A conformação do processo penal ao texto constitucional exige uma revisão profunda dos seus planos normativo e cultural pelos quais se alcance a acusatoriedade determinada pelo texto de 1988. Nesta reconstrução verifica-se a edição de um novo modelo de investigação preparatória ao exercício da ação penal pelo qual o legitimado ativo para o exercício da jurisdição controla diretamente o transcurso daquela etapa, não podendo ser considerado um mero receptor de informações preparadas por outras instancias estatais sem sua direta participação. Assim, novos papéis são assumidos pelas agencias públicas, ao mesmo tempo em que novos mecanismos de controle desta etapa devem ser otimizados quando do exercício do poder pelo Estado.
1. Conformação do modelo processual penal ao texto constitucional[1]
Ganha fôlego de forma irreversível na literatura jurídica brasileira a conformação do ordenamento à Constituição (Duarte: 2003), tornando-se absolutamente sucateada a compreensão do texto constitucional como mero referencial sem poder adjudicante, somente compreendida no plano de exposição de valores. Com efeito, a “força normativa da Constituição” (Hesse: 1998) expurga do ordenamento por via dos inúmeros mecanismos corretivos no plano da Justiça Constitucional (Streck: 2003) as normas constitucionalmente inadequadas e projeta como necessária a conformação normativa e axiológica de todo ordenamento ao “topos”.
Neste cenário a literatura processual penal, adormecida em discussões superadas cronológica e cientificamente, começou a abrir espaço a uma (nova) leitura constitucional (Castanho de Carvalho:2004), impregnando a análise processual de profícuas sementes e necessárias revisões (inclusive revisão da literatura constitucional até então existente e tida como dominante), abrindo campo para a compreensão adequada dos sistemas processuais (Miranda Coutinho:2002), especialmente o acusatório (Prado: 2005;), apontando os inúmeros aspectos de insanável desconformidade com o ápice constitucional (Lopes Jr.: 2004), chegando aos bancos acadêmicos numa linguagem acessível (Rangel:2005) ao mesmo tempo que crítica (Carvalho:2003), não raras vezes apoiada em teóricos “inovadores” (Ferrajoli:2002; Binder:2003) que, por desconhecidos, passaram não raras vezes a serem pejorativamente tratados, numa tentativa primária de desqualificação do discurso de atualização.
2. O Modelo acusatório constitucionalmente estruturado
Conforme apontamos em texto anterior (Choukr: 2001), o modelo acusatório estabelecido constitucionalmente impõe a repartição de funções entre as agencias públicas ligadas à persecução, tem no Juiz um ponto de equilíbrio eqüidistante das partes e, acompanhando as observações de Miranda Coutinho (2000), o destaque do aspecto do “gerenciamento da prova” pelas partes e não pelo magistrado, fechando-se o modelo na constatação de que o suspeito/acusado deve ser tratado como um sujeito de direitos e não como mero objeto da persecução. Com efeito, no plano do gerenciamento da prova parece residir a maior resistência da dogmática pátria (Badaró: 2003), apegada a uma tradição européia-continental que não abre mão da atividade judicial na busca da “verdade real”, este também um dogma a ser superado na construção de um processo democrático.
Para os limites do presente texto o aspecto que se quer evidenciar no plano do modelo acusatório está na fase preparatória para o exercício da ação penal, a investigação criminal, que reclama pela conformação constitucional de forma incisiva.
3. A investigação criminal no modelo constitucional
No cenário constitucional as formas de investigação são múltiplas, passando pela investigação no aspecto político com as Comissões Parlamentares de Inquérito (art. 58), o inquérito civil, preparatório ao exercício da ação civil pública (art. 129, III) e a apuração das infrações penais prevista no art. 144 como função da Polícia Federal no âmbito da competência da Justiça Federal e, por exclusão, as funções de investigação da Polícia Civil dos Estados, ressalvada a apuração dos crimes militares.
Pela leitura do texto constitucional parece claro que não existe a indicação de monopólio investigativo às instituições policiais. E nem poderia ser de outra maneira. Com efeito, grave distorção que se dá na apreciação do texto de 1988 é a que advém da sua leitura segmentada, não sistêmica e, portanto, fadada a conclusões igualmente incompletas. Assim, com a devida vênia, padecem de consistência perante a Constituição posições de notáveis operadores do direito (Moraes Filho:1997) como exemplarmente exposto por Streck & Feldens (2003) e Rangel (2003) quando se debruçaram sobre o assunto.
