Bruno Carlos Pastore[i]
Igor Demétrio Vanucci Cardoso[ii]
Eduardo Abdelnour Fróes[iii]
Fernando Augusto Piltz Costa[iv]
Resumo: O deferimento de tutela provisória contra a pessoa jurídica de direito público é vedado em algumas hipóteses, excepcionais, pois em regra é plena a possibilidade de conceder em desfavor do Poder Público as tutelas de urgência e de evidência, disciplinadas no Livro V do Código de Processo Civil. Mas, para além das específicas hipóteses legais restritivas, que protegem o Estado no processo, existe outra forma de protegê-lo, que se perfaz a partir de uma interpretação e aplicação sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, pretende-se demonstrar como o instituto da remessa necessária e o regime de precatórios podem interferir na (in)aplicabilidade de tutela provisória contra a Fazenda Pública.
Palavras-chaves: Tutela provisória. Remessa necessária. Precatórios. Direito processual.
Abstract: The granting of provisional protection against a legal entity governed by public law is prohibited in some exceptional cases, since in general it is possible to grant in favor of the Public Authorities the urgency and evidence, regulated in Book V of the Code of Civil Procedure. But in addition to the specific restrictive legal hypotheses that protect the State in the process, there is another way to protect it, which is based on a systemic interpretation and application of the Brazilian legal system. In this sense, it is tried to demonstrate how the institute of the necessary remittance and the regime of can interfere in the (inap) applicability of provisional guardianship against the Public Treasury.Keywords: Provisional guardianship. Necessary consignment. Precatory. Procedural law.
Sumário: Introdução. 1.1 A tutela provisória no Código de Processo Civil de 2015. 1.2 A indisponibilidade dos bens da Administração Pública. 1.3 A estabilização da tutela antecipada em relação à Fazenda Pública. 1.4 Remessa Necessária. 1.5 Precatórios Judiciais. 2 (In)compatibilidades sistêmicas. 2.1 Óbice da Remessa Necessária. 2.2 Óbice do regime dos Precatórios. 2.3 Óbices à estabilização da tutela provisória antecedente. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O instituto da tutela provisória, no Brasil, é de extrema importância no direito processual civil contemporâneo, pois permite antecipar no tempo a tutela jurisdicional, driblando a tão mal falada morosidade do processo. Este, conforme revelam números de pesquisas, costuma tramitar longos anos até alcançar uma decisão exauriente, definitiva e exequível do direito, daí advindo inúmeros males sociais pela violação ao princípio constitucional da razoável duração do processo.
Se o processo tiver no polo passivo a Fazenda Pública, tende a ser mais demorado do que já tem sido “normalmente” nas demais demandas em geral – conforme revelam os números. Assim, no âmbito do Direito Processual Público a tutela provisória merece destaque, por ser ainda mais preciosa aos cidadãos que litigam contra o Poder Público, o qual conta com diversos benefícios processuais que não são concedidos aos demais jurisdicionados.
O novo Código de Processo Civil, ao disciplinar o instituto da tutela provisória, dedicou um Livro próprio e inovou ao dispor sobre a tutela de evidência e a tutela de urgência em caráter antecedente – de natureza tanto cautelar como satisfativa. Houve ampliação do instituto e comemoração pela comunidade jurídica, visto que, trata-se de mecanismo processual de aceleração da tutela jurisdicional, visando não permitir o perecimento do direito e/ou a inutilidade do processo.
Ocorre que esse mesmo Código, no seu último Livro, tem um dispositivo – pouco comentado pela doutrina – que impõe óbices à concessão de tutela provisória contra a Fazenda Pública. Ademais, esse mesmo Código prevê outros dois institutos – a remessa necessária e o sistema de precatórios – que também podem funcionar como obstáculo ao deferimento de decisões sumárias contra o Poder Público, a depender da interpretação jurídica processual que o órgão jurisdicional entender por bem aplicar.
O instituto da tutela provisória atualmente é prevista nos artigos 294 a 311 do Código de Processo Civil que entrou em vigor no mês de março de 2016. A tutela em regra serve para satisfazer ou assegurar uma pretensão futura da parte antes da decisão de mérito propriamente dita. Segundo Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 411) “a tutela provisória é proferida mediante cognição sumária, ou seja, o juiz, ao concedê-la, ainda não tem acesso a todos os elementos de convicção a respeito da controvérsia jurídica”, já Humberto Theodoro Júnior (2016, p. 610) menciona que “as tutelas provisórias têm em comum a meta de combater os riscos de injustiça ou de dano, derivados da espera, sempre longa, pelo desate final do conflito submetido à solução judicial”. Diante dos comentários supra é possível verificar que existem dois tipos de cognição, são elas: a cognição sumária e a cognição exauriente.
Na cognição sumária o juiz não tem de antemão todos os elementos para proferir uma decisão de mérito, porém, em virtude da peculiaridade do caso concreto ele concede à parte por meio, em regra, de uma decisão interlocutória uma satisfação ou uma garantia do seu direito, sendo assim, é possível verificar a divisão das tutelas de urgência previstas no Código de Processo Civil que são a tutela provisória de urgência de caráter antecedente (satisfativa) e a tutela de urgência de caráter cautelar (garantidora).
Os requisitos da tutela de urgência são caracterizados pelo fumus boni iuris e o periculum in mora. No que diz respeito ao primeiro Humberto Theodoro Junior (2016, p. 623) preleciona que acontece quando “há probabilidade do direito substancial invocado por quem o pretenda”, já em relação ao periculum in mora ele menciona que “é um dano potencial, um risco que corre o processo de não ser útil ao interesse demonstrado pela parte, risco esse que deve ser objetivamente apurável”. Esses requisitos são observados verificando o texto legal do artigo 300 do Código de Processo Civil que dispõe: “A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”.
Pode ser observada como exemplo de tutela de urgência satisfativa a pretensão de uma parte contra um município pleiteando medicamentos que não estão disponíveis gratuitamente por este e sem os quais não pode viver por mais de uma semana. Desse modo, pode ser aferido o fumus boni iuris, haja vista que, a pretensão da parte encontra respaldo legal no artigo 196 da Constituição Federal que dispõe: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”, visto que, quando o poder constituinte originário coloca a expressão “Estado” não quer se referir apenas a esse ente federativo, pois, aplicando o princípio da dignidade da pessoa humana como também a interpretação da Constituição de forma unitária esse expressão abrange os municípios, Distrito Federal e a União. No que diz respeito ao periculum in mora, o pedido pleiteado também se enquadra nesse requisito, visto que, caso não haja a celeridade do juiz deferindo a tutela de urgência satisfativa a parte autora talvez não sobreviva até a sentença de mérito.
O código de processo civil também trouxe em seu texto legal o instituto da tutela de evidência que segundo Humberto Theodoro Júnior (2016, p. 689) “não se funda no fato da situação geradora do perigo de dano, mas no fato de a pretensão de tutela imediata se apoiar em comprovação suficiente do direito material da parte”. Segundo esse conceito, pode ser percebido que nesse tipo de tutela não é necessário o requisito do periculum in mora, visto que, o magistrado observará apenas o fato respaldado em um direito trazido pela parte independentemente do perigo da não concessão dessa tutela.
Os bens públicos segundo Matheus Carvalho (2017 p. 1095) têm como característica a impenhorabilidade, a não-onerabilidade, imprescritibilidade e a alienação condicionada.
No que se refere a impenhorabilidade, os bens públicos não podem ser penhorados em um processo executivo mesmo que esteja em jogo direitos trabalhistas que tem como característica o caráter alimentar do salário. Segundo o autor ora referido “a penhora e arrematação do bem seriam de inquestionável prejuízo a toda a sociedade que dele usufrui”. Por exemplo, a parte autora em um processo de execução trabalhista penhora uma escola estadual que é bem de uso especial segundo o Código Civil de 2002. É lógico que no exemplo citado, várias famílias iriam sofrer com esse processo executivo, tirando o direito à educação de seus filhos.
A não-onerabilidade se refere à impossibilidade de utilizar um bem público como direito real de garantia para o pagamento de alguma dívida do estado, sendo assim, o ente público não pode garantir com seus bens as dívidas de precatórios judiciais, pois caso contrário seria possível o penhor de um veículo pertencente a um tribunal estadual ou o próprio tribunal ser dado em hipoteca, algo que vai completamente de encontro ao princípio administrativo da supremacia do interesse público sobre o privado.
A imprescritibilidade como preleciona Matheus Carvalho (2017, p. 1095) “trata-se da prescrição aquisitiva, nesse sentido, os bens públicos não podem ser adquiridos pela posse mansa e pacífica por determinado espaço de tempo continuado, nos moldes da legislação civil”. Desse modo, não pode arguir contra o poder público o instituto da usucapião como está disposto no parágrafo 3º do artigo 183 da Constituição Federal de 1988.
Quanto à alienação condicionada observasse que os bens públicos podem ser alienados, entretanto deve haver a observância da lei de licitações que é a 8.666/93, sendo que o bem deve ser desafetado, deve ter interesse público em sua venda como também a avaliação prévia do mesmo.
