Internet, democracia e poder: a participação popular e suas novas configurações

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir o papel da Internet em uma suposta ampliação da participação social em sistemas democráticos. A partir da literatura da área, levantaram-se questões sobre o caráter multifacetado da internet e sua influência na democracia, a formação de redes sociais, neutralidade na rede e participação social. Observou-se que a internet isoladamente não contribui para uma participação efetiva da sociedade civil na esfera pública. É preciso considerar os espaços de abertura social ofertados pelo sistema político vigente no mundo offline para que as ações oriundas da internet possam reverberar em mudanças significativas nas estruturas de poder. A internet é, portanto, um meio e não um fim em si mesma. As redes sociais offline podem ser fortalecidas bem como conseguir chamar atenção para os problemas reais enfrentados por elas por meio de espaços discursivos na internet promovidos por grupos com interesses ou reinvindicações comuns e/ou por movimentos sociais. A internet também pode ser um meio para favorecer mecanismos de governança pública como transparência e accountability. Conclui-se que as ferramentas produzidas a partir da internet só terão efeito democrático se o contexto social e político fora do mundo virtual oferecer condições para uma participação social efetiva e plena.

Palavras-chave: internet; democracia; movimentos sociais; redes sociais; participação social

Abstract: The purpose of this paper is to discuss the role of the Internet in a supposed expansion of social participation in democratic systems. From the theories in the area, questions were raised about the multifaceted nature of the Internet and its influence on democracy, the formation of social networks, net neutrality and social participation. It was observed that only the internet does not contribute to the effective participation of civil society in the public area. It is necessary to consider the spaces of social offered by the current political system in the offline world so that actions from the Internet can reverberate in significant changes in power structures. The internet is a tool and it isn’t a self-goal. Offline social networks can be strengthened as well as being able to obtain attention to the real problems faced by them through discursive spaces on the internet promoted by groups with common interests or claims and/or by social movements. The internet can also be an increase of public governance and its elements like the accountability. The tools produced from the Internet will only have a democratic effect if the social and political context in offline world offers conditions for an effective and full social participation.

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Keywords: internet; democracy; social movements; social networks; Social participation

Sumário: Introdução. 1. Redes Sociais Online e Offline. 2. Internet, Participação Popular e Democracia. 3. Considerações Finais. Referências.

INTRODUÇÃO

Devido ao seu caráter dinâmico e multifacetado, a Internet, mesmo anos após sua popularização, é tema ainda recorrente de debates nas mais diversas áreas. Ela contribuiu na (re)configuração de diversos fenômenos: acesso à informação e entretenimento, novas ferramentas pedagógicas, comércio… Até mesmo as distâncias geográficas passaram a ganhar novos limites com a massificação do acesso online.

Mas até que ponto a Internet é capaz de criar novos processos por si mesma? Esse questionamento ganha novos contornos quando refletimos sobre a participação social no sistema democrático.

Vilã ou Revolucionária? Segregacionista ou unificadora? Educativa ou alienante? São múltiplos os adjetivos atribuídos à Internet, variando conforme ideologia e vivências de quem discute o tema.

Tais perguntas, ao longo da História, já fizeram parte, em menor escala, de debates referentes a outros dispositivos como o rádio e a televisão. Um dos grandes equívocos dessas discussões é tentar analisar a Internet como uma entidade isolada de outros componentes de nossa sociedade. Relações de poder e tensões sociais, por exemplo, não são criadas pela Internet, embora a mesma seja capaz de reproduzir e até mesmo potencializar essas dinâmicas. Conforme Castells (2009) argumenta a internet “é um instrumento que amplia o mundo em vez de encolhê-lo, empiricamente”.

