Resumo: As políticas públicas, erigidas na Constituição Federal à categoria de direitos fundamentais, têm sido objeto de muita discussão no que se diz à intervenção do Judiciário. Discussões acaloradas no sentido de que o Judiciário não teria competência para dirimir conflitos provenientes de políticas públicas. Aqueles que defendem a Administração invocam a discricionariedade do ato administrativo, a reserva do possível, não inclusão no orçamento, além da incompetência do Juiz para dirimir tais conflitos. De fato, a Constituição Federal de 1988 criou o Estado social, o que tem ocasionado grandes problemas no momento da implementação das políticas públicas, como o direito à saúde, educação, meio ambiente, acesso à justiça. A questão de difícil solução é saber como o Judiciário deve intervir e se intervir, a decisão deve ser prospectiva no sentido de o juiz acompanhar a implementação da política pública ou deve exaurir sua competência com a sentença. É certo que muitas das vezes o cumprimento da sentença fica relegado para segundo plano pelo Estado, uma vez que não há meios eficazes no sistema jurídico de fazer o administrador cumprir a ordem judicial.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Princípios. Políticas públicas. Intervenção do Judiciário. Cumprimento da ordem judicial.
Sumário: 1. Introdução. 2. Tripartição dos poderes. 3. Intervenção do poder judiciário nas políticas públicas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 4. Discricionariedade administrativa, reserva do possível e orçamento público. 5. Princípios da proporcionalidade, razoabilidade e dignidade da pessoa humana. 6. Considerações finais. 7. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil passou por muitos modelos de Estado até que em 1988, o constituinte brasileiro, de vez, rompeu com o modelo de Estado liberal e caminhou para o modelo de Estado social. A Constituição da República de 1988 deu um grande salto ao estabelecer que a República Federativa constitui em Estado Democrático de Direito e que os objetivos fundamentais são: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como se verifica nos artigos 1º e 3º daquela Carta Magna.
Após a euforia dos primeiros anos, deparamo-nos com promessas constitucionais na maioria vãs, pois o Estado não consegue implementar o mínimo prometido naquela carta magna, tais como o direito à saúde, educação, moradia, meio ambiente saudável, etc.
Após muitos anos, o Poder Judiciário começa a traçar seu caminho nessa República que anteriormente ao ano de 1988 era comandada somente pelo Executivo com seus governos déspotas e ditaduras que duraram dezenas de anos, para não dizer séculos.
O Judiciário acorda no meio de um pesadelo que é fazer com que o Executivo e o Legislativo entendam que o Judiciário faz parte da República e foi criado e mantido na CR/88 para dar eficácia aos direitos fundamentais previstos nessa Constituição e não constituem meras promessas de constituintes eufóricos por uma mudança, mas sim uma mudança promovida pela sociedade brasileira cansada dos desmandos, corrupções e desvios de dinheiro dos representantes do povo.
Assim, o Judiciário foi erigido como uma garantia de que a sociedade não ficaria órfão caso os Executivo e o Legislativo não cumpram com os ditames constitucionais.
É nesse cosmos que temos de dar respostas como o Judiciário, por exemplo, fará valer os direitos fundamentais relativos à educação, saúde, meio ambiente, acesso à Justiça, etc. As chamadas políticas públicas, que outrora ficam adstritas às diretrizes traçadas pelo Executivo e com tímidas incursões por parte do Legislativo, são hoje objeto de apreciação via ações individuais e coletivas na Justiça.
De um lado, o Executivo se defende afirmando que não incumbe ao Judiciário fazer políticas públicas e, ainda, que seria ato discricionário implementar essa o aquela política pública e de outro lado o Judiciário que ao interpretar a Constituição retira dela sua competência para se imiscuir nas políticas públicas sempre que for provocado por meio de ação individual ou coletiva.
Eis aí o dilema posto. Neste artigo, tentaremos dar uma resposta sobre a legitimidade de intervenção do Judiciário na implementação das políticas públicas, erigidas ao status de direitos fundamentais, visto que previstos na Constituição da República Federativa do Brasil.
2. TRIPARTIÇÃO DOS PODERES
O Poder Judiciário é o órgão que detém a jurisdição, de acordo com GRINOVER (2003).[1] Esse importante órgão tem a função de dirimir, quando provocados, os conflitos existentes em uma relação entre duas pessoas, aplicando ao caso concreto à lei.
