Resumo: Este artigo objetiva trazer breve reflexão da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002, especialmente pela quebra da isonomia fixada constitucionalmente entre a união estável e o casamento.
Palavras-chave: Sucessão. União estável. Inconstitucionalidade.
Sumário: Introdução. 2. Da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002. 3. Considerações finais. 4. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Comparando com o casamento, a união estável foi bastante discriminada na seara legislativa, colocando-se a mesma em situações inaceitáveis: ora na ausência de amparo legal, mesmo dos constantes e os inúmeros fatos sociais que se colocavam freqüentemente e ora por dispositivos legais anacrônicos, os quais evidentemente não traziam melhor solução aos conflitos de interesses.
A união estável passou, em períodos mais recentes, a receber a atenção do nosso legislador com a edição de leis sobre o assunto, mas especialmente pela Constituição Federal de 1988, que passou a reconhecê-la e dar tratamento isonômico ao casamento.
Catorze anos depois, o Código Civil de 2002 veio trazer melhor regulamentação a determinados assuntos, inclusive adequando o ordenamento jurídico infraconstitucional com o texto da Magna Carta.
Entretanto, quedou-se inerte em alguns pontos e, em outros, parece trazer resquícios da insustentável posição que por tanto tempo se colocou o Codex de 1916.
Neste artigo, traçaremos a análise da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, que dá solução diferenciada para a sucessão do companheiro sobrevivente e para o cônjuge supérstite.
DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1790 DO CC/2002
A união estável é a relação pública, contínua e duradoura entre duas pessoas livres para o matrimônio (porém que não o firmaram), com o fito de constituição de uma instituição familiar.
É o que nos orienta o art. 1.723 do Código Civil, senão vejamos:
“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
Na mesma seara caminha o art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988, in verbis:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.(…)
§ 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Sobre a união estável, Maria Helena Diniz leciona que:
“Ao matrimônio contrapõe-se o companheirismo, consistente numa união livre e estável de pessoas livres de sexos diferentes, que não estão ligadas entre si por casamento civil.” (in DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 23. e. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 367)
Ressalve-se, evidentemente, a recente e importante decisão do Superior Tribunal de Justiça, especialmente a que reconheceu a possibilidade jurídica de discussão de união estável para pessoas do mesmo (STJ – REsp 820475/RJ – Rel. Antônio de Pádua Ribeiro), cuja ementa é a seguinte:
“PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. 1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, se a magistrada que presidiu a colheita antecipada das provas estava em gozo de férias, quando da prolação da sentença, máxime porque diferentes os pedidos contidos nas ações principal e cautelar. 2. O entendimento assente nesta Corte, quanto a possibilidade jurídica do pedido, corresponde a inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. 3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. 7. Recurso especial conhecido e provido.” (Consulta no site www.stj.gov.br em 12/10/2008, às 23h50min).
Em razão da recente decisão, por certo e em breve, estaremos mudando a definição conceitual de união estável, a qual pretensiosamente este jurista já ousou modificar, ao utilizar a expressão “duas pessoas”, ao invés de “entre homem e mulher”, como estamos acostumados a ler nas obras dedicadas sobre o assunto.
Esse tema, porém, reservaremos para um próximo artigo.
Voltando os nossos olhos para a Constituição Federal de 1988, percebemos, então, que a união estável foi equiparada ao casamento, tendo o nosso constituinte reconhecido-a como instituição familiar.
Entretanto, o Código Civil de 2002 resolveu por bem colocar o companheiro e a companheira de forma diferenciada àquela pessoa casada, a se observar, desde já, pela colocação da disposição sucessória na união estável em capítulo no mínimo inusitado (e distinto dos demais herdeiros), qual seja: o das disposições gerais.
Também reservou apenas o art. 1.790 para tratar do assunto, tendo a seguinte redação:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”
No tocante ao cônjuge, vários são os dispositivos legais sucessórios. Destacamos, entretanto, os artigos 1.829, 1.832, 1.837 e 1.838:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.”
“Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.”
“Art. 1.837. Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.”
“Art. 1.838. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.”
Há de se destacar algumas diferenças entre o direito sucessório do cônjuge e do companheiro, sem a especificação do gênero.
Concorrendo com os descendentes, o cônjuge supérstite tem reservado a quarta parte da herança. Ao companheiro sobrevivente, entretanto, não se tem essa reserva.
Quando o cônjuge supérstite concorre com os ascendentes, tem reservada a terça parte da herança e a metade, se houver um só ascendente ou se for maior aquele grau. No caso do companheiro sobrevivente, a herança será, em qualquer caso, de um terço.
O cônjuge supérstite terá a integralidade da herança, não havendo descendentes ou ascendentes. Já o companheiro sobrevivente, por sua vez, sempre terá que dividir a herança se houverem outros parentes sucessíveis, ficando a ele reservada a terça parte da herança.
Observa-se, ainda, que o companheiro sobrevivente só herdará a integralidade da herança se não houver outros parentes sucessíveis.
É inegável, pois, o tratamento sucessório diferenciado que se dá ao companheiro sobrevivente ao compará-lo com o cônjuge sobrevivente.
A discriminação é inaceitável frente à isonomia entre união estável e o casamento, a qual é assegurada pelo já citado art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988. Quiçá nem fosse necessária disposição expressa em razão da isonomia já traçada pelo art. 5º, caput da Carta Magna, senão vejamos:
“Art. 5º. Todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, (…).”
Não há que se olvidar também que o artigo em estudo ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, também inscrito em nossa Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, III.
