Inconstitucionalidade e ilegalidades da tarifa excedente de consumo

1. Introdução

Analisar a validade ou não da Tarifa
Excedente de Consumo, cobrada dos consumidores do serviço público de água, no
Estado do Ceará, é o objetivo precípuo do presente trabalho.

Tentaremos, na medida do possível,
cingir a abordagem aos aspectos técnico-jurídicos da matéria. Não obstante,
conscientes de que o direito não é uma ciência pura e neutra, mas profundamente
envolvida com os posicionamentos ideológicos que acompanham as idiossincrasias
sociais, não podemos nos furtar de apreciar as questões políticas que
impulsionaram o surgimento da referida Tarifa, mormente em face do notório
propósito governamental de privatizar a CAGECE.

Para melhor entender a matéria, faz-se
fundamental, primeiramente, conhecer os contornos jurídicos da Tarifa Excedente
de Consumo.

2. Disciplina legal da tarifa excedente
de consumo

Por meio da Lei Estadual 12.968, de 29
de novembro de 1999, o Estado do Ceará houve por bem instituir a Tarifa
Excedente de Consumo relativa ao consumo de água fornecida pela Companhia de
Água e Esgoto do Ceará – CAGECE.

O art. 1o da referida lei
dispõe que:

“Art.1º – Fica autorizada a cobrança de
Tarifa Excedente de Consumo, na forma indicada no art.2º desta Lei, pela
Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará – CAGECE sobre o consumo de água
do usuário residencial, comercial, industrial ou público, no período de 10 de
novembro de 1999 a
30 de junho de 2000”.

Logo em seguida, no parágrafo único, do
art. 1o, a Lei indica a finalidade da Tarifa:

“Parágrafo único – A Tarifa Excedente
de Consumo visa a induzir a redução do consumo de água pela população e a
evitar o racionamento ou colapso total do abastecimento, em razão do reduzido
volume de água atualmente acumulado nos reservatórios do Estado do Ceará,
devido aos baixos níveis de precipitações pluviométricas nos últimos anos”.

O art. 2o e seus parágrafos explica a forma como será cobrada a tarifa. Vale reproduzir:

“Art.2º – A Tarifa Excedente de
Consumo, aplicada aos usuários com consumo acima de 10 (dez) m³/mês, corresponderá a 100% (cem, por cento) do valor
normal previsto na estrutura tarifária da Companhia de Água e Esgoto do Estado
do Ceará – CAGECE para o consumo de água residencial, comercial, industrial ou
público, devido pelo usuário, e será calculada:

I – a partir da cota de 80% (oitenta
por cento) da média de consumo de água registrada entre os meses de junho a
novembro de 1998, para os usuários dos municípios de Fortaleza, Maracanaú, Caucaia, Maranguape, Guaiuba, Pacatuba, Pacajus e Horizonte;

II – a partir da cota de 100% (cem por
cento) da média de consumo de água registrada entre os meses de junho a
novembro de 1998, para os usuários dos demais Municípios do Estado.

§1º – Em relação aos imóveis que não
tenham tido a média de consumo de água registrada no período de junho a
novembro de 1998, a
Tarifa Excedente de Consumo será calculada pela média de consumo dos três
últimos meses, a partir do início da medição para efeito dos registros
previstos nesta Lei.

§2º – Estão isentos da cobrança da
Tarifa Excedente de Consumo de que trata o Art.1º desta Lei, os consumidores
que não dispõem de hidrômetro.

§3º – O cálculo
matemático da Tarifa Excedente de Consumo obedecerá às fórmulas indicadas no
Anexo Único desta Lei”.

O cálculo matemático da Tarifa
Excedente de Consumo obedece às fórmulas indicadas abaixo:

VrTE=VrCoA-VrQ

VrCtA=VrCoA+VrTE (*)

Onde:

Vr é Valor

TE é Tarifa Excedente de Consumo

CoA é Consumo Atual de água

Q é a Quota da região considerada (**)

Ct A é Conta Atual de consumo de água

VrTE é Valor da Tarifa Excedente de Consumo

VrCoA é o Valor do Consumo Atual de água

Vr Q é o Valor da Quota da região considerada

Vr CtA é o valor da Conta Atual de
consumo de água

(*) Nota sobre Valor da Conta Atual de
consumo de água (VrCtA):

– o Valor da Conta Atual de consumo de
água (VrCtA) será ainda
acrescido do valor normal da tarifa de esgoto.

(**) Nota sobre a QUOTA (Q) da região
considerada:

– A QUOTA nos municípios de Fortaleza, Caucaia, Maracanaú, Maranguape, Guaiúba, Pacatuba, Pacajus e Horizonte corresponde a
80% (oitenta por cento) da média de consumo de água no período indicado (v.
Art.2º);

Para facilitar o entendimento: os consumidores que moram em
Fortaleza somente poderão consumir 80% (oitenta por cento) da média de consumo
de água registrada entre os meses de junho a novembro de 1998. Ou seja, se a
média for de 100 metro cúbicos, por exemplo, o
usuário somente pode consumir 80 metros cúbicos. O excedente terá um
acréscimo de 100% (cem por cento) sobre o valor normal do sistema tarifário
praticado pela CAGECE, somado com o valor normal da tarifa de esgoto. Assim, o
valor da conta pode, em alguns casos, até dobrar.

Como se vê, a tarifa excedente sobre o
consumo é completamente teratológica: beneficia os
consumidores que desperdiçaram água no período compreendido entre os meses de
junho a novembro de 1998, punindo, de outra parte, os usuários que a
economizaram.

A par disso, a Lei obriga a todos os usuários a reduzirem em 20% (vinte por cento) o
seu consumo, pois somente poderá ser utilizado pelo preço normal 80% (oitenta
por cento) da quantidade de água normalmente utilizada. Imagine a situação de
hospitais: como obrigar o hospital a reduzir em 80% (oitenta por cento) o
consumo de água? E o que dizer dos hotéis, restaurantes, pousadas etc, que têm na alta temporada um consumo
infinitamente maior do que no período compreendido entre junho e novembro? E os
condomínios que possuíam, naquele período, unidades autônomas desocupadas?