Quando se afirmou em texto anterior a “revolução copérnica” do direito processual penal a partir da leitura constitucional (Choukr:1999) estava-se tentando demonstrar que o sistema processual penal instaurado pela Constituição exige compreensão diferenciada dos papéis dos órgãos públicos encarregados da persecução e da posição jurídica que cabe ao suspeito/acusado.
No que tange aos papéis dos órgãos públicos procurou-se enfatizar o necessário distanciamento, pelo juiz, do transcurso da investigação e de sua fundamental inserção como único legitimado a mitigar direitos constitucionalmente estabelecidos da pessoa suspeita dentro dos parâmetros cautelares (cautela pessoal, real e probatória) legalmente (entenda-se: com normas conformadas à Constituição) fixados, ao mesmo tempo em que se apontava para a nova forma de relacionamento entre o Ministério Público e a Polícia encarregada de investigações, isto no plano institucional, e a imperiosa necessidade de aproximar o legitimado ativo do contexto investigativo de forma a que ele pudesse vir a exercer efetivamente a ação penal pública não apenas como um mero receptor de informações preparadas por outrem.
Tão profundas as alterações a partir da Constituição – em todos os domínios do processo penal acrescente-se – que o único caminho possível para a conformação é o da reforma global do Código, como de resto todos os países latino-americanos envolvidos em processos históricos semelhantes trilharam (Ambos:2000) e nós, por equivocadas opções políticas, evitamos, com custos sociais extremamente altos (Choukr: 2002).
4. A investigação criminal no modelo infraconstitucional: poderes investigativos do Ministério Público
O que ora se afirma, ou seja, a inexistência de monopólio investigativo pela polícia e a possibilidade da arregimentação de informações pelo legitimado ativo para formação de seu convencimento não é situação nova no direito brasileiro, pois mesmo na estrutura do Código de Processo Penal já há essa possibilidade. Tampouco não há nada de novo quando se coteja esta afirmação com consolidada corrente jurisprudencial e doutrinária que dá pela prescindibilidade do inquérito policial para o oferecimento da denúncia.
A discussão sobre a possibilidade de o legitimado ativo praticar atos de investigação demonstra-se também vazia de dúvidas mesmo diante do modelo infraconstitucional quando se fala do denominado “inquérito policial”. Pelo quadro abaixo pode-se constatar todas as possibilidades de intervenção do legitimado ativo em atos investigativos praticados pela historicamente denominada “polícia judiciária”:
Ato de Investigação (medidas ordinariamente não cautelares) | Comportamento Policial
| Atuação pelo MP |
Recebimento de comunicação do crime | Ativo | Prejudicado face à não comunicação |
Preservação de local de crime | Ativo | Prejudicado face à não comunicação |
Oitiva de Pessoas | Ativo | Ativo |
Requisição de Perícias | Ativo | Ativo |
Acareação | Ativo | Ativo |
Reconstituição do crime | Ativo | Ativo |
Interrogatório | Ativo | Ativo |
Indiciamento | Ativo | Ato considerado “exclusivo” da “polícia judiciária” |
Identificação Criminal | Ativo | Ato considerado “exclusivo” da “polícia judiciária” |
Pela demonstração acima se verifica que o domínio fático da investigação se dá nas mãos da “polícia judiciária” muito menos porque não possa haver a pronta intervenção do legitimado ativo mas, sim, pela condição operacional que o distancia da pronta informação da ocorrência da conduta supostamente criminosa.
Da mesma maneira se pode apresentar a possibilidade interventora do legitimado ativo em atos de investigação que se poderiam enquadrar no âmbito cautelar:
Ato de Investigação (medidas cautelares pessoais) | Atuação/ Postulação pela Policia | Anuência prévia do legitimado ativo | Atuação/ Postulação pelo MP | Dependência de prévia manifestação policial |
Retenção de pessoas[2] | Possível (e sem clara delimitação legal) | não | Sem previsão expressa | prejudicado |
Prisão em Flagrante | ativa | não | Possível | não |
Prisão Temporária | Ativa (capacidade de postulação) | não | Ativa (capacidade de postulação) | não |
Prisão Preventiva | Ativa (capacidade de postulação) | não | Ativa (capacidade de postulação) | não |
O cenário descrito acima demonstra na verdade a clara subversão de papéis em relação ao que predispõe o modelo acusatório, na medida em que postulações autônomas da “polícia judiciária” podem simplesmente não terem sentido para o juízo de convencimento do legitimado ativo. Mais ainda: podem criar mais uma fissura entre as agencias públicas, na medida em que permite juízos de valor distintos e assimétricos. Quadro similar se apresentaria no âmbito das cautelares probatórias e reais na medida em que a ratio de funcionamento do sistema é a mesma.