Diante dos fundamentos observados supra, uma questão interessante que deve ser observada é a possibilidade de estabilização dos efeitos da tutela antecipada antecedente em face da Fazenda Pública, sendo que, caso haja essa estabilização, a mesma será compatível ou não com os princípios regradores da administração pública.
Primeiramente antes de ser verificada essa possibilidade, deve-se ter em vista o procedimento estabelecido no artigo 304 do Código de Processo Civil de 2015 tendo como texto legal de seu caput: “A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”. Segundo Humberto Theodoro Júnior (2016, p. 681) “a nova codificação admite que se estabilize e sobreviva a tutela de urgência satisfativa, postulada em caráter antecedente ao pedido principal, como decisão judicial hábil a regular a crise de direito material”. Desse modo, percebe-se que a estabilização da tutela só acontece nos casos em que é postulada a tutela antecipada em caráter antecedente, sendo que, é deixado de lado as tutelas antecipadas incidentais, cautelares e de evidência. Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 450) menciona que “o legislador fez clara opção de limitar a possibilidade de estabilização da tutela antecipada à sua concessão de caráter antecedente, de forma que sendo concedida de forma incidental, mesmo sem recurso da parte contrária, o processo não deve ser extinto”. Sendo assim, por ser uma tutela de urgência deve ter os requisitos ditos supra, sendo eles o fumus boni iuris e o periculum in mora. Por ser antecedente, caso não haja recurso ou impugnação da outra parte no prazo legal estabelecido, independente de qualquer ação posterior do autor para conseguir alcançar os efeitos da coisa julgada material, a tutela antecipada antecedente se estabilizará.
A estabilização da tutela como está disposto no §6º do artigo 304 do Código de Processo Civil acontece após dois anos, sendo esse prazo decadencial, de acordo com a interpretação sistemática e lógica, visto que, quando o prazo é prescricional a parte perde uma pretensão, mas o direito continua a existir, entretanto no prazo decadencial que não se interrompe nem se suspende a parte tem seu direito fulminado, que no caso em questão, é o direito de estabilização da tutela tendo a característica da irreversibilidade. Desse modo, como não faz coisa julgada material, não é possível a utilização da ação rescisória para retirar os efeitos da tutela antecipada antecedente, sendo que, segundo Humberto Theodoro Júnior (2016, p. 684) “logo após o biênio qualquer tentativa de discutir em juízo a questão resolvida na decisão estabilizada esbarrará na barreira instransponível, não da res iuticata, mas da decadência”, também compartilhando do mesmo posicionamento Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 456) aduz que “pode se dizer que não se trata de coisa julgada material, mas de um fenômeno processual assemelhado, mas a estabilidade e a satisfação jurídica da pretensão do autor estarão presentes em ambas”.
Diante do exposto fica claro que a estabilização mesmo não fazendo coisa julgada atinge os mesmos efeitos dela, sendo que, será deve ser acurado se será possível a aplicação dessa estabilização em face da Fazenda Pública que é regulada pelos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade dos bens públicos. Nayara Crispim da Silva no seu artigo com título “A (não) aplicabilidade do artigo 304 do CPC/15 contra a fazenda pública” fez um paralelo entre a tutela provisória de urgência antecipada antecedente com a ação monitória prevista nos artigos 700 a 702 do Código de Processo Civil, visto que, na ação monitória o autor tem um título que não tem força executiva, porém quando o mesmo é apresentado em juízo e o réu no prazo de 15 não apresenta embargos à monitória ou não faz o pagamento, o título que não tinha força executiva se transforma em título executivo judicial. Desse modo, há abreviação do procedimento comum, sendo que, esse rito especial é aplicável à fazenda pública conforme o §6º do artigo 700 do Código de Processo Civil como também a súmula 339 do Superior Tribunal de Justiça.
No entendimento de Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 923) a ação monitória “é uma espécie de tutela diferenciada, que por meio da adoção de técnica de cognição sumária (para concessão do mandado monitório) e do contraditório diferido (permitindo a prolação de decisão antes da oitiva do réu), busca facilitar em termos procedimentais a obtenção de um título executivo quando o credor tiver prova suficiente para convencer o juiz, em cognição não exauriente, da provável existência de seu crédito”. Diante disso, é possível retirar várias conclusões, pois, a mesma cognição sumária existente na tutela antecipada antecedente acontece na monitória, os efeitos daquela de imutabilidade mesmo não fazendo coisa material também acontece nessa, desse modo, mesmo não havendo disposição expressa é possível verificar a possibilidade de aplicação da estabilização da tutela em face da Fazenda Pública, pois, os princípios que giram em torno da mesma não são absolutos como nenhum existente no ordenamento jurídico é, devendo sempre haver ponderações e não o afastamento total de sua aplicação. Nayara Crispim da Silva menciona que há três correntes possíveis de (in) aplicabilidade da estabilização da tutela em face da fazenda pública partindo de uma total inaplicabilidade, uma aplicabilidade com restrições e por último uma total aplicabilidade.
Quanto à inaplicabilidade da estabilização a autora apresenta um óbice formal, pois o texto legal que rege a ação monitória traz expressamente a utilização da remessa necessária, caso os requisitos da mesma seja preenchidos, algo que não foi estabelecido expressamente para a estabilização da tutela. Por sua vez, quanto ao óbice material está a indisponibilidade dos bens públicos, haja vista que, quando uma sentença vai de encontro a um ente da administração pública ela também atinge indiretamente a sociedade que cada vez mais se ver onerada com a elevação de tributos e não observa melhoria na educação, saúde e no bem estar social.
No que se refere à aplicabilidade moderada ou com restrições a autora fez um paralelo estabelecendo que a estabilização não poderia ser aplicada quando os direitos são indisponíveis e também quando não há restrição à remessa necessária, visto que, nem todos os direitos que a Fazenda Pública postula em juízo são indisponíveis, pois caso contrário, não haveria o instituto da remessa necessário e tampouco a ação monitória, sendo que o primeiro estabelece parâmetros em que não é necessário (há disponibilidade) a revisão pelo Tribunal da sentença proferida pelo juiz a quo como o segundo que já foi comentado supra em que seu procedimento é pautado na cognição sumária ainda que contra a administração pública.
Somado a isso, no que se refere à aplicação sem restrições há o entendimento de que segundo a autora houve previsão expressa no Código de Processo Civil de 2015 quanto à aplicabilidade da ação monitória em face da fazenda pública como a faculdade de a mesma postular no prazo decadencial de 2 anos uma ação para rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada antecedente sem prejuízo para o ente público.
Sendo assim, diante do que foi visto acima é possível verificar a possiblidade de aplicação da estabilização da tutela em face da Fazenda Pública, haja vista que, mesmo possuindo prerrogativas processuais, o legislador deve também estabelecer parâmetros para resguardar não só o direito do ente público como também do administrado, sendo que, a Constituição Federal no seu artigo 5º traz como princípio a inafastabilidade da jurisdição, desse modo, quando o juiz a quo não concede a estabilização da tutela em virtude da mera presença do ente público no polo processual oposto há a obstrução desse direito fundamental que todos têm no direito processual.
1.4 Remessa necessária
A remessa necessária também chamada de reexame necessário está prevista no artigo 496 do Código de Processo Civil e ela tem por objetivo ter o duplo grau de jurisdição e também a confirmação da sentença do juiz a quo em virtude do privilégio processual que a fazenda pública possui no ordenamento jurídico nacional.
Em regra, os recursos são voluntários, isto é, a parte que se sente prejudicada na sua lide recorre à instância superior para conseguir a reforma da decisão do juiz de primeiro grau (ou colegiado nos casos de competência originária do tribunal). Entretanto na remessa necessária, independentemente do querer ou não das partes haverá a interposição do recurso ex officio salvo nas exceções que estão previstas no artigo supra citado. Segundo Carlos Henrique Bezerra Leite (2018, p. 1051) “a remessa necessária, portanto, é simples condição de eficácia da sentença desfavorável às pessoas jurídicas de direito público, pois ela não produz efeito enquanto não confirmada pelo tribunal” e o autor vai além quando menciona que “a rigor não possui natureza de recurso, pois não seria crível admitir que o juiz recorresse de sua própria decisão, como se fosse um incapaz ou não tivesse pleno convencimento do seu acerto ao proferir sentença desfavorável aos entes públicos”. Entretanto, em posição contrária a exposta acima afirmando que a falta de reexame necessário não impede os efeitos da sentença tem-se o autor Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 1446) sendo que ele aduz “o reexame necessário não impede necessariamente a geração de efeitos da sentença, mas tão somente seu trânsito em julgado, sendo mais adequado afirmar que o reexame necessário é condição impeditiva da geração do trânsito em julgado, e não da eficácia da sentença”.
A própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dispõe na súmula 423 que caso não haja a remessa necessária a sentença proferida pelo juiz não tem o condão de transitar em julgado e produzir a coisa julgada material.