Sem receio de equívoco, a Lei Estadual
instituidora da TEC é incompatível com os ditames constitucionais. Podemos
mesmo dizer que se trata de norma de esférica inconstitucionalidade, pois pode
ser vislumbrada de qualquer ângulo em que se ponha o hermeneuta. Vejamos, pois,
as anomalias de referida norma.

3. As inconstitucionalidades da tarifa
excedente de consumo

3.1. Primeira inconstitucionalidade:
afronta ao princípio da isonomia

Como se percebe, os critérios de discrímem utilizado pela Lei Estadual 12.968, de 29 de
novembro de 1999 são completamente ilógicos: quem desperdiçou água nos períodos
compreendidos entre junho e novembro de 1998 poderá continuar desperdiçando (um
pouco menos, é claro), ao passo que os que a economizaram terão que se
sacrificar bem mais (seja pagando caro, pois não poderão reduzir o consumo, seja
deixando de utilizar a água, esse líquido essencial!!!). E o pior: atinge muito
mais a camada pobre da sociedade, que não pode ficar sem água, do que a camada
rica, que pode arcar com os altos valores estipulados ou optar por fontes
alternativas (construção de poços, aluguel de carros-pipa etc).

Não há, portanto, razão lógica e
racional para o discrimen, donde se conclui que a
Tarifa Excedente de Consumo é incompatível com o princípio constitucional da
isonomia, insculpido no art. 5o, caput, da CF/88 (todos são
iguais perante a lei).

O princípio da igualdade está
diretamente ligado ao princípio da proporcionalidade, achando-se ambos
estreitamente associados. Realmente, o que se veda não é simplesmente o
tratamento desigual, mas, sobretudo, o tratamento desigual onde não houver
razoabilidade para tanto.

Nesse sentido, brilhantes são as
palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO quando diz que “há ofensa ao
preceito constitucional da isonomia quando:

I – A norma singulariza atual e
definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria
de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada.

II – A norma adota como critério
discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente
nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas.
É o que ocorre quando pretende tomar o fator “tempo” – que não descansa no
objeto – como critério diferencial.

III – A norma atribui tratamentos
jurídicos diferentes em atenção a fator de discrimen
adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a
disparidade de regimes outorgados.

IV – A norma supõe relação de
pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrimen
estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos
interesses prestigiados constitucionalmente.

V – A interpretação da norma extrai
dela distinções, discrimens, desequiparações
que não foram professadamente assumidos por ela de
modo claro, ainda que por via implícita” (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a
ed. Malheiros, São Paulo, 1998, p. 47/48) – grifamos.

No caso em comento, não há motivo
razoável que justifique o tratamento desigual entre os consumidores que
pouparam água e os que a desperdiçaram. Pelo contrário, o critério é completamente
irracional e impertinente: pune quem pouco consumiu e aplaude quem esbanjou.

De outro turno, é de se ver que a TEC
(Tarifa Excedente de Consumo) tem uma natureza jurídica “confusa” ou “híbrida”:
pela nomenclatura legal é preço público (tarifa), embora tenha todas as
características de uma taxa (é instituída por lei, é compulsória, tem
como fato gerador um serviço público específico e divisível etc)
ou de um imposto (é instituído por lei, sua cobrança é geral e não é contraprestacional, conforme leciona o prof. Ruy
Barbosa Nogueira
, no seu Curso Direito Tributário, 12a
ed. Saraiva, 1994, p. 157) e a finalidade de uma multa
(visa punir os consumidores que indica, como se consumir água fosse um ato
ilícito).

Caso se entenda que a natureza da TEC é
de taxa ou imposto, é inegável que a fulminada norma estadual macula o
princípio da isonomia tributária, insculpido no art. 150, inc. II:

“art. 150 –
Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)

II – instituir tratamento desigual
entre contribuintes que se encontrem em situação
equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou
função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos
rendimentos, títulos ou direitos”.

Mesmo que se considere que a natureza
da TEC é realmente de tarifa, não há como afastar o seu vício de
inconstitucionalidade pela afronta à isonomia.

É de se perguntar: se o produto (água)
é o mesmo em qualidade, porque estabelecer alíquotas diferenciadas em razão da
quantidade?

Ora, é conhecimento elementar que a
base de cálculo
de uma tarifa (ou taxa) referente a serviço público, dada
sua natureza contraprestacional, é o custo
dispendido pela fornecedora do serviço,
sendo incabível a sua fixação aleatória.

Mesmo que se considere que pode haver
diferenciação no valor das tarifas, o certo é que essas diferenciações somente
serão legítimas se levarem em conta a posição
econômica do consumidor, visando a privilegiar consumidores de menor poder
aquisitivo, sob pena de subverter os princípios sociais que inspiram a cobrança
da tarifa dos serviços de água. Na hipótese dos autos, tal situação inocorre: a tarifa atinge sobretudo
os consumidores de menor poder aquisitivo. É, portanto, injusta a medida por
equiparar os pequenos e os grandes consumidores.

De outra parte, justamente por não ser
a Tarifa Excedente de Consumo contraprestacional,
pode-se tê-la como um imposto sobre o consumo de água. Nesse caso, sua
inconstitucionalidade ainda é maior, pois não tem o Estado a
competência para criar essa nova espécie de imposto. É o que já decidiu o
Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: TAXA DE
ELETRIFICACAO, FLUORACAO E ABASTECIMENTO D’AGUA E MELHORAMENTO DE
ESTRADAS, CRIADA PELA LEI N 3.788, DE 1960, DO ESTADO DE PERNAMBUCO. Inconstitucional,
porque, pela sua estrutura e conteúdo se confunde com  imposto já
previsto”.
(MANDADO DE SEGURANCA 10939, JULGAMENTO: 24/04/1963
PUBLICAÇÃO: ADJ DATA-05-03-64 PG-00015, RELATOR: RIBEIRO DA COSTA)

A par disso, não é despiciendo
ressaltar que a norma não leva em consideração, no cálculo do consumo médio, as
situações particulares de cada usuário. Desta forma, um condomínio que, no
período compreendido entre os meses de junho e novembro de 1998, estava com
suas unidades autônomas desocupadas certamente tinha um consumo médio bem
abaixo do normal. Igualmente, os hotéis e pousadas consomem bem mais quantidade
de água no período de alta estação (dezembro a fevereiro), o que nos leva a
crer que a média de consumo neste período será bem maior do que a média dos
meses de junho a novembro.

