Resumo: A judicialização da saúde refere-se à busca do Judiciário como a última alternativa para obtenção do medicamento ou tratamento ora negado pelo SUS, seja por falta de previsão na RENAME (Relação Nacional de Medicamentos), seja por questões orçamentárias. É reflexo de um sistema de saúde deficitário, que não consegue concretizar a contento a proteção desse Direito Fundamental. Porém, a expansão da judicialização tem preocupado gestores e juristas, pois, sem critérios, pode conduzir a um desequilíbrio do orçamento, prejudicando políticas públicas já avençadas. Nesse artigo, é discutido esse panorama, com apresentação de soluções para sua “contenção saudável”, como privilegiar ações coletivas em vez das individuais; juridicizar a saúde; atender aos regramentos do SUS; incentivar trabalho interdisciplinar entre judiciário e área médica e a razoabilidade nas decisões judiciais; e atualização da RENAME.
Palavas-chaves: Judicialização da saúde; Direitos Sociais; Direito à Saúde; SUS; contenção da judicialização.
Abstract: The judicialization of health is the demand of the Justice as the last alternative for obtaining the drug or treatment denied by SUS, either by lack of its foresight in RENAME (National List of Medicines), either by budget issues. It is a reflection of a deficient health system, which can not satisfactorily achieve the protection of this Fundamental Right. However, the expansion of judicialization worries managers and lawyers, because without criteria, it can lead to an imbalance of the budget, undermining public policies already provided. In this article, this situation is discussed, and the possible solutions for “healthy restraint” of judicialization are presented, such as the focus on collective demands rather than individual; juridicizate health; obey SUS’ laws; encourage interdisciplinary work between Justice and the medical area; encourage reasonableness judicial decisions; and update RENAME.
Keywords: Judicialization of health; Social Rights; Right to Health; SUS; judicialization’s restraint.
Sumário 1. Introdução – 2. Direitos sociais: breves considerações – 3. Direito social à saúde – 3.1. Direito à saúde como direito humano fundamental: conceito e conteúdo – 3.2. Regime jurídico do direito à saúde e sua judicialização – 3.3. Judicialização da saúde: em busca de uma “contenção saudável” – 3.3.1. “Juridicização da saúde” – 3.3.2. Observância estrita dos regramentos do SUS – 3.3.3. Razoabilidade nas decisões e responsabilidade solidária – 3.3.4. Privilegiar ações coletivas em detrimento das individuais 3.3.5. Trabalho interdisciplinar entre o Judiciário e profissionais de saúde – 3.3.6. Atualização mais célere da RENAME e dos protocolos do SUS – 4. Considerações finais – 5. Referências
1. Introdução
O mundo jurídico, no Brasil e em outros países, vem acompanhando um movimento massivo atinente à busca da efetivação de prerrogativas presentes na Constituição de cada Estado de Direito: a judicialização. Esse termo atina à procura do Judiciário pela população para que o Poder Executivo seja compelido, através de uma demanda judicial, a implementar políticas públicas deficitárias. No caso, importa-nos precipuamente a judicialização da saúde, cuja expansão desenfreada vem alarmando gestores e juristas.
É fato que o sistema de saúde no país não tem sido capaz de efetivar a contento o Direito à Saúde a todas as pessoas, conforme previsão da Constituição Federal. Nessa esteira, muitas vezes o Judiciário acaba sendo a última alternativa de muitos pacientes para obtenção de um medicamento ou tratamento. Mas o que deveria ser uma exceção tem se tornado cada vez mais frequente, de modo que, em 2010, os gastos com demandas judiciais individuais somaram o equivalente a quase 2% do orçamento total da saúde. Esse crescimento pode causar graves desequilíbrios ao orçamento, prejudicando a consecução de políticas públicas previstas. No entanto, também não se pode olvidar o paciente que buscou a Justiça, pois receber atendimento é um direito. A saída, portanto, é efetivar uma “contenção saudável” da judicialização, diminuindo a quantidade e o custo das demandas sem prejudicar investimentos ou o direito individual em saúde.
Nesse artigo, procura-se estudar brevemente esse panorama, propondo soluções para sua contenção, através de análise da importância dos Direitos Sociais e do Direito à Saúde, bem como da legislação correlata.
2. Direitos sociais: breves considerações.
O homem possui, na atualidade, uma extensa gama de direitos constitucionalmente tutelados que visam a sua proteção de maneira holística, ou seja, observando-o integralmente e como ente com necessidades múltiplas, que trazem em seu bojo a essencialidade. Outrossim, acabam por representar, conforme entendimento de Martins[1], “o ponto interseccional entre a liberdade e a igualdade, uma vez que a primeira representa o fator que propicia as condições de reivindicação e fruição dos direitos fundamentais e a falta da segunda pode ocasionar a falta de liberdade”. O déficit de qualquer das duas levaria a uma posição inerte do cidadão perante o Estado, incapacitando-o de lutar por seus direitos, cujos objetivos jamais se divorciam da efetivação da igualdade. Do mesmo modo, sem esta a outra não restaria garantida, pois impossível de ser integralmente usufruída: desaparece a garantia da liberdade fática de escolher, sem a qual a jurídica carece de todo valor. Ou, nas palavras de Stein[2], “a liberdade é apenas real quando se possuem as condições da mesma, os bens materiais e espirituais para tanto pressupostos da autodeterminação”.
Entretanto, em face do previsto na Constituição Federal, da má distribuição de renda, da pobreza e da necessidade imperiosa de garantir ao ser humano a proteção de sua dignidade, muitas vezes a efetivação desses direitos depende essencialmente de atividades estatais, pois sem elas milhares de cidadãos permaneceriam indefinidamente afastados dessas prerrogativas. Trata-se da busca da igualdade substancial. A grande questão é que a garantia da igualdade tem se mostrado um desafio aos Estados modernos. As desigualdades sociais são cada vez mais patentes, fazendo com que a sociedade civil pressione os governantes por soluções. Não obstante haja um suporte jurídico, ele é faticamente abstrato na maioria das vezes; os cidadãos, por si só, não têm condições de reequilibrar concretamente a consecução de garantias. Desse modo, Martins[3] ensina que
“(…) tanto a igualdade formal (legal, que garante o tratamento paritário em nível legislativo e na aplicação do Direito) quanto a igualdade material (social, que, com força propulsora mais dinâmica, irradia uma perspectiva utilitarista na busca da efetivação da totalidade do conteúdo da igualdade formal) têm como principal destinatário o Estado, cabendo-lhe a função equilibradora e moderadora das desigualdades sociais. Nesta esteira, a via pela qual a igualdade material se impõe é a afirmação dos direitos fundamentais sociais.”
Os direitos fundamentais sociais disseminaram-se mais intensamente a partir da Segunda Guerra Mundial, devido às atrocidades físicas e emocionais as quais os seres humanos foram submetidos à época, momento no qual também sobressaíam no continente europeu os ideais socialistas de Karl Marx. Assim, emergiu na consciência coletiva a necessidade da obtenção de maiores garantias para proteção do homem, não apenas para evitar ingerências indevidas do Estado na esfera jurídica, mas também para afiançar, de maneira progressiva, meios de existência compatíveis com a condição humana. A partir desse momento, mormente após a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Estados modernos passaram a contemplar em suas Constituições os direitos sociais, de aplicação universal. Dessa forma, a principal característica dos mesmos é a intrínseca ligação com a intervenção do Estado na sociedade, impondo uma ordem social de acordo com o previsto na Constituição e buscando fornecer condições de vida dignas a todos os cidadãos. São, assim, indissociáveis do Estado Democrático, “pois apenas subsistem nos domínios deste”, como define Martins[4]. Portanto, por serem prerrogativas de promoção, são quase totalmente previstos em normas programáticas (aplicação diferida), prescrevendo obrigações de resultado e tendo como principal destinatário o legislador, que deve detalhar discricionariamente os meios para efetivação desses direitos. Há, no entanto, direitos sociais de aplicação imediata, previstos no caput do art. 5º, CF/88, como a propriedade.
