Direitos Humanos

Incidente de Deslocamento de Competência: A Federalização das Violações de Direitos Humanos no Brasil

Patrícia Rodrigues da Silva[1]

 

RESUMO: A Emenda Constitucional n. 45 de 2004, insere no texto constitucional a previsão do Incidente de Deslocamento de Competência. Expressa-se, através da reforma do Poder Judiciário, na possibilidade de deslocar da competência para o julgamento de graves violações de direitos humanos da Justiça Estadual para a Justiça Federal, com objetivo de prevenir possível responsabilização da União por descumprimento de tratados e convenções internacionais, bem como, em tese, promover o combate à impunidade. O Superior Tribunal de Justiça, é provocado pelo Procurador-Geral da República, demonstrando em seu pedido a ocorrência de grave violação de direitos humanos, e a responsabilidade do Brasil em razão dos tratados assinados, bem como a inércia, incapacidade ou ausência de vontade política do estado competente.

Palavras-chave: Texto Constitucional, Graves Violações, Responsabilização.

 

INCIDENT COMPETENCE SHIFT: THE FEDERALIZATION OF HUMAN RIGHTS VIOLATIONS IN BRAZIL

 

ABSTRACT: The Constitutional Amendment n. 45 of 2004, inserts in the constitutional text the forecast of the Incident Competence Shift. Is expressed,through the reform of the Judiciary, the possibility to move from the competence to the judgment of serious violations of human rights of the State Justice to the Federal Justice, in order to prevent possible accountability of the Union for non-compliance with international treaties and conventions, as well as, in theory, to promote the fight against impunity. The Superior Court of Justice, is provoked by the Attorney General of the Republic, demonstrating in its request the occurrence of a serious violation of human rights, and the responsibility of Brazil for the signed treaties, as well as the inertia, incapacity or lack of political will competent state.

Keywords: Constitutional Text, Serious Violations, Accountability.

 

INTRODUÇÃO

Esse artigo tem como objetivo geral demonstrar a importância dos mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos, em especial o recente instrumento previsto artigo 109, inciso V-A, § 5°, da Constituição Federal de 1988, introduzido pela EC 45/04. Trata-se da possibilidade de federalização da competência para processar e julgar as graves violações aos direitos humanos, ou seja, a possibilidade de deslocamento de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal para o processamento e julgamento de causas relativas a crimes contra os direitos humanos.

Arvora-se a realização de um estudo sistemático da legislação interna, a fim de demonstrar a constitucionalidade e auto aplicabilidade da norma expressa no artigo 109, inciso V-A, § 5º, da Constituição de 1988 – o Incidente de Deslocamento de Competência. Propõe-se, ainda, confrontar o instituto com a sistemática jurisdicional internacional de proteção aos direitos humanos, que admite a submissão de um caso de violação aos direitos humanos à apreciação de organismos internacionais quando o Estado se mostrar falho ou omisso no dever de protegê-los.

A análise adotará como ponto de partida a narração do processo histórico dos direitos humanos, com seu constante processo de globalização, a fim de compreender o significado histórico da política de violações dos referidos direitos.

Em seguida, o estudo se concentrará no desenrolar político até culminar na proposta de emenda à Constituição, que incluiu esse mecanismo como mais uma possibilidade de proteção dos direitos humanos, bem como, as críticas e sua aplicação.

Ademais,  os objetivos específicos são avaliar a posição do Brasil diante dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, bem como, desenvolver uma investigação que permita avaliar o modo como o Estado brasileiro se relaciona com o Direito Internacional e os Direitos Humanos e como podem contribuir para o reforço do sistema de proteção de direitos no país, a partir dos pressupostos de responsabilidade Estatal e das garantias de direitos humanos.

Posteriormente, será definido os critérios objetivos sobre como os tratados internacionais de proteção de direitos humanos são incorporados pela ordem interna, sendo utilizada pelos mais diversos atores sociais.

Não obstante, o trabalho consiste na investigação de como a Advocacia Internacional dos Direitos Humanos é exercida no Brasil e quais suas influências na elaboração de mecanismos internos de proteção aos direitos humanos. Ademais, discute-se brevemente sobre a concessão de anistias e medidas similares de ‘perdão’.

Para tanto, está análise perpassa acerca do incidente de deslocamento de competência, que foi uma resposta a pressão internacional para que os crimes contra os direitos humanos não tornassem impunes.

As dúvidas que suscitaram interesse pelo tema, consistem na profícua analise da constitucionalidade ou não deste instituto e, na ausência dessas discussões no âmbito acadêmico, tal como, investigar a legalidade e possibilidades deste instrumento, a fim de saber se o objetivo de proteger os direitos humanos é alcançado, pois, são os principais justificativas do Incidente de Deslocamento de Competência, ainda, ser pouco utilizado.

Outrossim, posto a previsão constitucional de intervenção federal, em sendo a federalização das violações de direitos humanos uma forma mais branda de intervenção, por que impedir sua aplicabilidade? Ainda, em que peses as discussões, é necessário reconhecer que essa prerrogativa tem contribuído como precedente para conceituar “graves violações contra os direitos humanos”, pois nunca antes foi definido seus critérios de definição – se a lei por si mesma não consegue construir uma definição para se apoiar, por que barrar iniciativas como essas? Por fim, porque limitar sua abrangência e legitimados apenas a discricionariedade de poucos, a depender de interesse apenas ao Procurador-Geral da República, existem interesses políticos em não solucionar adequadamente tais crimes?

A partir da narração histórica do desenvolvimento dos direitos humanos, principalmente no Brasil e dos estudos de casos de violação de direitos humanos que foram suscitados o incidente de deslocamento de competência, será analisado os princípios outrora consagrados como dogmas, que, hodiernamente sofre notório processo de relativização e até onde o rompimento desses entendimentos contribuem ou não para ampliação das garantias fundamentais.