A Teoria da Separação dos Poderes (ou da Tripartição dos Poderes do Estado) é a teoria de ciência política desenvolvida por Montesquieu, no livro O Espírito das Leis escrito em 1748.
Aristóteles, em sua obra “A política”, já havia estudado concretamente várias Constituições a ponto de afirmar que o exercício do governo não deveria ficar nas mãos de um só governante. Esclarece CARVALHO (2004):
“Mostequieu trata do princípio da separação dos poderes, no Capítulo VI do Livro XI do O Espírito das leis. Referido Capítulo tem por epígrafe: “Da Constituição de Inglaterra”, parecendo então que o tema da separação de Poderes se reduzia ao Capítulo sobre a Constituição de Inglaterra.”
Até Montesquieu, falava-se em função legislativa e função executiva, às quais o autor de O Espírito das leis acrescenta a função judicial, embora não mencione o termo Poder Judiciário, como ser verá” (CARVALHO, 2004, p. 109).
Locke e Bolingbroke, segundo Kildare Gonçalves, [2] formularam a teoria da separação dos poderes, considerando a realidade constitucional inglesa. Para Locke havia três poderes: Legislativo, Executivo e Federativo. Todavia, o filósofo Montesquieu, no livro “O Espírito das leis”, além da função legislativa e executiva, acrescentou a função judicial ao tratar do princípio da separação dos poderes.
Ainda segundo Kildare Gonçalves,[3] a idéia de Montesquieu era retirar poderes do Estado, dividindo-o em funções, sendo que cada órgão do Estado teria uma função. A divisão se deu na seguinte forma: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Em regra, incumbia ao Executivo a execução das leis, ao Legislativo a feitura das leis e ao Judiciário a aplicação das leis. Naturalmente, todos esses órgãos exercem as competências uns dos outros em menor escala, prevalecendo, naturalmente, a essência de suas funções delineadas na Constituição.
Indubitavelmente, a idéia da separação dos poderes é pedra angular na Constituição da República que delineia as funções de cada órgão do Estado, atribuindo ao Poder Judiciário o exercício da jurisdição, de acordo com Ada Grinover.[4]
3. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
O Poder Judiciário mereceu especial atenção na Constituição da República de 1988. Atento às ditaduras e desmandos do Executivo e Legislativo, o constituinte que elaborou o projeto da Constituição de 1988 imprimiu um novo status ao poder judiciário no sentido de colocá-lo como um poder que tem a atribuição de efetivar os direitos previstos na Constituição quando houver inércia dos outros poderes.
Hermes Zaneti Jr. assevera que:[5]
“A Constituição brasileira prevê um modelo de Estado, Constituição e democracia ativista e compartilhado, no qual o Poder Judiciário contemporâneo, dentro das funções atribuídas aos poderes da República, funciona como o responsável pela judicial review através de uma justiça de autoridade coordenada (paritária) para a implementação de políticas públicas (escolhas políticas) definidas pelos direitos fundamentais.”
O poder judiciário, na atual Constituição Federal, é uma garantia para o cidadão e para a coletividade, pois a ele incumbe atuar jurisdicionalmente mente nos hiatos deixados pelo Executivo e Legislativo. É dizer que o judiciário, mormente na implementação de políticas públicas, deve dar solução individual ou coletiva nos litígios colocados a sua frente de forma a implementar os direitos fundamentais principalmente o mínimo existencial, que garante a dignidade humana.
Hermes Zanetti a respeito do tema ainda afirma:[6]
“[…] Por esta razão, as funções exercidas atualmente se dividem, na proporção da margem de disponibilidade da matéria, em funções de governo e funções de garantia. Uma vez que devemos reconhecer ao poder político e ao poder do mercado uma margem de discricionariedade/disponibilidade, que no primeiro corresponde à série de opções sobre políticas públicas e estratégias de desenvolvimento, que podem ser tomadas pelo legislador democraticamente eleito, e, no segundo, a autonomia da vontade, não podemos deixar de reconhecer que o poder político hoje é exercido igualmente pelos representantes eleitos no Executivo e no Legislativo, sendo que a própria atividade legiferante decorre desta legitimação popular, cada vez mais, já que o Executivo atua fortemente também neste campo. Assim, o que realmente diferencia os poderes é exercerem a sua legitimidade a partir da representação popular (Executivo e Legislativo) ou a partir da Constituição e das lei (Poder Judiciário e demais instituições de garantia dos direitos fundamentais, como as agências reguladoras e o Ministério Público). As funções de garantia estão assim diferenciadas das funções de governo, porque atuam para a conformação da margem do dicidível, colocando-lhe limites e vínculos definidos pelos direitos fundamentais, a esfera do “não decidível que” (direitos de liberdade) e o “não decidível que não” (direitos sociais). A função de garantia, portanto, atua como função contramajoritária, assegurando os limites e vínculos decorrentes do nosso modelo constitucional garantista.”