Na doutrina, conforme lição de Torres[5], “passou a prevalecer a ideia de que os direitos sociais eram direitos a prestações originárias, por influência do constitucionalismo alemão de corte social-democrata das décadas de 50 a 70 e da obra de (…) Canotilho”. A Constituição alemã foi uma das primeiras a proteger a dignidade humana e o mínimo existencial; e a obra de Canotilho baseava-se na Constituição Portuguesa de 1976, que, entre outras coisas, impunha como obrigação do Estado a manutenção do bem-estar, da qualidade de vida e da igualdade real entre os cidadãos. Tal movimento levou à defesa da prevalência dos direitos sociais fundamentais mediante algumas teses básicas, como lista Torres[6]:
“a) todos os direitos sociais são direitos fundamentais sociais;
b) os direitos fundamentais sociais são plenamente justiciáveis, independentemente da intermediação do legislador;
c) os direitos fundamentais sociais são interpretados de acordo com princípios de interpretação constitucional, tais como os da máxima efetividade, concordância prática e da ordem jurídica.”
Observe-se o grande salto que essas prerrogativas obtiveram no mundo jurídico desde a publicação da DUDH: passaram a ter o caráter de fundamentais, ou seja, que eminentemente dependiam de proteção constitucional; ademais, foram, a partir desse momento, considerados justiciáveis, o que significa que a doutrina chancelava, desde aquela época, a judicialização de direitos sociais não implementados, cobrando do Poder Executivo uma ação positiva quando este ou o Legislativo tivessem sido omissos. Na década de 90, prossegue Torres[7], destacou-se Norberto Bobbio, que equiparou os direitos sociais aos fundamentais e aplicou-lhes a retórica dos direitos humanos, reconhecendo como não-plena a eficácia daqueles, uma vez que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los” (grifo do autor).
No Brasil, a influência germânica e da obra de Canotilho foram muito fortes, fazendo com que os juristas brasileiros, especialmente Paulo Lopo Saraiva, Celso Antônio Bandeira de Mello, Eros Grau e Paulo Bonavides, passassem a defender a plena efetividade dos direitos sociais. No que concerne especificamente à Constituição Brasileira de 1988, Sarlet e Figueiredo[8], ressaltam que o Poder Constituinte corporificou um conjunto heterogêneo e bastante abrangente em relação a essas prerrogativas. Entretanto, admitindo a existência de diversos problemas ligados a uma “precária técnica legislativa e sofrível sistematização”, observam que houve consequências relevantes para a compreensão do que são, afinal, os direitos sociais como direitos fundamentais. Um exemplo disso é que, durante muito tempo, foram tidos como um conjunto “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, tendendo a realizar a igualização se situações sociais desiguais”, como lembra Silva[9]; ou seja, acreditava-se que se referiam tão somente a prestações positivas, especialmente pecuniárias. No entanto, lembramos que os direitos sociais correspondem não apenas a prestações positivas, mas também negativas do Estado, no sentido de evitar violações ao seu núcleo essencial. Um exemplo disso são os típicos direitos defensivos/ negativos, como a greve e a liberdade de associação sindical.
Ademais, há que se ter em mente, conforme destaca Martins[10], que “um direito é qualificado como fundamental social porque assim foi eleito pela coletividade e para ela, o que define sua legitimidade”. Não se pode olvidar, enfim, que o legislador originário teve escopo no período histórico em que se encontrava inserido, atento aos anseios da população em geral, além das tendências do constitucionalismo social, o que influenciou na construção do arcabouço de direitos sociais que possuímos. Ainda assim, muito se discutiu a respeito da fundamentalidade desses direitos. “Certo segmento doutrinário chegou a alegar que esses representavam meras diretrizes, promessas e aspirações políticas, planificadores de boas intenções, mas desprovidos de qualquer força normativa e, por conseguinte, impassíveis de serem exigidos”, como lembra Martins[11]. No entanto, não cremos ser possível afirmar que tais prerrogativas não gozam de eficácia normativa apenas pelo fato de serem normas programáticas: são dispositivos constitucionais, dotados portanto de caráter cogente e legitimidade e, consequentemente, de imposições, cominações e mecanismos para assegurar a sua eficácia. Jamais podem ser vistos como compromissos vazios e dilatórios. Esse é o entendimento da doutrina majoritária.
De fato, conforme ponderado, o legislador não reuniria essas prerrogativas de forma gratuita na Constituição. A Lei Maior em um Estado como o Brasil é a mais profunda garantia de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana. Os direitos sociais, assim, possuem eficácia normativa, sendo inegável que gozam de dupla fundamentalidade, formal e material. A primeira se refere a sua positivação no ordenamento jurídico, notadamente na Constituição, onde têm característica de norma superior, vinculando o Estado e a sociedade diretamente. Alguns juristas, como o próprio Sarlet, defendem que as normas definidoras de direitos sociais são, inclusive, cláusulas pétreas. E a fundamentalidade formal refere-se à importância do bem jurídico no ordenamento e no Estado e intangibilidade de seu conteúdo mínimo.
Outro ponto relevante, levantado por Martins[12], é o Princípio da Proibição do Retrocesso Social, também conhecido como Não-Retorno da Concretização. Proclama que, “uma vez conformado pelo legislador o direito fundamental social, o que faz com que se integre por completo o seu conteúdo, incabível é a reversão dessa medida, sem criação de outros expedientes compensatórios”. Assim, quando a prerrogativa for efetivada e concretizada, cumprindo a deliberação constitucional, o legislador derivado fica vinculado, sendo-lhe defeso retirá-la do ordenamento sem a devida recomposição. A vedação também visa à preservação da segurança jurídica dos cidadãos. Ademais, podemos inferir que a Proibição do Retrocesso tem fulcro no Princípio da Efetividade das Normas Constitucionais, partindo-se do ponto de que a Lei Maior deve ser concretizada de forma progressiva. “Submetido a um processo interpretativo embasado na unidade sistêmico-constitucional, permite a conclusão de que a realização constitucional é um dever, que possui o sentido inequívoco que aponta a maiores patamares de eficácia e efetividade”, pondera Martins[13].
Conforme a doutrina majoritária, podemos elencar diversas espécies de direitos sociais previstos na Constituição de 1988, nos arts. 5º, 6º, 7º e a partir do 170, além de outros regramentos infraconstitucionais (são numerus apertus). No entanto, interessa-nos no momento o Direito à Saúde, um Direito Social por excelência.
3. Direito social à saúde.
3.1. Direito à saúde como direito humano fundamental: conceito e conteúdo.
A sagração da saúde na posição que atualmente ocupa no Brasil e no mundo, como os demais direitos humanos fundamentais, foi resultado de uma longa evolução do pensamento, da sociedade e do Estado Democrático. Como aduz Scliar[14], “a primeira acepção de saúde apareceu estreitamente ligada a uma explicação mágica da realidade, onde o enfermo era visto como vitima de demônios e espíritos malignos, mobilizados por um inimigo”. Era, de fato, um entendimento popular e rudimentar, ligado a aspectos religiosos. No entanto, a partir dos estudos filosóficos na Grécia Antiga, sobretudo através de Hipócrates, começou-se a inferir a influência de fatores ambientais ligados à questão da enfermidade ou ausência de saúde (multicausalidade das patologias). Com o advento da Idade Média, no entanto, houve grande retrocesso na área, já que a cirurgia e farmacologia eram marginalizadas como bruxaria; e pestes e deficiências eram simplesmente vistas como castigos de Deus. Essa conjuntura, somada à falta de higiene, estancou a evolução desses estudos por cerca de mil anos. Mas a partir do Renascimento houve uma retomada gradativa da questão sanitária. Com auxílio do conhecimento greco-romano, importantes descobertas sobre o corpo humano e biologia foram realizadas, além da evolução do método científico. Dallari e Ventura[15] salientam que o atual conceito de saúde pública teria raízes nesse período, “(…) quando também se firmaram as primeiras políticas concretas do que hoje se conhece por Direito Internacional Sanitário”.