Os Juízes da Vara de Família e Sucessões do interior de São Paulo concordam com o nosso entendimento, tanto é que, no ano de 2006, em evento organizado pela Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo e com o apoio de Associação de Magistrados de São Paulo traçaram enunciados a respeito do assunto, in verbis:
“49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima.
50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação.
51. O companheiro sobrevivente, não mencionado nos arts. 1.845 e 1.850 do Código Civil, é herdeiro necessário, seja porque não pode ser tratado diferentemente do cônjuge, seja porque, na concorrência com descendentes e ascendentes, herda necessariamente, sendo incongruente que, tornando-se o único herdeiro, possa ficar desprotegido.
52. Se admitida a constitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança deixada pelo outro, na falta de parentes sucessíveis, conforme o previsto no inciso IV, sem a limitação indicada na cabeça do artigo.” (Consulta ao site www.conjur aos 12/10/2008, às 23h55min).
Sensível a esta odiosa discriminação, a Câmara dos Deputados já tem dois projetos de lei que objetivam a supressão da situação. Os projetos são os de n° 276/2007 e o 508/2007.
O primeiro projeto (n° 276/2007) propõe nova redação ao artigo 1790 do Código Civil de 2002. Não parece ser a melhor solução, pois, a nosso ver, continua diferenciando o companheiro do cônjuge, senão vejamos:
“Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:
I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641);
II – em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;
III – em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança.
Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”.
Parece ter melhor solução o segundo projeto (n° 508/2007), pois traz a sugestão de suprimir o art. 1.790 e equiparar o direito sucessório do companheiro sobrevivente ao cônjuge supérstite.
Rita de Cássia Andrade, em seu artigo “união estável e a sucessão do companheiro sobrevivente à luz do novo código civil”, expõe que:
“Observando preferentemente às concepções do direito sucessório do companheiro e do cônjuge, notadamente da forma como foi estabelecida no novo regramento civil, como já dissemos, ressalta visível afronta contra o principio fundamental da dignidade da pessoa humana firmado no art. 1º, da CF/88, bem como contra o direito de igualdade, já que o artigo 226, §3º, do Texto Constitucional deu tratamento igualitário ao instituto da união estável em relação ao casamento.
Vindo, posteriormente, o Código Civil estabelecer desigualdades, criando um arsenal de novos problemas sociais e jurídicos entre as famílias constituídas sob a feição da união estável, deixando de compreender a família de acordo com os movimentos, com a evolução que se estabeleceu ao longo do tempo.
Como bem assevera Cristiano Chaves de Farias, “os novos valores que inspiram a sociedade moderna, sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora”
Calha à espécie a pertinente observação, também, de Luis Edson Fachin no sentido de que é “inegável que a família, como realidade sociológica, apresenta, na sua evolução histórica, desde a família patriarcal romana até a familiar nuclear da sociedade industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais”.
Com essas considerações, embora o direito sucessório do companheiro tenha andado bem na sua férrea consistência sob o aspecto da divisão patrimonial e sucessório, todas as normas jurídicas editadas até hoje, entravam diante do espírito do novo Código Civil, causando indisfarçável desilusão de idéias e de sentimentos na disposição dos direitos sucessórios, com manifesta ofensa ao principio da isonomia entre cônjuge e companheiro, encontrando-se o cônjuge na terceira posição na ordem da sucessão legitima e dosherdeiros necessários (arts. 1.829 e 1.824), enquanto o companheiro aparece apenas nas Disposições Gerais do Livro das Sucessões (art. 1.790), cuja sucessão do companheiro na integralidade dos bens só é possível diante da inexistência de descendentes, ascendentes, e “parentes sucessíveis” até o quarto grau, ignorando o Código civil de 2002, de forma danosa e retrógada, todo o esforço empregado, na construção legal, doutrinária e jurisprudencial do regime da união estável, cuja forma de entidade familiar tem origem e fundamento na Constituição Federal, que reconhece o quadro evolutivo da família atrelado ao próprio avanço do homem e da sociedade.” (Consulta no site http://www.jfpb.gov.br/esmafe aos 12/10/2008, às 23h57min)
A jurisprudência também já trilha nesse sentido:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. ABERTURA DA SUCESSÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO NOVO CÓDIGO CIVIL. APLICABILIDADE DA NOVA LEI, NOS TERMOS DO ARTIGO 1.787. HABILITAÇÃO EM AUTOS DE IRMÃO DA FALECIDA. CASO CONCRETO, EM QUE MERECE AFASTADA A SUCESSÃO DO IRMÃO, NÃO INCIDINDO A REGRA PREVISTA NO 1.790, III, DO CCB, QUE CONFERE TRATAMENTO DIFERENCIADO ENTRE COMPANHEIRO E CÔNJUGE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA EQUIDADE. Não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. Preliminar não conhecida e recurso provido.” (Agravo de Instrumento Nº 70020389284, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 12/09/2007)
Estas, pois, as considerações sobre a argumentada inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece-nos indiscutível, pois, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, devendo ser atribuído ao companheiro sobrevivente o mesmo tratamento dado ao cônjuge supérstite, já que não há argumento aceitável para o tratamento diferenciado.
Doutor em Direito pela Faculdade Autnoma de Direito de São Paulo; Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso; Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso; Líder do Grupo de Pesquisa Direito Civil Contemporneo da FD/UFMT; Sócio-Diretor do Escritório Silva Neto e Souza Advogados
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