Em face disso, há de se concluir que a
medida fere o princípio da isonomia, pois “atribui tratamentos jurídicos
diferentes em atenção a fator de discrimen adotado
que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de
regimes outorgados” e não leva em consideração as
situações particulares de cada usuário.

3.2. Segunda inconstitucionalidade: o
desvio de finalidade

DI PIETRO explica que finalidade é “o resultado
que a Administração quer alcançar com a prática do ato” (Direito
Administrativo
. 10a ed. Atlas, São Paulo, 1999, p. 173).  É
forçoso reconhecer, dessa forma, que a finalidade da malsinada Tarifa Excedente
de Consumo não é, como se pretende, “reduzir o consumo de água”. Seria muito
bom se assim fosse. Na realidade, por trás dessa louvável (porém, falsa)
intenção, há, inegavelmente, um interesse bem mais mesquinho, meramente
pecuniário: aumentar ainda mais a arrecadação do Poder Público.

Ora, a voracidade do Governo (em
sentido amplo) expande-se como mancha de azeite, mostrando-se, no caso, ainda
mais patente. O que se quer, sem receio de equívoco, é aumentar, por via
transversa, o valor da tarifa de água. Afinal, é humanamente impossível reduzir
para 80% (oitenta por cento) o “consumo médio” de água, sobretudo nesses tempos
de verão. E mais: se a tarifa é cobrada em razão do excesso do consumo de água,
por que acrescer ao valor da Tarifa Excedente o valor referente à tarifa de esgoto?
Certamente para aumentar a arrecadação.

Se o que se quer é diminuir o consumo
irracional (desperdício) de água, por que, ao invés de aumentar a Tarifa, não
foram criados mecanismos que premiassem o usuário que utiliza a água com
parcimônia? Por que não se prevê um desconto para quem consumir abaixo da
média? Sem dúvida, o que se quer não é reduzir o consumo, mas angariar mais e
mais fundos para o Erário, o que demonstra uma clara
afronta ao princípio constitucional da finalidade (art. 37, caput, da
CF/88).

Em razão disso, não há como negar que
houve um desvio de finalidade na norma que institui a Tarifa Excedente de
Consumo, pois o interesse político (ou interesse público secundário) foi posto
acima do interesse público primário.

Em um exemplo semelhante, colhido na
jurisprudência do Conselho de Estado da França, já se declarou a nulidade de um ato do Chefe da Comuna, com base no desvio
de finalidade, que proibiu freqüentadores de praia de se trocarem, salvo nas
cabinas públicas pagas, ali instaladas, estabelecida não por razões de decoro
público, mas para incrementar as receitas da Comuna. Isto porque o
“descompasso teleológico entre as finalidades da regra de competência –
qualquer que seja ela – e as finalidades do comportamento expedido a título de
cumpri-la, macula a conduta do agente, viciando-a com o desvio de poder” (apud
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade
e Controle Jurisdicional
. 2a ed. Malheiros, São Paulo, 1998, p.
68).

Quanto ao fato de saber se, realmente,
o Poder Público está agindo com desvio de finalidade na instituição da TEC,
confessamos que é bastante difícil de prová-lo. JEAN RIVERO expressa bem essa
dificuldade dizendo: “a segunda dificuldade se situa no terreno da prova.
A intenção é um elemento psicológico, difícil de ser determinada, salvo quando
o autor se explica abertamente o que será tanto mais raro quanto mais
inconfessável for ela” (apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob cit. p.
78).

Socorremo-nos, portanto, a EDUARDO
GARCIA DE ENTERRÍA
para resolver esse problema:

“Facilmente se compreende que esta
prova não pode ser plena, já que não é presumível que o ato viciado confesse
expressamente que o fim que o anima é outro, distinto do assinalado pela norma.
Consciente desta dificuldade, assim como a de que a exigência de um excessivo
rigor probatório privaria totalmente de virtualidade técnica do desvio de
poder, a melhor jurisprudência constuma firmar que
para que se possa declarar a existência deste desvio ‘é suficiente a
convicção moral que se forme o Tribunal’
(Decisão de 1o de
dezembro de 1959) à vista dos fatos concretos que em cada caso resultem
provados” (apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob cit. p.
79).

Assim, em face dos elementos
circunstanciais apontados, especialmente em virtude da vontade manifestada pelo
Governo estadual de privatizar a CAGECE, vislumbra-se sem maiores dificuldades
que, efetivamente, houve violação ao desvio de finalidade ou de poder no
presente caso.

3.3. Terceira inconstitucionalidade:
afronta ao princípio da moralidade

Pela mesma razão acima esboçada (desvio
de finalidade), é inarredável que houve, por parte do Poder Público, uma
violação ao princípio constitucional da moralidade (art. 37, caput, da
CF/88).

Na lição do jurista lusitano ANTÔNIO
JOSÉ BRANDÃO
, “a atividade dos administradores, além de traduzir a
vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de
corresponder à vontade constante de viver honestamente, de não prejudicar
outrem e de dar a cada um o que lhe pertence –
princípios de direito natural já lapidamente
formulados pelos jurisconsultos romanos. À luz dessas idéias, tanto infringe
a moralidade administrativa o administrador que
, para atuar, foi
determinado por fins imorais ou desonestos, como aquele que desprezou a ordem
institucional e, embora movido por zelo profissional, invade a esfera reservada
a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio confiado
à sua guarda
. Em ambos os casos, os seus atos são infiéis à idéia que
tinha de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir entre todas as
funções, ou embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido, desviam-no do
fim institucional, que é o concorrer para a criação do bem comum
” (apud
MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da
Administração Pública. Dialética, São Paulo, 1999, p. 113).