Figueiredo[16] leciona que, com a consolidação do Estado Liberal Burguês, a partir do final do século XVIII, “a assistência pública (social e médica) deixou de depender da solidariedade da vizinhança para incluir a proteção à saúde entre o feixe de atividades tipicamente estatais, inclusive com status legal-constitucional”. Somem-se a isso as manifestações decorrentes da Revolução Industrial: os trabalhadores reivindicavam, entre outras coisas, a correção das condições insalubres de trabalho e assistência médica. A visão social de saúde nasceu a partir desse momento: a classe proletária estava sucumbindo à pressão dos industriais, ficando doente, falecendo. Foi necessário que o Estado interviesse, de modo a preservar os trabalhadores, por serem hipossuficientes.
A partir do século XX, a saúde, como os demais direitos fundamentais, começou a ser tratada do ponto de vista político. Um dos marcos da sua sagração como prerrogativa constitucional foi a criação da ONU (Organização das Nações Unidas) e a DUDH; após esses eventos, a noção de saúde como questão simplesmente política foi ampliada, ficando a cargo do Estado a responsabilidade de implementá-la. Houve ainda a criação de outros órgãos internacionais atinentes ao assunto, como a OMS (Organização Mundial da Saúde). Criado em 07 de abril de 1948, representou um avanço no entendimento da importância desse direito, objetivando a obtenção universal do nível de saúde mais alto possível (art. 1º de sua Constituição); busca ainda construir parâmetros para eficácia e efetividade comuns a vários países.
Entretanto, no fim do século XX começou-se a observar um movimento contrário: houve certo recuo em relação à proteção da saúde como direito fundamental a ser prestado pelo Estado. Corporificou-se um movimento a favor da responsabilidade individual pela mesma; “o Estado figuraria apenas subsidiariamente na prestação de cuidados à saúde dos cidadãos, obliterando-se, com isso, o questionamento das estruturas sociais e econômicas subjacentes ao problema sanitário”, como observam Dallari e Ventura[17]. Essa tendência acompanhou o nascimento e evolução de Teorias como a do Retrocesso de Direitos e da Reserva do Possível, face ao caráter finito dos recursos orçamentários. Começou a ser debatida a tese de que o Estado não poderia arcar com todo o previsto na Constituição, pela comparação (rasa, gize-se) entre óbvia finitude do orçamento e o custo das prestações positivas que cabem ao Executivo.
Nessa esteira, Sarlet[18] aduz que, “estranhamente, ainda se questiona porque um direito como a saúde encontra-se previsto na Constituição. Tal temática não deveria apenas ser discutida por médicos, hospitais e planos de saúde? Decerto que não”. Embora haja uma tendência de diminuição da proteção estatal a essa prerrogativa, não se pode olvidar que o legislador originário sagrou-a no texto da Constituição com força vinculante de direito fundamental e, inclusive, cláusula pétrea. Enquanto as pessoas não tiverem condições de arcarem por si mesmas com os custos de tratamentos médicos, remédios e outros consectários cabe ao Estado provê-las nesse sentido, conforme previsto na CF/1988.
Outro ponto importante é que os únicos direitos que têm enfrentado a má vontade de parte da doutrina e da sociedade são os sociais, porque, em geral, dependem de recursos estatais. É um paradoxo jurídico: muito se buscou encontrar formas de proporcionar às pessoas com escassos recursos financeiros alguns dos “privilégios” dos quais apenas os mais ricos podiam usufruir, como educação, saúde, moradia. Agora, com esses direitos constitucionalmente protegidos (e pessimamente implementados, ressalte-se), procuram-se lacunas no ordenamento para que isso seja retirado. Mesmo em Tribunais Superiores é possível, por vezes, observar isso, como nas palavras do Ministro Teori Zavascki[19]: “O direito à saúde não deve ser entendido como direito a estar sempre saudável, mas, sim, como o direito a um sistema de proteção à saúde que dá oportunidades iguais para as pessoas alcançarem os mais altos níveis de saúde possíveis”. Com a devida vênia, se tal prerrogativa realmente tivesse essa natureza não guardaria a necessária eficácia, sendo apenas um compromisso dilatório do legislador originário. Esse caminho é temeroso, decerto, já que conduz à relativização de direitos. Sarlet[20] manifesta-se contrariamente a essa tendência:
“Vale ressaltar, nesse contexto, que praticamente ninguém questionou, ao menos desde 1787, isto é, desde que surgiram as primeiras Constituições escritas, na acepção contemporânea do termo, sobre o fato de a propriedade (que chegou a ser tida inclusive como direito natural) ocupar um lugar de destaque na Constituição. O mesmo se aplica à liberdade de ir e vir e ao instituto processual do habeas corpus, assim como às liberdades de associação, de reunião e à proteção da intimidade, da vida privada, do sigilo das comunicações e a privacidade do domicílio. Cuida-se, em todos os casos, de valores e bens jurídicos contemplados nas Constituições (…) há quase dois séculos.
Pois bem, bastou fossem contemplados nas Constituições os assim denominados direitos sociais, especialmente a educação, a saúde, a assistência social, a previdência social, enfim, todos os direitos fundamentais que dependem, para sua efetividade, do aporte de recursos materiais e humanos, para que se começasse a questionar até mesmo a própria condição de direitos fundamentais destas posições jurídicas.”
Não obstante essas dificuldades e o arriscado pendor jamais se pode afastar do fato de que a Constituição Federal Brasileira sagrou a saúde com direito fundamental, de acordo com o constitucionalismo contemporâneo e internacional, com proteção jurídica diferenciada. O Estado deve empreender seu papel de provedor de necessidades sociais onde se fizer relevante, assumindo a posição obtida desde a falha do liberalismo, quando se percebeu precária a condução da sociedade e da economia sem intervenção estatal. Sua função, aqui, é equilibrar, preencher lacunas onde faltar a proteção de direitos, jamais se eximir. Isso é importante, especialmente no caso da saúde, que possui, como os demais direitos sociais, conforme ponderado, dupla fundamentalidade, formal e material. Como ensina Sarlet[21],
“A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional positivo e, ao menos na Constituição pátria, desdobra-se em três elementos: a) como parte da Constituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também a saúde) situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, cuidando-se, pois, de norma de superior hierarquia; b) na condição de normas fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado para modificação dos preceitos constitucionais) e materiais (as assim denominadas “cláusulas pétreas”) da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe o artigo 5, parágrafo 1 (sic) da Constituição, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamente as entidades estatais e particulares.”
Nesse âmbito, observe-se que, apesar de serem consideradas normas programáticas por grande parte da doutrina, a própria constituição considera os dispositivos reguladores de direitos sociais (inclusive a saúde) diretamente aplicáveis. E todos são responsáveis pela implementação das mesmas, o Estado ao cumprir suas funções administrativas e a sociedade, exigindo daquele uma posição positiva. Sarlet toma tais dispositivos, ademais, como cláusulas pétreas; superado o pensamento de que apenas os itens do art. 60, § 4º, CF/88, teriam esses status, nada mais justo que considerar que os direitos sociais também têm essa característica, ao menos para proteção de seu núcleo essencial. E do ponto de vista da fundamentalidade material da saúde, tem-se a sua indiscutível essencialidade, mesmo porque, sem a proteção da mesma, o conteúdo de outros direitos fundamentais restaria esvaziado.