Se o Judiciário atua como “função contramajoritária” no dizer de Hermes Zanetti, então, sua atuação constitui o fiel da balança no Estado Democrático de Direito, pois de certa forma controla os excessos ou mesmo a inércia do Executivo e Legislativo. Mas aí se faz a seguinte pergunta? Quem controla as decisões judiciais, principalmente, em políticas públicas?
Sem dúvida, essa questão é difícil resposta, todavia, existem alguns parâmetros para que o Judiciário intervenha em políticas públicas.
A decisão judicial nesse caso deve ser dialógica e não mais tomada solitariamente em um gabinete. Deve-se construir a decisão com os órgãos incumbidos de implementação de políticas públicas. Diz-se que a decisão é prospectiva no sentido de que se projeta ao futuro, devendo nesse caso o Juiz acompanhar o cumprimento da decisão judicial até mesmo depois do trânsito em julgado.
Abram Chays,[7] em 1976, ou seja, há mais de 30 anos, já afirmava que a decisão judicial deveria ser prospectiva e acentuava que os juízes federais norte-americanos já estavam julgando considerando a dialética no processo, não mais unilateralmente, na solidão de seus gabinetes.
Ele afirma que a parte dispositiva da sentença passa a ter um papel central nesse novo paradigma de atuação. No paradigma anterior, o juiz somente fazia correções e adaptava as decisões tomadas pelo júri. Mas, no novo paradigma, o juiz poderá transformar a aplicação da norma e sua interpretação. Os efeitos desse dispositivo serão erga omnes e repercutem para além do caso concreto.
E esboçou um novo paradigma, o juiz passa a ter uma postura mais proativa, pois o juiz pode determinar a produção de provas, que antes poderia não ser produzido pelas partes. Por conta dos efeitos gerados pela sua decisão, os juízes passam a determinar a produção de provas. Eis a nova morfologia apresentada por Abram Chayes. Morfologia do novo sistema – litígio de direito público: 1) O escopo da ação não é dado somente pelas partes (bipolar), mas é formulado primordialmente pelo Tribunal e pelas partes; 2) A estrutura das partes não é rigidamente bilateral, mas sim ampla (espalhada), não limitada, e sem formalismos rigorosos; 3) O levantamento dos fatos não é histórica e judicial, mas previsível e legislativo; 4) A reparação não é concebida por uma compensação pelo ilícito praticado, com um efeito somente entre as partes em litígio, mas sim, formulada de modo flexível e dentro de linha irremediável ampla que terão consequências para além das partes; 5) O remédio não é imposto, mas negociado. O juiz não vai mais propor soluções apenas de acordo com o seu livre convencimento, mas levar em consideração o que seria melhor para as partes, levando em conta o que os pareceres dos auxiliares da justiça que participaram naquele caso; 6) A sentença (dispositivo da sentença), não finda o envolvimento da corte com o caso. A corte passa a fiscalizar o cumprimento daquela decisão, determinando a realização de atos que velem pela efetivação desta (ex.: mandando tropas às escolas para fiscalizar a dessegregação); 7) O juiz não é passivo. Sua função não é limitada à análise e à declaração das regras que governam o caso concreto. Ele é ativo, com a responsabilidade, não apenas de avaliação de fatos crível (de acordo com a realidade), mas também para dar forma e organizar o litígio visando garantir um resultado justo e viável; 8) A disputa em questão não é apenas entre partes individuais sobre direitos privados, mas uma solução para a eficácia de política pública.
Hermes Zanetti[8] conclui que o Poder Judiciário é responsável pela harmonia e equilíbrio dos poderes Executivo e Legislativo, portanto, suas funções estão delimitadas na Constituição Federal e que o fato de não ser eleito pelo povo não lhe retira o dever de atuar, posto que sua legitimidade é normativa, advém da própria carta magna.
4. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA, RESERVA DO POSSÍVEL E ORÇAMENTO PÚBLICO
A administração pública tem sistematicamente trazido duas questões a lume quando se trata de implementação de políticas públicas. Afirma-se que a efetivação das políticas não deve ser realizada no gabinete do juiz, pois somente a Administração conhece a limitações econômicas.