Na hipótese aqui discutida, é
inevitável chegar à conclusão de que houve violação ao princípio da moralidade,
mormente em face de a vergastada Tarifa ter sua cobrança cessada no dia 30 de
junho de 2.000, poucos meses antes das eleições municipais. Coincidência
ou não, o certo é que o comportamento do Poder Público foi no mínimo desleal,
desrespeitando a boa fé dos administrados, que, poupando a água com sacrifício,
conforme recomendado pelas campanhas publicitárias do próprio Governo do
Estado, terão que pagar praticamente o dobro pela mesma quantidade antes
consumida; ao passo que aqueles que desrespeitaram a orientação governamental,
desperdiçando o líquido precioso, continuarão a pagar a
mesma tarifa. Que comportamento ético é esse que pune os honestos?

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO averba que “a Administração há de
proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe
interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzindo de
maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte
dos cidadãos”. Será que nesse caso o Governo estadual procedeu com sinceridade
e lhaneza? Parece-nos que não.

Lembra-se que, em face da inserção da
moralidade no texto constitucional, a jurisprudência pátria admite o controle
jurisdicional dos atos administrativos, sob este aspecto. Vale reproduzir
decisão do Superior Tribunal de Justiça:

“ADMINISTRATIVO – ATO ADMINISTRATIVO –
MORALIDADE – EXAME PELO JUDICIARIO – ART. 37 DA CF – DESAPROPRIAÇÃO – ART. 20
DO DL 3365/41. É licito ao Poder Judiciário examinar o ato administrativo, sob
o aspecto da moralidade e do desvio de poder. Com o princípio inscrito no art. 37, a Constituição Federal
cobra do administrador, além de uma conduta legal, comportamento ético”.
(RESP 21923/MG Relator Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 13/10/1992, PG:17662, PRIMEIRA TURMA)

3.4. Quarta inconstitucionalidade:
afronta ao princípio da proporcionalidade

A moderna doutrina avaliza o entendimento
de que o princípio da proporcionalidade, decorrente do Estado de Direito (art.
1o, da CF/88), graças à contribuição jurisprudencial e doutrinária
germânica, galgou uma conotação objetiva, que se resume nos três elementos
parciais (subprincípios) que se seguem:

a) adequação (pertinência ou
aptidão)
entre meio e fim, ou seja, existência de relação adequada entre um
ou vários fins determinados e os meios com que são determinados a cabo: toda
vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados
não há a adequação;

b) necessidade (exigibilidade
ou vedação ou proibição do excesso ou escolha do meio mais
suave
): isto é, entre as soluções possíveis deve-se optar pela menos
gravosa, na máxima clássica de JELLINEK: “não se abatem pardais
disparando canhões”;

c) proporcionalidade em sentido
estrito: leva-se em conta os interesses em jogo, vale
dizer, cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefíco
da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem
obtidos. Em palavras de Canotilho, trata-se “de uma
questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as
desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim” (apud BARROSO,
Luís Roberto
. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a
ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 208/209).

Em resumo, “pode-se dizer que uma
medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor
prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as
vantagens que trará superarem as desvantagens” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ensaios de Teoria
Constitucional
. UFC – Imprensa Universitária, Fortaleza, 1989, p. 75).

É, portanto, sob essa tripla dimensão
que utilizaremos o princípio da proporcionalidade para saber se a medida
adotada pelo Poder Público é possível.

3.4.1 A inadequação – Quanto ao primeiro aspecto, não é
difícil perceber que a medida não é adequada, isto é, o meio empregado pelo
legislador estadual não é pertinente para que seja atingido o fim almejado. Em outra palavras: a Tarifa Excedente de Consumo não pode
promover o (pseudo) resultado desejado, qual seja, a
diminuição do consumo de água.

Com efeito, se a finalidade da medida
é, de fato, reduzir o consumo de água – o que, na realidade, não é – é
totalmente inadequado o meio utilizado. Será que um hospital vai deixar de
fornecer água aos pacientes em virtude do aumento do preço da tarifa? E os
hotéis pedirão aos seus hóspedes que não tomem banho? E nas residências que já
estavam racionando a utilização do água, será possível
reduzir o seu consumo? É óbvio que não. A água não é um produto supérfluo,
mas infinitamente essencial à saúde e higiene da população. Os gregos
antigos já diziam que a água é o mais nobre dos elementos. Não é como o
perfume, que se pode simplesmente deixar de usar ou reduzir o uso. Aumentar o
preço da água para que se diminua o seu consumo é como elevar o preço dos
remédios para que deixem de tomá-los. A medida, portanto, é completamente
ineficaz: ninguém deixará de beber água ou tomar banho por causa do aumento do
seu preço.

Obviamente, os abusos podem e devem ser
reduzidos. Mas, certamente, não será sacrificando quem, desde o ano passado, já
consome com parcimônia a água que se conseguirá coibir desperdícios. Campanhas
publicitárias, fiscalização severa e, sobretudo, a educação do povo são, sem
dúvida, os meios mais adequados de se “induzir a redução do consumo de água”. A
par disso, é de se perguntar: por que não está funcionando o “canal do
trabalhador”, onde tanto dinheiro do contribuinte foi gasto, sem que se
conseguisse resolver o problema do abastecimento de água na Região
Metropolitana?

O que se percebe, portanto, é que há,
sob o manto mascarado dessa louvável finalidade, um interesse bem mais vil,
qual seja, aumentar a arrecadação e sacrificar as
pessoas que, enganadas pelo Governo, economizaram água no ano passado.

Assim, sob o aspecto da adequação entre
meio e fim, a Lei Estadual 12.968/99 malferiria o princípio da
proporcionalidade; afinal, “há violação do princípio da proporcionalidade,
com ocorrência de arbítrio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim
não são por si mesmos apropriados e ou quando a desproporção entre meio e fim é
particularmente evidente, ou seja, manifesta” (BONAVIDES, Paulo. Curso
de Direito Constitucional
. 4ª edição, Malheiros, São Paulo, 1993, p. 315)

3.4.2. A inexegibilidade
(vedação ao excesso) –
Como
se sabe, na proporcionalidade, está embutida a idéia
de vedação ao excesso, ou seja, a medida há de ser estritamente necessária.
Invoca-se o velho jargão popular: dos males o menor. Portanto, para aferir a
necessidade deve-se perguntar: o meio escolhido foi o ‘mais suave’ entre as
opções existentes?