A série de protestos que ocorreram em junho de 2013 no Brasil (denominada por alguns como “Jornadas de Junho”), por exemplo, não foram produtos do imediato (seu estopim). Confluiram uma série de insatisfações sociais existentes há décadas, com diversas matizes políticas e históricas. Entretanto, pode-se dizer que a Internet ampliou o poder de visibilidade (com pontos de vista além da chamada grande mídia). As Jornadas de Junho, o “Occupy Wall Street” e a “Primavera Árabe” tiveram em comum o papel contínuo da internet não só como mobilizadora mas também de multiplicadora de informações (AMARAL, 2013).

Segundo Alves Filho (2015) a internet durante as manifestações de junho de 2013 assumiu relevância não só como local de convocação dos protestos mas também na cobertura dos protestos, a qual deixou de ser monopólio da chamada mídia tradicional.

Para Gomes (2005) a internet pode oferecer meios técnicos e ideológicos para possibilitar uma participação civil no âmbito político. Entretanto, o uso da internet enquanto ferramenta de participação social ainda encontra inúmeros desafios, principalmente no que tange o acesso.

A existência de uma “exclusão digital” pressupõe que grande parte da população não consegue ser beneficiária dos serviços online (FREY, 2002). Nos dias atuais, isso certamente limita as possibilidades tanto de fiscalização do povo perante o poder público constituído na forma do Estado como restringe o acesso à informações e discussões alternativas à grande mídia.

Discutir sobre o papel da internet na relação sociedade-Estado é essencial tanto para a compreensão do modelo atual de democracia, como para a visualização de espaços efetivos de participação social.

1. REDES SOCIAIS ONLINE E OFFLINE

Uma demonstração do exposto acima é a constituição das redes sociais online. O conceito das redes sociais ultrapassa os limites do mundo virtual. Para Marteleto (2001) as redes sociais agrupam pessoas em razão de interesses e valores em comum. Para essa mesma autora, tais conexões são antigas, porém apenas recentemente passaram a ser compreendidas como ferramentas organizacionais.

Acioli (2007) estabelece que “em Ciências Sociais, rede seria o conjunto de relações sociais entre um conjunto de atores e também entre os próprios atores”. Já Cordeiro e colaboradores (2012) afirmam que as redes sociais, sejam elas virtuais ou não, tem como base a interação, a qual possibilita a troca mútua de informações.

Com a globalização, as redes sociais ganharam novos delineamentos. Por mais que a ideia de aldeia global esteja intimamente relacionada à Internet, nossas relações e motivações locais também são expressas por ela. Os atores sociais têm seu escopo de ação facilitados pela Internet como no exemplo citado anteriormente. Einserbeg (1999) acredita que o universo online facilita a formação de identidades coletivas já que possibilita espaços de discussão e de convergência de ideias por pessoas que, talvez, não teriam possibilidade do encontro face-a-face.

A Internet possibilitou que por meio das redes online pessoas com percepções próximas debatessem suas insatisfações e as levassem às ruas, ao passo que outras pessoas ao presenciarem tais manifestações, buscassem e divulgassem na Internet informações sobre as mesmas, não em grandes portais de notícia, mas nas mesmas redes sociais online, em um processo que demonstra o quanto as redes sociais offline  influenciam e são influenciadas pelas online nos dias atuais, reconfigurando-se constante e mutuamente.

Antoun e Malini (2010) salientam a força da comunicação coletiva e a reconfiguração da mídia com a internet, a qual seria capaz de elaborar visões diferentes sobre determinados fatos em contraponto, muitas vezes, com a mídia tradicional.

2. INTERNET, PARTICIPAÇÃO POPULAR E  DEMOCRACIA

Se os benefícios da Internet enquanto ferramenta social estão disponíveis aos “cidadãos comuns”, os mesmos também são utilizados pelas camadas detentoras de poder. Por isso as discussões em torno da “neutralidade” na Internet tornaram-se tão urgentes. Para Silveira (2011) a “neutralidade” cibernética impediria que grupos controladores da infraestrutura de comunicação determinem qual conteúdo será visto.  Qual informação, portanto, deve ser considerada para cada usuário. Ora, se essa decisão é retirada de cada indivíduo, sua visão, baseada nas informações que recebe via web, seria bastante limitada. Para além da informação recebida, a questão seria quantos pontos de vista seriam negados a esse indivíduo?

