológicos dos agentes públicos, indo da inércia depressiva às ações mais agressivas contra o patrimônio público
lato sensu), observa-se que estão reprimidas, na Lei 8.429/92, tanto as transgressões dolosas quanto culposas, sejam graves desonestidades, sejam intoleráveis ineficiências funcionais dos agentes públicos. A natureza jurídica das sanções cominadas aos ímprobos é de Direito Administrativo, sendo os respectivos processos punitivos regidos pelo Direito Administrativo Sancionador, no plano material. Essa foi construção que elaborei desde 1995 até 2003, ganhando o primeiro espaço internacional especificamente no trabalho que publiquei na
Revista de Administración Pública, Centro de Estúdios Constitucionales, em Madrid, no ano de 1999, intitulado Corrupción y mala gestión de la
res publica: el problema de la improbidad administrativa y su tratamiento en el derecho administrativo sancionador brasileño, conforme discriminado na referência bibliográfica. Naquela oportunidade, defendi as bases conceituais da improbidade disciplinada na Lei Federal 8.429/92, numa das mais prestigiadas Revistas de Direito Administrativo da União Européia, após haver exposto o trabalho no Seminário de Professores dirigido pelo Catedrático Eduardo García de Enterría. Essa tese, de qualquer modo, veio a ser defendida na Universidade Complutense de Madrid, para obtenção do título doutoral, e aprovada,
summa cum laude, à unanimidade, pela Banca Examinadora, em junho de 2003, composta pelos Catedráticos Rubbio Lloriente; Jesús González Pérez; Lorenzo Martin-Retortillo Baquer; Ramón Parada; Manuel Rebollo Puig, na presença do orientador, professor Eduardo García de Enterría. Trata-se de um conjunto de trabalhos nos quais defendo, precisamente, essa essência do ato ímprobo: desonestidade e grave ineficiência funcional, com natureza jurídica definida e tutelada pelo Direito Administrativo Sancionador, culminando em trabalho no prelo de conhecida Editora, sob o título
Teoria da Improbidade Administrativa, no qual busco sintetizar uma visão geral sobre o assunto. Cabe sinalizar, não obstante, que a rede de trabalhos produzidos, na década de 90, apontando exatamente essa “bipolaridade” da patologia aqui designada “improbidade administrativa”, pode ser bem sintetizada nos artigos que colacionei e que vão aqui referidos pelas respectivas datas, obedecendo metodologia adotada, todos localizáveis nas referências bibliográficas. Confiram-se os trabalhos em MEDINA OSÓRIO (1997; 1997a; 1998; 1998a; 1999a; 1999b; 1999c; 2000a, 2000; 2002; 2003 e 2005). Vários podem e devem ser os instrumentos de controle e prevenção das patologias assimiláveis ao amplo conceito sociológico de “corrupção”, o que se ajusta ao ideário da Lei Geral de Improbidade Administrativa editada em nosso país em 1992, equiparável a um Código Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros, de todos os entes federados e de todos os Poderes da República. Sobre o alcance desse verdadeiro Código Geral, reporto-me a MEDINA OSÓRIO (1997; 1998; 1999), ocasiões em que defendi, abertamente, a incidência dessa normativa para todos os agentes públicos, incluindo os agentes políticos, até mesmo autoridades do Poder Judiciário ou do Poder Legislativo, membros do Ministério Público ou do Tribunal de Contas. Divergi, à época, da respeitada opinião, em sentido contrário, exposta por MELLO (1995), que chegou a ver, nessa legislação, apenas os atos administrativos ali enquadráveis.
[6] Segundo uma das primeiras lições dos autores que se debruçaram sobre o tema, a improbidade seria uma imoralidade administrativa qualificada, conforme se nota em PAZZAGLINI FILHO
et alli (1996); FIGUEIREDO (2000); MELLO (1995) e MEDINA OSÓRIO (1997; 1998). Tal terminologia, apesar de pertinente, traduzia ambigüidade evidente, eis que nunca se expressou, com clareza, o que qualificaria a imoralidade administrativa, para que esta alcançasse o patamar da improbidade. Não obstante, penso que o grau mais acentuadamente grave de ilicitude, decorrente da gradação dessa espécie de transgressão no ordenamento jurídico, permite, em sintonia com os princípios da legalidade, tipicidade, culpabilidade e devido processo, todos inscritos na Constituição de 1988, uma compreensão adequada do que seria a imoralidade administrativa qualificada. Cuida-se de valorar as várias modalidades de imoralidade administrativa e encontrar o estágio preciso da improbidade, observados os parâmetros constitucionais e legais adequados.
[7] A defesa da aplicabilidade do regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador aos atos de improbidade, com a incidência, inclusive, por simetria, das regras e princípios do Direito Penal, foi o produto de uma série de reflexões que venho lançando ao debate. Reporto-me aos trabalhos já citados em MEDINA OSÓRIO (2005; 2003; 2000; 1999). No Direito comparado, como referência fundamental, na construção conceitual da sanção administrativa, e pelo histórico apresentado, cito DELLIS (1997). A jurisprudência tem agasalhado, paulatinamente, a idéia de um Direito Público Punitivo para tutela da improbidade administrativa. Cito, para ilustrar sumariamente a tendência, este julgado do Tribunal de Justiça gaúcho: Ação de Improbidade Administrativa nº 70006051429. 22ª CÂMARA Cível. Relatora Desembargadora MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA. Assim ementado: “Ação de Improbidade administrativa. Prescrição. Decretação de ofício. Direitos Políticos. Suspensão”. E o acórdão, reconhecendo o caráter punitivo da Lei de Improbidade, estabelece seu entendimento: “A ação de improbidade administrativa tem por escopo aplicar sanções ao agente ímprobo que invadem sua esfera pessoal, podendo sujeitá-lo, inclusive, à suspensão dos direitos políticos (art. 15, inciso V, da CR). Sendo a cidadania um dos fundamentos da República, a prescrição da ação de improbidade administrativa pode ser decretada de ofício, porquanto afeta direito indisponível”. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br> Data de Acesso: 09.11.2004.
[8] Confiram-se os dispositivos legais mencionados: “Art. 9. Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei (…) Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei (…) Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições (…)”.
[9] A Lei Federal 4.617, de 29 de junho de 1965 (Lei da Ação Popular), em seu
art. 2º, estabelece que “são nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: e) desvio de finalidade.
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar- se-ão as seguintes normas: (…) e) o desvio da finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”. Esse desvio de finalidade tem sido interpretado como desvio de poder. O verbo “visar”, aqui, diz respeito ao conteúdo objetivo do ato. Por isso, se houver dissonância entre o ato e o fim previsto na regra de competência, implícita ou explicitamente, tem-se o desvio de poder, categoria mais ampla do que o desvio de finalidade
stricto sensu. É possível identificar, portanto, desvio de poder com desvio de finalidade
lato sensu. Relembre-se que o dispositivo da Lei da Ação Popular, datado da década de 60, deve ser atualizado em sintonia com a Carta Constitucional de 1988, na qual se consagram explicitamente os princípios
da moralidade e eficiência administrativas, ambos determinantes de um enfoque objetivo na análise da correspondência entre os fins imanentes ao ato praticado e os fins objetivamente exigíveis na regra de competência. Essa atualização foi feita por BANDEIRA DE MELLO (1996; 2000), que adota a terminologia do desvio de poder. Confira-se, sobretudo, com um amplo exame do assunto, a monografia especializada de CRETELLA JÚNIOR (1997). No Direito comparado, por todos, com essa terminologia, leia-se CHINCHILLA MARIN (1999), adotando essa mesma noção de descompasso objetivo entre os fins inerentes ao ato produzido e os fins imanentes à regra de competência. No campo da improbidade, para uma erudita incursão nos princípios que presidem a Administração Pública e análise dos vícios imanentes aos atos administrativos produzidos sob a égide dessa espécie de conduta patológica, leia-se GARCIA e ALVES (2002), num trabalho que configura uma das maiores referências sobre o tema no Brasil. Na origem do princípio da moralidade administrativa, hoje estampado no art.37,
caput, da Magna Carta, está, precisamente, toda uma jurisprudência do Conselho de Estado francês, que buscava reprimir condutas tipicamente enquadráveis nas categorias do desvio de poder, como se pode perceber pela leitura do clássico HAURIOU (1938; 1931).