As exceções à remessa necessária estão previstos nos parágrafos 3º e 4º do artigo 496 do Código de Processo Civil, sendo que, aquele trata das exceções quanto aos valores da sentença condenatória e este menciona as exceções relativas à jurisprudência dos tribunais. Na análise do 4º do artigo ora citado observa-se a força da jurisprudência no atual Código de Processo Civil sendo que uma súmula, acordão ou entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas pode ter conseguir obstar a remessa necessária em desfavor à fazenda pública. Nesse aspecto, o artigo 926 do Código de Processo Civil menciona o dever dos tribunais em manter uma jurisprudência estável, integra e coerente em relação às matérias por ele julgadas. Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 1301 – 1303) esmiuçando esses conceitos preleciona que a jurisprudência estável “impede que os tribunais simplesmente abandonem ou modifiquem sem qualquer justificativa plausível”, todavia, nesse caso não se pode esquecer-se da utilização dos institutos do distinguishing e do overruling, sendo que o primeiro é utilizado quando há uma distinção entre a sentença/acórdão paradigma e a prolatada e o segundo menciona o entendimento já ultrapassado no meio jurídico. No que diz respeito à jurisprudência íntegra é “aquela construída levando-se em consideração o histórico de decisões proferidas pelo tribunal a respeito da mesma matéria jurídica”, desse modo, nesse conceito o autor menciona aquele entendimento que já foi utilizado em várias decisões do tribunal de forma uniforme, sendo que, normalmente os tribunais utilizam de súmulas para garantir mais acessibilidade ao conhecimento desses entendimentos. Por último no que se refere à coerência da jurisprudência o autor ora citado aduz que “é a própria essência da ideia de uniformização de jurisprudência”, nesse caso, o tribunal mantém a uniformidade dos acórdãos proferindo decisões pautadas no seu entendimento dominante sendo coerente com o mesmo.
O instituto do precatório está previsto no artigo 100 da Constituição Federal de 1988 é utilizado para o pagamento das dívidas das fazendas pública da União, Estado, Distrito Federal e também do município nas sentenças condenatórias. Harrison Leite (2017, p. 338) menciona um conceito de precatório aduzindo que “é um ato do judiciário, de cunho mandamental, decorrente de decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública, por intermédio do qual o Estado-Poder Judiciário comunica-se com o Estado-Poder Executivo, dando-lhe notícia da condenação, a fim de que, ao elaborar o orçamento para o próximo exercício, aludido valor seja incluído na fixação da despesa”. Por meio desse conceito observam-se várias características do precatório sendo que primeiramente o ato do poder judiciário de requisitar ao poder executivo de que um valor seja incluído até 1º de julho em seu orçamento para o pagamento do precatório até o dia 31 de dezembro do ano seguinte é um ato meramente administrativo, que segundo Harrison Leite (2017, p. 351) “esse procedimento do Presidente do Tribunal em noticiar o Poder Público da existência do precatório, determinar a sua inclusão no orçamento, bem como o pagamento do crédito é nitidamente administrativo e não judicial” sendo assim, dessa decisão não cabe recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal segundo a súmula 733 do STF que dispõe: “Não cabe recurso extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatórios”.
O autor ora citado em sua obra percebe que no regime de precatórios em regra possui duas “filas” de espera para o pagamento do mesmo, sendo assim, a primeira seria dos precatórios gerais e a segunda dos precatórios alimentares. No que diz respeito ao segundo de acordo com o caput do artigo 100 da Constituição Federal em conjunto com seu parágrafo 2º é possível perceber mais uma divisão, sendo que, há a fila dos precatórios alimentares gerais como também a dos alimentares especiais fazendo parte dessa os créditos dos idosos com idade igual ou superior a 60 anos e as pessoas com doença grave ou com deficiência. Verificando os fundamentos ora citados, observa-se que o poder constituinte no ordenamento jurídico nacional pautasse na ideia da isonomia material que é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. É bom ressaltar que os precatórios podem ser cedidos a um terceiro segundo o parágrafo 13 do artigo 100 da Constituição Federal de 1988 que dispõe: “O credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independente da concordância do devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e 3º”. Fazendo a interpretação desse artigo verifica-se que caso um precatório judicial seja cedido por uma pessoa sem os privilégios visto supra a outra idosa ou deficiente essa por sua vez não terá prioridade, pois o cedente poderia estar fazendo isso em conluio com terceiro para ter seu benefício pago mais rapidamente. O autor Harrison Leite (2017) menciona a cessão inversa que acontece quando o beneficiário do precatório sendo uma pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, com doença grave ou deficiente cede o seu crédito para terceiro, havendo o celeuma jurisprudencial se com essa cessão haveria o perdimento do privilégio estabelecido na Constituição Federal. Atualmente o STF julga esse tema que é objeto da Repercussão Geral no RE 631537 e esse processo ainda aguarda julgamento pelo pleno da Suprema Corte.
Além das exceções vistas acima é possível perceber uma no direito processual do trabalho fazendo a interpretação da OJ 343 SDI-1/TST em que dispõe: “É válida a penhora em bens de pessoa jurídica de direito privado, realizada anteriormente à sucessão pela União ou por Estado-Membro, não podendo a execução prosseguir mediante precatório. A decisão que a mantém não viola o art. 100 da CF/1988”. Interpretando essa OJ percebe-se que havendo uma penhora de uma pessoa jurídica de direito privado, mesmo que após isso ela venha a ser sucedida por um ente público a penhora continuará válida, algo que, não poderia acontecer com os bens públicos, pois, eles são impenhoráveis como foi visto no tópico 1.2. Entretanto, nessa orientação jurisprudencial o que se busca é a primazia do ato jurídico perfeito, algo estabelecido na Constituição como direito fundamental, desse modo, mesmo que haja a sucessão da pessoa jurídica de direito privado para pessoa jurídica de direito público, os atos estabelecidos anteriormente pela parte vulnerável na relação trabalhista que é o empregado não pode ser tolhido, pois, há um bem maior ser resguardado que é o direito social do trabalho sendo sua remuneração de natureza alimentar tendo preferência até sobre os créditos tributários segundo a lei 11.101 de 2005.
2. (IN)COMPATIBILIDADES SISTÊMICAS
Aspectos truncados do contencioso judicial administrativo brasileiro podem inviabilizar o deferimento de tutela provisória e, consequentemente, seu escopo Magno de possibilitar uma resposta jurisdicional adequada, prestada a tempo e modo para questões urgentes e/ou evidentes.
Tanto por parte da doutrina como da jurisprudência argumenta-se que existem (in)compatibilidades sistêmicas à aplicabilidade de tutela provisória contra o Poder Público. São vetores normativos que surgem complexificando e agravando o quadro confuso que se apresenta a quem busca compreender o alcance das normas restritivas.
Assim, seria o pagamento de credores do Estado pelo sistema dos precatórios um obstáculo à concessão de tutela provisória de natureza condenatória de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública? Tal pergunta aponta um tema em “ebulição” e “longe estamos de alcançar um consenso doutrinário ou até mesmo jurisprudencial”
E o instituto da remessa necessária, seria outro obstáculo ou incompatibilidade, sob o argumento de que uma decisão sumária não pode ter mais valor ou prestígio do que uma decisão exauriente?
É possível a estabilização da tutela provisória antecedente contra o Estado?
São perguntas tormentosas e não se pretende dar uma resposta peremptória a elas. A indisponibilidade do interesse público, a presunção de legitimidade dos atos administrativos e a impenhorabilidade dos bens públicos, elevados à categoria de princípios ou normas, também têm o potencial de interferir na análise da (im)possibilidade de tutela provisória em face das pessoas jurídicas de direito público. Esses princípios dificultam a efetividade do processo para a parte que demanda contra o Estado. “Acerca da efetividade, não restam dúvidas de que a realidade jurídico-material da Fazenda se apresenta de forma distinta daquela relacionada às demandas entre particulares. Isso porque é importante destacar que o Poder Público detém um regime jurídico próprio, principalmente no que se atine à questão da supremacia do interesse público e da presunção de legitimidade de seus respectivos atos (ASSIS, 2013, p. 189)”.
Segundo Daniel Amorim Neves os três “principais argumentos contrários à possibilidade de concessão de tutela antecipada contra a Fazenda Pública são: “(a) reexame necessário; (b) necessidade de trânsito em julgado para expedição de precatório; e (c) vedação ao cabimento de “cautelares satisfativas (2016, p. 888)”.
Aluisio Gonçalves de Castro e Larissa Clare Pochmann, após afirmarem que a possibilidade de tutela provisória contra a Fazenda Pública é regra, apontam duas exceções. A primeira, “nos casos de condenação ao pagamento de quantia certa, por exigir o trânsito em julgado”; a segunda, “nas hipóteses estritas de vedação legal, que não prevalecerão quando já houver jurisprudência do STF (2015, p. 219)”.