Essa espécie de controle online é essencial para muitos grupos de poder, não por motivos de vilania Hollywoodiana, mas por interesses mercadológicos, próprios da estrutura econômica à qual estamos submetidos.

A divulgação e a coleta de informações (ou a limitação destas) por meio de organizações privadas não é um ponto único de discussão. O acesso à informação e a dados gerados pelo Estado tem sido um dos grandes desafios na administração pública. Uma prestação de contas efetiva, aliada à transparência e à accountability fazem parte dos pilares da governança.

Devido à sua abrangência, a internet pode ser uma ferramenta eficaz para que o Estado divulgue à toda a sociedade informações pertinentes à máquina pública.  Entretanto, esse processo não se reduz à uma mera publicização de dados. As informações disponibilizadas à população precisam ser compreensíveis, com dados claros e reais e com acesso facilitado, conforme defendem Bliacheriene, Ribeiro e Funari (2013).

Por exemplo, Silva (2011) ao analisar portais das capitais brasileiras na internet, concluiu que apesar de 87,50% dos portais observados permitirem acompanhamento financeiro, não há ferramentas disponíveis que auxiliem no entendimento de tais dados, o que inviabiliza a fiscalização do governo pelo seu povo.

Além disso, a prestação de contas em um instrumento com uso em larga escala pelo povo, permite uma participação mais efetiva do mesmo, com recursos (informação real e segura) capazes de pressionar determinado governo a cumprir o contrato/pacto com a população, referendado por meio do voto.

Obviamente, a participação popular por meio de ferramentas online será apenas uma sensação efêmera se não existirem mecanismos externos à internet que garantam voz para todas as camadas sociais, seja por meio do fortalecimento das instituições, dos movimentos sociais, do voto e da observância ao arcabouço jurídico e legal do país. Sobre tal ressalva, Maia (2001) afirma que:

“As novas aplicações tecnológicas, independentemente de favorecer ou dificultar a democracia, devem ser pensadas de maneira associada com os elementos sócio-históricos próprios dos atores sociais e com os procedimentos da comunicação estabelecida entre os sujeitos comunicantes concretos.”

Eisenberg (1999) argumenta que a internet possibilita um menor enrijecimento burocrático na medida em que passa a ser possível para o cidadão, como por exemplo o pagamento de tributos, o cadastramento em serviços públicos, etc. O mesmo autor enfatiza que no Brasil o governo federal conseguiu maiores avanços no uso das informações e serviços na internet do que os estados da Federação.

Além disso, atualmente, diversas organizações fazem consultas públicas por meio de suas páginas na internet. É o caso, por exemplo, do Senado Federal. A Resolução Nº 26, do Senado Federal permitiu que fosse possível a qualquer cidadão manifestar seu apoio ou refutação a propostas que tramitem no Senado (BRASIL, 2013).

Mas até que ponto esses supostos “termómetros” da opinião pública são levados em consideração por nossos legisladores? Maia (2001) argumenta que várias práticas comunicativas não reverberam no sistema político formal. Mas o mesmo autor ressalta que os movimentos sociais organizados têm condições de organizar e partilhar o seu conhecimento prático em fóruns e grupos de discussão, por exemplo, tornando as informações acessíveis e compreensíveis a um número maior de pessoas. Maia (2007) afirma também que os movimentos sociais e associações afins são mais eficazes em exercer pressões sobre os governantes e divulgar informações do que o cidadão isoladamente.

Para Marques (2006) a internet propicia espaços discursivos que antes de seu advento eram de difícil concretização. O mesmo autor constata que o interesse no âmbito público não é uma constante para todos os cidadãos e isso reflete-se na internet, onde nem todas as pessoas assumem postura ativa nos debates, mas essas mesmas pessoas podem acompanhar as discussões desenvolvidas por usuários mais ativos na rede. O diferencial aqui é que na internet o espaço reflexivo está sempre disponível e aberto a todos os cidadãos. Para Maia (2007) os cidadãos reunidos em redes cívicas podem ser interlocutores de grupos excluídos, apresentando os problemas de forma estruturada e convincente.