[10] Ressarcimento ao erário não é sanção, mas simples restituição do estado anterior, como já o disseram RINCÓN (1989) e tantos outros, lição, esta, por mim adotada, como se lê em MEDINA OSÓRIO (2000; 2003; 2005).
[11] ÁVILA (2003) diagnosticou e elucidou com maestria uma distorção recorrente tanto no meio acadêmico quanto forense: a suposta prevalência dos princípios sobre as regras. Tal premissa traduziria inversão de valores, porquanto a regra tem maior grau de decidibilidade do que o princípio, precisamente porque ostenta funcionalidade mais diretamente ligada à definição e resolução do problema, enquanto o princípio está mais conectado à produção de um estado ideal de coisas. O nível de aproximação da regra ao caso concreto é, freqüentemente, muito mais intenso do que o do princípio. Daí por que não há a aludida e propalada prevalência dos princípios em detrimento das regras. O que há, isto sim, é uma atribuição de papéis diversos a essas espécies normativas. Devo dizer, nesse passo, que a regra se presta ao papel de tipificar diretamente atos ilícitos, observando cânones de segurança jurídica inerentes ao princípio da legalidade. Os chamados ilícitos atípicos, tratados por ATIENZA e MANERO (2000), v.g, desvio de poder ou de finalidade, abuso de direito, entre muitos outros, podem comportar concreção judicial a partir de princípios jurídicos. Todavia, ilícitos submetidos ao Direito Punitivo, cujas sanções transcendem a esfera das teorias das nulidades, reclamam intervenção estatal mediada por regras, ao abrigo da tipicidade das condutas proibidas, o que envolve a incidência dos princípios como normas viabilizadoras do processo interpretativo correto.
[12] Veja-se MEDINA OSÓRIO (2002), ocasião em que busquei enfrentar e rechaçar argumentos esgrimidos no sentido da suposta inconstitucionalidade da improbidade culposa.
[13] Sempre foi a tese de MARTINS JÚNIOR (2002).
[14] Ver MEDINA OSÓRIO (1999;2002). Esse dolo se diferencia do penal tão-somente em razão de estar ligado à tipicidade do Direito Administrativo Sancionador, a qual, nas relações de especial sujeição, como são estas disciplinadas na Lei 8.429/92, resulta mais abrangente e aberta, exposta a uma legalidade mais flexível. O dolo administrativo pressupõe, pois conhecimento e vontade, mas não se refere às figuras penais, e sim às figuras jurídico-administrativas.
[15] Sustentei essa tese logo na primeira edição da obra na qual lançava observações em torno à Lei 8.429/92. Confira-se em MEDINA OSÓRIO (1997), quando tracei paralelo com a ilegalidade abusiva constatada no julgamento de procedência de um mandado de segurança, destacando que tal juízo de procedência não acarretaria, automaticamente, reconhecimento de indícios de improbidade administrativa.
[16] Insisto que o regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador, por ostentar aplicabilidade subsidiária e simétrica dos princípios e regras do Direito Penal, eis que ambos integram a categoria superior do Direito Punitivo constitucionalizado, acarreta maiores níveis de segurança jurídica ao trato da improbidade administrativa. Reporto-me, para o rastreamento dessa orientação, aos trabalhos estampados em MEDINA OSÓRIO (1999; 2000; 2003; 2005).
[17] Entre muitos autores que se poderia citar, na ilustração das profundas relações entre democracia, cultura republicana e responsabilidade dos agentes públicos, vale recordar dos seguintes: BÉJAR (2000); FERREIRA DA CUNHA (1998); FERNÁNDEZ RODRIGUEZ (1990); GARCÍA DE ENTERRÍA (1998); PASTOR e CARANÉS (1996). Pode-se notar que mesmo nas Monarquias Constitucionais contemporâneas, como é o caso da Espanha ou, em maior medida, da Inglaterra, vige uma “cultura republicana”, sempre a exigir graus máximos de responsabilidade de todos os funcionários públicos.
[18] Embora não expresse concordância com todos os critérios classificatórios adotados pela autora, vale consultar o trabalho especializado de NICIDA GARCIA (2004), quando cuida da responsabilidade dos agentes públicos e algumas de suas tipologias. No tocante ao ato de improbidade, a autora busca uma categoria autônoma para fins de classificação, deixando de enfrentar a proposta teórica de enquadramento no Direito Administrativo Sancionador, o que não desnatura a importância de outras classificações corretamente adotadas no bojo da obra. O importante é reparar na variedade de esquemas classificatórios disponíveis.
[19] Confira-se o art.53 da Constituição Federal de 1988 (CF) e seus parágrafos. Vale observar a sociologia dessa imunidade e a contraditória aplicabilidade prática que vem ganhando. Ademais, a imunidade formal constitui um obstáculo perverso à apuração de responsabilidades, porquanto impede que o parlamentar seja processado sem a autorização de sua Casa de origem, mesmo que se trate de criminalidade comum. O ideário de proteção das funções acabou absorvido pela proteção às pessoas, em detrimento do princípio da responsabilidade. Cuida-se de distorção de conteúdo prático, mais do que normativo.
[20] A Lei Federal 8906/94, em seu art. 7º, § 2º, estatui: “O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”. Veja-se, sobre o tema, MEDINA OSÒRIO (1995). Penso que, à época, logrei desenvolver raciocínio que compatibiliza a imunidade com o princípio da responsabilidade, porque a conexão das palavras invioláveis com o exercício das funções representa o vínculo etiológico indispensável à garantia funcional. Sem essa conexão, evidentemente, o profissional estará buscando cobertura institucional para atos estritamente pessoais, inexistindo base para a imunidade. O mesmo raciocínio há de aplicar-se, todavia, a membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público, pois suas imunidades têm idêntica natureza: exigem conexão entre palavras orais ou escritas e o exercício idôneo das funções.
[21] Dotadas de prerrogativa de foro criminal, conforme os dispositivos constitucionais pertinentes, constam numerosas autoridades públicas, tais como prefeitos, juízes, membros do Ministério Público, presidente, vice-presidente, deputados federais, senadores, ministros do STF, procurador-geral da República, os ministros de Estado e os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, Governadores dos Estados e do Distrito Federal, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União, além dos juízes federais. Vejam-se, a propósito do assunto, os arts. 29 X; 96, III; 102, I, (b), (c); 52, I;
105,
I, (
a); 108, I, (a), todos da CF.
[22] Há, também, níveis hierárquicos diversificados de agentes públicos. O princípio da responsabilidade pode ser visto desde uma vertente teórico-normativa ou sociológica. Para essa última, quanto mais alta a esfera em que se situe o agente público, ao contrário do que se poderia imaginar pela leitura dos manuais ou textos legais, mais difícil a concretização da responsabilidade. Para a vertente jurídica, os altos funcionários públicos devem ostentar elevadas responsabilidades, talvez as mais elevadas de todas; para a sociológica, eles são, como se sabe, os mais difíceis de serem alcançados, engrossando cifras ocultas de impunidade. Resulta necessário inverter essa lógica subversiva, redimensionando, no plano real, o próprio princípio da responsabilidade. Os mais importantes devem ser os mais cobrados; dos menos importantes, deve-se alimentar menos expectativas de cobranças. Ora, hoje em dia acontece exatamente o contrário. O princípio da responsabilidade sofre, assim, o impacto da desmoralização decorrente da impunidade.