Weber Luiz de Oliveira argumenta que a jurisprudência “também terá papel preponderante na fixação de uma interpretação restritiva e formalística ou, diversamente e corretamente, em uma interpretação lógica e sistemática”. Pela hermenêutica que o autor entende correta (ponto de vista material), a remessa necessária deve aplicar-se à decisão interlocutória – mesmo sem previsão legal direta – que realiza o julgamento antecipado parcial de mérito. Ele rechaça que, mesmo por uma interpretação literal, se possa desprezar o instituto da remessa necessária incidindo, ainda, no âmbito da estabilização da tutela provisória “é dizer, a estabilização da tutela antecipada decorre de uma primeira decisão (interlocutória e de mérito), que, pela disciplina do Código de Processo Civil de 2015, não transita em julgado; já o pronunciamento judicial oriundo da extinção do processo em face da não interposição de recurso é uma decisão de mérito (sentença), regida, como qualquer outra sentença de mérito, pelas disposições da legislação processual civil, dentre elas, ser passível de ser alcançada pela coisa julgada, de acordo com o art. 502 do CPC/2015 e de se submeter à remessa necessária (OLIVEIRA, 2015, p. 63-64)”.
Assim, quando Jaqueline Mielke da Silva afirma a “inexistência de óbices sistemáticos à concessão de tutela provisória em face do Poder Público (2015, p. 71)”; e quando Didier, Braga e Oliveira sustentam, igualmente, que “não existem óbices sistemáticos, inerentes às normas fundamentais que compõe o regime de direito público, à concessão de tutela provisória contra a Fazenda Pública (2015, p. 635)”, estão apenas dando uma contribuição interpretativa de cunho dogmático no âmbito das divergências doutrinárias em torno da matéria.
Estes autores adotam interpretação no sentido de garantir a plenitude da tutela provisória, com seu assento constitucional, no sentido de que as especificidades do caso concreto sempre podem superar toda e qualquer barreira apriorística à tutela provisória contra quem quer que seja. Afinal, como já dizia Dinamarco, “Negar sistematicamente a tutela antecipada em caráter antecedente, ou preparatório, é ignorar o art. 8º, I, do Pacto de San José da Costa Rica, portador da severa recomendação de uma tutela jurisdicional ‘dentro do prazo razoável (2003, p. 73-74)”.
Mesmo Rogério Mollica, numa interpretação ampliativa, de que o novo Código de Processo Civil exige prévia oitiva da Fazenda Pública no prazo de 72 horas para o deferimento de qualquer pedido de tutela de urgência contra ela, defende também que, essa regra, não sobrepõe-se jamais à norma constitucional do amplo acesso à Justiça, “independentemente de quem sejam as partes e dos privilégios que possam ter em juízo”, ou seja, “a existência do Reexame Necessário ou de qualquer outro privilégio processual não podem ser empecilhos para o Poder Judiciário conferir proteção efetiva e imediata aos direitos expostos a risco de lesão (2016, p. 328)”.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, entretanto, tanto a remessa necessária como o regime dos precatórios, ao lado de princípios ligados ao “interesse público”, têm posição de destaque nos fundamentos lançados para a declaração de constitucionalidade das normas restritivas de tutela provisória contra o Poder Público. Numa perspectiva projetiva do julgamento das ADIs nºs 223-6 e 1.567, bem como da ADC nº 4, o art. 1.059 do Código de Processo Civil, que concentra as atuais restrições de tutela provisória contra o Poder Público, é constitucional porque, entre outros motivos que constam dos votos vencedores, há compatibilidade com ambos os sistemas (remessa necessária e precatórios) e com os princípios de direito público.
O argumento da jurisprudência aponta a possibilidade de ampliar as restrições legais para além dos específicos casos vedados; uma amplitude derivada de uma questão de natureza processual, a fim de contemplar o “pagamento de qualquer natureza” não só em prol de servidores públicos (aspecto material), mas também para outras demandas quaisquer que tenham que se sujeitar à remessa necessária, até chegar à fila dos precatórios, cujo trânsito em julgado é exigência constitucionalmente prevista para se iniciar a fase de cumprimento de sentença. Nessa fase, ocorre a inserção do litigante vitorioso na fila dos credores do Estado, o que não corresponde com a efetividade do processo, que seria a entrega do bem da vida (o dinheiro) e não o ingresso para uma fila geralmente sem perspectiva de data para quitação (realização de justiça).
Não obstante, é possível traçar uma escalada de julgamentos dos tribunais superiores mitigando o alcance das hipóteses vedadas e, por aparentemente destoarem da jurisprudência (esta considerada a partir dos julgados do Supremo em controle concentrado de constitucionalidade), esses julgados vão se tornando reiterados e, de certa forma, autorizando afirmar a inexistência de óbices sistemáticos à tutela provisória contra a Fazenda Pública, como afirmaram Jaqueline, Didier, Braga e Oliveira e autores que rechaçam as restrições legais.
Percebe-se a existência de um antagonismo. Em uma análise crítica aos precedentes vinculantes das cortes supremas, Antonio Aurelio de Souza Viana explica que “mesmo na hipótese de a ratio decidendi ser definida pelo Tribunal Superior, é possível e inevitável a sua interpretação pelas instâncias inferiores, o que constitui um paradoxo, pois o precedente não pode vincular de modo absoluto (2017, p. 122-146)”.
É por isso que Eduardo José da Fonseca, referindo-se às liminares contra a Fazenda Pública não por um enfoque estático-legalista, mas sim por um dinâmico-pragmático, usa a expressão “código fraco” para representar o conjunto legal de restrições de tutela provisória contra o Poder Público. Aduz que “essas leis não vedam a concessão; elas apenas enrijecem os seus pressupostos”, visto que os tribunais têm, em situações de emergência crítica, afastado as restrições de antecipação de tutela. “A “proibição” contida nesses textos pode sustentar-se no plano abstrato-textual, mas não resiste a uma análise mais acurada quando se olha o fenômeno pelo plano empírico-normativo. A prática tem revelado um verdadeiro abismo entre o texto geral e abstrato e a norma que se vive a partir dele. Se o texto legislativo parece proibir, no dia-a-dia forense a norma jurídica que dele se extrai não se mostra tão proibitiva assim (COSTA, 2011, p. 43).
Em sua dissertação sobre “o direito vivo das liminares” conclui que geralmente, do ponto de vista pragmático, a concessão de antecipação de tutela “possui um instante subjetivo-valorativo [parte discricionária] e outro objetivo-normativo [parte vinculativa]”, e que “a concessão da liminar é um ato de condicionalidade complexa, que não resulta de mera volição nem de simples subsunção”, funciona como um “sistema móvel”.
Sobre a visão do autor, de que os dispositivos restritivos não vedam a concessão de tutela provisória contra a Fazenda Pública, mas sim enrijecem os pressupostos para o seu deferimento, Haroldo de Araújo Lourenço, em recente tese de doutorado, entende ser um argumento inconcebível, “pois se desperta atenção do legislador tal preocupação em favor do Poder Público, por que não existe essa mesma atenção aos particulares e, ainda, tal afirmação soa duvidosa sobre a magistratura, pois seus membros são suficientemente aptos para observarem e fiscalizarem os requisitos de tais liminares, sendo prescindível alerta legislativo (SILVA, 2017, p. 165).
O fato é que, no sistema móvel de que tratou Eduardo Fonseca, a remessa necessária, o regime de precatórios e os princípios do regime jurídico-administrativo do Estado funcionam como elementos que integram o complexo ato de concessão ou não de tutela provisória contra o Poder Público, ao menos como motivação para o posicionamento político e ideológico do magistrado diante do caso concreto, de sorte que novidades do Código de Processo Civil, como a estabilização da tutela provisória e a tutela de evidência, podem restar inviabilizadas na prática.
Destarte, não há como negar razão a Haroldo de Araújo quando afirma que “o legislador, apegado à sua tradição de dar supremacia do interesse público sobre o privado, cria tais institutos” – referindo-se ao “nefasto regime jurídico” que o conjunto de restrições de tutela provisória contra a Fazenda Pública cria (2017, p. 165).
2.1. Óbice da remessa necessária
Na ADC nº 4, conforme visto, o Ministro Marco Aurélio não vislumbrou a constitucionalidade das restrições de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, o que nos leva a crer que ele admite a exequibilidade dessa tutela, já que, se meramente formal, seria inócua.
Ocorre que, além de restar isolado como voto vencido, na antecessora ADI nº 1.576-1/DF, em que foi relator, Marco Aurélio entendeu que seria um “gritante paradoxo emprestar-se aos preceitos disciplinadores da tutela antecipada alcance a apanhar a Fazenda Pública” quando, por outro lado, “a sentença, ou seja, a entrega da prestação jurisdicional, após a observância do contraditório, do devido processo legal, não surte de imediato, efeitos, ficando estes na dependência de confirmação”.
Ou seja, ele objetou a remessa necessária em face da tutela provisória.
Esse óbice constou também das razões do voto do ex-Ministro Menezes Direito, na ADC nº 4, para quem as restrições de antecipação de tutela contra o Poder Público “guardam consonância com o sistema positivo” (p. 660).