Assim, caso se considere que há relação
de pertinência na adoção da medida adotada pelo Poder Público, o que se diz
apenas para concluir o raciocínio,  seria medida a “mais suave” para
induzir a população a reduzir o consumo de água, mormente em face dos elevados
valores estipulados para quem consumir acima da média? Certamente não.

Ora, ninguém pode negar que pagar 100%
(cem por cento) a mais em relação a tarifa normal por
ter utilizado a mesma quantidade de água que consumia é um verdadeiro excesso,
diria mesmo abuso.

Acrescente-se a isso o valor da “tarifa
de esgoto”, já que “o Valor da Conta Atual de consumo de água (VrCtA) será ainda acrescido do
valor normal da tarifa de esgoto”, conforme dispõe a Lei.

Certamente, seria muito mais “suave” e
adequado se, ao invés de se punir quem pouco consumiu no ano passado, conceder
um desconto para aqueles que conseguiram diminuir o consumo.

Em razão disso, há de se concluir que a
medida é, sem receio de equívoco, excessiva
e, por isso mesmo, não atende
ao segundo critério da proporcionalidade.

3.4.3. A desproporcionalidade em
sentido estrito –

quanto ao último aspecto da proporcionalidade, não há a menor dúvida: a Tarifa
Excedente de Consumo não é proporcional em sentido estrito. Em outras palavra: os benefícios obtidos com a adoção da medida
são infinitamente menores do que os prejuízos dele advindos.

Ao se limitar o consumo da água, não se
tem em mira proteger um interesse superior, mas tão-somente aumentar ainda mais
a arrecadação estatal e engordar o Erário, sacrificando aqueles que
economizaram água no período utilizado para o cálculo da
médio de consumo.

O fornecimento de água é um serviço
público fundamental, essencial e vital ao ser humano e à higiene e saúde de
população, conforme já decidiu o STJ (REsp
201.112-SC, Rel. Min. Garcia Vieira, julgado em 20/4/1999). Logo,
aumentar de tal forma a tarifa de consumo de água (100% sobre o valor normal) é
uma atitude reprovável, desumana e, por isso mesmo, desproporcional em sentido
estrito.

Em razão disso, dessume-se
facilmente que a Lei Estadual 12.968/99 não é proporcional,
tendo em vista que não é adequado (não há pertinência lógica em sua
instituição), nem necessário (é excessiva, isto é, não é o meio mais
suave de se solucionar o problema do fornecimento de água), muito menos
proporcional em sentido estrito (o benefício a ser alcançado com a adoção da
medida sacrificou direitos fundamentais axiologicamente mais importantes do que
os direitos que a medida buscou preservar).

3.5. Quinta inconstitucionalidade:
afronta ao devido processo legal (razoabilidade)

O devido processo, como se sabe, em virtude
da construção jurisprudencial norte-americana, possui uma dimensão substantiva
(substancial due process),
qual seja, a razoabilidade, que é um parâmetro
de controle da discricionariedade legislativa: viola o devido processo legal
e, portanto, a Constituição, a norma legal que não for razoável.

Nesse sentido, aliás, já decidiu o
Supremo Tribunal Federal:

“a cláusula do
devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da
Constituição, e que traduz um dos fundamentos dogmáticos do princípio da
proporcionalidade – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual,
não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à
atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como
decisivo obstáculo à edição de atos legislativos resvestidos
de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do
substantive due process
of law
reside na
necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer
modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário
coeficiente de razoabilidade.

Isso significa, dentro da perspectiva
da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas
do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de
forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento
institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de
subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal” (ADIMC-1755/DF, rel. Ministro CELSO
DE MELLO
).

Por tudo o que já foi exposto, não fica
difícil perceber que a Lei Estadual que instituiu a Tarifa Excedente de Consumo
afronta diretamente o devido processo (art. 5o, LIV, da CF/88), em
sua dimensão substantiva, tendo em vista que é completamente irrazoável, beirando a teratologia.

A irrazoabilidade
começa no critério utilizado para o cálculo da média de consumo. Por qual razão
o consumo médio será calculado com base no consumo compreendido entre os meses
de junho e novembro de 1998? Por que não é anual ou mesmo decenal, que traduz
melhor a idéia de “média de consumo”? Por que não se utiliza uma média
diferenciada para cada mês, tomando-se como base o mesmo período do ano
anterior? Por que não se leva em conta o aumento do número de pessoas de cada
residência? Por que não se leva em conta a temperatura ou mesmo o índice
pluviométrico e outros fatores que influem no consumo de água? Por que não se
investiga se a utilização anterior foi racional?

Na realidade, as situações peculiares
são tantas que, quer queira quer não, qualquer critério utilizado para o
cálculo de uma “média de consumo” será sempre irrazoável,
donde se conclui que não é possível haver essa elevação de valor da tarifa com
base na utilização média de água.

A par disso, não há como aceitar a
utilização de apenas 80% (oitenta por cento) desse “consumo médio”. Por que
apenas oitenta por cento? Por que não os cem por cento, que é o mais lógico?

E mais: se a tarifa é cobrada em razão
do excesso do consumo de água, por que acrescer ao valor da Tarifa
Excedente o valor referente à tarifa de esgoto?

Não há como deixar de concluir que a
malsinada Tarifa Excedente é completamente irracional e incongruente, ou seja,
não há pertinência lógica em sua instituição, malferindo, por esta razão, a
cláusula constitucional do devido processo, em sua dimensão substantiva.

3.6. Sexta inconstitucionalidade: a
incompetência do Estado para legislar sobre a matéria de que versa

Afora essas inúmeras
inconstitucionalidades materiais, afigura-se irrefutável que a Lei Estadual
12.968/99 padece, outrossim, de uma inconstitucionalidade formal, qual seja,
não tem o Estado a competência para legislar sobre a
matéria de que versa a norma.

Realmente, na forma do art. 22, inc.
IV, “compete privativamente à União legislar sobre águas”.

Ora, se compete privativamente à União
legislar sobre águas, tem-se como inconcebível que o Estado edite lei dispondo
sobre tarifa visando reduzir o consumo de água.