[23] Leia-se MEIRELLES (1997). Dos agentes políticos são cobrados deveres funcionais teoricamente mais rigorosos, embora, na sociologia dos órgãos controladores, não se perceba uma vocação tão intensa à busca e cobrança dessas responsabilidades. É natural constatar significativos nichos de impunidade no universo dos agentes políticos.
[24] ,
caput, CF – “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte” (…) “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Há vários mecanismos judiciais disponíveis, para apuração dessa responsabilidade: ações de ressarcimento; ações populares; ações civis públicas. Sem embargo, não é essa espécie de responsabilidade que se pretende abordar, embora esteja ela implícita na categoria analisada e possa ilustrar lacunas preocupantes nas escassas estatísticas oficiais do sistema judicial.
[25] A tese predominante na Europa, apesar da divergência de RINCÓN (1989), é a de considerar a sanção disciplinar como espécie de sanção administrativa. Tal é a orientação prevalente no Tribunal Constitucional Espanhol e é, precisamente, esta minha posição, como se lê em MEDINA OSÓRIO (2000), ocasião em que expus os fundamentos e os julgados que embasam a orientação aqui defendida, novamente sinalizada na 2a edição da mesma obra (2005). Não preciso falar de outras esferas, igualmente importantes, como a da responsabilidade puramente política, curiosamente uma das mais polêmicas, viciada por numerosos problemas e, não obstante, eficaz no tocante aos objetivos a que se propõe: cassação de mandatos eletivos; produção de renúncias; e, em menor escala, tem-se ainda a cassação ou suspensão de direitos políticos. Tal instância, paradoxalmente, talvez seja a mais produtiva desde 1988, com relação aos altos cargos públicos. Esta instância não tem, todavia, competências intensas no trato da matéria objeto deste trabalho, porque não atinge, via de regra, juízes e peritos, salvo se houvesse uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar gigantescos esquemas fraudulentos, com envolvimento de parlamentares e outras autoridades. Há, também, a responsabilidade social, moral, que se submete, sobretudo, à força da opinião pública. Todavia, dependendo do agente público que estiver sendo acusado, pode haver esquemas mais ou menos eficazes de blindagem, geralmente costurados no campo empresarial. De qualquer modo, essa responsabilidade perante a opinião pública tem funcionado notavelmente, com bons resultados. As reportagens investigativas, produzidas com qualidade crescente, geram outras ações institucionais, não raro de parte do Ministério Público ou da Polícia, com o que os agentes públicos são melhor fiscalizados.
[26] Aliás, numa obra corajosa, TERÇAROLLI (2002) aponta a responsabilidade dos membros do Ministério Público por atos de improbidade. É verdade que, no plano material, a fundamentação do autor peca por não esquadrinhar os requisitos do ato ímprobo, confundindo algumas transgressões à legalidade – de duvidosa pertinência, diga-se
en passant – com ofensa ao dever de probidade. Porém, o acerto maior do autor é, sem dúvida, posicionar o problema e apontar a possibilidade de os agentes do Ministério Público praticarem atos ímprobos, inclusive na concretização de atos típicos de suas funções institucionais. A mesma lógica se aplica aos juízes e peritos, evidentemente, estes últimos em maior medida.
[27] Sobre a interferência do laudo pericial na liberdade intelectual do juiz, observa-se o tratamento rigoroso da matéria. Não há dúvida de que ao perito corresponde o dever de veracidade na prática de seus atos de ofício, em medida mais intensa do que o normal, porque preenche ele lacuna no campo cognitivo direto do juiz, que nele confia, sendo, por isso, auxiliar da administração da justiça. “É que do perito se espera”, como pondera DALL’AGNOL (2000), “quando menos, sejam suas informações fidedignas. Pode que se equivoque em uma vistoria, por exemplo, mas o que não se admite é que este equívoco nasça por imperícia, negligência ou imprudência. Provavelmente serão os dois primeiros elementos os que mais comumente se exibirão: o perito, em verdade, termina por demonstrar-se um imperito; ou, mesmo entendido sendo, em determinado ponto falha por não conhecer o que deveria. Ou não, não obstante a ciência, porta-se de modo desleixado, terminando por não informar o que devia ou informando o que não encontra sustento na realidade”. A inabilitação para outras perícias é sanção que independe de prejuízo, visto que se conecta, em realidade, à quebra de confiança juiz-perito”. Nessa linha de raciocínio, o perito, sendo um técnico, deveria conhecer suficientemente bem sua especialidade, sob pena de arcar com as responsabilidades devidas. Assim, arremata BARBI (1998): “Se, por deficiência desses conhecimentos, (o perito) informa de modo errado, agiu com falta de perícia que a função exige”. O que são, enfim, as tais informações inverídicas prestadas pelo perito, que dão causa às sanções sumariamente descritas no art.147 do CPC? Como ponderam NERY JÚNIOR e ANDRADE NERY (2001), tratam-se de dados “fornecidos pelo perito que não correspondem à realidade dos fatos, bem como às
configurações técnicas e científicas da área de conhecimento do perito. Também ocorrem quando o perito emprega fórmulas incorretas ou elementos inidôneos para chegar ao resultado da perícia”. A infração é de natureza formal, independe de evento danoso. “Verificada a infração, o juiz proferirá decisão inabilitando o perito para o exercício de sua atividade, em processo judicial, por dois anos”. O
informar de modo errado caracteriza-se, pois, pela omissão ou afirmação errôneas, cujos conteúdos são naturalmente variáveis, abarcando fatos ou configurações técnicas ou científicas da área de conhecimento do perito. Quem informa apenas parcialmente, sem adentrar detalhes ou aspectos fáticos ou técnicos relevantes, desvirtuando e distorcendo o sentido do ato pericial, induzindo o julgador em erro, pode ser aqui enquadrado. Quem omite elementos necessários, abstraindo caminhos relevantes e idôneos na avaliação do objeto da peritagem, incorre na transgressão aqui ventilada, é dizer, fornece informação despida de veracidade, a qual não significa, pois, percentual absoluto de acerto, mas comprometimento com a plausibilidade. Um laudo veraz é aquele que reflete juízos técnicos fundamentados e alicerçados na Ciência e nos fatos, vinculado à pretensão idônea de plausibilidade. Pode-se contestar e até mesmo desconsiderar esse laudo, por razões amparadas em outros estudos técnicos, mas não deixará ele de ser veraz tão somente porque não fora acolhido pelo juiz. O laudo incorre nos vícios do art.146 do CPC quando resulta despido de plausibilidade ou verossimilhança científica, quando resulta ser fruto de culpa ou dolo do profissional responsável, por conta das distorções nele detectadas. Diferentemente, o laudo teratológico é o monstruoso do ponto de vista técnico ou científico. Cuida-se daquela aberração chocante, de um erro gritante e escabroso, absurdo e manifestamente intolerável. Teratologia expressa, sobretudo, o sentido de anormalidade em seus extremos. Na fisiologia, é o tratado ou história das monstruosidades orgânicas, o que rompe, de forma abrupta e violenta, o equilíbrio normal do corpo. Daí por que os laudos teratológicos, ao contrário daqueles contaminados apenas por dolo ou culpa, são viciados por falhas grosseiras, escancaradas, manifestas, o que implica uma valoração adicional em jogo. A teratologia pode ser produto de dolo ou culpa, mas agrega o elemento exterior da visibilidade ostensiva, sua marca peculiar. Erro grosseiro, nessa medida, é o engano facilmente constatável, visível de tal modo que o agente resta impossibilitado de justificar-se ou se desculpar quanto à verdade por ele falseada ou deturpada, voluntária ou involuntariamente.