Perceba-se na transcrição supra que o Ministro reputou óbvia a constitucionalidade do instituto da remessa necessária, embora não fosse esse o objeto da ação declaratória de constitucionalidade.
Nas palavras do relator ex-Ministro Sydney Sanches, “se é razoável nosso sistema processual, quando, com efeito suspensivo, sujeita ao duplo grau de jurisdição as decisões judiciais de mérito proferidas contra a Fazenda Pública”, também “não se mostra desarrazoado exigir-se, pelo menos, o mesmo tratamento as decisões de mera antecipação de tutela, que não hão de ter eficácia maior que as definitivas” (p. 638).
Assim, pela hermenêutica desses votos amplamente prevalecentes da norma que se extrai da ADC nº 4, conferir plenitude ao instituto da tutela provisória contra a Fazenda Pública seria o mesmo que burlar o instituto da remessa necessária, na medida em que aquele se projeta à pronta satisfação ou acautelamento no plano material, isto é, a um efeito que nem mesmo as sentenças possuem, em regra, contra a pessoa jurídica de direito público.
Ora, “se não se pode o ‘mais’ por que se poderia o ‘menos’?” – nos põe à reflexão Scarpinella Bueno.
Para Didier, Braga e Oliveira esse reverberar do instituto da remessa necessária é fruto de uma argumentação insustentável por dois motivos. Primeiro porque o mecanismo “se refere às sentenças e a tutela provisória é usualmente concedida por meio de decisão interlocutória”; segundo porque “sempre se admitiu a tutela provisória em face da Fazenda Pública, em situações esparsas (possessórias, mandado de segurança etc.), sem que se levasse o óbice da remessa necessária (2016, p. 633)”.
De acordo com o primeiro argumento, Daniel Amorim Neves entende que o reexame necessário, “segundo previsão do art. 496 do Novo CPC, só é exigido de algumas sentenças de mérito que causam determinada lesão à Fazenda Pública, e não de decisão interlocutória, que normalmente é a forma de decisão que concede a tutela antecipada (2016, p. 889)”.
Em contraponto está Jaqueline Mielke da Silva, para quem as medidas antecipatórias “não se caracterizam como simples decisões interlocutórias – como afirma a maioria da doutrina”; são “decisões interlocutórias de mérito, na sistemática do NCPC”. Ela explica que “para a maior parte da doutrina tradicional, é bastante complicado considerar as medidas antecipatórias como decisões de mérito, em razão do atrelamento da ideia de mérito à declaração e, consequentemente, à certeza (2015, p. 114)”.
Reforçando o entendimento da autora, mas olhando não especificamente para a tutela provisória e sim para o julgamento antecipado parcial de mérito, Weber Luiz de Oliveira defende que incide a remessa necessária sobre essa decisão interlocutória, a qual não se qualifica como sentença unicamente por uma questão formal (consistente em não estabelecer o fim de uma fase processual ou de um processo), pois sob um viés material, “se o conteúdo decisório é o mesmo que os descritos no art. 487 do CPC/2015, utilizados como pressupostos para definir-se sentença”, então “aquela decisão interlocutória também deveria se sujeitar à remessa necessária (2015, p. 61)”.
O autor reconhece que sua opinião “não é o que se extrai, de forma literal, do Código de Processo Civil de 2015”, sugerindo que a jurisprudência adote “uma interpretação lógica e sistêmica, pois se duas decisões judiciais têm o mesmo conteúdo, não se parece adequado e isonômico terem tratamentos diferentes”.
Didier, Braga e Oliveira foram buscar em Eduardo Talamini (2007, p. 59) a interpretação restritiva e formalística ao argumentarem que o duplo grau de jurisdição obrigatório só se aplica à sentença (como consta da literalidade do art. 496 do CPC) e não à decisão interlocutória. Afirmam ainda que a remessa necessária tampouco incide sobre a tutela provisória que é concedida na sentença. Segundo Weber Luiz, por sua vez, essa é uma argumentação insustentável e absurda, pois o critério utilizado não autorizaria conceber “a execução contra a Fazenda Pública da decisão parcial de mérito ou da coisa julgada parcial, pois o art. 100 da Constituição Federal faz referência à “sentença judiciária (2007, p. 62)”.
Na lição de Marcus Vinicius Rios a remessa necessária se aplica “exclusivamente” às sentenças, “não há como admitir a remessa de decisões interlocutórias de mérito, ainda que proferidas contra a Fazenda Pública, já que não se pode admitir interpretação extensiva do dispositivo”. Segundo o Enunciado nº 17 do I Fórum Nacional do Poder Público, entretanto, “A decisão parcial de mérito proferida contra a Fazenda Pública está sujeita ao regime da remessa necessária”. É nesse sentido, inclusive, que argumentou o então Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, em seu parecer na ADC nº 4 (p. 625), afirmando que seria um “desvirtuamento do sistema” pensar diferente, afinal, “isso significa que se a decisão definitiva pelo Juiz, a sentença proferida na ação ordinária, confirmar a decisão na tutela antecipada contra a Fazenda Pública, não poderá ela produzir qualquer efeito, mas a decisão provisória sim, o que demonstra mais uma vez o desvirtuamento do sistema, organizado segundo a Constituição”.
Em recente tese de doutorado, Haroldo de Araújo Lourenço argumentou que “não são todas as sentenças que se sujeitam ao reexame necessário, como se infere dos parágrafos 3º e 4º do art. 496 do CPC/2015, além disso, a tutela antecipada geralmente é deferida por decisão interlocutória que, a priori, não é passível de reexame (2017, p. 165)”.
Os fatos são que, o Direito é repleto de contradições, e a hermenêutica dos precedentes estudados seguiu indiferente ao ponto de vista de Didier, Braga e Oliveira, pois o termo “sentença” não foi motivo para afastar a incompatibilidade sistêmica que se vislumbrou em detrimento da tutela provisória – esta rendeu-se à normatividade da remessa necessária.
Fez-se na ADC nº 4 uma interpretação dita lógica e sistêmica, sob a qual uma medida sumária e precária estaria burlando o instituto em foco. Afinal, ao impor a dupla cognição exauriente para autorizar a exequibilidade da tutela jurisdicional contra a Fazenda Pública, quer-se proteger o interesse público e, nessa finalidade, sequer a sentença tem eficácia; logo, uma decisão interlocutória não poderia ter mais valor ou prestígio (eficácia).
Inadequado enxergar a técnica processual de antecipação de tutela se chocando com o interesse público, pois ela decorre da Constituição Federal. Sua finalidade é projetar-se à exequibilidade para uma questão de urgência ou evidência e, se possível, dispensando até mesmo a continuidade do trâmite processual através da estabilização de uma decisão liminar. É de se afastar a incidência da remessa necessária e autorizar a produção de efeitos satisfativos ou cautelares imediatamente por decisão interlocutória ou mesmo em sentença.
Nesta última hipótese, ainda ocorrerá a remessa necessária, mas sem efeito suspensivo, enquanto o Poder Público poderá também agravar da decisão e/ou pleitear sua suspensão perante o Presidente do Tribunal competente – armas mais que suficientes para a proteção do interesse público, do erário ou da Administração Pública.
Há decisão do Superior Tribunal de Justiça em que o Ministro Félix Fischer, ao admitir antecipação de tutela contra a Fazenda Pública para fins de “participação do autor no Curso de Formação para o Cargo de Delegado da Polícia Federal”, fez constar em seu voto que o reexame necessário não pode “impedir os efeitos da antecipação de tutela, porquanto a decisão liminar, além de objetivar a garantia da efetiva execução de sentença, não se trata de sentença definitiva”, daí concluindo que “o cumprimento do duplo grau confirmatório não pode inviabilizar a concessão da antecipação de tutela, contrapondo-se ao direito do autor à efetividade da tutela jurisdicional”.
Referindo-se ao art. 1º da Lei nº 9.494/1997, o Ministro fez expressa referência em seu julgamento à obra de Renato Luíz Benucci, para quem essa lei “acabou por, indiretamente, superar as limitações genéricas a toda espécie de antecipação de tutela em face da Fazenda Pública, como o óbice do reexame necessário, pois se este impedisse a concessão da tutela antecipada, necessidade alguma haveria de se editar um diploma específico para restringir a incidência da antecipação de tutela em face da Fazenda Pública (2001, p. 64)”.
Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que a remessa necessária não impede a concessão de liminares contra o Poder Público “quando o que está sub judice são prestações de cunho alimentar, caso não tratado na Lei nº 9.494/97 (RESP nº 505.729/RS, 5ª Turma) e que se amolda a manutenção do estado remuneratório de ex-servidor (RESP nº 502.275/MG, 5ª Turma)” – conforme consta da ementa.