A metodologia utilizada envolve o método dedutivo e a pesquisa teórica. Em que pese o tema tratado, o trabalho realiza-se com base em bibliografias de autores renomados do Direito Constitucional e Direitos Humanos que buscam explicar a teoria do incidente de deslocamento de competência. Não obstante, traz-se o regramento legal consagrado na Constituição Federal de 1988, como um marco divisor no processo de democratização do Brasil e efetivação da proteção dos direitos humanos.

 

  1. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

1.1 SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

O debate acerca da proteção internacional dos direitos humanos ganha evidencia a partir de respostas jurídicas ao Nazismo, no contexto após Segunda Guerra Mundial. A partir desse período, a literatura comparada ganha impulso e nos oferece importantes contribuições teóricas (BUERGENTHAL, 1996, p.140). Desse período, depreende-se que “se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução” (PIOVESAN, 2012, p. 184).

Propõe-se, ainda, apreender o significado histórico da política, com o surgimento da Segunda Guerra Mundial e o Regime Nazista, que fragilizaram as esparsas noções de direitos humanos, e fez com que o assunto voltasse a pauta no cenário internacional.

O significado histórico e cultural da política de violência é facilmente atribuído a uma profunda crise do positivismo jurídico dissociando a ética do direito, onde arbitrariedades e barbáries são perpetradas em nome da lei. A intelectual Hannah Arendt, confirmando a ótica meramente formal da lei ao cunhar o famoso conceito de “banalidade do mal”, atesta a confluência da capacidade destrutiva e burocratização da vida pública. O Nazismo, o Holocausto, as Guerras Mundiais e as inúmeras ditaduras não são devido à ausência de lei, mas a indiferença sistemática a valores éticos e insistência em clichês burocráticos.

Diante a tentativa de proteção dos direitos humanos, e o tensionamento da justiça de transição, diversas situações foram questionadas como, por exemplo, punir ou perdoar as violações cometidas nos regimes anteriores. Comissões da verdade surgiram como forma de responsabilização, contudo, passíveis de críticas sobre suas efetividades na prática.

No Brasil, ocorreu fenômeno semelhante após o período de Ditadura Civil-Militar (1964 e 1985) – que perdura seus impactos sem uma solução justa. João Goulart, o então presidente, sob as alegações que estaria aderindo a ideologias comunistas, sofre um golpe das forças armadas que passaram a governar o país.

Com efeito, para além de uma mera narrativa do processo político, e a partir da construção da interpretação de um período histórico e de seu significado jurídico, no Brasil, durante o período denominado Ditadura Civil-Militar, o país foi marcado pela supressão da democracia e mitigação dos direitos constitucionais, permeado por censura, perseguição política e repressão.

A abolição da democracia herdada do período populista (1945-1964), inicia-se com uma série de arbitrariedades: o ápice foi a elaboração do Ato Institucional n. 5, e com a posse de Médici, instituindo a supremacia da esfera de representação burocrática, baseada no burocratismo e no direito burguês, com representação política, baseada em alguns resquícios de consulta política no Poder Legislativo, na estrutura partidária e no processo eleitoral (SAES, 1994, p. 13-51). Portanto, o Poder Judiciário não poderia apreciar a legalidade das decisões e atos praticados pelo Estado.

Salienta-se que, o Brasil possuiu muitas dificuldades em transacionar as raízes de violência, autoritarismo e cultura de impunidade para o regime democrático, sendo um dos últimos Estados a reconhecer a competência jurisdicional da Corte Interamericana, quando da elaboração do Texto Constitucional de 1988 (PIOVESAN, 2011, p. 143).

É válido supor no aspecto da evolução histórica das Constituições brasileiras que essa última é dotada de elevados aspectos axiológicos, manifesto através da adoção de diversos princípios, com ênfase ao da dignidade humana, preocupação inédita com os princípios fundamentais.

Ademais, admitindo-se que a preocupação com os direitos humanos constituiu um lento e longo processo, apreende que o sentido e significado da luta por assegurar os direitos humanos é um processo constante de evitar a violência em suas múltiplas formas e garantir o respeito à vida em todos os aspectos e independente de qualquer circunstância.

Definir um marco temporal para o surgimento dos direitos humanos é complexo, pois, por vezes, se confunde com a construção de indivíduo, intrínseco a natureza humana. A teoria jusnaturalista fornece um caminho para o entendimento, definindo os direitos humanos como fruto da consciência humana, não originária de leis ou tribunais.

Esse enfrentamento com o passado tem por objetivo evitar que as violências políticas de violações de direitos humanos ocorridos, reapareçam. Contudo, apesar dos esforços da institucionalização da justiça de reafirmação dos direitos humanos, é necessário reconhecer as limitações dos mecanismos que buscam estabelecer a verdade.

Nesse sentido, um documento histórico orienta a tentativa de um marco temporal do surgimento dos direitos humanos. Fruto das Revoluções do século XVII (Revolução Americana e Revolução Francesa), a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) estabelece uma universalização de aplicação desses direitos, sendo referência aos movimentos constitucionalistas (TAIAR, 2009, p. 168).

As discussões expandiram de forma a abranger os Tribunais Penais Internacionais (TPI), a partir daí, surgem as primeiras concepções de um “direito à verdade” e um “direito à reparação” no Direito Internacional.

Fenômeno alheio a preocupação internacional, foi o que ocorreu em diversos Estados latino-americanos. Promulgadas leis denominadas de auto-anistia, que posteriormente tornaram-se sinônimo de impunidade, onde pouco se avançou na consecução da justiça e da conciliação.

Contudo, em 1988 surge um marco divisor no processo de democratização do Brasil, consolidado pela Constituição Federal. Constitui-se, então, a ruptura com o regime autoritário militar de 1964, inserindo o país na comunidade internacional de proteção dos Direitos Humanos.