[28] Confira-se DINAMARCO (2002).
[29] A propósito da responsabilidade do perito, DINAMARCO (2002) lembra que, como agentes públicos que são, “os auxiliares da Justiça devem atuar com
impessoalidade, tanto quanto o juiz, uma vez que é público o serviço prestado e, quando no exercício de suas funções, é o Estado quem atua através deles.
Conseqüência direta da impessoalidade é o dever de imparcialidade e correlata possibilidade de serem recusados pela parte, com fundamento em suspeição ou impedimento. Outra conseqüência da impessoalidade é que, pelos atos dos auxiliares da Justiça de qualquer categoria, quando realizados no exercício da função, responde o Estado objetivamente. Correlativamente, respondem eles perante o Estado sempre que haja sido ao menos culposa a conduta do causador do dano. O Estado responde inclusive pelos atos dos auxiliares eventuais como o perito, o intérprete, o arbitrador ou o conciliador, que não-obstante serem profissionais autônomos, na prestação do serviço para o qual são convocados exercem função estatal.
A lei impõe ainda a responsabilidade civil dos auxiliares da Justiça perante a parte a quem hajam causado dano. Explicitamente, essa responsabilidade é atribuída ao escrivão e ao perito (CPC, arts. 144 e 147), ao depositário e ao administrador (art. 150) e ao intérprete (art. 153). Todavia, a responsabilidade civil extracontratual é categoria de direito substancial impondo-se a todos, o que conduz a concluir que todos os auxiliares da Justiça são responsáveis pelos danos que causarem. Eles são também possíveis sujeitos ativos de certos crimes próprios dos funcionários públicos, como a concussão, a corrupção passiva, a prevaricação etc. Os auxiliares eventuais, que não integram quadro algum, são sujeitos a regimes específicos em relação a suas responsabilidades, mas sem subordinação a regras estatutárias; pelo aspecto penal, eles podem ser sujeitos ativos daqueles mesmos crimes e ainda da falsa perícia etc”. Convém lembrar, evidentemente, que a quebra da imparcialidade nem sempre resulta aferível no rol dos impedimentos ou suspeições, visto que este consagra causas apriorísticas de recusa do funcionário público. A parcialidade pode transparecer apenas e tão-somente no laudo pericial, em vista dos critérios adotados ou omitidos. Nesse caso, não há falar-se em preclusão de espécie alguma, mas de validade da impugnação tempestiva e oportunamente deduzida, a partir do instante em que o juiz ou a parte prejudicada tomar ciência do ato eivado de desvio de poder.
[30] Vale reparar no tratamento penal ao conceito de funcionário público,
in verbis: art. 327 – “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública § 1º – Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) § 2º – A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público”. – “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”.
[31] O princípio do livre convencimento do Juiz, que o libera de vinculação estrita a laudos periciais, é consagrado tanto no Direito Processual Civil quanto no Direito Processual Penal, eis que pertence mesmo ao campo constitucional, no qual as autoridades judiciárias gozam de independência funcional. No campo do CPC, , resulta estatuído que o “juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos”, o que significa uma liberdade regrada e fundamentada, aliada a uma responsabilidade pela admissão de laudos ilícitos ou abusivos. Consulte-se, a propósito do assunto, OLIVEIRA (1999).
[32] O VII Congresso Internacional de Direito de Danos, ocorrido em Buenos Aires, no período de 2, 3 e 4 de outubro de 2002, em sua comissão nº 9, intitulada de “Responsabilidade dos profissionais do direito”, chegou às seguintes conclusões no que toca aos peritos judiciais: “I. Responsabilidad de los peritos 11. El perito judicial presenta un doble carácter: es un profesional y un auxiliar de la Justicia. Como profesional debe respetar la lex artis y como auxiliar de la Justicia el encargo judicial y las normas procesales.- 12. La responsabilidad del perito, auxiliar de la Justicia, es extracontractual. En cambio, la del consultor técnico o perito de control, es contractual. En el primer caso puede generar la responsabilidad del Estado, en el segundo no.- 13. En principio la responsabilidad del perito judicial está enmarcada dentro del
anormal funcionamiento de la Justicia, y excepcionalmente, cuando haya sido causa o concausa adecuada del error del juez, en el ámbito del error judicial”. Disponível em:
http://www.aaba.org.ar. Data de Acesso: 10.11.2005. Na mesma senda, o Conselho Profissional de Ciências Econômicas de Córdoba, em curso de capacitação para peritos judiciais desenvolvido em 2004, Módulo I, de 20 de agosto de 2004, estabeleceu as seguintes obrigações aos peritos judiciais: “Las obligaciones judiciales del perito: – Razonabilidad: brindar los fundamentos de hecho y científicos que sustentan el informe. – Congruencia: guardar relación entre las premisas y conclusiones. – Buena fe: no llevar a engaño a las partes o al juez. – Diligencia: presentar el informe en el plazo fijado por el juez.” Disponível em http://www.cpcecba.org.ar/ Data de Acesso:10.11.2005.
[33] Leia-se o histórico produzido por SOUZA LASPRO (2000), o qual posiciona a responsabilidade dos magistrados já no Direito Romano, alastrando-se como fonte de evolução dos mais diversos ordenamentos jurídicos. Na Espanha e em Portugal, influenciados por essa tradição, configurou-se como infração do magistrado não apenas a clássica hipótese de enriquecimento ilícito, mas também as hipóteses nas quais houvesse denegação indevida de direitos, exigindo-se, ainda, prudência do julgador.
[34] Ver MEDINA OSÓRIO (1997;1998; 1999).
[35] Nesse sentido é o pensamento de NIETO (2005).
[36] Tais noções estão expressas em FRANÇA (1980:124-130), através das contribuições de Macedo e Cretella Júnior. Também não é outro o sentido expresso na obra de GONZALEZ PÉREZ (1999; 1996; 1995), no tocante à moralidade que há de presidir a Administração Pública, o que implica vínculos de lealdade.
[37] É o que se colhe das lições clássicas de HAURIOU (1931;1938), sendo importante registrar as conexões da deslealdade com a imoralidade administrativa.
[38] GARCÍA DE ENTERRÍA (1998) pôs enorme ênfase na idéia de “confiança” ou “trust” nas relações entre administradores e administrados, abrindo espaço, justamente, para o fortalecimento de uma teoria sobre lealdade institucional, abarcando uma série de deveres públicos, ao tratar dos novos paradigmas de controle da Administração Pública britânica, a raiz do famoso Relatório “Nolan”.