Uma vez delimitado que não há óbices legais à possibilidade do legitimado ativo receber autonomamente as informações para formação de seu juízo de valor sobre a propositura ou não da ação penal, que não há necessidade que essas informações sejam trazidas na modalidade de investigação “inquérito policial” e que, no transcurso desta modalidade o acusador público tem amplos poderes de determinação de atos, resta saber efetivamente qual é o ponto central da discussão sobre os “limites investigativos” do Ministério Público. Para compreender este aspecto central inicia-se com uma breve abordagem de direito comparado.
5. A “viragem histórica” do domínio jurídico da investigação: nota de direito comparado
Dada a nítida herança cultural que traz consigo o ordenamento brasileiro a partir da matriz européia-continental, a abordagem de direito comparado sempre é útil para trazer elementos de análise. Dos países que formam o essencial da tradição jurídica que importa para o presente texto, a Alemanha unificada no final do século XIX surge com particular importância. Conforme aponta Ambos (2002), “De acordo com propósito do legislador reformista do século XIX, com a criação do Ministério Público (Staatsanwaltschaft) buscava-se alcançar fundamentalmente três objetivos[3]: a derrogação do tradicional processo inquisitivo mediante a realização de forma separada das funções de acusação e ajuizamento por parte de a Ministério Público e dos tribunais; a criação de uma instituição objetiva encarregada da investigação, que ao mesmo tempo haveria de assumir o papel de guardião da lei com respeito à atuação estatal; e finalmente – relacionado com este último – o controle jurídico-estatal das investigações policiais”.
Se o Ministério Público nasce na Alemanha unificada com o objetivo de “controlar a polícia”, no século XX a superação do mecanismo montado no século anterior na França, o denominado “juizado de instrução” acabaria por dar os contornos atuais do atual modelo investigativo nas legislações européias e naquelas latino-americanas que vieram a luz nos anos noventa do século anterior, com o Ministério Público controlando juridicamente a fase investigativa.
A manutenção em alguns países do mecanismo do “juizado de instrução” somente é compreendida quando se observa que, nesses ordenamentos (v.g., França) o Ministério Público não dispõe exatamente das mesmas garantias que o Magistrado-Juiz as tem, como observa Delmas-Marty (2005). A questão, pois, da centralidade do papel do Ministério Público no desenvolvimento da investigação e o domínio jurídico sobre ela planta-se nas garantias (constitucionalmente estabelecidas) que ele possui para o exercício de (todas) as suas funções.
Podem, assim, ser extraídas as seguintes características básicas desse longo movimento jurídico:
a) Necessidade de controle das atividades policiais justificando a criação de um órgão voltado para tal fim, com a superação do modelo investigativo que admita a ausência do acusador público dessa etapa ou que o preveja apenas de modo formal;
b) Superação do modelo investigativo na forma do “juizado de instrução” vez que no modelo acusatório não há atividade investigativa desenvolvida pelo Juiz;
c) Manutenção (precária) em alguns países do modelo enunciado no tópico anterior pela ausência de independência constitucionalmente assegurada aos Magistrados membros do Ministério Público.
6. Releitura do modelo brasileiro
Do cotejo do cenário nacional a partir da Constituição com o ordenamento que lhe é inferior e das observações do direito comparado que se aplicam ao tema, pode-se chegar ao ponto central de discussão: a reação à possibilidade de investigação pelo Ministério Público advém do alto grau de garantias funcionais constitucionalmente estabelecidas aos membros desta Instituição, tornando potencialmente inócua a ingerência externa à forma de condução dos atos investigativos na esfera penal, assim como se dá com as investigações na esfera cível.
O problema central, pois, não é de adequação do ordenamento ou da leitura constitucional deste, mas sim do enfraquecimento das tradicionais estruturas de poder que usam o processo (e o direito material) penal como alavancas de políticas públicas ou a serviço de um determinado poder político localizado geográfica e temporalmente, como nos ensinam a compreender Cappeler (2005) e, mais anteriormente, Nunes Leal (1997), na medida em que o domínio político das estruturais policiais sempre foi uma marcada realidade em qualquer sistema social demarcado por baixo grau de adequação ao Estado de Direito (no plano jurídico) como conseqüência da baixa experiência democrática (no plano sócio-político).