Pode-se dizer que, na realidade, a
legislação, no caso, não dispõe sobre a água em si, mas sobre política
tarifária referente à serviço público fornecido por
empresa pública estadual (CAGECE). Ainda assim, a norma seria formalmente
inconstitucional. É que o art. 175, parágrafo único, da Constituição Federal de
1988, é claro ao dispor que:

“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da
lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de
licitação, a prestação de serviço público.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas
concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de
seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade,
fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço
adequado”.

Essa lei a que se refere o parágrafo
único do art. 175 da Constituição, obviamente, há de ser lei federal (da União,
portanto). Assim, não pode o Estado legislar sobre política tarifária, sob pena
de usurpar a competência exclusiva do ente federal para regular a matéria.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do
Distrito Federal declarou a inconstitucionalidade de lei local que concedia
isenção de pagamento de tarifas públicas a entidades assistenciais e
beneficentes. Eis como ficou ementado o acórdão:

“INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI LOCAL Nº 464/93 QUE CONFERE ISENÇÃO DE PAGAMENTO DE TARIFAS
PÚBLICAS A ENTIDADES ASSISTENCIAIS E BENEFICENTES. Não pode o Poder Público
local estabelecer isenção de pagamento de tarifas ou preços públicos para
entidades assistenciais e beneficentes, pois a União é o ente político de
direito público competente para discriminar isenções sob pena de usurpação e
invasão de sua competência exclusiva de dispor, disciplinar e legislar sobre a
política tarifária
. Reconhecimento de Inconstitucionalidade já declarada
pelo Conselho Especial do TJDFT no Mandado de Segurança
4448/95. TJDF, 3ª Turma Cível, Apelação Cível n.º 45422/97).

Não se pode esquecer, também, que o
art. 5o, inc. XXXII, determina que “o Estado promoverá, na forma da
lei, a defesa do consumidor”. Esse dispositivo, analisado em
conjunto com o art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“O
Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da
Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”), leva-nos a concluir
que somente uma Lei Federal, votada pelo Congresso Nacional, poderia alterar os
critérios de fixação dos valores de tarifas para o consumo de água, visando
proteger o consumidor.

De qualquer sorte, seja a matéria
relativa a águas, política tarifária ou proteção ao consumidor, a competência sempre será da União. E, realmente, há norma
federal dispondo sobre cada uma dessas matérias:

1. a Lei 8.078/90, dispõe
sobre a proteção ao consumidor;

2. a Lei 8.987/95, dispõe
sobre política tarifária;

3. a Lei 9.433/97 e a Lei 6.528/78, dispõem sobre os critérios para fixação do valor do
serviço de fornecimento de água.

Embora não seja correto dizer que
existe hierarquia entre as leis federais e as leis estaduais, não se pode negar
que, mesmo no caso de competência legislativa concorrente, a existência de lei
federal regulando a matéria “suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe
for contrário” (art. 24, § 4o, da CF/88). Destarte, é preciso
aquilatar se a Lei Estadual 12.968/99, caso o Estado fosse hipoteticamente
competente para legislar sobre essa Tarifa Excedente, é compatível com o que
determina as normas gerais ditadas pela União.

Passemos, pois, à análise das ilegalidades
da Lei Estadual instituidora da Tarifa Excedente sobre o Consumo.

4. As ilegalidades

4.1. Primeira ilegalidade: a
incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 8.078 (Código de
Defesa do Consumidor)

A relação existente entre a CAGECE,
fornecedora do serviço de fornecimento de água, e os usuários desse serviço,
sem dúvida, constitui relação de consumo, regida, portanto, pelo Código de
Defesa do Consumidor.

Em face disso, é de patente ilegalidade
a Lei Estadual que institui a Tarifa Excedente de Consumo por prejudicar
demasiadamente os consumidores.

O Código de Defesa do Consumidor, em
seu art. 51, inc. IV, determina que:

“Art. 51 – São nulas de pleno direito,
entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e
serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com
a boa-fé ou a eqüidade”.

Portanto, tem-se que a Lei Estadual
instituidora da Taxa Excedente de Consumo é completamente ilegal, pois
constrange o consumidor, de modo abusivo, a pagar o que não consumiu.

4.2. Segunda ilegalidade: a
incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 9.433/97
(Política Nacional de Recursos Hídricos) e Lei Federal 6.528/78

Ademais, a Lei Estadual 12.968/99 não é
compatível com a Lei Federal 9.433/97, que “institui a Política Nacional de
Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera
o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990,
que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989”.

Com efeito, a Seção IV, do Capítulo IV,
da citada lei, dispõe sobre A COBRANÇA DO USO DE RECURSOS HÍDRICOS. Em seu art.
21, há os critérios a serem observados na fixação dos valores a serem cobrados
pelo uso dos recursos hídricos. Cita-se:

“Art. 21. Na fixação dos valores a serem
cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:

I – nas derivações, captações e
extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;

II – nos lançamentos de esgotos e
demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação
e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente”.

Percebe-se que não há autorização legal
para a fixação de valores pelo uso o critério de “consumo médio”. Daí, não há
como aceitar que se calcule o montante do valor da tarifa com base em uma
estimativa arbitrada irrazoavelmente pela
Administração.

Ademais, a cobrança das tarifas de água
e esgoto obedece ao prescrito na Lei Federal n. 6.528/78, cujo § 2º, do art.
2º, estabelece que “as tarifas obedecerão ao regime do serviço pelo custo,
garantindo ao responsável pela execução dos serviços a remuneração de até 12%
(doze por cento) ao ano sobre o investimento reconhecido”.

Portanto, o consumidor deve pagar pelo
que efetivamente consumiu, ou seja, pelo consumo real de água e esgoto
.