[39] O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo disciplina com rigor normativo este assunto. Esse órgão editou o Provimento CSM no. 797/2003, considerando, no seu próprio discurso, que o interesse público recomenda a adoção de mecanismos de controle de nomeação e atuação de peritos judiciais e outros profissionais técnicos nas Varas e correspondentes Ofícios da Justiça de todo o Estado, bem assim na segunda instância, especialmente para prevalência da moralidade e da transparência dos atos judiciais. Como se vê, o ato pericial é considerado, no que toca sua funcionalidade instrumental, essencial ao ato jurisdicional. O documento da Justiça de São Paulo, em seus "considerandos", levou em conta que deve ser preservada a independência intelectual dos Magistrados, essencial ao relevante desempenho de suas funções. Os dispositivos processuais invocados na fundamentação desse Provimento foram os artigos 138, incisos III e IV e §§; 139; 145 a 153; 218, § 1º; 422 a 424; 434; 842, § 3º; e 990, VI do Código de Processo Civil e nos artigos 60, §§ 2º a 4º; 66; 67; 170 e 171 da Lei de Falências. É claro que caberia investigar, no plano institucional, quais os resultados da fiscalização correicional empreendida pelo Judiciário paulista nessa seara. Cabe aplaudir, no entanto, desde logo, a normativa editada na esfera administrativa.
[40] O Código de Ética Profissional do Contabilista – CEPC, aprovado pela Resolução CFC número 803, de 1996, do Conselho Federal de Contabilidade, contém significativo conjunto de deveres e proibições a esses profissionais, enquanto exercentes de atividades que, freqüentemente, consubstanciam a produção de laudos periciais. Destacam-se algumas obrigações que comportam transgressões de diversas índoles, revelando-se como referências válidas para profissionais que exerçam atividades similares. Entre os deveres desses profissionais da contabilidade está o de exercer a respectiva atividade com
zelo, diligência e honestidade, atributos que comportam infrações dolosas ou culposas, observada a legislação vigente e resguardados os interesses de seus clientes e/ou empregadores, sem prejuízo da dignidade e independência profissionais. Os interesses da sociedade devem ser levados em conta, especialmente quando, nas perícias judiciais, é justamente ela a principal destinatária dos serviços profissionais dos contadores ou contabilistas. Também estão obrigados esses profissionais a zelar pela sua
competência exclusiva na orientação técnica dos serviços a seu cargo, o que remete à obrigatória vinculação a preceitos de ordem técnica. Consta a proibição de o sujeito auferir qualquer provento em função do exercício profissional que não decorra exclusivamente de sua prática lícita ou de concorrer para a realização de ato contrário à legislação ou destinado a fraudá-la ou praticar, no exercício da profissão, ato definido como crime ou contravenção. Cuida-se de conjunto amplo de restrições. Ademais, é proibido ao contabilista solicitar ou receber do cliente ou empregador qualquer vantagem que saiba para aplicação ilícita
, bem assim
resulta terminantemente proibido prejudicar, culposa ou dolosamente, interesse confiado à sua responsabilidade profissional. Lembre-se que tal interesse, em se tratando de atividade pericial, é o da própria sociedade, maior destinatária de uma máquina judiciária isenta e independente, predicados indissociáveis da liberdade intelectual dos juízes e demais atores públicos.De igual modo, o profissional contabilista ou contador
não pode iludir ou tentar iludir a boa fé de cliente, empregador ou de terceiros, alterando ou deturpando o exato teor de documentos, bem como fornecendo falsas informações ou elaborando
peças contábeis inidôneas. Eis aí um conjunto de rótulos bastante gerais, nos quais cabe situar condutas dolosas ou culposas. O contador, quando perito, assistente técnico, auditor ou árbitro, deverá recusar sua indicação quando reconheça não se achar capacitado em face da especialização requerida; abster-se de interpretações tendenciosas sobre a matéria que constitui objeto de perícia, mantendo absoluta independência moral e técnica na elaboração do respectivo laudo; abster-se de expender argumentos ou dar a conhecer sua convicção pessoal sobre os direitos de quaisquer das partes interessadas, ou da justiça da causa em que estiver servindo, mantendo seu laudo no âmbito técnico e limitado aos quesitos propostos;
considerar com imparcialidade o pensamento exposto em laudo submetido a sua apreciação; mencionar obrigatoriamente fatos que conheça e repute em condições de exercer efeito sobre peças contábeis objeto de seu trabalho;
abster-se de dar parecer ou emitir opinião sem estar suficientemente informado e munido de documentos. O rol de restrições não se esgota nesse Código Ético, porque emerge da legislação aplicável à administração da justiça, bem assim da própria normativa administrativa editada pelo órgão de administração superior do Poder Judiciário. Porém, tem-se, aqui, um sinal eloqüente do conjunto de deveres, tanto de honestidade quanto de diligência, exigíveis de profissionais que, muito freqüentemente, estão chamados a atuar na condição de peritos judiciais. É certo que esses mesmos deveres devem ser cobrados de outros profissionais, ainda que não pertençam à categoria dos contabilistas ou contadores, quando exerçam atividades afins, no bojo do sistema judicial. É o caso dos advogados que atuam como peritos judiciais na fixação de honorários discutidos em juízo. Tal tarefa é, em todos os aspectos relevantes, idêntica a dos contadores ou contabilistas que estudam e arbitram valores relativos a problemas controversos em juízo. Embora os advogados tenham sua própria esfera disciplinar e estejam expostos, irremediavelmente, à normativa editada pelo Poder Judiciário, além das normas de Direito Processual Civil e de Direito Penal, é certo que a disciplina ética aqui mencionada serve como referência interessante na compreensão do alcance da Lei 8.429/92.
[41] Ilícitos culposos e dolosos ficam mais próximos no contexto das visões funcionalistas que permeiam o Direito Punitivo contemporâneo, como se vê pelo pensamento de JAKOBS (1995) no Direito Penal. A preocupação primordial com a funcionalidade geral do sistema punitivo da improbidade, em detrimento de visões substantivadas tão-somente na proteção dos valores puramente morais ou pessoais inerentes às atitudes intencionais ou não intencionais (e negligentes), é uma característica que tem preponderado nos modelos penais e administrativos sancionatórios, senão no campo teórico, certamente no terreno do Direito dos juristas. A primitiva obsessão pelo compromisso com a proteção exclusiva da intencionalidade das condutas, no lugar de focar seus resultados e os deveres objetivos exigíveis das pessoas, marcadamente nas relações de especial sujeição que o Estado mantém com seus servidores, não tem cabimento no bojo do sistema de Direito Administrativo Sancionador. Este é um sistema claramente aberto aos mais variados conteúdos, muitos derivados da normativa constitucional, mas é igualmente comprometido com o desempenho de funções punitivas às transgressões do dever de probidade administrativa. Quando se trata de peritos, cuida-se de avaliar o resultado da peritagem e os sinais exteriores de ilicitude comportamental, em detrimento de investigações infinitas sobre a subjetividade humana. É claro que existem causas de isenção da responsabilidade subjetiva, mas estas não se integram no processo hermenêutico de forma rígida, de tal sorte a impedir uma apreciação razoável da conduta diante da legislação.
[42] Sobre o elemento subjetivo do desvio de poder, reporto-me novamente a BANDEIRA DE MELLO (2000), o qual aponta a predominância da natureza objetiva dessa espécie de transgressão.