Como resposta a necessidade de proteção no âmbito internacional de proteção dos direitos humanos, surge a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. Nesse mesmo ano, é instituída a Comissão de Direitos Humanos, com o fim de estabelecer os conceitos e preocupações acerca do assunto, através da elaboração de uma Carta Internacional.

Carta Internacional que constitui os primeiros esboços para a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), ratificada em 1948. Apesar desse documento não ser revestido de obrigatoriedade legal, é expressamente utilizada na elaboração da legislação de diversos países.

Para suprir a carência da coerção legal, a ONU, em 1966, elabora o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os quais juntos com a Declaração Universal de Direitos Humanos, constituem a Carta Internacional dos Direitos Humanos.

Norberto Bobbio na obra “A Era dos Direitos”, (2004, p. 72) leciona que “os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais.” Desse modo, surge a concepção contemporânea dos direitos humanos, desconstruindo lugares-comuns da política, marcando a discussão pela universalidade e indivisibilidade dos referidos direitos.

 

1.2 RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL POR VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

O âmbito de efeito da responsabilidade internacional, tem aplicação interna para aqueles signatários dos tratados internacionais de direitos humanos. A doutrina, acerca das obrigações a serem observadas no âmbito interno dos países, reitera a preocupação constante em garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais acima dos interesses internos (PIOVESAN, 2006, apud CAZETTA, 2009, p. 17)

A priori, deve-se ressaltar que ao longo dos anos, diversos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos foram criados, mas um ponto de questionamento encontra-se na proteção, não raro, ter caráter meramente político, entendimento compartilhado por FERREIRA FILHO (2006, p.92): “( … ) de modo geral, ainda não é assegurado ao indivíduo, bem como às entidades não governamentais, no plano internacional, senão uma proteção política”. Pois, esses órgãos de supervisões internacionais, por vezes, não podem ser utilizados para rever as decisões judiciais, com o fundamento de não violar a soberania do país.

Entretanto, a previsão de participação internacional apenas na esfera política vem sendo mitigada com o surgimento do Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecido pelo Tratado de Roma em 1998 – sendo ratificado pelo Brasil, e posteriormente introduzido no ordenamento jurídico pela Reforma Judiciária, com a EC n. 45/2004.

Superada a fase de conceituação e fundamentação dos direitos humanos, a preocupação atual constitui na dificuldade de protege-los e efetiva-los. Em consequência, entende-se que para efetivação de direitos, há a necessidade de estabelecer responsabilidades.

A responsabilidade internacional em matéria de direitos humanos não depende de culpa ou dolo do agente violador, ou seja, a responsabilidade é objetiva. Os demais requisitos são: o evidente ato ilícito, o resultado lesivo e o nexo causal.

Ademais, é passível de responsabilização internacional, qualquer ato ou omissão perpetrados por um Estado que viole os direitos fundamentais. Observa-se que qualquer do Poderes, quais sejam: Legislativo, Executivo ou Judiciário, respondem de maneira una, não cabendo como alegação de defesa a separação e independência dos poderes (PIOVESAN, 2014, p. 395).

Ressalta-se que a morosidade da aplicação da justiça, ou decisões, por vezes, eivadas de injustiças, são determinantes para a responsabilização internacional. Ademais, alegações contrarias ao cumprimento das obrigações internacionais, por motivações internas do país, não possuem respaldo em nenhuma hipótese para o Direito Internacional.

A estrutura de proteção desses direitos no plano internacional recai, primordialmente, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Os objetivos consistem na proteção e na promoção, no plano internacional de zelar pelos direitos mais fundamentais a existência digna da pessoa humana, o qual não poderá ser suprimido dos ordenamentos jurídicos democráticos. A importância desse sistema confunde-se com o próprio processo de (re) democratização de muitos países, inclusive o Brasil.

Um divisor de águas, onde os países passaram a atualizar-se com os compromissos internacionais no campo dos direitos humanos, tornando as recomendações, em princípios norteadores para formulação da política externa.

Além dos sistemas regionais, cada qual com seu sistema jurídico próprio, destaca-se o sistema americano de proteção dos direitos humanos como instrumento primordial da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), ratificada em São José da Costa Rica, em 1969. Sendo constituída por dois órgãos, a saber: a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A preocupação internacional e a necessidade de sistematização desses direitos considerados tão básicos, que a priori não possuem uma acepção única e são de difícil definição categórica, visam garantir um mínimo ético irredutível, definido através de um princípio basilar que é a dignidade da pessoa humana.

Assim, a política internacional de proteção dos direitos humanos decorre da compreensão desses direitos como universais, indivisíveis e interdependentes, vedado juridicamente o retrocesso.

 

1.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS DIREITOS HUMANOS

Verifica-se que o Brasil deve promover recursos internos eficazes de proteção aos direitos humanos, e a Carta Magna de 1988 foi um importante passo nesse sentido.

A Constituição Federal de 1988 foi um marco, pois o Brasil passou a atualizar-se com a agenda internacional sobre os direitos humanos. Além dos direitos e garantias nela consagrados, inclui, também, aqueles previstos em tratados internacionais do qual o Brasil seja parte. Evidencia-se esses compromissos, elevando esses direitos a condição de cláusulas pétreas, e insuscetíveis por isso, de supressão.

No Brasil, o direito interno fundamenta-se na defesa à democracia, ao estado de direito e a proteção e promoção dos direitos humanos – sendo princípios norteadores na formulação da política externa e diretrizes de atuação no plano internacional. Ademais, como país signatário de tratados internacionais de direitos humanos, reconhece que sua prosperidade como nação depende da promoção e proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

Nesse sentindo, a EC n. 45 traz a perspectiva de federalização das graves violações contra os direitos humanos (art. 109, § 5°, da CF/88)  e o processo legislativo de incorporação de tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio com a possibilidade de serem equivalentes às emendas constitucionais mediante aprovação pelo Congresso Nacional e aceitação de três quintos em dois turnos de votação (art. 5°, § 3°, da CF), inovações que decorrem da pressão dos organismos internacionais sobre a União, responsável, no plano externo (art. 21, inciso I, CF/88) pelo cumprimentos das obrigações decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos do qual o Brasil é signatário, no sentido de cessar a impunidade intrínseca do aparelho estatal.