Por outro lado, além da defesa da dupla fundamentalidade da saúde, outra questão igualmente importante diz respeito ao conteúdo desse direito. Já comentamos que, durante muito tempo, a saúde foi sinônimo de ausência de doença, mas, atualmente, “(…) qualquer investigação em torno do direito à saúde é bastante para afirmar a complexidade e a diversidade de ações e prestações que compõem o conteúdo desse direito fundamental”, como defende Figueiredo[22]. A doutrina parece convergir quanto aos aspectos curativo, preventivo e promocional da saúde, interpretando os textos jurídicos nesse sentido. No entanto, também está ligada a questões como meio ambiente, qualidade de vida, cidadania e promoção da vida. Dessa forma, referir-se-ia “a um direito de cidadania, que projeta a pretensão difusa e legítima de não apenas evitar e curar a doença, mas de ter uma vida saudável, permitindo que o cidadão usufruísse de um conjunto de benefícios da vida urbana atual”, afirma Figueiredo[23].
A OMS[24], cuja Constituição o Brasil assinou e ratificou[25], por sua vez, alargou a noção de saúde, superando o enfoque da ausência de enfermidades e enfatizando o aspecto positivo de uma saúde efetivamente palpável e não somente preventiva:
“A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.
Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos
fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social”.
Novamente observamos a taxatividade no que se refere à saúde. E, obviamente, àqueles que não conseguem obter esse grau máximo de bem-estar, são necessárias políticas públicas que os atendam. A restrição de uma prerrogativa como essa deve ser realizada com parcimônia. Sarlet[26], por exemplo, equipara a vida digna à vida saudável, aproximando os conceitos de qualidade de vida e dignidade da pessoa humana: “o completo bem-estar físico, mental e social densifica o princípio da dignidade da pessoa humana, pois não é possível imaginar a vida com dignidade em um ambiente insalubre, em condições inadequadas”. Tal pensamento coaduna-se à leitura das normas. No entanto, não se trata apenas de interpretação taxativa e positiva da lei: há um valor axiológico em cada um desses dispositivos, o que demonstra a essencialidade de seu conteúdo. E qual seria o núcleo essencial do direito à saúde, nesse âmbito? Entendemos que seria a situação em que estivesse plenamente garantido o estado físico e mental plenamente saudável do ser humano, com acesso aos medicamentos, tratamentos e produtos médicos essenciais para a manutenção desse estado (ao menos o mínimo). Nessa prerrogativa é perigoso fazer concessões, permitindo que certas doenças sejam mais importantes e, assim, mereçam um atendimento diferenciado em detrimento de outras, cujos pacientes simplesmente precisam conviver e conformar-se com a negativa e o padecimento. Nem se pode tratar uma pessoa apenas porque corre risco de vida; e as demais, não teriam direito à salubridade, ao bem-estar? Saúde, em face de todo ordenamento jurídico brasileiro correlato, não pode ser vista como ausência de doença, mas como bem-estar, prevenção, dignidade, qualidade de vida e o direito de lutar por uma vida saudável.
Obviamente esses pontos não esgotam a problemática. Restam outras indagações, como “o que é qualidade de vida?” e “o que é bem-estar?”. Tais noções, aduz Figueiredo[27], “são pluridimensionais, porque contêm um conteúdo individual (a noção de cada pessoa sobre o que significa qualidade de vida e bem-estar em sua vida) e um viés coletivo (o que razoavelmente deve possuir e ser ofertado a cada pessoa para que viva com dignidade)”. Entretanto, duas questões são extremamente importantes: por mais que o significado da saúde seja subjetivo, podendo referir-se a situações e conformidades diversas, jamais sua aplicação poderá afastar-se da proteção da dignidade da pessoa humana, independentemente do entendimento do poder público instaurado; e essa efetivação, após a discussão do seu conteúdo, deverá proporcionar a todos os cidadãos, não obstante sua condição financeira “o gozo do grau máximo de saúde que se possa obter”, conforme consta na CF88 e na OMS. Todavia, as escolhas devem ser feitas com bom-senso, para que haja meios efetivos de atender às necessidades de todos, otimizando recursos de forma responsável.
3.2. Regime jurídico do direito à saúde e sua judicialização.
A saúde é um direito internacionalmente reconhecido, encontrando-se inserido em diversos documentos de âmbito mundial e na maioria das Cartas Constitucionais dos países democráticos. É, além disso, um dos direitos humanos insculpidos expressamente na DUDH, de 1948, e explicitado pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, de 1966. Ademais, juristas como Bengoa[28] aduzem que, “no art. 6º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – PIDCP, onde é assegurado o direito à vida, também a saúde está presente como um de seus componentes essenciais”. É o que seguem países que não fazem menção expressa à prerrogativa em suas Constituições, como a Alemanha. A primeira Lei Maior a mencionar o direito à saúde como direito fundamental foi a italiana, de 1º de janeiro de 1948.
No ordenamento jurídico brasileiro, é prevista no art. 6º, caput, e, mais detalhadamente, nos arts. 196 e seguintes da Constituição Federal de 1988, como direito fundamental, material e formalmente. Além disso, no Brasil, a saúde encerra um dever, não apenas do Estado, mas também da sociedade. Para Nabais[29], essa disposição denota que o “indivíduo não pode deixar de ser considerado concomitantemente livre e responsável, havendo um liame entre os deveres fundamentais e essa parcela de responsabilidade, assim como entre os direitos fundamentais e a liberdade em sentido amplo”. Dessa forma, foram formadas historicamente camadas de deveres correspondentes aos respectivos direitos fundamentais, devendo-se primar pela proteção em face da dignidade humana e pela essência do Estado Democrático; mas cada cidadão também é solidariamente responsável, na medida em que detém o poder político em suas mãos, sendo imperioso que a comunidade aja proativamente em seu papel de defensora dos preceitos constitucionais, mormente as prerrogativas que lhe dizem respeito. É o que a doutrina chama de shared responsability, como ensina Canotilho[30], visando ao deslocamento “das discussões do campo dos direitos para o terreno dos deveres fundamentais, dada a necessidade de se ultrapassar a euforia do individualismo de direitos fundamentais e de se radicar uma comunidade de responsabilidade de cidadãos e entes públicos”.
Nesse sentido, uma das formas mais simples de analisar os deveres relacionados ao direito à saúde atina à delimitação das dimensões que encerra. Utilizando a classificação funcional, percebe-se que essa prerrogativa possui uma amplitude de defesa e uma prestacional. Na primeira há dois pressupostos: a proibição da ameaça ou agressão da prerrogativa por parte de terceiros (Estado ou particulares) e a vedação do retrocesso total. Isso significa que o titular está constitucionalmente blindado contra intervenções que prejudiquem o exercício do direito; pressupõe-se que a vida e a saúde sejam preservadas contra atuação direta de outrem. Assim, qualquer ação do Poder Público ofensiva à prerrogativa é, a priori, inconstitucional, podendo ser objeto de ação individual ou coletiva. Já o Princípio da Proibição do Retrocesso, embora não tenha necessariamente o condão de desconsiderar a discricionariedade do legislador na ordem democrática, como aduz Sarlet[31], veda que o mesmo
“(…) venha a desconstituir pura e simplesmente o grau de concretização que ele próprio havia dado às normas da Constituição, especialmente quando se cuida de normas constitucionais que, em maior ou menor escala, acabam por depender destas normas infraconstitucionais para alcançarem sua plena eficácia e efetividade, em outras palavras, para serem aplicadas e cumpridas pelos órgãos estatais e por particulares.”
Já na vertente prestacional, pressupõem-se ações realizadas pelo Estado para que seja viabilizada a fruição da prerrogativa pelos cidadãos, credores desse direito subjetivo. Divide-se em “(…) direitos a prestações em sentido amplo – categoria que compreende os direitos à proteção e dos direitos à participação na organização e no procedimento – e direitos à prestação em sentido estrito, ou direitos a prestações materiais”, como propõe Figueiredo[32]. Ou seja, em lato sensu, o caráter prestacional da saúde exige a efetivação de políticas públicas no sentido de atuar na sociedade como um todo; é um dispositivo que considera a comunidade. Em sctricto sensu, consideram-se as prestações básicas para atender as necessidades mínimas dos indivíduos.