Com efeito, a Administração, quando se trata de políticas públicas, defende de todas as maneiras que pode, começando inclusive pela alegação de que fazer política pública é ato discricionário, por isso, o Judiciário não teria competência para interferir.
A discricionariedade traduz-se na possibilidade do administrador em escolher a melhor solução para caso quando não estiver vinculado a nenhuma norma.
MELLO oferece um conceito bastante elucidativo de discricionariedade:[9]
“Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida ao mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.”
Sem dúvida, a discricionariedade não deixa o administrador a mercê da própria sorte, posto que ele não deve desviar-se dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade. Mesmo quando tem discricionariedade há sempre uma finalidade no ato administrativo.
FURBINO MARQUES acentua que:[10]
“Insta salientar, que tanto no caso de vinculação como de discrição, a lei pretende que seja cumprido seu desiderato que é sempre a realização perfeita do bem jurídico em questão, do que se depreende que, em ambas as situações, a lei delineia os contornos de atuação da Administração pública, quando preestabelece a única e obrigatória conduta a ser seguida – vinculação – ou quando traça os limites que permite a ela escolher a melhor opção para a aplicação no caso concreto”.
Continua o referido autor:[11]
“Destarte, a discricionariedade pode ser entendida como eleição da alternativa a ser aplicada diante do caso concreto, permitindo que o administrador dimensione a situação real e, diante dela, use da liberdade que a lei lhe outorgou para adequar ao procedimento, visando a melhor opção entre as várias possibilidades apresentadas”.
Ora, de fato, o administrador tem discricionariedade em certos casos para gerir a coisa pública, mas não se deve confundir com arbitrariedade do ato.
Assim, no caso das políticas públicas, direito fundamental alçado em nível constitucional, não se pode invocar a discricionariedade administrativa para que deixar de dar eficácia ao comando constitucional.
Se o Administrador tem o dever de dar máxima eficácia aos direitos constitucionais, não há amparo legal para se afastar desse desiderato. Na verdade, a discricionariedade que ampara o administrador é de fazer a melhor escolha na realização de políticas públicas.
Outra defesa que a administração invoca quando é chamado para realizar as políticas públicas previstas na Constituição Federal é a reserva do possível e não previsão no orçamento público.
A teoria da reserva do possível originou-se da Alemanha, a partir dos anos de 1970. Segundo essa teoria, a “efetividade dos direitos fundamentais sociais dependeria da disponibilidade financeira do Estado.”[12]
Essa teoria, de fato, reconhece que o Estado social não tem recursos infinitos, portanto, não poderia prover todos os direitos previstos na Constituição. Mas, em se constatando que não haveria disponibilidade financeira, deve o administrador ficar inerte? Naturalmente, a resposta é não. O administrador deve utilizar de todos os meios para implementar as políticas públicas essenciais à sobrevivência e dignidade humana, ou seja, o mínimo existencial.
Ora, é nessa hora que a administração deve contar com todos os expertos de forma a realocar recursos e deixar de realizar obras menos importantes ou até mesmo grandes obras para grandes eventos para que se ocupe do que é mais importante que é a sobrevivência do povo.
O povo não come estádios, pontes, etc. O povo precisa de saúde, educação e comida no prato. Portanto, obras faraônicas como as que estão sendo realizadas no Brasil, com inclusive, superfaturamento, realmente, impedem que a administração lance olhos no que é mais importante, ou seja, a saúde física e mental do povo. Tudo isso em nome de megaeventos, tais como copa do mundo, olimpíadas.
Nesse ponto, deve-se afirmar que o orçamento público deve ser direcionado para a realização do bem comum, que é a sobrevivência do povo. O orçamento deve ser direcionado a efetivação dos direitos fundamentais e, para isso, é necessário planejamento e esbanjamento de dinheiro.
Assim, se expressa JUNIOR:[13]
“Evidencia-se, pois, que a concessão espontânea dos direitos sociais pelo Estado é condição obrigatória para a satisfação dos fins inscritos no art. 3º da Constituição Federal, porquanto os bens jurídicos por eles tutelados (art. 6º, em especial) efetivamente criam condições de igualdade substancial entre os cidadãos.