Para PIOVESAN (2007, p. 28), a Constituição adota um sistema misto de incorporação dos tratados internacionais à ordem jurídica interna. Quando se trata de Direitos Humanos Fundamentais, aplica-se a teoria monista, não necessitando de decreto de execução, somente sendo necessário ser submetido à apreciação do Congresso Nacional quando se tratar de matérias tradicionais diversas dos direitos humanos fundamentais.

Contudo, PIOVESAN (2007, p. 28) reconhece que, como doutrina dominante, em face do silêncio constitucional, o Brasil adota a corrente dualista, pela qual há duas ordens jurídicas diversas (ordem interna e a ordem internacional). Para que o tratado ratificado produza efeitos no ordenamento jurídico interno, faz-se necessária a edição de um ato normativo nacional.

Outro questionamento controvertido é a natureza jurídica das normas previstas nos Tratados Internacionais e qual o seu grau hierárquico na ordem jurídica interna. Trata-se de previsão normativa que inova a ordem constitucional e que é eivada de complexidades por ser necessária a reunião de vontades políticas que se convergem. Nesse sentido, leciona LOUIS HENKIN (2016, p. 59):

Com efeito, o poder de celebrar tratados – como é concebido e como de fato se opera – é uma autêntica expressão do constitucionalismo; claramente ele estabelece a sistemática de ‘checks and balances’. Ao atribuir o poder de celebrar tratados ao Presidente, mas apenas mediante o referendo do Legislativo, busca-se limitar e descentralizar o poder de celebrar tratados, prevenindo o abuso desse poder. Para os constituintes, o motivo principal da instituição de uma particular forma de ‘checks and balances’ talvez fosse o de evitar a concentração do poder de celebrar tratados no Executivo, como era então a experiência europeia.[2]

No Brasil, a preocupação herdada da ditadura civil-militar com a proteção aos direitos humanos, já na Constituição Federal de 1988 é recorrente, e evidencia-se logo de início no artigo primeiro, onde resguarda como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana.

Para corroborar a relevância atribuída pela Constituição Federal à temática, insta destacar, a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasil (art. 4°, II, CF/88); a aplicação imediata das normas definidores de direitos e garantias fundamentais (art. 5°, § 1°, CF/88); a proteção constitucional de direitos decorrentes dos tratados internacionais do qual o Brasil seja signatário (art. 5°, § 2°, CF/88); por fim, a elevação dos tratados internacionais de direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional ao status de norma constitucional (art. 5°, § 3°, CF/88).

A positivação desses direitos, e as tentativas de que os crimes contra os direitos humanos não se tornassem impunes, não raro, se mostraram ineficientes, visto a própria participação do Estado brasileiro como agente violador dos direitos humanos, vide o caso de Vladimir Herzog, Gomes Lund e o recente caso de Marielle Franco, entre outros. Infere a esse difícil contexto, os primeiros impulsos de federalização de competência de graves violações contra os direitos humanos.

O caminho para proteção e promoção efetiva dos direitos humanos, proposto, é encarado como uma ramificação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, porém, as inovações apresentadas pela EC n. 45/2004, em específico o Incidente de Deslocamento de Competência é apenas mais uma tentativa para melhoria do funcionamento dos mecanismos de proteção dos direitos humanos e ampliação do acesso à justiça.

 

2. A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO: O DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA

2.1 EC N. 45/2004: SINOPSE DAS PROPOSTAS DE FEDERALIZAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS E A INTRODUÇÃO DO ART. 109, V-A, ­§ 5º A CRFB/88

Para melhor compreensão da previsão constitucional da federalização das competências para o julgamento dos crimes contra os direitos humanos, faz-se necessário a apresentação de um breve resumo histórico – desde os primeiros indícios até a versão final aprovada. O processo foi longo e foram feitas diversas modificações até culminar na aprovação da EC n. 45/2004.

A possibilidade da Justiça Federal de julgar crimes previstos em tratados internacionais, apresenta os primeiros sinais na Constituição Federal de 1967. Período da Ditadura Civil-Militar, que através de um de seus Atos Institucionais, precisamente o n. 2 de 1965, formula uma nova Constituição, eivada de ilegalidades, com o objetivo principal de ser empecilho as decisões judiciais previstas na Constituição anterior.

Convém destacar, a forte intenção de centralizar o poder no âmbito da Justiça Federal, para assim, melhor exercer controle sobre movimentos contrários ao regime, por meio da supressão de direitos travestida de suposta legalidade. Assim dispõe o artigo 119 da Constituição:

Art. 119 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar, em primeira instância:

(…) V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional e os cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada, a competência da Justiça Militar;

Posteriormente, a EC n. 7, de 13 de abril de 1977, incluiu em seu texto, por meio do artigo 125, a mesma previsão a Justiça Federal: “quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”.

Ressalta-se que, em 1996, a federalização dos crimes contra os direitos humanos já havia sido proposta. O então Ministro da Justiça Nelson Jobim, por meio da PEC 368-A de 13/05/1996, estabeleceu:

Art. 1° São acrescentados dois incisos no art. 109 da Constituição, de números XII e XIII, com a seguinte redação:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

XII – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos;

XIII – as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção dos direitos humanos ou o procurador-geral da República manifeste interesse.

As alegações para elaboração da PEC n. 368-A de 1996, fundamentavam-se na necessidade de proteção dos direitos humanos, em um país que tornou comum práticas de violações e impunidades contra direitos os direitos humanos. Necessário se fez, criar instrumentos capazes de assegurar o seu pleno exercício.