Sempre se praticou tutela provisória contra a Fazenda Pública em outras espécies de demandas, sem que nelas a remessa necessária apareça como óbice. Segundo Benucci “é nítida a natureza antecipatória das liminares concedidas em mandado de segurança, onde são antecipados os efeitos do julgamento de mérito da segurança (2001, p. 66)”, não se questionando sobre a eficácia imediata de provimentos judiciais mandamentais.
A relatividade do instituto da remessa necessária é perceptível, considerando que não se aplica como regra em demandas alheias à jurisdição civil comum, bem como que o novo Código diminui sua margem de incidência em relação ao Código revogado – conforme já observado no Capítulo II deste trabalho ao comentar os §§ 3º e 4º do art. 496 do Código de Processo Civil. Ademais, decisões têm superado o óbice em estudo: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO PREVIDENCIÁRIA – SENTENÇA – PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL – TUTELA ANTECIPADA PARA IMEDIATA IMPLANTAÇÃO DO BENEFÍCIO – REEXAME NECESSÁRIO – RECURSO DE APELAÇÃO – RECEBIMENTO NO EFEITO MERAMENTE DEVOLUTIVO – REEXAME NECESSÁRIO – IRRELEVÂNCIA. Em ação previdenciária, deve ser recebido apenas no efeito devolutivo o recurso de apelação interposto contra a sentença que, julgou procedente o pedido inicial e, em antecipação de tutela, determinou a imediata implantação do benefício concedido, sendo irrelevante, para tanto, estar a sentença submetida ao reexame necessário. (TJ-MG – AI: 10024058263492001 MG, Relator: Maurílio Gabriel, Data de Julgamento: 24/10/2013, Câmaras Cíveis / 15ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/11/2013)”.
Questão “pertinentíssima acerca do assunto” – enfatiza Scarpinella Bueno – é saber se seria “constitucional regra que impede, com esta, casuisticamente, o cumprimento provisório da sentença”. É de se concordar com ele na resposta negativa, pois a necessidade de imediata eficácia da tutela jurisdicional “sobrepõe-se à segurança jurídica corporificada pelo efeito suspensivo do apelo e, mais amplamente, do reexame necessário (2016, p. 68)”. Todavia, na ADC nº 4, colhe-se das razões do voto do ex-Ministro Menezes Direito que, “por óbvio, não se pode dizer que tal regra seja inconstitucional” (p. 660).
2.2. Óbice do regime dos precatórios
Aluisio Gonçalves de Castro e Larissa Clare Pochmann afirmam que a primeira restrição de tutela provisória contra a Fazenda Pública é de ordem constitucional, aplicável tanto a demandas individuais como coletivas, prevista no art. 100, § 5º, da Carta de 1988, in verbis: “Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
Entendem que o texto constitucional exigiu o trânsito em julgado da sentença para autorizar o respectivo cumprimento contra o Poder Público toda vez que importar em pagamento de quantia em dinheiro. Ou seja, ordem judicial nesse sentido somente torna-se exequível após definitiva, indiscutível, qualidade essa inexistente na tutela que é provisória (PASTORE, 2016, p. 27).
Lucas Buril de Macedo e Ravi Peixoto têm o mesmo entendimento, expondo-o ao tratar da tutela de urgência em caráter antecedente. Argumentam que haveria uma inadequação procedimental quando o “único objetivo fosse a antecipação do pagamento da quantia em dinheiro”. Isso devido a uma “incompatibilidade entre a lógica do procedimento (urgência), com a necessidade de prévia inscrição em precatório (2015, p. 217)”.
O regime dos precatórios, para esses autores, é um óbice à tutela de urgência satisfativa de pagamento contra a Fazenda Pública, quer em caráter incidente ou antecedente, afinal, a inscrição do crédito num rol de vários outros credores do Estado é pressuposto para o pagamento. A antecipação de tutela com consequências pecuniárias “significaria uma indireta violação ao aludido dispositivo constitucional, em virtude do dispêndio de verbas orçamentárias em decorrência de decisão judicial e sem observância da ordem cronológica para pagamentos”. Marco Antônio Rodrigues esclarece que “tal regra consagra ponderação legislativa que procura proteger as pessoas jurídicas de direito público de prejuízos financeiros em razão de mera cognição sumária”.
Nessa ótica, no pedido de tutela provisória de urgência, o cidadão sequer tem o direito de prestar caução para resguardar eventual prejuízo à Fazenda Pública; e, o regime de responsabilidade objetiva, que envolve esse pedido, soa indiferente ou inaplicável.
Jefferson Dias e Pedro Machado arrolam vários posicionamentos doutrinários sobre o tema: a) os que apontam a “completa impossibilidade de tutela antecipada quando for o caso de dívida de valor em face do Poder Público”; b) os que defendem, em sentido absolutamente oposto, “a ausência de qualquer restrição para antecipação de tutela, mesmo em dívida de valor”; c) há os que entendem pela “inserção do precatório na linha de espera assim que deferida a tutela antecipada, o que permitiria o recebimento mais célere do crédito, quando se verificasse o trânsito em julgado”; d) destarte, os que não vislumbram uma “vedação a priori, mas sim a necessidade de análise caso a caso, sob o prisma da ponderação de interesses e da razoabilidade”. Jefferson e Pedro aderem a essa última corrente, pela qual o processo cumpre “o seu fundamental desiderato de produzir um resultado substancialmente justo (2016, p. 176)”.
Didier, Braga e Oliveira afirmam ser precipitada a constatação de impossibilidade de antecipação dos efeitos da tutela de obrigação pecuniária contra o Estado, pois “nada impediria a decisão provisória que colocasse a parte vitoriosa na “fila de espera” para a sua expedição, cujo procedimento findaria com o depósito judicial da quantia, que somente poderia ser levantada em caso de procedência definitiva da demanda (2015, p. 633)”. Tal hipótese é cautelar, afinal, o jurisdicionado não pede para entrar na fila, ele requer o bem da vida (a pecúnia), sendo sua inscrição em crédito de precatório um procedimento do regime de pagamento pelo Poder Público. Segundo Daniel Amorim Neves “a tese do precatório provisório não vem sendo admitido na praxe forense (2016, p. 889)”.
É inegável que as vedações legais de tutela provisória contra o ente público – que atingem diretamente a efetividade e a razoável duração dos processos – estão ligadas às questões orçamentárias, por isso Ricardo Lewandowski lembrou da Lei de Responsabilidade Fiscal e José Henrique Mouta escreveu que “o pano de fundo das restrições ao cabimento de liminar está ligado à previsão orçamentária”.
Pela necessidade de segurança e previsibilidade orçamentária para com os inúmeros e igualmente credores do erário, o regime de precatórios se apresenta como um obstáculo de difícil superação. Aluisio Gonçalves e Larissa Pochmann defendem que a restrição é pautada no interesse público e em função da “organização orçamentária anual (2015, p. 215)”, visto que “os impostos não podem ser majorados e a receita deve estar prevista no orçamento. Por isso, o pagamento de quantias superiores a 60 (sessenta) salários-mínimos deve ser realizado pelo precatório, nos termos do art. 100 da CF/1988 (2015, p. 215-219)”.
Edilton Meireles apresenta um entendimento interessante ao defender que nos casos em que as obrigações assumidas pelo Estado já têm previsão orçamentária, é desnecessária a prolação de decisão judicial para determinar a inclusão no orçamento, ou seja, “o precatório serviria, nesses casos, apenas como uma ordem de pagamento a ser cumprida no próprio exercício fiscal, e não como um ato judicial que determina a inclusão de verba no orçamento do exercício seguinte para satisfação do crédito executado (1999, p. 120-121)”. O precatório, portanto, não seria dispensável, mas ostentaria uma característica marcante, que é sua ordem de pagamento para cumprimento no mesmo exercício financeiro do ente público, com isso tornando mais célere a satisfação do crédito exequendo.
Referindo-se ao art. 100, §§ 1º a 3º da Constituição Federal, Scarpinella Bueno argumenta que ao se exigir o trânsito em julgado para expedição de precatório, “é porque todo o pagamento a que o Poder Público seja condenado (o termo é técnico) judicialmente pressupõe o trânsito em julgado” – por isso, “como regra, o Poder Pública não paga sem precatório”; aliás, “mesmo quando o Poder Público paga sem precatório o trânsito em julgado é indispensável” – isto é, mesmo para as quantias que se submetem ao regime de requisição de pequeno valor. “A antecipação dos efeitos da tutela não pode abranger os fatos patrimoniais pretéritos determinando o pagamento de atrasados, haja vista que o § 3º do art. 100 da C.F. estabelece, como pressuposto da expedição de precatório ou da requisição do pagamento de débito de pequeno valor de responsabilidade da Fazenda Pública, o trânsito em julgado da respectiva sentença (TRF 3ª Região – Proc. 2004.03.00.024869-4, AG 207278, Orig: 0400000270/SP, 7ª Turma, Rel. Des. Walter do Amaral. j. 07.03.2005. DJ 07.04.2005)”.