[43] Como diz MONTEIRO (1990:272), a repetição de uma perícia só pode ocorrer excepcionalmente, sendo ela uma prova de suma importância. Dentre as hipóteses previstas como idôneas para ensejar uma obrigatória repetição de perícia, o autor recorda de situações dolosas e culposas, indistintamente. Assinala, assim, os seguintes vícios: (a) erro do laudo oficial em questão relevante para a causa; (b) dolo do perito judicial; (c) incapacidade técnica do perito do juízo; (d) parcialidade do perito; (e) não ter sido a matéria suficientemente esclarecida. Mais adiante, o autor analisa a figura do “perito inidôneo ou incapaz”. “A responsabilidade civil, profissional, moral e penal dele exige que seja
idôneo, capaz e experiente, além de legalmente habilitado”. A idoneidade vem atestada formalmente pela ausência de antecedentes desabonatórios. Porém, a capacidade técnica vem afirmada na praxe forense. O perito que é incapaz, técnica e profissionalmente, ou, ainda, o tendencioso, faccioso e parcial (o que produz laudo conforme a parte que mais lhe agrada), segundo o mesmo autor, deve ser destituído
ex officio e fundamentadamente pelo magistrado. A perícia realizada por essa espécie de perito deve ser desconsiderada e desentranhada dos autos, mandando o juiz que se renove o ato. O laudo do perito inidôneo ou incapaz não pode ser aproveitado. Deve o perito devolver toda e qualquer verba honorária recebida. Outra é a situação de suspeição do perito, que deve ser argüida incidentalmente, com o devido processo legal. Repare-se que este autor não maneja conceitos atrelados exclusivamente a figuras dolosas. E seu raciocínio deixa claro, ademais, que o perito despreparado pode ser também o tendencioso. Este último, em qualquer caso, não procura, necessariamente, enriquecimento ilícito. Pode ser um sujeito simplesmente parcial, que se agrada de uma das partes e desagrada de outra, pendendo sua balança – não importa a razão – para um dos lados. Tal postura, longe de ficar distante da realidade, pode ostentar motivações bastante variadas, desde aquelas de ordem ideológica (o perito quer promover redistribuição de rendas e erradicar a pobreza com seu trabalho), até aquelas que resultam impregnadas de concepções revestidas do véu da ignorância (o perito busca ajudar uma das partes porque seu despreparo intelectual não lhe permite compreender as razões da outra e sua preguiça ou desídia obstaculizam um acesso qualificado ao conhecimento em causa).
[44] Se na improbidade devemos exigir dolo ou culpa grave, no mínimo, para reconhecer suporte à responsabilidade do agente, outro é o tratamento à esfera processual civil de sancionamento judicial, eis que dolo ou culpa,
tout court, é o que basta para responsabilizar o perito por infração ao art.147 do Código Processual Civil. Não se trata, sequer, da culpa grave, no tocante à sanção diretamente imponível pelo juiz do processo no qual o perito obra dolosa ou culposamente. Diz, a propósito, PONTES DE MIRANDA (2000): “Se o perito, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas (comunicações de conhecimento falsas), é responsável pelos prejuízos que causar à parte, fica inabilitado, por dois anos, a funcionar noutras perícias e incorre nas penas que o direito penal estabeleça (….). Informações inverídicas são as comunicações de conhecimento em que há infração do dever de verdade. Basta a culpa para que incida o art.147. Dolo ou culpa, lê-se no Código de 1973. No de 1939, art.131, par.1o, falava-se de dolo ou culpa grave. Não basta a divergência de opiniões ou de pareceres para se dizer que as informações são inverídicas. Se o perito, intencionalmente, algo apontou de inverídico, ou mesmo apresentou dados que não correspondem à realidade, dolosamente atuou. Se somente houve culpa, a lei estabelece o mesmo tratamento. Compreende-se isso, porque se trata de pessoa de que se espera pleno conhecimento da matéria. A responsabilidade é pelos danos causados à parte ou às partes e outras pessoas que constem do processo. Quer tenha havido danos, quer não, há a sanção de inabilitação temporal. A vedação não só se relaciona com o juízo em que ocorreu a informação inverídica; é para qualquer juízo. Além disso, há a lei penal, a que remete o art.147”. Dolo e culpa andam juntos. Categorias aproximadas na perspectiva funcional do sistema processual civil. Isso, porque do perito se exigem deveres mais enérgicos, conhecimentos especializados. A inabilitação, por seu turno, é uma sanção que independe, logicamente, das sanções penais cabíveis, mas transcende, além disso, eventuais sanções disciplinares que o órgão corporativo de origem do perito resolva por bem aplicar. Não parece inútil lembrar que as sanções cominadas aos atos de improbidade, revestindo-se de status judicial e disciplinadas pelo Direito Administrativo, independem, de igual modo, das demais medidas sancionatórias aplicadas ao caso, nos termos do próprio art.37, par.4o, da Magna Carta.
[45] Veja-se FRANÇA (1980:473) e o tópico comentado por Silvio de Macedo. Sem discrepar desta idéia, consultem-se AULETE (1968:2085), este numa perspectiva mais sintética, e DE PLÁCIDO E SILVA (1984:391), o qual sinaliza a noção de
bons procedimentos ou dos costumes e hábitos conforme a moral. [46] Especificamente no tocante ao problema do
excesso de poder, a fronteira com a desonestidade criminosa pode ser tênue, ao mesmo tempo em que se há de reconhecer espaços autônomos aos ilícitos penal, administrativo e cível. Trata-se de um dilema que ocupa a pauta de preocupações também do Direito comparado, como se pode notar em PAGLIARO (1998; 1999) e toda a literatura italiana que se debruça sobre as diferenças entre o crime de abuso de ofício e o ilícito associado ao excesso de poder. A tipificação penal, normalmente, adota técnicas mais rígidas de controle social, denotando, ao abrigo de uma estreita tipicidade formal, a sinalização da conduta proibida. No Direito Administrativo que tutela relações de especial sujeição, ao contrário, o ideário e a elasticidade das normas punitivas são distintos, podendo abrigar uso mais abundante de termos jurídicos indeterminados, desde que, é certo, haja respeito pelos cânones do devido processo legal, em sintonia com as exigências de segurança jurídica e racionalidade do poder punitivo do Estado.
[47] Esse é o conceito de honestidade profissional que se recolhe da idéia de moral fechada, consoante a lição de MOREIRA NETO (1992) ou os clássicos comentários de HAURIOU (1931; 1938) à jurisprudência do Conselho de Estado francês, abordando modalidades de honestidade profissional, dentro da idéia de ética institucionalizada e restrita ao setor público, no embasamento do princípio da moralidade administrativa.
[48] Numa visão restritiva da Lei 8.429/92, MELLO (1995) chegou a sustentar que o juiz que vende sentença não estaria enquadrado nos ditames da Lei de Improbidade, porquanto esta alcançaria apenas os atos tipicamente administrativos. A posição por mim assumida, desde o início, foi em sentido diverso, como se vê em MEDINA OSÓRIO (1997; 1998), eis que sustentei, desde logo, a aplicabilidade da Lei aos juízes, parlamentares e todos os agentes públicos, inclusive no tocante aos atos típicos, tese que posteriormente acabou prevalecendo.
[49] Repare-se no acórdão da 2a C.Cível do extinto Tribunal de Alçada gaúcho, Relator o então Juiz de Alçada Clarindo Favretto, de 15 de junho de 1989, citado por BUSSADA (1994:292
et sequ).
[51] Produto da ineficiência, em grau acentuado, é a chamada teratologia, a “monstruosidade” jurídica ou administrativa, que reflete um ato deturpado em sua essência, seja no conteúdo, seja na forma exterior.
[52] Refiro-me, naturalmente, aos dispositivos do art.9o da Lei 8.429/92.
[53] Sabino CASSESE (1992; 1993) é um dos maiores especialistas no trato da má gestão pública. Sua experiência, na Itália e na União Européia, o avalizam como um dos grandes teóricos e estudiosos do assunto. Dele emergem preciosas lições sobre as nefastas conseqüências dos ambientes descontrolados, infectados por ineficiência crônica, precisamente no sentido de configuraram terreno fértil às práticas desonestas. Quando maior o grau de descalabro administrativo, falta de transparência e descontrole, maiores as oportunidades para a concretização de atos corruptores e corruptos.