O intuito desse percurso, foi aproximar o Poder Judiciário da sociedade, conferindo transparência e efetividade na prestação judicial, para um menor controle externo.

Diante dessa perspectiva, o então Deputado Federal Hélio Bicudo, apresentou a proposta de reforma do Poder Judiciário. Em consequência, no ano de 2000, foi aprovado a proposta de emenda de reforma, em matéria de federalização dos crimes contra os direitos humanos. Dispõe a nova redação:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;

  • 5° – nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Posteriormente, em 2002, o Senado Federal, aprova a referida emenda e faz o seguinte acréscimo (inciso V-B) referente as competências da Justiça Federal, com a seguinte redação “V-B – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos, nos termos da lei.”

Não obstante, vale destacar a Lei n. 10.446 de 2002, que acerca da competência para julgar crimes contra direitos humanos, atribui a Polícia Federal, promover investigações de infrações penais de repercussão interestadual ou internacional, representa-se, aqui, outra tentativa de centralização de poder.

Por fim, a última redação em seu texto, foi aprovado pelo Senado Federal no dia 07/07/2004 e que resultou definitivamente aprovada pelo plenário em 17/11/2004, com promulgação da Emenda Constitucional n. 45 em 08/12/2004. Leciona que:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (…)

V – os crises previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

V – A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (…)

  • 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Essa evolução histórica resta demonstrada que a federalização dos crimes contra os direitos humanos é uma pauta político-institucional bem planejada de centralização do poder, seja para melhor exercer controle sobre movimentos políticos contrários por meio da supressão de direitos ou para evitar responsabilização do país no plano externo (art. 21, inciso I, da CRFB/88).

 

2.2 A FEDERALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E SEUS REQUISITOS

O Estado, enquanto sua atuação demonstrar-se omisso ou falho na proteção dos direitos humanos, possibilitara ações internacionais a fim de supervisionar e promover a efetivação desses direitos. Paralelamente, haverá a cobrança dos organismos internacionais a fim de exigir um maior fortalecimento das instituições nacionais de proteção aos direitos humanos.

Em consonância com essa tendência, o Brasil institui a previsão de federalização das violações cometidas contra os direitos humanos, com intuito de dar uma resposta prática e assegurar a efetivação desses direitos.

O Direito Internacional preceitua que a responsabilidade pelas violações de direitos humanos é atribuída a União (art. 21, inciso I, CF/88). Desse modo, segundo leciona Flávia Piovesan, os princípios federativo e da separação de Poderes não podem ser invocados para afastar a responsabilidade da União em relações a tratados internacionais que o Brasil seja signatário (2014, p. 395).

Acerca do objetivo da federalização, destaca-se a necessidade de preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (VLADIMIR ARAS, 2005, p.01).

Diante disso, percebe-se pela leitura do art. 109, V-A, § 5°, da CF/88, que esta previsão constitui um instrumento processual para assegurar a proteção e desenvolvimento dos direitos humanos, diante das ineficientes tentativas já realizadas.

A mutação da competência, poderá ocorrer em qualquer fase do inquérito ou processo e, atribuiu exclusivamente ao Procurador-Geral da República, requerer ao Superior Tribunal de Justiça o deslocamento da competência para a Justiça Federal.

Destaca-se, a definição de incidente de deslocamento de competência feito por Gilmar Mendes (et al, 2009, p. 1029):

Trata-se de norma que tem por escopo ampliar a eficácia da proteção dos direitos da pessoa humana, especialmente em face de obrigações assumidas pelo Brasil em tratados e convenções internacionais. A possível objeção quanto à intervenção ou restrição à autonomia dos Estados-membros e da Justiça estadual pode ser respondida com o apelo aos valores envolvidos (proteção dos direitos humanos e compromisso da União de defesa no plano internacional) e com o caráter excepcional da medida. O deslocamento de competência somente em casos de extrema gravidade poderá ser objeto de requerimento, por parte do Procurador-Geral da República, e de eventual deferimento por parte do Superior Tribunal de Justiça.

A federalização estabelece seus requisitos para evocação no art. 109, V-A, § 5°, quais sejam: a) grave violação de direitos humanos; b) assegurar o devido cumprimento de obrigações decorrentes dos tratados de direitos humanos; c) legitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República de recorrer ao incidente; e d) competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar os casos. Ademais, considera-se, também, a inércia e negligência do Estado de resolver a lide, quando não investiga ou inviabiliza o processamento do feito pelo Poder Judiciário local.

Por fim, ressalta-se que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos é adicional e subsidiário, sendo pressuposto, o esgotamento dos recursos internos (PIOVESAN, 2014, p. 400).

 

2.3 AS CRÍTICAS AO INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA (IDC)

Sobre o assunto há muitas discussões teóricas e divergências a respeito da constitucionalidade desse instituto. Controvérsias que suscitaram a propositura de ação direta de inconstitucionalidade com pedido liminar, ADI n. 3.486 e ADI n. 3.493, nessa ordem, em que pese a tese de violação do artigo 5°, incisos XXXVII, XXXVIII, XXXIX e LIV, da CF/88 – apesar dos julgamentos favoráveis a constitucionalidade do IDC, sua aplicabilidade ainda é inexpressiva.

Um dos argumentos contrários ao IDC, é que essa previsão, rompe com o pacto federativo. A federação é a forma de Estado adotada pelo Brasil, cuja principal característica é a descentralização política, ou seja, o reconhecimento da autonomia de todos os entes federativo e há a repartição constitucional de competência legislativa e administrativa entre elas.