Didier, Braga e Oliveira afirmam que as dívidas pecuniárias da Fazenda Pública reconhecidas em sede de Mandado de Segurança, especialmente as parcelas vencidas após o ajuizamento da ação, não encontram o obstáculo do regime dos precatórios (2015, p. 634). José Henrique Mouta Araújo, todavia, entende que “tal conclusão não é verdadeira, eis que a sentença concessiva de segurança que tiver este móvel não pode ser executada provisoriamente (2017, p.134-135)”.
Enfim, como anteriormente afirmado, o objeto ora em estudo é tema em ebulição e longe estamos de alcançar um consenso. Nas palavras de Rosemiro Pereira Leal, citado por Weber Luiz de Oliveira: “Isento ficou o Estado da execução forçada como se fosse ainda um ente inefável dos liberais ou a bolha diáfana e milagrosa da pressuposta unidade nacional hegeliana, bem própria dos republicanos, e que não pudesse sofrer pressões patrimoniais ou pecuniárias (zwagn e astreintes) ou mesmo a restrição de liberdade de seus administradores governativos (contempt of court) em caso de recusa de cumprimento de ordem sancional executiva ao pronto seguramente do juízo ou acatamento incontinenti de obrigação. O sistema de precatórios é, de conseguinte, uma burla flagrante aos denominados avanços das tutelas diferenciadas que vincam atualmente a teoria da procedimentalidade tão aplaudida e alardeada pelo Judiciário (2007, p. 944)”.
Inequívoco é que, para o jurisdicionado esbarrar-se no sistema de precatórios ao pedir uma tutela provisória, a condenação da Fazenda Pública precisa ser para pagamento de quantia certa. O óbice não alcança a execução judicial para entrega de coisa certa diversa de dinheiro e nem para obrigações de fazer e de não fazer, cujos efeitos da tutela podem ser antecipados.
Na concepção de Lucas Buril e Ravi Peixoto “a utilização das regras sobre cumprimento provisório de obrigação pecuniária é inadequada” para a efetividade de certas tutelas de urgência, pelo que estas devem “seguir a forma de cumprimento de obrigações de fazer, não fazer (art. 537 e 537) ou entrega de coisa (art. 538)”; ou seja, “uma decisão que normalmente seria condenatória acabará por assumir eficácia preponderantemente mandamental ou executiva, de acordo com qual for a técnica mais adequada para a tutela do direito”.
Diz-se que os bens públicos são impenhoráveis e indisponíveis, mas há decisões judiciais que sequestram verba pública em prol do demandante, “mesmo nas obrigações de pagar quantia certa, ainda que excepcionalmente”. Isso ocorre geralmente no âmbito do direito à saúde.
Para buscar a execução provisória de decisões liminares que imponham pagamento à Fazenda Pública é possível questionar a constitucionalidade das Emendas Constitucionais nºs 30/2001 e 62/2009, visto que a imposição do trânsito em julgado da decisão judicial acaba afrontando o direito fundamental à tutela efetiva e preventiva, sendo incompatível com a tutela de urgência e de evidência. É o que sugere Scarpinella Bueno, apontando a inconstitucionalidade da vinculação do início dos efeitos do ato decisório ao seu trânsito em julgado, pois com isso fecha-se as portas para o acesso à tutela provisória, ignorando-se questões emergenciais que podem tornar inútil a tutela definitiva.
O sistema de precatórios constrói uma blindagem em prol do erário, mas não resistente o bastante para impedir a efetividade de demandas por saúde, nem para outras demandas pontuais, nas quais o acesso judicial aos cofres públicos é feito, geralmente, com o argumento de que o erário é atingido de forma indireta ou consequencial de tutela jurisdicional. Nesse sentido: FAZENDA PÚBLICA – TUTELA ANTECIPADA – PRONUNCIAMENTO DO SUPREMO – AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE Nº 4/DF – RECLAMAÇÃO – IMPROCEDÊNCIA. O que assentado na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4/DF não alcança decisão cujo efeito patrimonial contra a Fazenda Pública é apenas secundário (Rcl nº 5252 AgR, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 17.10.2013, DJe nº 220 de 06.11.2013, Publicado 07.11.2013)”.
Em geral, a impenhorabilidade dos bens públicos arrasta os credores do Estado à fila dos precatórios pela regra do art. 100 e seus §§ da Constituição Federal. Há “muito pouco de execução forçada” contra a Fazenda Pública – afirma Marcus Vinicius Rios Gonçalves – “já que não são praticados atos satisfativos, ao menos de maneira direita”, pois o que há é uma “requisição que o Poder Judiciário dirige à Fazenda, para que esta efetue o pagamento dos débitos, respeitada a ordem dos precatórios”. “É bem verdade que o texto constitucional não fala expressamente em coisa julgada, mas sim em trânsito em julgado. No contexto em que utilizada a expressão, entretanto, é mais razoável reconhecer a própria existência de coisa julgada como condição para a expedição de precatório. O legislador usou a expressão “trânsito em julgado” de forma atécnica, querendo significar, em verdade, coisa julgada material. Esse é o sentido, inclusive, da análise teleológica da norma, pois prestigia a finalidade de permitir ampla previsibilidade dos desembolsos do poder público, garantindo-lhe segurança jurídica, pois não haveria reserva de recursos para pagamento antes da certeza da condenação judicial (CARDOSO, 2017, p. 42-43)”.
E suma, ainda que excepcionalmente, recursos públicos vêm sendo alcançados por meio de decisões judiciais que interpretam com ressalvas as restrições de exequibilidade judicial contra a Fazenda Pública. Leonardo Carneiro da Cunha informa que, embora o Supremo tenha reconhecido a constitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494/1997, vem conferindo interpretação restritiva ao dispositivo, “diminuindo seu âmbito de abrangência para negar reclamações constitucionais em algumas hipóteses em que lhe parece cabível a medida antecipatória, mesmo para determinar o pagamento de soma em dinheiro (2016, p. 301)”.
O argumento de que uma decisão liminar pode acabar implicando na desprogramação orçamentária pública e representa uma violação ao princípio da separação de poderes encontra resistência nos casos de prévio empenho da Administração Pública (dívida contratual com alguma empresa, por exemplo) ou previsão orçamentária para despesa salarial com pessoal (seja determinando a reintegração de servidores públicos ou mesmo a nomeação e posse de candidatos aprovados em concurso público – há uma presunção relativa de que há orçamento para garantir a investidura de cargos dispostos no edital do certame).
Tratando-se de pagamento de benefícios previdenciários há o entendimento de que a não possibilidade de antecipação de tutela em face da Fazenda Pública “está ultrapassada, porquanto a antecipação do provimento não importa em pagamento de parcelas vencidas, o que estaria sujeito ao regime de precatórios. A implantação provisória ou definitiva do benefício, tanto previdenciário como assistencial, não está sujeita à disciplina do artigo 100 da Constituição da República, não havendo, portanto, falar-se em impossibilidade de implantação do benefício perseguido sem o trânsito em julgado da sentença (TRF 3º Região – APELREEX 0009329142008403618. APELREEX – APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO – 1733473. Décima Turma. Rel. Des. Sérgio Nascimento. Data da Decisão: 12.06.2012. Data da Decisão: 12.06.2012. Data da Publicação: 20.06.2012”.
O Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a expedição de precatório e, consequentemente, o início de execução, mesmo que a sentença seja provisória, quando houver no caso concreto parcela incontroversa da pretensão do exequente. Daniel Amorim Neves diz que parcela da doutrina “defende a existência de execução provisória até a fase de embargos, ficando suspensa a partir desse momento a execução à espera do trânsito em julgado (2016, p. 1990)”.
O juiz federal Antônio Souza Prudento, vislumbrando em 1997 um direito evidente (porque já havia sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal) de equiparação no reajuste salarial entre servidores públicos civis e militares, argumentou que a “instrumentalidade morosa e injusta do precatório” não constitui óbice à “obrigação de fazer a incorporação, em folha de pagamento”, do percentual pleiteado pelos servidores civis, os quais iriam à fila dos precatórios, portanto, apenas quanto ao “pagamento das parcelas atrasadas” (p. 33 dos autos da ADC nº 4).
Mas, em sentido contrário, o Procurador-Geral da República Geraldo Brindeiro, através do Parecer nº 8.411/GB, de 26.02.1998, ao manifestar-se pela “procedência in totum” do pedido de liminar na ADC nº 4 (p. 424), observou que “por imperativo constitucional, a Fazenda Pública somente pode efetuar os pagamentos devidos em virtude de sentença judiciária mediante expedição de precatório, mesmo em se tratando de crédito de natureza alimentícia, conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 100, caput) (vide, e.g., RE nº 181.599-SP, ReI. Min. Celso de Mello, DJ de 15/9/95)”.
Segundo o relator e ex-Ministro Sydney Sanches a norma impugnada na ADC nº 4 visa apenas “dar conseqüência a esse sistema constitucional de pagamento de débitos da Fazenda Pública, quando reconhecidos em Juízo” (p. 633). Não lhe soou admissível que credores com direito provisoriamente reconhecido passassem à frente de credores com direito reconhecido definitivamente (p. 638), por uma questão de isonomia.