Nessa senda, Sarlet[33] aduz que o aspecto prestacional é bem mais problemático de ser definido em seu conteúdo. “A primeira dificuldade é o fato de que a Constituição não definiu em que consiste o objeto do direito à saúde”. Ou seja, é teoricamente difícil de verificar, apenas com a leitura fria da norma, se essa prerrogativa é ali tida como direito a prestações de todo e qualquer tipo, necessárias à manutenção da salubridade humana (atendimento médico, fornecimento de óculos, aparelhos dentários, etc.) ou se está limitada às prestações básicas e vitais, de acordo com o previsto nos artigos 196 a 200 da Carta Maior. Daí surgem novos questionamentos: já que existem problemas de interpretação da norma, no sentido de identificar a real intenção do legislador, o Poder Judiciário está autorizado a indicar o caminho livremente, de forma a ordenar o atendimento dessas demandas? E mais: devido à contrapartida econômica que envolve a dimensão prestacional, devem-se submeter essas prestações à Reserva do Possível, indiscriminadamente? Embora tenhamos que reconhecer limites fáticos em ambos questionamentos, aduz Sarlet[34] que se deve considerar que a solução
“(…) está em buscar, à luz do caso concreto e tendo em conta os direitos e princípios conflitantes, uma compatibilização e harmonização dos bens em jogo, processo este que inevitavelmente passa por uma interpretação sistemática, pautada pela já referida necessidade de hierarquização dos princípios e regras constitucionais em rota de colisão, fazendo prevalecer, quando e na medida do necessário, os bens mais relevantes e observando os parâmetros do princípio da proporcionalidade (…), bem como o comprometimento (…) com a causa da vida e da dignidade da pessoa humana (…)”.
Nesse sentido, uma tentativa válida de regulamentar o conteúdo da CF/88 foi a Lei Orgânica da Saúde ou Lei do SUS (Lei n° 8.080/90). Trata-se de norma bastante esclarecedora, moderna e ampla, tomando a saúde como direito humano fundamental em seus vários aspectos e buscando abranger as mais diversas situações e necessidades nesse âmbito. Implementada da mesma forma como o legislador previu, essa norma faria do Brasil um dos mais avançados na matéria, por prever um sistema de saúde de ponta para todos os brasileiros. No entanto, na realidade estamos muito distantes de obter o grau de atendimento ali previsto, em face da precariedade oferecida aos usuários do sistema público de saúde. Isso, aliado a outros fatores como maior conhecimento dos cidadãos acerca de seus direitos e aproximação com Defensorias e Juizados Especiais, tem conduzido os pacientes e seus familiares ao Judiciário, pela iminência de permanecerem sem o atendimento adequado ao seu caso. Nessa senda, há muito se questiona a viabilidade constitucional da judicialização da saúde, a tentativa de obter por via judicial prestações pouco ou não implementadas em políticas públicas pelo Poder Executivo, que tem a função primária de fazê-lo. Seria justiciável a saúde, afinal? A pergunta é pertinente, já que, em regra, direitos sociais devem ser implementados pelo Executivo, da forma que este julgar mais conveniente. Mas entende-se que a máxima da Constituição sobre o direito de petição (“art. 5º, XXXV, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”) é plenamente válida nessa questão. Além disso, conforme já salientamos, grande parte da doutrina é favorável.
É inegável que o Brasil não conseguiu até hoje fornecer a todos os cidadãos uma condição de vida digna, mormente em saúde. Cabe dessa forma ao Judiciário, como guardião do ordenamento jurídico brasileiro, quando concitado a fazê-lo, zelar para que esses direitos não fiquem esquecidos. Mas essa intervenção não pode ser feita sem critérios. Como comentado, devem-se observar as necessidades básicas do ser humano, sem afetação do conteúdo mínimo, mas também sem dilatar desnecessariamente o previsto nas normas; ademais, é necessário seguir os regramentos do Sistema Único de Saúde. Cabe salientar que a doutrina e a jurisprudência estão muito distantes de chegar a um consenso nesse âmbito. Os defensores da justiciabilidade da saúde demonstram algumas vantagens, como elencam Marrara e Nunes[35]:
a) Estimula a concretização do direito social: determina o respeito por todos os Poderes aos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição, “para realização de um mínimo de bem-estar individual e social”. Como já ponderamos, o processo “força” que uma prerrogativa não implementada ou implementada precariamente seja concretizada por uso do sistema de freios e contrapesos da tripartite, e em nome da dignidade da pessoa humana.
b) Desestimula o mau funcionamento do Estado: seja por corrupção, lobby ou pura omissão, o Executivo e o Legislativo prestam atendimento à sociedade muito aquém do que seria o ideal. “Nesse contexto de baixa eficiência e eficácia de muitos setores estatais, são de extrema relevância os estímulos judiciais em forma de determinação de ações concretas quer para coibir erros e ilegalidades, quer para afastar omissões indevidas”. Novamente tem-se o uso do sistema de freios e contrapesos, objetivando corrigir um grupo específico de ineficiências que prejudica a população, no caso relativas a prestações em saúde.
c) Coíbe o esvaziamento de investimentos do setor: o orçamento brasileiro é autorizativo; na prática, isso significa que o Executivo pode modificar ou mesmo cancelar qualquer dotação votada pelo Legislativo. A judicialização seria, em tese, uma saída para evitar que a população seja prejudicada no caso da diminuição de dotações voltadas para a saúde, assegurando que o Executivo aja quando necessário for.
d) Dificulta o retrocesso social: “veda ao Estado a criação de situações fáticas em que os direitos já conquistados pela sociedade passem a ser ignorados”. O processo, em tese, evitaria o esvaziamento do núcleo mínimo do direito à saúde, com fulcro na dignidade da pessoa humana, de modo a sempre ampliar (nunca reduzir) as conquistas relativas ao direito à saúde.
Já aqueles contrários ao movimento listam aspectos negativos do mesmo, como ponderam ainda Marrara e Nunes[36]:
a) Confusão entre microjustiça e macrojustiça: muitas vezes o Judiciário autoriza demandas perante o Estado sem considerar, em tese, a globalidade de políticas públicas. “Assim, não raro, ao buscar a Justiça no caso concreto (microjustiça), o Judiciário afeta o que se chama de macrojustiça, ou seja, os efeitos desenvolvimentistas que deveriam ser gerados pelo conjunto de políticas públicas praticadas (…) de modo coerente”. De fato, esse talvez seja o argumento mais forte daqueles que se contrapõem à judicialização da saúde. E na prática isso realmente pode ocorrer se o processo for conduzido sem razoabilidade; há tratamentos de uma só pessoa que podem custar mais de R$ 500.000,00 em um ano. Esse valor pode prejudicar orçamentos naturalmente pequenos, como os dos municípios.
b) Substituição de decisões técnicas por decisões superficiais: entende-se que o Judiciário estaria prejudicando a implementação de políticas em saúde, abalando o planejamento do Executivo ao autorizar situações não previstas, baseadas apenas em laudos médicos e não no planejamento orçamentário anual, baseado em estudos científicos estatais. Observa-se que esse argumento é diretamente complementar ao primeiro. Mas não devemos ser simplistas e nem frios, já que há vidas envolvidas. Obviamente, é raso falar que situações não previstas podem sempre prejudicar todo o orçamento da saúde, sem estudar de forma acurada os fatores envolvidos No entanto, sem assessoramento adequado os juízes podem realmente tomar decisões equivocadas, pois seu conhecimento não abarca a seara médica.
c) Desrespeito à Reserva do Possível e ao orçamento: Relacionado à teoria alemã de que ninguém está obrigado ao impossível, mas nesse âmbito é aplicada ao Poder Executivo de forma que “este não teria como ser obrigado a concretizar direitos que, na realidade, exijam esforços materiais e/ou financeiros desproporcionais – o que poderia impactar significativa e negativamente o orçamento público, prejudicando outras políticas públicas”.
d) Eventual violação da harmonia entre os poderes: ao interferir em políticas públicas o Judiciário estaria extrapolando suas funções e adentrando nas do Executivo. Esse é o único argumento contrário que não prospera de modo algum, pois, em matéria de Direitos Fundamentais, especialmente em saúde, a situação encontra-se justamente na ambiência das intervenções autorizadas, pois refere-se a um momento de uso do próprio sistema de freios e contrapesos, de modo a corrigir a atuação equivocada do Executivo em relação às políticas públicas, no caso sua omissão. Esse é o entendimento do STF (Acórdão STA 175-AgR/CE[37]).