Se assim o é, as políticas públicas desenvolvidas pelo Estado deverão ser direcionadas à realização dos direitos fundamentais, de forma que o orçamento há de ter um conteúdo programático, destinado à formação de receita no futuro, com previsão das despesas necessárias, em um sentido claro de prospecção de recursos.
O paradigma clássico de estabilidade orçamentária, portanto, dá lugar, no Estado social, ao chamado orçamento programa, voltado para a realização dos fins estatais.”
Portanto, a invocação da discricionariedade, reserva do possível e não inclusão em orçamento, parece, na maioria das vezes, sofisma, pois se constata que sequer houve tentativa de implementação de políticas públicas, de forma a evidenciar que realmente há insuficiência financeira ou que a administração aplicou dinheiro em outras políticas igualmente importante.
5. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, RAZOABILIDADE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Um dos princípios constitucionais que ganha cada vez mais relevo é o princípio da proporcionalidade. Nele, é possível visualizarmos duas funções distintas. A primeira delas configura-se como instrumento de salvaguarda dos direitos fundamentais contra a ação do Estado quando este impõe limites a esses direitos.
O princípio da proporcionalidade funciona como critério para solução de colisão entre os direitos fundamentais, através do qual se faz um juízo comparativo, ponderando os interesses envolvidos no caso concreto.
Paulo Bonavides ressalta essa função em sua obra:
“Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos”.[14]
É de se destacar o fato de o princípio da proporcionalidade não constar expressamente na Constituição da República, ou seja, não há empecilho jurídico para seu reconhecimento. Embora esteja “implícito” na Constituição, a sua aplicação pelos demais poderes é obrigatória, incluindo aí o Poder Judiciário, pois assim dispõe o parágrafo 2º do artigo 5º, da CR/88: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados."
Corroborando tal assertiva, Paulo Bonavides afirma que:
“O princípio da proporcionalidade é, por conseguinte, direito positivado em nosso ordenamento constitucional. Embora não haja sido ainda formulado como “norma jurídica global”, flui do espírito que anima em toda sua extensão e profundidade o § 2º do art. 5º, o qual abrange a parte não-escrita ou não expressa dos direitos e garantias da Constituição, a saber, aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da natureza do regime, da essência impostergável do Estado de Direito e dos princípios que este consagra e que fazem inviolável a unidade da Constituição”.[15]
Assim, com já dito, a utilidade desse princípio constitucional reside, sobretudo, nas ocasiões em que ocorrerem conflitos entre princípios, ou entre eles e as normas jurídicas, bem como entre valores tutelados por essas normas. Para dirimir esses embates, o princípio da proporcionalidade será importantíssimo, pois pode ser usado como critério para solucionar da forma mais conveniente as demandas, ao sopesar o instante em que se deve aceitar prioritariamente um e desatender o mínimo possível o outro princípio, norma jurídica ou valor tutelado.
Para as políticas públicas, a utilização desse princípio é de fundamental importância, pois dessa forma poderemos saber qual valor deve ser adotado no momento da construção da decisão, de modo a encontrar o melhor modelo para o caso concreto.
Outro princípio que tem ligação direta com o princípio da proporcionalidade é o da razoabilidade. Segundo Hely Lopes Meireles,[16] do princípio da razoabilidade decorre o da proporcionalidade, eles estão ligados conceitualmente.
O princípio da razoabilidade está intimamente ligado ao da discricionariedade administrativa. Muito embora a forma como o ato administrativo discricionário será praticado não esteja previsto em lei, ele há de obedecer a certos parâmetros e um deles é a razoabilidade.
Hely Lopes Meireles assim define a razoabilidade:
“Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que ao serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas – e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis –, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada.
Com efeito, o fato de a lei conferir ao administrador certa liberdade (margem de discrição) significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade de situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas. Não significa, como é evidente, que lhe haja outorgado o pode de agir ao sabor exclusivo de seu líbito, de seus humores, paixões pessoais, excentricidades ou critérios personalíssimos, e muito menos significa que liberou a Administração para manipular a regra de Direito de maneira a sacar dela efeitos não pretendidos nem assumidos pela lei aplicanda. Em outras palavras: ninguém poderia aceitar como critério exegético de uma lei que esta sufrague as providências insensatas que o administrado queira tomar; é dizer, que avalize previamente condutas desarrazoadas, pois isto corresponderia a irrogar dislates à própria regra de direito.”[17]
E ainda acentua o autor que “fácil é ver-se, pois, que o princípio da razoabilidade fundamenta-se nos mesmos preceitos que arrimam constitucionalmente os princípios da legalidade (arts. 5°, II, 37 e 84) e da finalidade (os mesmos e mais o art. 5°, LXIX, nos termos já apontados).”[18]
No direito administrativo disciplinar, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade estão expressos no art. 2° da lei nº 9.784/1999, que trata do processo administrativo.
