Recente decisão, por maioria de votos, do Tribunal de Justiça de S. Paulo anulou a denúncia — já aceita — contra um grupo de 11 pessoas acusadas de fraudar licitações — entre elas o diretor de obras de uma prefeitura do ABC paulista. A denúncia (para quem não é do ramo: peça inicial da acusação na fase judicial) seria nula porque foi o próprio promotor quem coligiu a prova. Segundo o acórdão, já existindo em andamento um inquérito policial, presidido por um delegado, não seria possível a um promotor do Gaeco — Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado — tomar iniciativas probatórias autonomamente e, reunido o material comprometedor, apresentar a denúncia frente ao juiz.
Com o devido respeito que realmente merece tal decisão majoritária — a idoneidade intelectual e moral de seus componentes está acima de discussão — a impossibilidade jurídica de um promotor colher provas individualmente significa um retrocesso na luta contra o crime organizado. Principalmente no que se refere a desvio de recursos públicos, que municiam os suspeitos com a força praticamente irresistível do dinheiro e seus sub-produtos: poder, capacidade de intimidação e corrupção, apoio velado de associações de grande prestígio e ataques da mídia contra promotores, acusados de “estrelismo”. Se o promotor é desinteressado no que faz, é um “omisso”. Se interessa-se muito, como realmente deve, é “suspeito”.
É compreensível a reação briosa, altiva, dos policiais honestos que, aos milhares, rejeitam à “intromissão” do Ministério Público na sua — da polícia — tarefa básica, quotidiana, de fazer investigações, elaborando um inquérito contendo a prova útil que será depois encaminhada ao Ministério Público. Esclareça-se que se o promotor entende que os elementos coligidos no inquérito justificam o oferecimento de uma denúncia formal, apresenta-a ao magistrado, iniciando-se a fase propriamente judicial, sem a qual ninguém pode ser condenado. É na fase judicial, pós-denúncia, que o acusado pode se defender amplamente. Justifico, aqui, esta explicação rudimentar porque nem todos que me lêem têm formação jurídica, embora se interessem vivamente pela luta contra a criminalidade. Isso porque é toda a sociedade que se sente lesada com a prática do crime organizado. O dinheiro desviado vem dos contribuintes.
Realmente, de modo geral, cabe à polícia a tarefa básica de apurar crimes e atender às solicitações avulsas de um promotor pedindo tal ou qual diligência complementar antes de oferecer uma denúncia. Alega a polícia que o Ministério Público não tem “estrutura” para tomar o lugar da polícia em assuntos de investigação. É claro que não tem. Não dispõe de milhares de Promotorias fazendo as vezes de Delegacias de Polícia espalhadas por todo o país. O MP não pretende e nunca pretendeu extinguir a atividade policial, tomando seu lugar. Deseja apenas, em um caso ou outro, exercer uma investigação especial, mais severa e objetiva quando supõe que o poder político, financeiro ou de outro tipo — pode-se imaginar aqui todo tipo de influência — é capaz de distorcer o rumo da investigação, favorecendo deliberadamente o investigado.
Policiais — assim como magistrados, promotores, religiosos, professores, profissionais liberais, funcionários públicos ou privados, comerciários, taxistas, etc — variam imensamente na sua idoneidade. Principalmente na capacidade de resistir a tentações pecuniárias. Recentemente a mídia apontou casos isolados de magistrados de segundo grau que estariam negociando sentenças e acórdãos. Algo impensável poucas décadas atrás. Se nenhuma categoria profissional pode hoje ser considerada absolutamente imune à corrupção, porque somente a polícia seria exceção? É pensando nessa hipótese que um promotor de justiça pode preferir, ele mesmo, colher uma determinada prova, “bebendo a água na fonte”, sem a poluição provocada por terceiros. Não há porque a Polícia sentir-se globalmente ofendida, como entidade indispensável no combate regular ao crime organizado. Conheci delegados de polícia da mais absoluta integridade.
Dir-se-á que se um promotor de justiça desconfia da fraqueza moral de uma determinada autoridade policial, poderá levar aos órgãos superiores da segurança pública a sua suspeita. Na prática isso não terá utilidade, porque somente com provas irretorquíveis é que ele conseguirá a substituição da autoridade suspeita, ou de algum funcionário da delegacia encarregado da montagem do inquérito. Mais diplomático será o promotor, ele mesmo, colher a prova, contra a qual o acusado, em juízo, poderá apresentar todos os argumentos e contra-provas que entender oportunos.