No entanto, o artigo 21, inciso I, da CF/88, traz uma contradição a esse argumento. Estabelece que compete à União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, portanto, responsável pelas regras e preceitos estipulados em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Desse modo, não pode a União invocar o pacto federativo para se manter inerte quando do descumprimento dos tratados internacionais – a responsabilidade internacional em casos de violações aos direitos humanos recai sobre a União, pois se comprometeu juridicamente a cumprir, portanto deverá adotar meios para garantir a proteção desses direitos.

Ademais, alega-se que já existem instrumentos similares, como a intervenção federal, em casos de desrespeito a princípios constitucionais sensíveis e a Lei 10.446/2002 que é a possibilidade de atuação da polícia federal nos casos relativos à violação de direitos humanos, que independe de restar demonstrado o comprometimento ou a inércia dos órgãos de segurança do Estado.

Portanto, a principal ideia de oposição ao  suposto argumento de rompimento do pacto federativo é que a possibilidade do instituto de deslocamento de competência fornece a União meios de proteger os direitos humanos, sem que se necessite da intervenção federal, sendo uma medida drástica para ser tomada.

Outro argumento contrário ao IDC, é a afronta ao princípio do juiz natural e do promotor natural, pois, por vezes, o deslocamento ocorre após o fato e no decorrer do processo. O objetivo, aqui, é evitar a designação de competência de forma discricionária, visando assim, garantir um processo mais justo, impessoal e imparcial. Além disso, há a vedação de criação de órgão jurisdicional alheio a estrutura jurídica vigente para atuar em casos específicos.

Diante disso, o incidente de deslocamento de competência justifica sua constitucionalidade preceituando que as varas federais são órgãos da estrutura judiciaria que segue as regras jurídicas da distribuição do processo, impossibilitando a violação ao princípio do juiz natural. Em seguida, outro argumento contrário que delineia uma perspectiva inconstitucional ao IDC é a afronta ao princípio da legalidade e do devido processo legal. A máxima “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pensa sem prévia cominação legal” não encontra respaldo, quando atribui discricionariedade na conceituação do termo “grave violação de direitos humanos”. São critérios vagos e genéricos, contudo, um argumento de oposição atribui uma possível compreensão a esse termo, a saber:

[…] Em resumo, a utilização de conceitos indeterminados não implica violação do princípio de legalidade, enquanto o devido processo legal pode ser estabelecido pela mediação legislativa ou, até mesmo pela regulamentação do procedimento no âmbito do STJ.  (CAZETTA, 2009, p. 142/144)

Não é tarefa do legislador brasileiro definir uma lista fechada de crimes ou de violações a direitos humanos. A um, porque contraria a própria concepção universal desses direitos. A dois, porque um dos pressupostos do IDC é o risco de responsabilização internacional decorrente de obrigações assumidas em tratados internacionais, o que significa que se deve buscar no Direito Internacional Público (normas internacionais devidamente incorporadas ao direitos interno) as violações aos direitos humanos capazes de ensejar a responsabilização estatal e, portanto, passíveis de ser federalizadas. (BARBOSA, 2011)

Em que pese as discussões doutrinarias acerca da matéria, o presente artigo tem o intuito de demonstrar a presente constitucionalidade do IDC, para além da eivada discricionariedade e subjetividade, interesse desperto pelo possibilidade de ser uma alternativa para assegurar e proteger os direitos, mas que é pouco utilizado seja por ausência de interesse político seja pelo rol extremamente restrito de legitimado.

Quanto aos legitimados para suscitar o IDC, menciona-se a inclusão do Ministério Público Federal, que representaria um importante avanço para resolução de demandas e implicaria em mais efetividade na proteção dos direitos humanos, pois encontra-se, também, distante das influências de poder local. Ademais, atuaria de forma a viabilizar e agilizar a colheita de elementos necessários ao juízo de valor do Procurador-Geral da República. (CAZETTA, 2009, P. 194-195)

A proteção dos direitos humanos está acima das próprias leis internas de um país, sendo um compromisso da agenda internacional. Verificar-se-á, aqui, demonstrado a colisão de direitos e princípios fundamentais, a necessidade de invocar a técnica do sopesamento, por uma questão de lógica jurídica a fim de proteção daquelas normas mais fundamentais e assegurar o bem estar de uma maioria. Evidente que aperfeiçoamentos e adequações são necessários, mas é um importante avanço para desestimular novas violações.

 

3. ESTUDO DE CASO

3.1 IDC N. 01 CASO DOROTHY STANG

Como estudo de caso, dispõe-se inicialmente, analisar o caso do assassinato da missionária Dorothy Stang, ocorrido em 12/02/2005, em Anapu – Pará. Stang atuava na defesa de trabalhadores rurais assentados em terras públicas e era responsável pelo projeto de desenvolvimento sustentável (PDS), por esses motivos, despertou o incomodo dos fazendeiros da região e diversas vezes recebeu ameaças.

Diante a inercia das autoridades locais e a repercussão do caso, o então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, invocou o incidente de deslocamento de competência.

Todavia, em que pese todos os elementos para suscitar o incidente de deslocamento de competência, houve o indeferimento do pedido. O voto contrário do ministro Arnaldo Esteves Lima, foi acompanhado com unanimidade.

A comunidade internacional posicionou-se de forma indignada com o ocorrido, e a pressão por respostas foi maior. Contudo, a indignação não foi suficiente para garantir o deslocamento de competência. Em seu voto, o ministro alegou não restar atendido todos os requisitos para a federalização do caso e equiparou o pedido como caso de desaforamento.

O posicionamento jurídico do caso Dorothy Stang foi um marco histórico, e paradigma para posteriores decisões. Estabeleceu que não haveria aplicação de efeito suspensivo em casos semelhantes, visto que seria empecilho a celeridade do processo; e ressaltou a atuação e importância da polícia federal na investigação de crimes contra os direitos humanos.