Observa-se a instauração de uma controvérsia. E quase todos os argumentos de ambos os lados são válidos. Apesar disso, é possível distinguir uma tendência e simpatia à possibilidade da judicialização na doutrina e jurisprudência, entendimento partilhado nesse Trabalho. É impossível não perceber a importância desse movimento: é através dele que centenas de pessoas que obtiveram resposta negativa do SUS e do Estado estão preservando sua dignidade, vida e saúde. Além disso, tem servido para demonstrar ao Estado a necessidade de atualização da RENAME (Relação Nacional de Medicamentos). Ora, foi após uma onda de ações judiciais, por exemplo, que o coquetel de medicamentos para AIDS começou a ser fornecido gratuitamente pelo SUS: se as pessoas não tivessem se mobilizado, talvez até hoje esses remédios estivessem de fora do fornecimento gratuito. No entanto, apesar da boa-vontade do Judiciário, o movimento precisa ser visto, como tudo na vida, com certa cautela.
3.3. Judicialização da saúde: em busca de uma “contenção saudável”.
A judicialização é um processo relativamente recente, datado dos fins do século XIX. Como consequência da Revolução Francesa, iniciou-se a implementação da jurisdição única (ou inafastabilidade da jurisdição) e ampliação dos poderes dos juízes, considerando que o “Procedimento Civil moderno (…), seguindo sua concepção original, (…) primou pelo desaparecimento dos privilégios de classe e de casta”, conforme ensina Carvalho[38]. As ideias de liberdade e igualdade paulatinamente aproximaram a sociedade do Judiciário o único que poderia resolver um agravo ou proporcionar um direito ora não concretizado.
Movimento parecido trouxe a judicialização à evidência no Brasil, após a redemocratização trazida pela Constituição de 1988. O legislador preconizou a dignidade humana, o acesso sem empecilhos à Justiça, a inafastabilidade da jurisdição e revigorou a importância do Judiciário, que se tornou o grande guardião das garantias e direitos humanos fundamentais e, literalmente, a última guarida para busca dessas prerrogativas.
A segunda grande causa, segundo ensina Barroso[39], foi “a constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária”. De fato, é possível judicializar praticamente qualquer direito, pois nossa Carta Magna é extremamente abrangente. Todos os Direitos Humanos Fundamentais estão ali previstos, de modo que ameaças à sua proteção podem perfeitamente ser levadas ao Judiciário, mormente pela inafastabilidade da jurisdição.
E a terceira e última grande causa da expansão da judicialização, segundo Mendes[40], “é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do mundo”. Ora, qualquer pretensão poderá sempre passar pelo controle difuso (a ser realizado por qualquer juiz) e pelo concentrado (levada em ação direta ao STF e podendo ser proposta por uma extensa lista de entidades prevista na CF). Esse fator propicia uma proximidade maior com a sociedade, com vários meios para interferir e modificar assuntos os mais diversos.
Nos últimos tempos, devido aos fatores já expostos, a judicialização vem crescendo (e alarmando) o Estado e alguns setores da sociedade, pois propõe um desequilíbrio, uma nova visão, e por vezes alterações no orçamento ora determinado, que poderiam sair ao controle do Executivo. Mas o que esse processo significa realmente? Como define Barroso[41],
“Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo (…). Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro”.
No caso, importa-nos precipuamente a judicialização da saúde, “o confronto do direito individual com o coletivo e com a política pública estabelecida em matéria de saúde”, conforme conceitua Marques[42]. Esse movimento é bastante recente no Brasil e iniciou-se na década de 90, conforme já mencionamos, com as ações judiciais para obtenção do coquetel para tratamento da AIDS pelos pacientes. A ideia surtiu grande efeito: com ganho de causa, todo tratamento para os portadores da doença foi realizado através do Sistema Único de Saúde (SUS); e o Estado acabou por incluir a medicação nos protocolos públicos. No entanto, nos últimos anos tais demandas têm crescido de forma tão vertiginosa que vêm provocando discussões sobre sua legitimidade e até a possibilidade de atendimento, mesmo de pessoas com risco de morte, face à finitude do orçamento estatal.
O grande cerne da questão e que parece lutar mais fortemente contra o movimento é, justamente, o custo dessas ações e os limites até os quais o Estado pode gastar sem prejudicar outras políticas públicas. Conforme levantamento de Bassette[43], em 2005, o custo do Ministério da Saúde para atendimento de ações judiciais em saúde foi de R$ 2,24 milhões; em 2007, R$ 25,1 milhões. No ano de 2009, “essas ações resultaram num gasto de R$ 83 milhões, o que representa cerca de 1% do orçamento total da saúde, segundo Mendonça e Segatto[44]. Em 2010, somaram gastos de R$ 132,6 milhões (“1,8% do total do orçamento destinado ao departamento”, como exemplifica Bassette[45]). Tais dados representam um crescimento de 5000% em 6 anos no que concerne à dispensa orçamentária relativa a essas demandas. A análise do panorama da judicialização no Brasil pela Advocacia Geral da União[46] parece resumir a questão: “não há elementos seguros para aferir a razão do crescimento numérico das ações judiciais em face da União, mas o sucesso quase certo dessas demandas, associado à interiorização da Justiça Federal, parecem concorrer fortemente para essa evolução”. Os números falam ainda mais alto quando se somam os valores dispendidos pela União e pelos Estados. É um fato que, definitivamente, não pode ser ignorado, considerando ainda o levantamento do Ministério da Saúde[47]:
“(…) pode-se afirmar (…) que, apesar de existirem apenas 240.980 processos em trâmite no Judiciário (dados do CNJ), os gastos que esses processos representaram, apenas no ano de 2010, somam a quantia de R$ 949.230.598,54 (…), quase 1 bilhão de reais, considerados os dados colhidos com a União e os Estados de Goiás, Santa Catarina, São Paulo, Pará, Paraná, Pernambuco, Minas Gerias, Tocantins e Alagoas (excluídos os outros 17 Estados, o DF e todos os Municípios). Vale destacar que os gastos federais com medicamentos no ano de 2010, para atendimento de todos os usuários do SUS, foram da ordem de R$ 6,9 bilhões, o que significa que, no mesmo período, os gastos com ações judiciais, apenas daqueles 8 entes, corresponderam a quase 1/7 desse orçamento”.
A situação parece ser ainda mais grave considerando as ações interpostas em face dos municípios, que têm orçamentos menores, mas não podem se eximir da responsabilidade imposta pelo Judiciário. E observe-se que, já em 2010, o custo com essas ações somaram quase 2% do orçamento da saúde do país. Isso não pode ser ignorado, pois corre-se sério risco de prejudicar (ainda mais) as políticas públicas da área. Porém, a sociedade, o Judiciário e o Estado em si não podem fechar os olhos para os pacientes que ingressam na Justiça e negar-lhes o atendimento médico de que necessitam, pois, como já esclarecemos, a saúde é um direito fundamental. Portanto, estamos diante de um dilema e de uma escolha trágica.