Se o referido Gaeco não pode colher diretamente a prova, em caso algum, para que serve, então? Se é para figurar como passivo espectador da investigação policial, melhor seria que fosse extinto, não obstante sua eficaz atuação em casos de grande vulto. A polícia até deveria agradecer essa colaboração investigadora da promotoria, trabalhando em casos desconfortáveis e até mesmo perigosos para a carreira policial. Lembre-se que a carreira policial é menos protegida, funcionalmente, que a promotoria. Delegado que, nas suas investigações, contraria os realmente “grandes” sabe o perigo que corre, funcionalmente. Algo que não acontece — ou, se acontece, é em escala bem menor — com o promotor de justiça.
Alegar que os promotores, nesses casos de maior vulto, agem “sem controle” é mero jogo de palavras. Que “controle” é esse? Imagina-se, por acaso, que os promotores vão se transformar em carrascos, torturando os investigados para que confessem? Isso seria ridículo e os sinais e indícios de tais torturas logo ficariam conhecidos, acarretando processos criminais contra os agentes da acusação, com possível perda do cargo. Se, colhida a prova e apresentada em juízo, houver falhas ou vícios a defesa poderá contestá-la amplamente, como é usual. E qual o “controle” que existe quando a prova é colhida na polícia?
No crime organizado, seus “cabeças” são especialmente temidos. Até “admirados” pelo sucesso financeiro. Temidos em razão do poder persuasivo do dinheiro. Promotores não precisam de “bicos” para manterem um padrão de vida confortável. Ganham bem. Policiais, não, injustamente. Exceto a Polícia Federal. Quando esta — felizmente, para a sociedade e infelizmente para os criminosos — passou a ganhar condignamente, houve um quase terremoto institucional, com infratores importantes sentindo medo da justiça, pela primeira vez no país. Só não cumpriram penas de prisão porque nossas leis processuais penais mostram-se imensamente ineficazes, exigindo, na prática, que a privação de liberdade ocorra apenas após decisão do STF, quando não haja mais possibilidade de recurso.
O que nos falta em eficácia penal, sobra-nos em nomenclaturas inovadoras. Em “princípios”. Basta um título mais pomposo e está tudo resolvido. Algo assim como ocorre nos casos de inundações, incêndios, e outras tragédias naturais. O governante decreta “estado de calamidade pública” e pode voltar pra casa, para uma soneca com a consciência tranqüila. Cumpriu o seu dever. Para as demandas terminarem mais depressa existe agora o “princípio da duração razoável do processo”. Antes dessa fórmula verbal a demora dos processos seria justificável?
Nesse assunto da prova colhida por promotores inventaram-se, para proibir a atuação do MP, os princípios de “oportunidade” e “conveniência”: se já havia um inquérito policial em andamento, por que tolerar a investigação do promotor? A justificação é simples: o promotor pode, em tese, ter razões íntimas para não estar contente com o rumo da investigação policial, naquele caso. Para uma acusação mais bem feita, mais sólida, preferiu ele mesmo colher as provas que lhe pareciam mais essenciais. Direito seu, pois cabe-lhe a responsabilidade pessoal de tentar punir os infratores E para punir alguém é preciso provas; mas provas boas, seguras, não, eventualmente, aquelas vacilantes, dúbias, em que o promotor não sabe se houve apenas um deslize datilográfico do escrivão. Quando um advogado recebe de um cliente as provas que considera necessárias para ganhar uma ação ele não deixa ao juízo do cliente a escolha da prova a ser apresentada. Ele mesmo, advogado, faz a seleção dos documentos e toma iniciativas colhendo, onde puder, a melhor prova a favor do cliente. Enfim, “quem manda” é o advogado, não o cliente. Da mesma forma, não se pode exigir, sempre, que é a polícia de certa forma “decida” qual a prova que chegará às mãos do promotor, atrapalhando seu futuro trabalho em juízo.
No jornal “O Estado de S.Paulo”, de 27-12-08, na pág. C5, consta que a “OAB vai apurar morte de inocentes reféns”. Ela acredita que haverá corporativismo na investigação da morte de dois reféns, em Braz de Pina, Rio de Janeiro, e por isso, fará investigações próprias. A polícia carioca, em tiroteio com criminosos que mantinham em seu poder dois reféns no carro acabou matando também os reféns. Há, aqui, uma analogia com a inconformidade do MP quanto à investigação em certos casos que oferecem mais perigo de um desvirtuamento do inquérito policial. A OAB faz bem em investigar por conta própria o incidente e por coerêncvia não deveria se opor às investigações feitas por promotores. O que mais interessa é que as investigações sejam rigorosas, nada mais, sem ofensa a quem quer que seja.
Espera-se que o STJ e o STF examinem a decisão paulista com a sabedoria de sempre, solucionando o impasse teórico não apenas com uma análise gramatical da nossa Constituição Federal, mas atenta, principalmente, ao bem comum
Esclareço, aqui, que não li o acórdão em referência. Atenho-me à generalidade, em abstrato, da tese da possibilidade do promotor poder escolher o material probatório no qual se apoiará no futuro trabalho em juízo.
Advogado, Desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo
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