Exatamente pelas razões atrás expostas é que não basta o corporativo raciocínio de dar-se às estruturas policiais as mesmas garantias constitucionais inerentes a outras Instituições, pois a construção democrática do processo impele para o afastamento da policialização. A polícia enquanto organismo inerente a qualquer estrutura estatal permanece preservada com as características próprias de um outro modelo de processo (acusatório), fundado noutro marco político (democracia), gerador um novo contexto jurídico (Estado de Direito).
Mas, afirmar o que acima se disse implica, necessariamente, num modelo de contrapesos, de controle de obrigações processuais (e pré-processuais) para os quais já se detectou certa reserva no âmbito do próprio Ministério Público (Arantes: 2001) e, evidentemente, uma nova lógica institucional.
7. Redefinições necessárias para a operacionalização da investigação pelo Ministério Público
A primeira conseqüência da admissão da possibilidade da investigação pelo Ministério Público é, a nosso ver, a da reforma global do Código de Processo Penal. Não se pode ter a ilusão de que a simples alteração daquilo que hoje está nos artigos 4 a 28 do Código possa traduzir o necessário cenário político-jurídico instaurado em 1988.
Sendo, no entanto, incrível a resistência para a construção da (inevitável) reforma global, aspecto de relevância prática é o da possibilidade (ou não) de atos administrativos serem portadores da regulamentação da matéria, posição sobre a qual nos manifestamos em outro trabalho (Choukr, 2005) em sentido contrário, dado o imperativo constitucional de competências legislativas e a natureza do tema a ser regulado.
Poder-se-ia argumentar pelo emprego analógico da modalidade inquérito policial como sustentação da investigação pelo Ministério Público, o que causaria certos desconfortos práticos dado que aquele modo de investigar traduz um (superado) relacionamento entre “polícia judiciária” e o Magistrado, a quem o policial dirige seu relatório e pedidos de prazo, por exemplo. Mais ainda, o único modo de controle do arquivamento da investigação se dá pela provocação do Magistrado ao Procurador-Geral, num modelo hierárquico-administrativo de controle (Choukr, 2001). Neste sentido, o emprego analógico atrás apontado serviria apenas para reproduzir os erros sistêmicos e práticos daquela forma de investigar, evitando (ou retardando) o desejável aperfeiçoamento do momento de investigação de forma a dotá-lo de maior eficácia.
De qualquer modo, deve ser lembrado com Clève (2005) que “O exercício desse poder investigatório do Ministério Público não é, por óbvio, estranho ao Direito, subordinando-se, à falta de norma legal particular, no que couber, analogicamente, ao Código de Processo Penal, sobretudo na perspectiva da proteção dos direitos fundamentais e da satisfação do interesse social, que, primeiro, impede a reprodução simultânea de investigações; segundo, determina o ajuizamento tempestivo dos feitos inquisitoriais e, por último, faz obrigatória oitiva do indiciado autor do crime e a observância das normas legais relativas ao impedimento, à suspeição, e à prova e sua produção.”
A redefinição legislativa que necessariamente surgirá mais cedo ou mais tarde, no entanto, pode não suprir a condição operacional hoje existente, que é a do domínio fático do desenvolvimento investigativo exercido pela Polícia aspecto que, se não equacionado de forma apropriada, pode significar a manutenção da forma atual. Há de ser repassada a lição atrás enunciada trazida por Ambos, quando aponta que, no modelo acusatório, o legitimado ativo deve manter contato o mais prontamente possível com a apuração do crime sob pena de não cumprir satisfatoriamente sua missão processual futura.
Mestre e Doutor pela USP; Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (New College); Pesquisador Convidado do Instituto Max Planck para Direito Penal Estrangeiro e Internacional, Freiburg im Bresigau, Alemanha; Coordenador do Mestrado em Direito da UNIBAN – SP; Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação da UFPE – 2003; Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação da PUC-PR – 2002-2003; Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação da UAM – 1997-2003; Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação da Universidade Politécnica da Nicarágua – 2003; Professor Convidado da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo; Professor Convidado da Escola Superior do Ministério Público de Santa Catarina; Professor Convidado da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro; Promotor de Justiça – SP (desde 1989).
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