 

3.2 IDC N. 02 CASO MANOEL MATTOS

Manoel Bezerra de Mattos Neto, era advogado e militante dos direitos humanos, foi assassinado em 24/01/2009, em Pitimbu – Paraíba. Sua atuação consistia em denúncias de grupo de extermínio, que perpetravam violências e assassinatos de jovens da região.

Em razão das constantes represálias e ameaças por conta de sua atuação, Manoel Mattos, solicitou proteção policial e a intervenção da polícia federal nos casos. Porém, apesar de início a proteção ter sido concedida, no ano seguinte foi suspensa e houve inúmeros atentados, e posteriormente o assassinato do advogado.

Diante da repercussão do caso, foi suscitado o incidente de deslocamento de competência pelo Procurador-Geral da República e o caso transferiu-se para a Justiça Federal, sendo algo inédito.

O IDC n. 02 foi invocado pelo Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, e a relatora foi a ministra Laurita Vaz, com grande aceitação. A ministra salientou que o incidente de deslocamento de competência é previsão constitucional de proteção aos direitos humanos, sendo uma forma mais amena de intervenção no Estado.

Em sua fundamentação, a ministra ainda ressaltou a razoabilidade e proporcionalidade da federalização do crime, como medida necessária para não se torna mais um caso de impunidade. Ainda, aludiu que a morte de um defensor dos direitos humanos é extremamente significativa, pois atenta contra princípios democráticos – atentados que, por vezes, pode se voltar contra aqueles que atuam nas garantias institucionais desses direitos.

O voto da ministra não foi unanime, outros ministros alegaram quem o caso poderia ser julgado e processado de forma célere, mesmo sem suscitar o deslocamento de competência e que o caso se enquadrara como desaforamento.

Em contrário, o ministro OG Fernandes, invocou-se de uma alusão literária para justificar seu voto. Comparou o caso ao livro “Crônica de uma Morte Anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez, afirmando que Manoel Mattos caminhava ao encontro de uma morte certa, visto as inúmeras ameaças e atentados, votando a favor do IDC.

Honildo Amaral de Mello Castro, votou contra o IDC por entender que a medida configura uma forma de intervenção federal nos Estados. Haroldo Rodrigues, acolheu a decisão da relatora, e foi o entendimento que prevaleceu.

Casos conexos ficarão a cargo da Justiça federal, mas não foi acolhido o pedido de que outras investigações, abstratamente vinculadas, também tivessem a competência deslocada. A relatora acolheu a proposta de modificação para que informações sobre condutas irregularidades de autoridades locais sejam comunicadas às corregedorias de cada órgão, em vez de serem repassadas para os conselhos nacionais do Ministério Público (CNMP) e de Justiça (CNJ).

 

3.3 IDC N. 03 TORTURAS, DESAPARECIMENTOS FORÇADOS, INTIMIDAÇÕES E HOMICÍDIOS PRATICADOS POR POLICIAIS DO ESTADO DE GOIÁS

Em Goiás, Roberto Gurgel, Procurador-Geral da República, suscitou o terceiro IDC, em maio de 2013, por diversas violações aos direitos humanos atribuídas aos policiais militares.

De início, o principal argumento foi que os agentes violadores não foram devidamente responsabilizados e que os policiais militares eram incentivados através de premiações a aumentar sua produtividade, gerando uma série de arbitrariedades.

Esse incentivo, levava em consideração apenas critérios objetivos e quantitativos. Atribui-se a esse período, inúmeras violações perpetradas pelos policiais militares como torturas, intimidações, ameaças, desaparecimentos forçados e homicídios – com o agravante de que esses policiais raramente eram investigados, e quando era proposta ação penal, não raro, eram absolvidos.

A inércia do Estado de Goiás em processar e julgar esses casos, demonstra o descaso com o projeto de Segurança Pública e de como a ação polícia truculenta é respaldada pelo próprio Estado.

[…] o Estado de Goiás ignorou as ações da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa – que buscou solução no âmbito estadual para as medidas que favoreciam as ações policiais violentas -, e omitiu-se em duas oportunidades em relação às recomendações elaboradas pelo Conselho de Defesa dos Direitos Humanos da Presidência da República, que desde o ano de 2006 acompanha as denúncias de violação de direitos humanos praticados pela Polícia Militar contra a população das áreas periféricas de Goiás. […] Por trazer resultados concretos na área de Segurança Pública, tais ações foram, mesmo que tacitamente, respaldadas pelo Executivo estadual, que ignorou apelos e recomendações para que fizesse cessar as ações policiais violadoras de direitos humanos. Além disso, o Governo do Goiás aumentou o poder do aparato repressivo das unidades de elite da Polícia Militar, promovendo a ROTAM de companhia independente para batalhão e posteriormente criando o Comando de Missões Especiais, incorporando, entre outras unidades, a ROTAM, o Batalhão de Choque e o GRAER.  (MPF, PGR 1.00.000.005676/2013-67, 2013, p. 21/22)

Diante a ausência de regulamentação legislativa sobre a matéria, o ministro responsável pelo caso, Jorge Mussi, apara-se nos fundamentos do IDC n. 02, e fez a propositura da ação na qualidade de amicus curia.

Ademais, observa-se nesse caso, como a violência contra os direitos humanos é institucionalizada, sendo o próprio Estado o agente violador – sendo um agravante, visto que, é quem deveria proteger esses direitos. Assim, deve-se adotar medida mais energética, abrindo possibilidade para, de fato, a intervenção federal (artigo 34, inciso VII, ‘b’).

Por fim, aguarda-se a decisão da 3ª Seção do STJ quanto o pedido de deslocamento de competência narrados pelo IDC n. 03.

Outrossim, acerca das conclusões, entende-se que o instituto do incidente de deslocamento de competência é eivado de constitucionalidade, mas carece de vontade política para melhor efetivação, o intuito do artigo consistiu em definir e apresentar os pontos controversos, ainda poucos debatidos na academia, a fim de promover e garantir uma melhor compreensão e proteção dos direitos humanos.