Ademais, além dos fatores orçamentários, Barroso[48] elenca ainda alguns problemas que demonstram o quanto a judicialização pode ser perniciosa, não obstante os benefícios que traz para uma parcela da população. O primeiro é de ordem democrática, quando um órgão não eletivo como o STF pode invalidar comandos e “sobrepor-se a uma decisão do Presidente da República – sufragado por mais de 40 milhões de votos – ou do Congresso – cujos 513 membros foram escolhidos pela vontade popular”. Tal situação é chamada de dificuldade contramajoritária. Obviamente o Judiciário é autorizado por normas jurídicas (como a CF) e filosóficas (por sua função de proteger direitos fundamentais como grande guardião das leis) a proteger o cidadão, utilizando instrumentos pré-determinados em lei. Mas sua intervenção em políticas públicas deve ser sempre exceção, pois “não se pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo”, ensina ainda Barroso[49].
Outro ponto, prossegue o autor[50], é a (algumas vezes) deliberada fuga aos conhecimentos naturais do Judiciário, com tomada de decisões atinentes a searas outras. Tal situação abarca duas Teorias, a da Capacidade Institucional e dos Efeitos Sistêmicos. A primeira diz respeito à indicação de qual Poder estaria melhor indicado para tomar uma decisão. “Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico.” Muitas vezes uma dotação envolve estudos específicos e, a priori, não cabe ao juiz interferir nos mesmos por falta de conhecimento técnico. Em matérias de saúde, por exemplo, o melhor é que as decisões sejam avaliadas por médicos ou gestores qualificados; a escolha de um remédio ou tratamento em detrimento de outro foge a sua esfera de conhecimentos.
Já a segunda Teoria contrapõe algo que já mencionamos: a micro e a macrojustiça. O Judiciário está preparado para realizar a justiça no caso concreto, do ponto de vista individual ou abarcando um grupo específico de pessoas; essa é a microjustiça. Mas a partir do momento em que se determina uma dotação para atender uma pessoa específica no campo da saúde, há interferência na macrojustiça, nas decisões administrativas, em segmentos econômicos, em políticas públicas. É nesse ponto que pode haver prejuízos à sociedade: o juiz precisa ser extremamente cauteloso e razoável. Não se deseja a morte, nem a insalubridade de ninguém, por óbvio. Mas quando o juiz determina que o Estado deve custear um tratamento específico para alguém, esse dinheiro precisará sair de algum lugar. Se a decisão não for tomada com parcimônia, o custo dessa demanda, somado ao de centenas de outras, terminará por prejudicar a coletividade. Conforme pondera Barroso[51],
“Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos. Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação espontânea, antes eleva do que diminui”.
O ideal seria corrigir de imediato os problemas mais urgentes da saúde no Brasil, já que desse modo muitas dessas ações se tornariam inócuas por perda do objeto. Como não é possível, precisamos por enquanto nos adequar e conduzir esses processos de forma consciente, para garantir que, de alguma forma, o paciente seja sempre atendido quando necessitar, mas sem onerar excessivamente os cofres públicos, nem prejudicar a coletividade com gastos desnecessários. É necessário buscarmos um modelo de “contenção saudável” da judicialização, ou seja, vislumbrarmos a diminuição dessas ações judiciais ou de seus custos sem prejudicar a garantia da saúde ao cidadão, tanto aquele que depende das políticas públicas quanto o que precisou judicializá-las. “Diante de recursos limitados, critérios são necessários; (…) o dilema moral que enfrentamos nestes casos não é um dilema exclusivo do juiz, mas também dos médicos, dos procuradores, do Estado (…) e, principalmente, de todo cidadão”[52].
Nessa esteira, propomos a seguir, brevemente, algumas alternativas e readequação de procedimentos em busca da “contenção saudável”.
3.3.1. “Juridicização da saúde”
Embora sejam termos parecidos, juridicização não é a mesma coisa que judicialização: refere-se à discussão de problemas do ponto de vista jurídico, mas evitando ao máximo levá-los ao Judiciário e transformá-los em demanda judicial. Em outras palavras, atina à busca do diálogo entre cidadãos, gestores, advogados, defensores públicos e Ministério Público. Tal caminho inclui a formação de grupos de trabalho para levantamento de dificuldades e possíveis soluções (com auxílio da comunidade), audiências públicas ou assinatura de Termos de Ajuste de Conduta firmados junto ao Ministério Público, por exemplo. Quanto a esse último, Asensi[53] ensina:
“O TAC (…), como o próprio nome sugere, visa a garantir um direito ou um serviço público que se encontra insuficientemente satisfeito. Mais propriamente, este instrumento consiste num compromisso firmado entre o Ministério Público e o gestor municipal, estadual ou federal para que este realize alterações necessárias para o exercício de um determinado direito, visando corrigir uma situação débil.
(…) Os membros do MP, ao compreenderem que as decisões em saúde devem primar pela celeridade, estabelecem expedientes e estratégias distintas para a utilização do TAC. A título de exemplos comuns na saúde, é possível destacar os seguintes: a) no caso da estrutura do hospital que não tem leitos suficientes, faz-se um TAC através do qual o gestor se compromete, a partir de um certo período de tempo, a prover o número de leitos correspondente à demanda do hospital; b) no caso de um posto de saúde que apresenta falta de medicamentos, faz-se um TAC através do qual o gestor se compromete, num determinado prazo, a obter uma quantidade de remédios suficiente. O Termo de Ajustamento de Conduta ainda goza de força de título executivo, ou seja, caso não seja cumprido no prazo determinado pelo gestor, o Ministério Público pode propor uma ação no Judiciário na fase de execução, o que demanda consideravelmente menos tempo do que uma ação comum, pois dispensa a constituição de provas, as audiências para instrução do processo, a sentença de mérito, etc.”
O uso dessas ferramentas também denotaria economia de dinheiro público do ponto de vista da urgência: compras realizadas de um momento para o outro (como através da Justiça, por liminar) costumam ser mais caras do que aquelas planejadas e licitadas.
3.3.2. Observância estrita dos regramentos do SUS
A Lei n° 8.080/90[54], também conhecida como Lei do SUS ou Lei Orgânica da Saúde, tenta identificar e demonstrar o alcance do atendimento em saúde previsto na Constituição. Consoante previsto no seu art. 1º, essa norma “regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado”. Obviamente o SUS possui algumas normas que devem ser seguidas para seu bom funcionamento. Não obstante seja previsto um atendimento universal, equitativo e integral (art. 7º, incisos I, II e IV, da Lei do SUS), uma das regras básicas para ali adentrar é submeter-se a essas normas, pois sem a observância das mesmas todo o projeto previsto pelos gestores acabaria desconsiderado. É o que defende Santos[55]: “mesmo quando o cidadão opta pelo sistema privado, também fica sujeito aos seus regramentos, do mesmo modo que dele poderá entrar e sair quando quiser. (…) Ou se adentra ao SUS e submete-se aos seus parâmetros técnicos, científicos, administrativos; ou se opta pelos serviços privados”. A obediência a esse simples dispositivo já evitaria a interposição de muitas demandas judiciais.
No entanto, têm sido cada vez mais recorrentes os casos em que o juiz tem determinado o uso de medicamentos e tratamentos a contrario sensu daquilo que o SUS prevê, onerando desnecessariamente os gastos públicos. Exceto em situações muito específicas, isso deve ser evitado a todo custo. Reitera-se: seus procedimentos foram pensados por gestores; não é função do juiz, a priori, modificá-los. Um exemplo é a determinação de fornecer remédios de marca, que são mais caros, em detrimento dos genéricos, por solicitação do médico. Ou determinar tratamentos experimentais, ainda sem autorização da ANVISA, o que é atualmente proibido pela Lei n° 12.401/11[56], que alterou a Lei n° 8.080/90. Um médico individualmente considerado (ou mesmo uma junta) pode ter o poder de contrariar diversos estudos (inclusive internacionais), legislações e procedimentos pré-determinados que aferem a qualidade dos medicamentos genéricos? E pode o juiz desconsiderar sumariamente esses regramentos? A princípio, não. Se for receitado o medicamento de marca ou não-autorizado, o juiz deverá corrigir a pretensão e atender o que está previsto para aquela situação.