Essa questão de isonomia pode ser compreendida também em demandas de saúde: reiteradas vezes manifestei preocupação com o fato de as decisões antecipatórias de tutela para determinar a imediata realização de procedimento implicarem, por via oblíqua, “burla à fila” existente no SUS, conferindo ao autor “tratamento privilegiado” em detrimento de outros pacientes em idêntica situação e que permanecem no aguardo, sem acesso ao atendimento de que necessitam e ao próprio Judiciário (Processo nº 0012006-68.2015.4.01.4100, 4ª Vara do Juizado Especial Federal em Rondônia, Juiz Federal Dimis Costa Braga, decisão datada de 26.09.2014).
A violação da isonomia que resulte em preterição – qualquer fator discriminatório ilegítimo entre credores da Fazenda Pública – autoriza o sequestro da verba necessária pleiteada, por ato jurisdicional. Igual autorização há no caso de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do jurisdicionado. Entretanto, neste último caso, de tão comum acontecer na prática sem qualquer consequência – conforme visto no Capítulo II – trata-se de letra morta a possibilidade de sequestro.
2.3 Óbices à estabilização da tutela provisória antecedente
Conforme visto no Capítulo I, pode o juiz conceder inaudita altera parte a tutela antecipada de urgência em caráter antecedente (art. 303, CPC/2015) e, se a parte requerida não recorrer dessa decisão, o ato tornar-se-á estável (caput do art. 304) e o processo será extinto (art. 304, § 1º).
Há, porém, muitas dúvidas sobre essa inovação legal, que são maximizadas quando na lide a Fazenda Pública for parte requerida. “Quando o réu inerte é a Fazenda Pública, a discussão pode ser acirrada” – reassaltam Didier, Braga e Oliveira (2015, p. 609).
Bruno Garcia apresenta algumas situações em que afirma “descabida a concessão de tutela antecipada de forma antecedente e/ou a sua estabilização” no processo civil brasileiro, dentre as quais, “quando se tratar de direito indisponível ou for caso de situação em que, ainda que inexistisse contestação, ficaria impedida a produção do efeito material da revelia (2015, p. 172-173)”. A disponibilidade da defesa não está presente quando o objeto do litígio é um direito propriamente indisponível. Não soa possível, por exemplo, estabilizar-se uma medida de antecipação de tutela de exoneração de alimentos.
Considerando que o autor admite a estabilização em face da Fazenda Pública, então nos leva a pensar se o ente público pode estar atuando em nome de um direito disponível no processo judicial e, consequentemente, o Estado não é imune aos efeitos da revelia. Imagine-se o caso em que se obtém tutela antecipada antecedente para sustar os efeitos do ato de exoneração de um servidor público por falta funcional – poderia estabilizar-se a suspensão da eficácia de tal ato sem a cognição exauriente dos seus fundamentos de legitimidade? Certamente não. Por outro lado, a pretensão por uma certidão positiva com efeito de negativa perante o Fisco parece viável de ser buscada pelo procedimento em caráter antecedente. Didier, Braga e Oliveira apontam outro exemplo: “Imagine um caso em que um estudante, que ainda não havia concluído o ensino médio, tenha sido aprovado no vestibular para um curso superior. A instituição de ensino, seguindo determinação do Ministério da Educação, não realizou a matrícula. O estudante vai a juízo e obtém uma tutela satisfativa liminar, ordenando a matrícula. Para a instituição de ensino, pode ser que não haja qualquer interesse em contestar a medida – ela somente não matricula o aluno porque o Ministério da Educação proibia (2015, p. 605)”.
Marco Antônio Rodrigues entende inadmissível o manejo da tutela antecipada antecedente contra entes públicos, sob o argumento de que são isentos do efeito material da revelia, “considerando que este não incide quando estiverem em jogo direitos indisponíveis, consoante prevê o artigo 345, II, do CPC (2016, p. 108). Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu recentemente que “no caso de direitos indisponíveis e da Fazenda Pública, não se pode cogitar da estabilização da coisa julgada”, razão pela qual “a sentença que extinguiu o processo com resolução do mérito, declarando estável a decisão provisória, deve ser reformada a fim de que se dê prosseguimento ao feito para que se proceda à cognição exauriente que o caso impõe”. Tratou-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público estadual requerendo tutela satisfativa antecedente em favor de um paciente.
No mesmo sentido, com respaldo em decisões do Superior Tribunal de Justiça, Daniel Amorim Neves doutrina que “a indisponibilidade do direito é a justificativa para impedir o juiz que repute como verdadeiros os fatos diante da revelia da Fazenda Pública, aplicando-se ao caso concreto o princípio da prevalência do interesse coletivo perante o direito individual e a indisponibilidade do interesse público (2016, p. 1103)”.
Assim, uma vez deferida a tutela antecipada antecedente, admitir que a falta de impugnação do Poder Público, por recurso ou outro meio, possa levar à estabilização e consequente extinção do processo é – conforme Marco Antônio Rodrigues – “admitir indiretamente a produção de efeitos de veracidade às afirmativas do autor da demanda, em ofensa ao artigo 345, II, do CPC, bem como representando uma indireta disposição de direitos indisponíveis”.
Não é o que pensa Bruno Garcia, que aponta dois motivos para a possibilidade de concessão de tutela antecedente e sua estabilização contra o ente público: 1º – “o CPC/2015 (art. 700, § 6º) consagrou o entendimento de que cabe ação monitória contra o Poder Público (na linha do que já constava da Súmula 339 do STJ)”; 2º – “não há formação imediata de coisa julgada, sendo permitido, à Fazenda, propor ação de modificação em até 02 anos”, formando-se “coisa julgada material” apenas após inércia no prazo bienal (2015, p. 172 -173).
CONCLUSÃO
Nesse trabalho foi observado que para a concessão das tutelas provisórias é necessário observar os requisitos do fumus boni iuris e o periculum in mora, conforme estabelecido pelo Código de Processo Civil de 2015. Também foi verificado que para a concessão dessa tutela o juiz faz uma cognição sumária em relação ao objeto da lide no sentido de conceder ou não essa prestação jurisdicional diferentemente de quando há um decisão de mérito em que o juiz faz um cognição exauriente sobre o objeto da demanda. Foi visto que a Fazenda Pública em virtude dos princípios inerentes ao seu patrimônio (imprescritibilidade, não-onerabilidade, alienação condicionada e impenhorabilidade) tem condições especiais no que tange à disposição de seu patrimônio.
Desse modo, o objetivo do trabalho em questão foi demonstrar as variáveis doutrinárias e jurisprudenciais em relação não só ao deferimento da tutela provisória, como também os óbices à concessão da mesma em relação ao regime da remessa necessária e o regime de precatórios.
Entende-se que a tutela antecedente e sua estabilização são possíveis contra a Fazenda Pública. É pensar nos casos de direito à saúde ou de quem pede uma certidão positiva com efeito de negativa, bem como do estudante em matricular-se na instituição pública de ensino. Essa concessão é possível, pois, como é sabido, nenhum direito é absoluto sendo que em determinadas hipóteses é possível sim a sua mitigação, dessa maneira, o simples fato de a Fazenda Pública ocupar um dos polos da lide, não obsta ou ilide a possibilidade pelo magistrado de conceder à mesma ao administrado. Sendo assim, deve ser observado o caso concreto, sendo verificadas e analisadas detidamente suas peculiaridades para que haja ou não essa concessão, pois, o bem que é da Fazenda Pública também é um patrimônio da sociedade, desse modo, quando há uma contrição judicial nesses bens a sociedade sofre direta ou indiretamente influência em virtude dessa decisão judicial.
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[i] MESTRE em Direito e Sociologia (UFF/RJ – 2017). ESPECIALISTA em Judicialização das Questões Sociais (UFF/RJ – 2015) e Direito Processual Civil (UNISUL/SC – 2008). GRADUADO em Direito (FARO – 2007). Advocacia privada (2008 a 2010). Assessor Jurídico no Ministério Público (MP/RO – desde 2010 na Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e da Probidade Administrativa). Professor/Docente em IES (FARO: 2008 a 2017; ULBRA – 2018) – Disciplinas lecionadas: Teoria Geral do Processo, Processo Civil, Direito das Famílias, Direito das Sucessões, Direito Contratual, Direito Administrativo e Prática Jurídica. Estágios Profissionais: Procuradoria Geral do Estado (PGE/RO – 2006 a 2007) e Ministério Público de Rondônia (MP/RO – 2005 a 2008).
[ii] Acadêmico de Direito do Centro Universitário São Lucas – Porto Velho – Rondônia, e-mail: demetrio-vanuccigta@hotmail.com.
[iii] Acadêmico de Direito do Centro Universitário São Lucas – Porto Velho – Rondônia, e-mail: eduardofroes10@hotmail.com
[iv] Acadêmico de Direito da União das Escolas Superiores de Rondônia/ Uniron – Porto Velho – Rondônia, e-mail: fernandoaugustopiltz@hotmail.com.
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