A razoabilidade, como norte para a efetivação das políticas públicas, deve ser levado em consideração, tanto quanto necessário para dar efeito aos direitos fundamentais.
Por fim, deparamo-nos com o princípio da dignidade da pessoa humana, prevista no inciso III do art. 1° da Constituição da República, in verbis:
“Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana; […]”
O princípio da dignidade da pessoa humana remonta séculos. Entretanto, ficou mais conhecido com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo I, que estabelece que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.”[19]
Na verdade, a dignidade da pessoa humana é um fundamento da República Federativa do Brasil. É um pilar sem o qual haveria um colapso na República. Esse princípio deve ser efetivado pelo Estado, pois não adianta estar previsto na Constituição sem que ele o implemente em sua relação com os cidadãos.
A importância do princípio da dignidade da pessoa humana é tão grande que não consta apenas no art. 1°, inciso III, da Constituição da República, mas no art. 170, caput, ao tratar da ordem econômica; do art. 226, §7°, capítulo que trata da família, da criança e do idoso, e ainda na legislação especial das minorias, tais como os índios, negros, deficientes e mulher.
Esse princípio deve ser observado em todo sistema jurídico, não importando que a lei infraconstitucional não faça referência a ele, como não fez a lei federal n. 9.784/1999.
Alexandre de Moraes acentua que:
“A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente à personalidade humana. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”[20]
Luís Roberto Barroso faz também importante observação acerca desse princípio:[21]
“[…] a partir da centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superação ou reformulação de paradigmas tradicionais. Dentre eles é possível destacar:
a) a redefinição da idéia de supremacia do interesse público sobre o interesse privado […]
b) a vinculação do administrador à Constituição e não apenas à Lei ordinária […]
c) a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo.”
Ora, como se vê, o direito à saúde, educação, meio ambiente saudável, acesso à justiça é o mínimo que o Estado pode prover à pessoa para manter sua dignidade.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Poder Judiciário é o órgão que detém a jurisdição no Estado Democrático de Direito. Esse importante órgão tem a função de dirimir, quando provocados, os conflitos existentes em uma relação entre duas pessoas ou entre o Estado e o indivíduo ou a coletividade, aplicando ao caso concreto à Constituição Federal, a lei infraconstitucional.
Assim, carece de amparo jurídico a alegação de que o Judiciário não pode efetivar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, visto que a Constituição é dirigida a todos. Sua efetivação não depende apenas do Poder Executivo e Legislativo. Naturalmente, esses dois órgãos devem se adiantar na implementação dos direitos fundamentais, mormente as políticas públicas atinentes ao mínimo existencial. Mas, frise-se não são os únicos órgãos no Estado Democrático de Direito, pois o Judiciário também tem esses status.
A invocação da discricionariedade administrativa para afastar o controle judicial não se sustenta, na medida em que não se pode invocar discricionariedade contra implementação de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais não se conformam à discricionariedade administrativa e nem mesmo a qualquer ato vinculado previsto em lei infraconstitucional.
Igualmente, a reserva do possível e ausência de previsão orçamentária não são defesas factíveis, uma vez que incumbe ao administrador fazer a manipulação correta do orçamento para implementação de políticas públicas, tidas como direitos fundamentais. A ausência de previsão orçamentária não induz a uma inércia do administrador, mas sim a uma proatividade no sentido de formar receitas no futuro, fazendo-se uma prospecção de recursos públicos. E para isso, muitas das vezes, será necessário deixar de realizar obras faraônicas, que não trarão, efetivamente, nenhum bem à sociedade, mas somente aos grandes empresários.
Mestre em Direito pela Universidade de Itaúna; Pós-graduado em Ciências Penais pela Fundação Ministério Público de Minas Gerais e Pós-graduado em Processo: Grandes Transformações pela Universidade de Santa Catarina – Unisul em parceria com o curso LFG; Pós-graduação em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera em parceria com o curso LFG; Membro de diversas comissões de processo administrativo disciplinar, Cargo efetivo de Analista Judiciário e Cargo comissionado de Assessor Jurídico dos Juízes Membros do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais
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