A participação social por meio da internet ultrapassa as fronteiras das fontes “oficiais” de um governo. Para Rodrigues (2013), a internet amplia e intensifica a atuação política de cada cidadão, além disso esse autora considera que as manifestações como as Jornadas de Junho de 2013 demonstraram a incapacidade dialógica do Estado, distante muitas vezes dos desejos de sua população.

Castells (2013) defende que as redes de comunicação têm grande importância na construção do poder. Esse autor afirma que os movimentos sociais, representantes de um contrapoder, precisam de uma rede de comunicação autônoma em relação ao poder vigente, algo possibilitado pelas redes sociais online.

Castells (2013) ainda argumenta que para que os movimentos sociais tenham alcance para além da internet, necessitam de um espaço público diferente do institucionalizado (ocupado pelas camadas sociais dominantes). Por isso, muitos destes movimentos ocupam prédios e afins, adquirindo visibilidade concreta na vida social daquela população.

Se a participação social deve ser encarada como pilar nos sistemas democráticos, nos moldes atuais o acesso à Internet não pode estar restrito à certas camadas sociais. Não é surpresa, portanto, que os regimes políticos  pouco afeitos a democracia em nossa época tentem lançar seus tentáculos inquisitoriais na esfera online.

Considerações Finais

A existência isolada da Internet não é capaz de produzir mudanças profundas na estrutura da nossa sociedade. Pinho (2011) ao tratar da realidade brasileira conclui que:

“Cabe observar que a ideia da ocorrência de uma revolução, ou ao menos uma mudança, com a democratização do acesso à informação que a internet efetivamente possibilita depende fundamentalmente do nível de cognição e formação educacional dos cidadãos, o que pede uma decisão política nesse sentido. Não há, assim, nenhum automatismo possibilitado pela tecnologia. ”

A internet é, portanto, um meio e não um fim em si mesma; e como afirmam Antoun e Malini (2010) é também “um meio em disputa”. As relações de poder existentes no mundo offline também são reproduzidas no ambiente virtual. Logo, a pressão por mecanismos virtuais que garantam uma maior participação social só geram efeitos reais e significativos quando esses mesmos espaços são conquistados (ou ampliados/extrapolados) pela população fora da internet.

Segundo Pinho (2008) os governos não utilizam todas as possibilidades da Internet que poderiam auxiliar a população a fiscalizar os entes públicos, por exemplo. O autor afirma que a evolução tecnológica nesse sentido será inócua, se for mantida sem alterações a mesma estrutura política (e por conseguinte, de poder).

Conforme pontua Frey (2002) é preciso vontade política para que as ferramentas tecnológicas possam ser utilizadas de forma plenamente democrática.

A existência de espaços de discussões verdadeiramente democráticos na Internet (tanto em relação ao acesso como ao uso) só será possível mediante a existência de tais espaços no mundo offline, em um processão de influência mútua. A discussão não é simplista e tampouco é intenção desse artigo reduzir a fórmulas prontas tais processos.

Contudo, é necessário passarmos a visualizar a Internet não como uma nova heroína, mas enquanto ferramenta utilizada por indivíduos capazes de refletir criticamente acerca da sociedade em que estão inseridos.

As ferramentas utilizadas no mundo virtual (e derivadas do mesmo) só terão efeito democrático se o contexto social e político externo – e obviamente, circundante – à Internet oferecer condições para uma participação social efetiva e plena.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

 

Kézia Santos de Oliveira

 

Mestranda do programa de Pós-Graduação em Direito Governança e Políticas Públicas da UNIFACS Universidade Salvador. Fonoaudióloga no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia UFBA

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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