 

CONCLUSÃO

Considerando-se o exposto, o presente estudo se dispôs a elucidar a constitucionalidade do artigo 109, inciso V-A, § 5°, da Constituição Federal de 1988, previsão proposta pela EC n. 45/04. Inicialmente, vislumbrou-se o surgimento e evolução da proteção internacional dos direitos humanos, através de uma visão sistêmica do histórico e conceituação do tema.

Posto que, estabeleceu-se a análise crítica dos princípios outrora consagrados como dogmas, e hoje, seu entendimento perpassa a um sutil processo de relativização para que se amplie o acesso a garantias de proteção aos direitos humanos.

A respeito de violar princípios outrora já consagrados, como o do pacto federativo, leciona-se de que não há rompimento, pois, a responsabilidade da União frente aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos encontra amparo no texto constitucional (artigo 21, inciso I, da CF). Além disso, não raro, a maior parte desses tratados e convenções internacionais prevê a denominada cláusula federal, o que impede que o Estado alegue o não cumprimento de determinada regra por ser um estado-membro o violador.

Acerca da problemática do suposto rompimento do pacto federativo, invocou-se a técnica do sopesamento ou ponderação de princípios, a fim de assegurar uma coletividade em detrimento de interesses políticos e inercia dos mesmos. Verifica-se a prevalência de princípios como o da dignidade humana acima do princípio do pacto federativo, orientando a União do plano internacional.

O instituto do IDC nasce, então, da ineficiência de vários mecanismos que não lograram êxito em solucionar e punir devidamente casos de violações aos direitos humanos, como resposta a uma pressão internacional.

Outrossim, sobre o princípio do juiz natural e do promotor natural frente ao fato do IDC ser suscitado no decorrer do processo e seu caráter, por vezes, discricionário, o argumento de oposição consiste que as varas federais também são órgãos do Poder Judiciário que segue as regras jurídicas da distribuição do processo, não cabendo falar em afronta a esses princípios.

Ademais, em que peses as discussões, é notório a contribuição do IDC no sentido de  melhor conceituar as “graves violações contra os direitos humanos”, pois nunca antes foi definido seus critérios. É válido supor que, a ausência de interesse do próprio ente político em definir critérios pode ser atribuído ao fato do próprio Estado ser o violador dos direitos referidos, institucionalizando práticas de violência.

Por outro lado, a discricionariedade na conceituação do termo “grave violação de direitos humanos” que poderia eivar a decisão do Procurador-Geral de República de deslocar a competência de questionamentos, não encontra respaldo, visto a própria função do Direito Internacional Público, como aquele que analisa as normas internacionais devidamente incorporados ao direito interno, e como as violações a essas regras seriam capazes de ensejar a responsabilização estatal, portanto, não é atribuição do legislador brasileiro definir um rol taxativo de crimes de graves violações aos direitos humanos, contudo o IDC é fundamental no sentido de levantar questionamentos e identificar casos de violações.

A negligência como marca do Governo moderno, gera um distanciamento de atores sociais específicos, como as comunidades periféricas das cidades e do campo, ao acesso à justiça. São aspectos econômicos e sociais que prosperam indevidamente na ação estatal, causando um enfraquecimento que qualquer iniciativa de proteção aos direitos humanos.

Limitar sua abrangência e legitimados apenas a discricionariedade de poucos, a depender de interesse apenas ao Procurador-Geral da República, revela uma margem para que interesses políticos prevaleçam e tais crimes não encontrem solução adequada.

Assim sendo, conclui-se pela constitucionalidade do instituto do incidente de deslocamento de competência, isto posto diante da necessidade de o Brasil adotar métodos coercitivos de julgamento e processamento de violações aos direitos humanos, evitando-se assim, uma possível responsabilização da União em âmbito internacional frente a inercia e impunidade dos Estados.

Por outro lado, verifica-se que a previsão de federalização dos crimes contra os direitos humanos, carece de mais objetividade, pois sua abordagem discricionária daqueles legitimados, por vezes, afronta seu objetivo inicial de garantir a proteção desses direitos.

Entretanto, em casos que os Estados se manterem inertes, falhos ou ineficazes, estará configurada a hipótese do IDC, e através de interesse político os direitos humanos poderão encontrar algum respaldo. Por isso, deve-se promover o debate no âmbito acadêmico e da comunidade jurídica pois, por vezes, é a democracia, o direito e o acesso à justiça que podem sofrerem abusos.

As democracias e os direitos humanos podem sucumbir não apenas nas mãos de generais e governos autoritários, mas de líderes eleitos que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Assim, a atenção e as lutas devem ser constantes para que violações perpetradas contra os direitos fundamentais da pessoa humana, não se repitam.

Não obstante, o presente artigo se voltou à temática da necessidade de melhor regulamentação legislativa sobre a matéria, pois, embora a crescente exploração pelos tribunais pátrios, sua produção jurídica ainda é escassa e sua aplicação inexpressiva.

Nesse ínterim, se verificou que o referido instituto se confunde, ainda, com processo de consolidação da democracia brasileira, uma vez que dá voz a diversos atores sociais, por vezes, marginalizados e amplia o acesso as garantias fundamentais.

Nessa perspectiva jurídica que acompanha o desenvolvimento globalizado, na análise do processo histórico, da justiça de transição de períodos autoritários como Nazismo, a Segunda Guerra Mundial e no Brasil, a Ditadura Civil-Militar, evidencia-se que o processo transicional ainda não se finalizou e, muito há o que se fazer para garantir a proteção e promoção dos direitos mais básicos do homem, os direitos humanos.

 

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[1] Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, patricia.silva123@hotmail.com

[2] Cf. Louis Henkin, Constitutionalism, democracy and foreign affairs, p. 59.

Âmbito Jurídico

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