[54] Imperioso valorizar o princípio da imparcialidade dos peritos, enquanto agentes públicos, eis que tal atributo, longe de pertencer ao campo puramente teórico do Direito Administrativo, reclama intervenções contundentes dos operadores jurídicos, em busca de uma densidade real, e não meramente fictícia. Sobre este tema, a leitura de ALLEGRETTI (1965) e MELLO RIBEIRO (1996) bem revela um conjunto de conseqüências imanentes ao dever de imparcialidade, não se resumindo à esfera das normas explícitas no sistema. É possível reconhecer normas implícitas ou imanentes ao princípio da imparcialidade, no Brasil designado como impessoalidade, entrelaçado com a eficiência, a moralidade, a legalidade e a publicidade administrativas (art.37,
caput,CF). Quer-se a otimização do princípio da eficiência do sistema judicial e tal desiderato só é possível, no contexto aqui examinado, se as perícias forem qualificadas. Cálculos complexos devem ser efetuados por profissionais isentos e gabaritados, o que significa que não podem ostentar interesses, sequer indiretos, na causa ou em causas semelhantes. Os controles começam, pois, no momento da seleção do perito, mas perduram por todo o processo e resultam limitados, noutras esferas, por prazos prescricionais da respectiva pretensão punitiva do Estado, tal como ocorre com a Lei 8.429/92. A imparcialidade administrativa não é, portanto, um atributo abstrato, que se exija apenas no inesgotável universo da moralidade subjetiva do agente. É necessário, dentro das alternativas disponíveis, optar pela nomeação de peritos que não mantenham vínculos ou interesses secundários, indiretos ou profissionais, com a jurisprudência que possa emergir de suas deliberações técnicas. Quando esse tipo de nomeação ocorrer, será imprescindível intensificar os controles sobre o trabalho pericial. A densidade e a eficácia do princípio da imparcialidade administrativa depende, em grande medida, da razoabilidade empregada no processo hermenêutico. Ser imparcial não equivale a ser despido de valores e concepções, mas traduz, necessariamente, uma posição objetivamente eqüidistante dos interesses em jogo, tanto no plano dos impedimentos e suspeições, verificáveis dentro de prazos exíguos no processo, quanto no terreno de outras circunstâncias menos evidentes, só aferíveis a partir do instante em que vem à tona o ato pericial. Assim, certos problemas, por sua natureza, permitem que se reconheça, prudentemente, uma apriorística tendência do perito para valorizar algumas posições em detrimento de outras. Essa tendência pode assumir conotações corporativas, ideológicas ou até mesmo pessoais, dependendo de um exame particularizado. Um bom exercício lógico pode ser útil nesse tipo de análise. O aprofundamento analítico depende de um percuciente exame do caso concreto e do padrão comportamental do perito e do juiz que eventualmente respalde, modo sistemático, posições viciadas por desvio de poder.
[55] Recomendável, sobre a dimensão funcional do Direito Penal e a aproximação entre ilícitos culposos e dolosos, na perspectiva da vigência da norma sancionadora, a leitura da obra de JAKOBS (1995). Sobre a liberdade de conformação legislativa dos ilícitos, ainda que se considerem os limites relativos às teorias dos bens jurídicos, não se pode negar a existência de amplos espaços discricionários do legislador, circunstância a aproximar ilícitos culposos e dolosos, penais e administrativos. A gravidade das infrações e das sanções é fixada pelo Poder Legislativo, mostrando-se difícil, senão impossível, acatar qualquer espécie de ontologia para fins de fixar patamares hierárquicos rígidos. Não é por outra razão que as fronteiras entre ilícitos penais e administrativos são igualmente tênues, como se percebe na literatura consagrada em torno ao Direito Administrativo Sancionador e ao Direito Penal, tendo-se por referências os escritos de NIETO (1994), CEREZO MIR (1998) e RINCÓN (1989).
[56] A interdição à arbitrariedade é um preceito constitucional comum aos países civilizados, como anotou oportunamente FERNÁNDEZ RODRIGUEZ (1990). Sobre a importância das decisões jurídicas serem ao menos vocacionadas à universalidade, caberia lembrar que se trata de avaliar o parâmetro da fonte das normas. Sendo as decisões judiciais fontes de normas, como diz ÁVILA (2003), percebe-se a necessidade de que seu comprometimento intrínseco seja com a isonomia e a racionalidade, através de metodologias hermenêuticas e respeito ao sistema. Tal assertiva se aplica, muito especialmente, aos laudos periciais, enquanto instrumentos auxiliares na formação do entendimento jurisdicional, o qual há de primar pela independência intelectual e cognitiva. As normas devem ser gerais e abstratas; por isso, os dispositivos nascem gerais e totalmente abstratos (às vezes, nem tanto), bem assim os juízes são dotados de independência e predicados de imparcialidade; por tal razão, ainda, juízes devem ater-se aos precedentes ou aos textos constitucionais ou legais, enquanto referências gerais e abstratas, para não caírem na vala do subjetivismo arbitrário. As normas que nascem da resolução dos casos concretos, portanto, em sua essência, também devem ostentar essa mesma pretensão à universalidade, nos casos análogos, sob pena de perderem o referencial de legitimidade isonômica e racional. As exceções devem ser fartamente fundamentadas, de modo transparente, assumindo idênticas pretensões à universalidade, dentro de seus parâmetros estreitos, como
regras de exceção. Nesse sentido, pode-se consultar ALEXY (1997).
[57] Repare-se que o desvio de poder ocorre, nos dizeres de BANDEIRA DE MELLO (2000), quando o agente busca finalidade alheia ao interesse público, v.g, perseguindo inimigos ou beneficiando amigos ou a si próprio, através do manejo indevido de seus poderes. Também se dá o mesmo vício quando o agente busca finalidade de interesse público, porém alheia à categoria competencial do ato praticado. Assim, não importa que a diferente finalidade com que tenha agido o sujeito seja moralmente lícita. E prossegue o administrativista dizendo que
ambas as modalidades mencionadas podem ser encontradas nos atos judiciais. É que, embora seja construída em torno de conceitos de Direito Administrativo, a teoria do desvio de poder é plenamente aplicável aos atos por todos os Poderes. Essa teoria aplica-se aos agentes públicos que exorbitem de suas competências, exercitando os poderes que o ordenamento jurídico lhes confere para atingir fins estranhos aos estabelecidos na regra de competência. Nessa direção abrangente sinalizou, de forma precursora, FAGUNDES (1957). O perito que pretender, pois, redistribuir renda com o juiz por instrumento, em vista de suas convicções ideológicas e seu espírito “humanitário”, poderá incorrer na Lei 8.429/92.
[58] Como se lê em MEDINA OSÓRIO (2005), os órgãos de controle e correição disciplinar, entre os quais se incluem os de fiscalização profissional, são os que poderiam, teoricamente, fiscalizar mais de perto as atividades estreitamente ligadas às funções desempenhadas pelos sujeitos, mas as dificuldades na operacionalização dessa espécie de responsabilidade administrativa são numerosas. Existe baixa juridicidade nesses processos sancionatórios, sendo tímidos os resultados, quando não há, pura e simplesmente, proliferação de abusos. As estruturas desses órgãos nem sempre coincidem com as elevadas expectativas sociais. Patologias ligadas a corporativismos e protecionismos
interna corporis repercutem na frustração de legítimas demandas da sociedade, ocasionando altos índices de impunidade e baixas taxas de controle. É possível acionar, pois, outros canais competentes em busca de responsabilidades, simultaneamente. A via disciplinar é apenas um dos caminhos disponíveis e, ainda assim, talvez o mais tímido deles. Peritos que exerçam profissões de médicos, engenheiros, contadores ou advogados são passíveis de fiscalização por suas entidades de origem, as quais ostentam numerosas prerrogativas sancionatórias, passíveis de exercício no contexto de um Direito Administrativo Sancionador
turbinado, sempre que vierem, em razão dessas funções, a cometer ato ímprobo através de laudo pericial viciado por dolo ou culpa grave. Então, as instâncias, nesse caso, podem ser acionadas simultaneamente, na tutela da probidade administrativa: a penal; a de reparação dos danos; a administrativo-disciplinar; a administrativo-judicial da ação civil pública. Trata-se de normas que integram o curioso espectro do Direito das responsabilidades.