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro:

“REPETIÇÃO DO INDÉBITO – LIMITE PARA
CONSUMO MÍNIMO DE ÁGUA – TARIFA – HIDRÔMETRO PARA MEDIR O CONSUMO D’ÁGUA – INADMISSÍVEL
ADOÇÃO DE MÉDIA MENSAL DE CONSUMO
. Tarifa de água. Consumo mínimo. Limite
para a sua utilização. O consumo por estimativa não se confunde com o consumo
mínimo. Enquanto o primeiro tem lugar nos casos de inexistência de hidrômetro,
verifica-se o segundo quando o consumo registrado no aparelho medidor fica
abaixo do limite mínimo previsto em norma regulamentar. A utilização desse
limite mínimo, todavia, só é admissível quando, em se tratando de imóvel
comercial, o consumo de água for inferior a 20 metros cúbicos-mês. A partir desse limite, o usuário tem o
direito de só pagar por aquilo que realmente consome, conforme for medido pelo
hidrômetro.
Embargos desprovidos” (Embargos Infringentes n° 257/94 – Rio de
Janeiro – RJ – 2° Grupo de Câmaras Cíveis – TJRJ – 1995).

4.3. Terceira ilegalidade: a
incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 8.987/95 (Política
Tarifária)

A jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal é no sentido de ter como preço público e, portanto, tarifa, o
quantitativo cobrado a título de água e esgoto. Confira-se com os seguintes
precedentes: Recursos Extraordinários nºs 54.194,
54.491 e 77.162, relatados pelos Ministros Luis Gallotti,
Hermes Lima e Leitão de Abreu, com acórdãos publicados nos Diários da Justiça
de 28 de novembro e 17 de dezembro, ambos de 1963 e 24 de maio de 1977,
respectivamente.

Portanto, a Lei Estadual 12.968/99,
além de ser formalmente inconstitucional por dispor sobre política tarifária, é
ilegal, por afronta a Lei Federal 8.987/95, que dispõe sobre a tarifação dos serviços públicos.

Com feito, em seu Capítulo IV,
há toda a disciplina legal da política tarifária. Entre os inúmeros
dispositivos regulando a matéria, há de se destacar, por ter bastante
relevância ao presente caso, o art. 13, que determina:

“art. 13. As
tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas
e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos
segmentos de usuários” – grifos nossos.

Da leitura do dispositivo, é fácil
compreender que somente em duas hipóteses as tarifas poderão ser diferenciadas:

1. em função das características
técnicas: por exemplo, melhor qualidade de determinado produto, maior segurança
etc e;

2. em função dos custos específicos:
por exemplo, distância do local de fornecimento do serviço, gastos extras etc.

Em conclusão, só se justifica a
diferenciação de tarifa quando o serviço prestado necessitar de gastos
diferenciados. Assim, não pode haver diferença de tarifa em virtude de o
consumo de um determinado usuário haver diminuído ou aumentado: todos que estão
não mesma situação devem ser igualmente tarifados.

Admitir o contrário, isto é, aceitar
que a CAGECE pode cobrar valores incompatíveis com o real consumo dos usuários
é endossar um enriquecimento sem causa, com o conseqüente empobrecimento dos
consumidores, que vêm pagando pelo que não consome.

Com a Tarifa Excedente de Consumo,
consegue-se transformar o “consumo médio” em consumo muito superior ao real,
superior mesmo à própria capacidade de fornecimento da CAGECE, que passa a
ganhar literalmente por aquilo que não fornece. Por que a CAGECE deve receber
esse valor se não prestou o serviço?

Como já decidiu o TJRJ, “tarifa é
preço público (e não taxa, nem imposto), e como tal o seu valor deve
corresponder ao serviço prestado ou ao produto adquirido
” (Embargos
Infringentes n° 257/94 – Rio de Janeiro – RJ – 2° Grupo de Câmaras Cíveis –
TJRJ –      1995).

Não é demais anotar que essa mesma Lei
8.987/95 dispõe em seu art. 6o que “toda concessão ou permissão
prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários”. E o que é
serviço adequado? A própria lei responde:

“é o que
satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança,
atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas
(§1o, do art. 6o).

Ora, quem há de defender que, no
presente caso, com a instituição da Tarifa Excedente de Consumo, haverá a
modicidade das tarifas? Absolutamente ninguém; afinal, o valor da “conta de
água” poderá até dobrar de valor!

A Lei Estadual, portanto, é
absolutamente incompatível com a Lei 8.987/95, que se aplica aos Estados por
força do dispositivo constitucional previsto no art. 175, parágrafo único, da
Constituição Federal.

4.4. Quarta ilegalidade: a
incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 9.069/95 (Plano
Real)

Por fim, não há como não reconhecer a
ilegalidade da Tarifa Excedente de Consumo em face da Lei Federal 9.096/95, que
“dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, Estabelece as Regras
e Condições de Emissão do REAL e os Critérios para Conversão das Obrigações
para o REAL, e dá outras Providências”.

A referida Lei, proveniente de várias
reedições de medidas provisórias, determina em seu art. 70 o seguinte:

“Art. 70. A partir de 1º de julho
de 1994, o
reajuste e a revisão dos preços públicos e das tarifas de serviços públicos
far-se-ão:

I – conforme atos, normas e critérios a
serem fixados pelo Ministro da Fazenda;

II – anualmente.

§ 1º – O Poder Executivo poderá reduzir
o prazo previsto no inciso II deste artigo.

§ 2º – O disposto
neste artigo aplica-se, inclusive, à fixação dos níveis das tarifas para o
serviço público de energia elétrica, reajustes e revisões de que trata a Lei
número 8.631, de 4 de março de 1993”
– grifamos.

Assim, “dentro do princípio da nominalidade que se deseja paulatinamente implantar com a
nova moeda do país, os preços públicos e as tarifas de serviços públicos terão
suas normas e critérios de atualização definidos, se necessário, pelo Ministro
da Fazenda , assegurado que os reajustes serão anuais”
(Exposição de Motivos da Medida Provisória que instituiu o Plano Real).

No caso em questão, é inegável que
houve um verdadeiro e substancial aumento nas tarifas do serviço de
fornecimento de água, sem nenhuma razão ponderável, o que demonstra a total
incompatibilidade da Lei Estadual com a Lei Federal 9.069/95.

