Dentre as características atribuídas pela doutrina ao ato do interrogatório encontra-se aquela da chamada “judicialidade”.
Originalmente, antes da reforma do Código de Processo Penal levada a efeito pela Lei 10.792/03, a “judicialidade” se traduzia normalmente pela assertiva corrente de que o interrogatório era “ato exclusivo do juiz”. Isso porque na conformação legal anterior à reforma os dispositivos que regravam o ato do interrogatório não previam participação efetiva das partes (acusação ou defesa). Ao juiz era dado presidir e realizar direta e exclusivamente o interrogatório do réu, sem qualquer interferência de terceiros. Entendia-se inclusive que a presença das partes era meramente fiscalizatória de eventuais ilegalidades ou arbitrariedades do inquiridor, sem a menor possibilidade de, por exemplo, reperguntas. Chegava-se a interpretar que até mesmo a presença do defensor ao ato era facultativa, não sendo nulo o interrogatório realizado sem acompanhamento de advogado.
Somente discordando do pensamento acima quanto à obrigatoriedade da presença de advogado, assim se manifestava acerca do tema Magalhães Noronha:
“É o interrogatório estritamente ato da autoridade e do acusado. Não podem o advogado ou o Ministério Público intervir, exceto quando se verifique abuso daquela”. [1]
É bem verdade que desde o advento da Constituição de 1988 a doutrina já vinha formulando severas críticas a tais dispositivos legais e sua interpretação que já não se coadunavam com a índole garantista da Carta Magna, a qual não poderia recepcionar tais normas, entendimentos e práticas em face dos princípios reitores da ampla defesa e do contraditório a conformarem o devido processo legal.
Bem representa essa postura crítica Scarance Fernandes, destacando o direito do interrogado à comunicação prévia e reservada com seu defensor, bem como à presença deste no ato do interrogatório, além do direito a reperguntas, especialmente nos casos de corréus que se incriminam mutuamente. [2]
Não obstante, a letra da lei ordinária seguia imutável diante dos fatos e do tempo e boa parcela da doutrina e da jurisprudência insistia em manter uma interpretação literal e isolada dos dispositivos de modo que a “judicialidade” seguia apresentada como representativa do interrogatório como ato não só presidido, mas também “exclusivo do juiz”.
Ocorre que finalmente no ano de 2003 vem a lume a Lei 10.792/03, procedendo a importantes alterações na disciplina do interrogatório. E quando se diz que esse diploma “veio a lume” a expressão é bem aplicada, pois que surgiu impregnado das “luzes” de uma leitura constitucional e garantista de um Processo Penal informado pelo Devido Processo Legal com seus corolários da ampla defesa e do contraditório.
Agora por força da lei a presença do advogado ao ato é obrigatória (artigo 185, “caput”, CPP); é previsto o direito do acusado a entrevista prévia e reservada com seu defensor (artigo 185, § 5º., CPP); tem o réu direito ao silêncio, deixando-se claro que este não poderá causar-lhe prejuízo (artigo 186 e Parágrafo Único, CPP) e, finalmente, são permitidas reperguntas pelas partes após as inquirições do julgador (artigo 188, CPP).
O que se questiona neste trabalho é se essas mudanças procedidas na disciplina do interrogatório para adaptá-la aos ditames constitucionais teriam excluído sua tradicional característica da “judicialidade”. Após a Lei 10.792/03 ou mesmo após a Constituição de 1988 seria legítimo falar da “judicialidade” do interrogatório?
À vista da nova disciplina ordinária obediente aos princípios constitucionais parece induvidoso que não mais se pode falar em “judicialidade” nos termos em que era tradicionalmente entendida à revelia da ampla defesa e do contraditório como “ato exclusivo do juiz”.
É cristalino que o interrogatório já não pode mais ser visto como ato que se restringe ao juiz e ao réu, mantendo as partes afastadas ou, no máximo, como coadjuvantes na função de fiscalização de sua legalidade. Tanto a acusação como especialmente a defesa ocupam posições ativas e imprescindíveis à legalidade e constitucionalidade do interrogatório.
No entanto, todas essas mudanças não implicam na exclusão da “judicialidade” como característica do interrogatório, mas sim em uma necessária releitura do termo em face da nova realidade legislativa.
Realmente não mais há abrigo para a afirmação de que o interrogatório é “ato exclusivo do juiz”, mas nada afasta a configuração da “judicialidade” na assertiva, ainda válida, de que “o interrogatório é ato presidido exclusivamente pelo juiz na fase processual” (grifo nosso). [3]
Efetivamente quanto a isso nada se altera, cabendo ao juiz a condução do ato e a formulação das perguntas, somente depois sendo deferido às partes formular questionamentos. Nem o advogado, nem o querelante ou o Ministério Público ou qualquer outra pessoa podem conduzir a audiência de interrogatório, o qual continua ato indelegável do juiz.
A “judicialidade” doravante se traduz nessa exclusividade judicial, nessa reserva de função indelegável atribuída ao juiz na presidência do ato, o qual, porém, já não o exerce isoladamente perante o réu, abrindo-se oportunidade para atuação das partes e especialmente da defesa técnica.
O juiz preside o ato, exerce o poder de polícia da audiência, formula os questionamentos iniciais, dá a palavra às partes e pode inclusive indeferir perguntas impertinentes. Nisso resta incólume a “judicialidade” do ato que somente não pode mais ser tido como “exclusivo” do juiz no sentido de “excluir” as partes e principalmente a atuação da defesa técnica. Toda a conformação legal ora erigida prima pela “inclusão” da atividade das partes no ato do interrogatório juntamente com o juiz.
Neste passo releva destacar que o indeferimento de questionamentos das partes pelo julgador deve ser praticado com extrema cautela e de forma excepcionalíssima sob pena de cerceamento de defesa e/ou acusação. [4] Sugere-se ter por parâmetro os casos expressos no artigo 212, CPP para a prova testemunhal. [5]
Essa necessária releitura limitativa da “judicialidade” do interrogatório já vem encontrando acatamento na doutrina atualizada. Afirma, por exemplo, Bonfim, que a “atual disciplina” do ato “acabou por flexibilizar a judicialidade” ao reforçar seu “caráter contraditório”, mediante a retirada das partes da condição de meros coadjuvantes para aquela de protagonistas do ato ao lado do juiz. [6]
Entretanto, tal flexibilização, conforme já dito, não lhe extirpa a característica da “judicialidade”, pois que “será sempre prestado em juízo, perante o juiz da causa”. [7] Em suma, a “judicialidade” mudou, adaptou-se à nova realidade constitucional e legal, mas não feneceu ante esta, mesmo porque continua sendo garantia do acusado ser ouvido perante autoridade judiciária competente e inclusive em um lapso temporal razoável, conforme determinam o chamado “Direito de Audiência” e o “Princípio da Razoabilidade dos Prazos” (artigo 8º., 1 do Pacto de São José da Costa Rica e artigo 5º., LXXVIII, CF).
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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