[59] A Administração do Judiciário do Estado de São Paulo resolveu, como já se disse, em 13 de março de 2003, estabelecer, no Provimento do Conselho Superior da Magistratura (CSM) no. 797/2003, uma série de obrigações, poderes e sujeições dos peritos ao controle do Poder Judiciário, alcançando a prestação de serviços por peritos, tradutores, intérpretes, administradores, liquidantes, comissários, síndicos, inventariantes dativos e outros auxiliares não funcionários na Justiça Estadual. Segundo esse Provimento, caberá ao profissional nomeado pela primeira vez a apresentação, ao respectivo Ofício de Justiça, no prazo de dez dias, de sua qualificação pessoal e de uma série de documentos, inclusive outros a critério do juiz, renováveis periodicamente e sempre que houver alteração na titularidade da Vara, comprovando dados atinentes à integridade (ausência de certidões criminais positivas), quanto da competência técnica. Os documentos passam a integrar acervo passível de controle pela Corregedoria-Geral da Justiça, que monitora os honorários periciais, e pelas partes, justificadamente. Em caso de nomeação de estabelecimento oficial, nos termos do artigo 434 do Código de Processo Civil, sem identificação do perito, deverá o juiz comunicar ao estabelecimento nomeado a proibição de atuação de profissional que tenha parentesco sangüíneo, por afinidade ou civil com o juiz ou servidor da unidade judicial de origem do pedido, bem como de profissional que tenha sofrido punição administrativa ou penal em razão do ofício, submetendo-se ao juiz eventuais dúvidas. O juiz informará à Corregedoria Geral da Justiça e a todos os magistrados da Comarca os nomes dos profissionais nomeados e comunicará inabilitações e punições, com cópias dos respectivos atos.
Ao final da fase instrutória de ação em que tenha havido perícia ou outro trabalho técnico que não o de contador do Juízo, o diretor do Ofício Judicial informará à Corregedoria Geral da Justiça o (s) nome (s) do (s) profissional (is) que tenha (m) atuado e a remuneração fixada pelo juiz.
A remuneração de perito, intérprete, tradutor, liquidante, administrador, comissário, síndico ou inventariante dativo será fixada pelo juiz em despacho fundamentado, ouvidas as partes e, se atuante, o Ministério Público, à vista da proposta de honorários apresentada, considerados o local da prestação de serviços, a natureza, a complexidade, o tempo necessário à execução do trabalho e o valor de mercado para a hora trabalhada, sem prejuízo do disposto no artigo 33 do Código de Processo Civil. Tais disposições aplicam-se, no que couberem, aos Tribunais e Colégios Recursais do Poder Judiciário do Estado.
[60] Tive oportunidade de referir mais profundamente essa crise endêmica do sistema punitivo noutro lugar. Confira-se: MEDINA OSÓRIO (2005).
[61] Segundo a Lei Geral de Improbidade, em seu art. 13, “a posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração dos bens e valores que compõem o seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente § 1° A declaração compreenderá imóveis, móveis, semoventes, dinheiro, títulos, ações, e qualquer outra espécie de bens e valores patrimoniais, localizado no País ou no exterior, e, quando for o caso, abrangerá os bens e valores patrimoniais do cônjuge ou companheiro, dos filhos e de outras pessoas que vivam sob a dependência econômica do declarante, excluídos apenas os objetos e utensílios de uso doméstico. § 2º A declaração de bens será anualmente atualizada e na data em que o agente público deixar o exercício do mandato, cargo, emprego ou função. § 3º Será punido com a pena de demissão, a bem do serviço público, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, o agente público que se recusar a prestar declaração dos bens, dentro do prazo determinado, ou que a prestar falsa.§ 4º O declarante, a seu critério, poderá entregar cópia da declaração anual de bens apresentada à Delegacia da Receita Federal na conformidade da legislação do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza, com as necessárias atualizações, para suprir a exigência contida no caput e no § 2° deste artigo”.
[62] Na tipificação do crime de falso testemunho ou falsa perícia, o Código Penal foi enfático, embora deixando aberta a via larga da retratação, no art. 342,
in verbis: “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001). Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.§ 1
o As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta.(Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)§ 2
o O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.(Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)”. Se tomarmos como paradigma o funcionalismo de JAKOBS (1995), a tipificação e punição do crime de falsa perícia tem por objetivo assegurar a vigência geral da norma relativa à lisura e probidade dos peritos, os quais não podem abdicar dos elevados deveres públicos de colaboração com a máquina judiciária e proteção à liberdade intelectual dos juízes. No entanto, o legislador penal ficou centrado nos aspectos pertinentes à corrupção em sentido amplo, alcançando modalidades transgressoras manchadas pela desonestidade funcional. No plano da Lei 8429/92 e, em maior medida, do próprio art.146 do CPC, vê-se novamente a vocação à proteção da vigência das normas que presidem a probidade dos funcionários públicos, agora especialmente reforçada quanto aos peritos, como traço inerente à funcionalidade desse sistema punitivo e disciplinar. Daí por que a probidade ganha o colorido peculiar da eficiência funcional mínima, tanto na Lei Geral de Improbidade, quanto na regra processual que assegura ao juiz atribuição para sancionar com pena de inabilitação o perito inidôneo.
[63] A rejeição à prerrogativa de foro foi ponto de unanimidade entre as entidades representativas das instituições fiscalizadoras. Tanto a chamada Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP), que congrega os membros dos Ministérios Públicos Estaduais e do Trabalho, quanto a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), quanto, ainda, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) defenderam a rejeição, pela Câmara dos Deputados, de dispositivo que estabelece o foro privilegiado para os ex-titulares de cargos ou funções públicas, no que se refere à improbidade administrativa, considerando o tratamento discriminatório que tal previsão constitucional ocasionaria, dificultando, de forma severa, o trabalho fiscalizatório e controlador de juízes e membros do Ministério Público. Tais entidades firmaram posicionamento público, por suas principais lideranças, contrário à própria alteração do art.84 do Código Processual Penal, que contemplou a prerrogativa de foro tanto aos atuais quanto aos ex-agentes políticos, no tratamento das ações de improbidade. A argumentação básica ficou centrada na proteção ao princípio isonômico, ausência de permissivo constitucional e na falta de estrutura dos Tribunais pátrios para enfrentar essa demanda. O certo é que tal tese acabou, realmente, prevalecendo, inclusive, nos Tribunais Estaduais, os quais vinham rechaçando a constitucionalidade da legislação alteradora do CPP. Essa foi também a tese vencedora no STF. Penso que isonomia é, na clássica acepção, o tratamento desigual dos desiguais, na medida mesmo dessas desigualdades. Isso, porque uma prerrogativa de foro nunca foi ofensa à isonomia. No entanto, a tese vencedora é outra.
Informações Sobre o Autor
Fábio Medina Osório
Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid, pela Capes. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor colaborador nos cursos de mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da UFRGS. Professor nos cursos de pós-graduação da Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (RS). Promotor de Justiça/RS. Vice-Presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE). Membro do Grupo Nacional Anticorrupção da Transparência Brasil.