5. Conclusão

Por tudo o que foi exposto, afigura-se
sobejamente demonstrada a completa invalidade da Lei Estadual 12.968/99, tendo
em vista ser ela inconstitucional, por malferir uma série de princípios
constitucionais (isonomia, finalidade, moralidade, proporcionalidade, devido
processo), por não ser o Estado competente para legislar sobre a matéria de que
versa a lei e, por fim, ilegal, por ir de encontro a inúmeras leis federais
tais quais o Código de Defesa do Consumidor, a Lei
Federal 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos), Lei Federal
6.528/78, Lei Federal 8.987/95 e, por fim, Lei Federal 9.069/95 (Lei do Plano
Real), sendo direito básico do consumidor pagar estritamente por aquilo que
realmente consumiu.

E o que fazer em face disso? Qual seria
a melhor medida para evitar que a população seja ainda mais onerada com essas
tarifas, taxas e outros confiscos institucionalizados?

Primeiramente, é perfeitamente adequado a propositura de ações individuais contra a cobrança
da malsinada Tarifa. É cabível, inclusive, o mandado de segurança visando
suspender de imediato a sua cobrança e requerer a devolução (em dobro, por
força do art. 42, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor) do que foi
cobrado indevidamente nos últimos cento e vinte dias, que é o prazo decadencial
do writ of mandamus.

Nem se diga, no caso, que se trataria
de mandado de segurança contra lei em tese, o que é vedado pela súmula 266 do
STF. Realmente, o remédio heróico, no caso, é perfeitamente cabível por duas
razões. Primeiro, a lei é de efeitos concretos e imediato.
Segundo, a autoridade coatora está,
como não poderia deixar de ser, aplicando-a normalmente, conforme é notório e
pode ser vislumbrado nas contas de água anexadas. Assim, “não há falar de
impetração contra ato normativo em tese — hipótese vedada pela Súmula 266 do
STF —, se o ato, formalmente normativo, tem eficácia, concreta e imediata,
ainda que em caráter geral (RTJ, 111/184)”.

A par disso, bem leciona Hely Lopes Meirelles, “a lei em
tese, como norma abstrata de conduta, não é atacável por mandado de segurança
(STF – Súmula 266), pela óbvia razão de que não lesa, por si só, qualquer
direito individual. Necessária se torna a conversão da norma abstrata em ato
concreto, para expor-se à impetração (…)”. Empós, arremata o grande jurista:

“Vê-se, portanto, que o objeto normal
do mandado de segurança é o ato administrativo específico, mas por exceção
presta-se atacar as leis e decretos de efeitos concretos (…) Por leis e
decretos de efeitos concretos entendem-se aqueles que trazem em si mesmos o
resultado específico pretendido, tais como
as leis que aprovam planos de
urbanização, as que fixam limites territoriais, as que criam municípios ou
desmembram distritos, as que concedem isenções fiscais, as
que proíbem atividades ou condutas individuais, os decretos que desapropriam
bens, os que fixam tarifas, os que fazem meações e outros dessa
espécie. Tais leis ou decretos nada têm de normativos; são atos de efeitos
concretos, revestindo a forma imprópria de lei ou decreto, por exigências
administrativas. Não contêm mandamentos genéricos, nem apresentam qualquer
regra abstrata de conduta, atuam concreta e imediatamente como qualquer ato
administrativo de efeitos individuais e específicos, razão pela qual se expõem
ao ataque pelo mandado de segurança
” (“Mandado de Segurança e Ação
Popular”, 10ª edição ampliada, pág. 14/15).

Por essa razão, ou seja, por a Lei
Estadual 12.968/99 atuar concreta e imediatamente, impondo sua aplicação, a
autoridade coatora seria justamente o Presidente da
CAGECE, que é o responsável pela execução da medida e, portanto, o ato dele
será o atacado em sede mandamental.

No âmbito coletivo, afigura-se-nos
iniludível o cabimento de ação civil pública, proposta por qualquer entidade
que possua a chamada “representatividade adequada”, incluindo-se
aqui, obviamente, o Ministério Público.

No presente caso, os interesses em jogo
são da categoria dos denominados “individuais homogêneos”, “assim entendidos os
decorrentes de origem comum” (CDC, art. 81, parágrafo único, III), sendo certo
que proteção dos interesses individuais homogêneos, em matéria de direito do
consumidor, é atualmente legalmente possível, pois o Código de Defesa do
Consumidor possibilitou a propositura da “ação civil pública” e da “ação civil
coletiva” para defendê-los em juízo, sendo que a legitimação ativa para a
defesa desses interesses será “concorrente e
disjuntiva” de qualquer co-legitimado que demonstre, no caso concreto, a
“representatividade adequada”. Nem se queira invocar aqui o precedente do
Supremo Tribunal Federal que nega legitimidade ativa ao Ministério Público para
propor ação civil pública que verse sobre tributos (RE 195.056-PR, rel. Min. Carlos Velloso, 9.12.99 e RE 213.631-MG, rel. Min.
Ilmar Galvão, 9.12.99). A uma, porque não se pode
afirmar que a Tarifa Excedente de Consumo é um tributo. A duas, porque a
relação jurídica existente entre o consumidor e o fornecedor do
serviços de água, embora eminentemente pública, é inegavelmente uma
relação de consumo, onde incide, sem receio de dúvida, as disposições
constantes no Código de Defesa do Consumidor que atribuem legitimidade ativa ao
Ministério Público para a propositura de ação civil pública em favor dos
consumidores.

Pensar o contrário,
seria deixar sem tutela adequada esses interesses individuais
homogêneos, o que fere frontalmente o princípio do acesso à justiça. De fato,
um sistema que consagra e protege interesses coletivos e não estrutura
meios adequados para permitir sua efetiva tutela é um sistema incompleto
ou falho.

Como bem resume MARINONI, “se a
disciplina da legitimação para a causa ativa, no processo civil individualista,
constitui obstáculo para o acesso à justiça, aponta-se, agora, para a ‘molecularização’ do direito e do processo, com a
reestruturação das categorias processuais clássicas, para sua adaptação aos
conflitos emergentes. É o tratamento dos conflitos a partir de uma ótica solidarista e mediante soluções destinadas também a grupos
de indivíduos, e não somente a indivíduos enquanto tais” (Novas Linhas
do Processo Civil
. 3a ed. Malheiros, São Paulo, 1999, p. 69).

 


 

Informações Sobre o Autor

 

George Marmelstein Lima

 

Juiz Federal Substituto.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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