3.3.3. Razoabilidade nas decisões e responsabilidade solidária.
Um fato preponderante na onerosidade das demandas judiciais em saúde tem sido a urgência, que rechaça a licitação e, consequentemente, obriga o Estado a comprar produtos médicos ao preço que a primeira empresa a ser contatada estiver oferecendo. Portanto, deve-se agir conforme o caso: se não houver, de fato, urgência no fornecimento do medicamento, deve ser ofertado o prazo adequado para fazer o pregão e comprar o produto. E, mesmo que seja urgente, deve haver um tempo para a cumprimento da demanda. Não é razoável, como algumas vezes ocorre, dar prazo de 01 dia para fornecimento de um medicamento importado, sob pena de multa diária, pois é uma obrigação impossível de ser cumprida.
Além disso, a responsabilidade por matérias em saúde é solidária a todos os entes federativos. Isso significa que qualquer um pode ser demandado. No entanto, o orçamento dos municípios é naturalmente menor que o do Estado e o da União e pode ser facilmente desestruturado com as demandas da judicialização. Como aduz Segatto[57]:
“Nos pequenos municípios, as decisões podem ser arrasadoras. É o caso de Buritama, uma cidade de 15 mil habitantes no interior de São Paulo. O orçamento do município para fornecimento de remédios é de R$ 650 mil por ano. No ano passado, mais da metade foi destinada apenas ao cumprimento de demandas judiciais. Um único paciente pediu na Justiça – e ganhou – uma cirurgia de implante de eletrodos para amenizar o mal de Parkinson. Preço: R$ 108 mil”.
Observa-se que, claramente, as decisões não foram proporcionais. Como é possível comprometer 50% do orçamento de todo um município com poucas pessoas? O ideal é que haja espaço para que o ente demandado (especialmente o município) exija dos outros codevedores a sua quota, dividindo os custos de maneira proporcional e equitativa, conforme previsão do Código Civil[58].
3.3.4. Privilegiar ações coletivas em detrimento das individuais.
As vantagens do ingresso de ações coletivas em detrimento das individuais são óbvias: economia de tempo, dinheiro, trabalho e atingimento de um número muito maior de pessoas. O principal exemplo é a Ação Civil Pública, pois seu objetivo precípuo é assegurar a consecução de direitos fundamentais de Terceira Dimensão, de titularidade coletiva e difusa, conforme explica Asensi[59]:
“A ACP é uma ação judicial que o MP pode propor ao Judiciário para a garantia de um direito que se encontra violado, e consiste num dos mais importantes instrumentos processuais de judicialização da política no Brasil. A relevância que a ACP adquiriu no ordenamento jurídico brasileiro se deve a algumas razões, tais como: a) seu extenso rol de legitimados (MP, Defensoria Pública, Administração Pública direta e indireta e associações) para propor a ação no Judiciário; b) relevância na tutela de direitos difusos e coletivos (saúde, meio-ambiente, consumidor, ordem urbanística, etc).”
Outros exemplos são o Mandado de Segurança Coletivo e o Mandado de Injunção Coletivo. Mas a que melhor se aplica à saúde realmente é a ACP.
3.3.5. Trabalho interdisciplinar entre o Judiciário e profissionais de saúde.
Conforme já mencionamos, o juiz é um profissional extremamente capacitado, mas sua atuação abrange tão somente a área jurídica. Portanto, para tomar decisões relativas a outras searas do conhecimento ele necessita ser assessorado. São poucos os tribunais e juizados que possuem convênios e assessorias especializadas, que poderiam opinar com propriedade sobre medicamentos e tratamentos. A parceria poderia propiciar economia para os cofres públicos e combateria a expansão desenfreada e sem critérios da judicialização. Um exemplo disso são os pedidos, cada vez mais amplos, dessas demandas judiciais, como sabão de coco, óleo de soja, creme fixador de dentadura, farinha láctea, fraldas descartáveis… Assim, é necessário haver critérios para verificar o que é realmente necessário para a garantia da saúde e o que está sendo pedido em excesso. A fralda descartável, por exemplo, só é fornecida pelo SUS aos pacientes idosos, de acordo com a Portaria GM/MS n° 3.219/10; no entanto, o fármaco pode ser necessário a pacientes mais jovens, acometidos de enfermidades urinárias ou gastrintestinais graves. Mas creme para fixar dentadura é, em 99% das situações, um item supérfluo, comparado a outras prestações essenciais em saúde. Apenas um profissional da saúde pode dizer se o paciente necessita do produto ou não, devendo orientar o juiz nesse sentido e dar base científica para a denegação. A questão também retorna ao ponto da prescrição de remédios diferentes daqueles indicados pelo SUS. Assessorado, o juiz saberá embasar sua decisão e denegar, se necessário, o pedido. Isso também impede a expansão de lobbies farmacêuticos, que buscam aumentar a venda de um medicamento específico.
3.3.6. Atualização mais célere da RENAME e dos protocolos do SUS.
Outro ponto que ajudaria na redução da judicialização da saúde é a atualização mais célere da Relação Nacional de Medicamentos e dos protocolos do SUS. É justamente pela falta de alguns medicamentos na lista que muitas pessoas acabam ingressando na Justiça, com fulcro em brechas que permitem o questionamento dos protocolos determinados previamente e acabem convencendo os juízes de que o tratamento está obsoleto. Um exemplo simples é o de um medicamento que já possui substitutos mais potentes, inclusive sob forma de genéricos: o omeprazol[60] (utilizado para doenças do trato gástrico, como úlcera, gastrite e azia crônica), considerado já há alguns anos bem menos eficaz que o pantoprazol e o esomeprazol[61]. Ou seja, embora as normas brasileiras garantam bons tratamentos para os pacientes da rede pública, na prática eles estão sendo submetidos a medicamentos e terapias algumas vezes obsoletas. É essa lacuna que a Administração deve evitar, para que não seja tão fácil questionar (e provar) que seus protocolos são frágeis.
4. Considerações finais
Em face do que foi mencionado, percebe-se que a judicialização da saúde merece atenção de todos os setores da sociedade, pois seu crescimento desenfreado poderá trazer graves consequências para o equilíbrio orçamentário do país. A saúde é um direito humano fundamental, mas encontra-se mal implementado; esse é o principal fator que desencadeia a expansão do movimento. No entanto, é necessário haver um equilíbrio entre a consecução do direito individual e das políticas públicas previstas, para que o orçamento público não seja onerado a tal ponto que torne inviável a atuação do Estado.
Nesse sentido, o ideal aparentemente é buscar uma “contenção saudável” da judicialização, ou seja, contê-la com diminuição da quantidade e do custo das demandas judiciais, mas sem prejudicar o exercício do direito à saúde por parte dos cidadãos. As soluções possíveis não são complexas a priori, mas demandam o trabalho conjunto de todos os atores envolvidos no processo: pacientes, médicos, Judiciário, Ministério Público, advogados e sociedade em geral. Tudo isso, no entanto, deve caminhar lado a lado com a exigência de melhorias gradativas no SUS, em busca de um sistema público de saúde de qualidade, a fim de que, no futuro, a judicialização dessa prerrogativa não seja mais necessária.
Pós-Graduanda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG. Advogada formada em 2012 pela Universidade da Amazônia UNAMA. Servidora pública federal
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