Resumo: O artigo visa, à luz da jurisprudência dominante, tecer considerações acerca da possibilidade das seguradoras serem diretamente processadas pelas vítimas de acidentes de trânsito causadas por seus segurados facultativos.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva, ante a controvérsia jurisprudencial que ainda persiste – tecer considerações sobre a legitimidade das seguradoras a figurarem no pólo passivo de processos movidos por terceiros – outros que não seus segurados facultativos – em processos de indenização por acidentes de trânsito.
2. A SEGURADORA DEVE FIGURAR NO PÓLO PASSIVO A FIM DE SE VER PROCESSADA POR UM TERCEIRO EM ACIDENTE DE TRÂNSITO QUE ENVOLVE SEGURADO FACULTATIVO SEU?
A resposta a tal questão não é, ainda, completamente pacífica e uníssona, embora a corrente jurisprudencial predominante assegura que tal possibilidade é possível.
Defendendo uma ilegitimidade passiva, as seguradoras alegam, primeiramente, que têm – apenas e tão somente – uma relação de direitos e obrigações entre si e seu segurado facultativo, não englobando terceiros (ou seja, aqueles que, infortunadamente, se envolvem em acidentes de veículos com tais segurados e buscam indenização pelos danos sofridos).
E, como decorrência de tal raciocínio, para as seguradoras somente as partes diretamente envolvidas no acidente de trânsito (autor-vítima) somente poderiam nele figurar, ficando restrita entre tais partes a relação de direito material pertinente ao ato ilícito ocasionado.
Afinal, como diz a doutrina, “a legitimidade é a identidade entre o afirmado titular do direito e aquele que requer o provimento (legitimação ativa); e, de outro, entre o afirmado titular da obrigação e aquele que deverá sofrer os efeitos do provimento (legitimação passiva)”.[1]
Corroboram tal raciocínio parte de nossos julgadores, como se constata das ementas abaixo acostadas:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA SEGURADORA. É de ser mantida a decisão que reconheceu a ilegitimidade passiva da seguradora, com quem o autor não possui qualquer relação de direito material. Seguimento liminarmente negado. Art. 557, caput, do CPC.” (TJRS, AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70011389178, DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, RELATOR DES. ORLANDO HEEMANN JÚNIOR, JULGADO EM 12/04/2005)
“APELAÇÃO AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS ACIDENTE DE TRÂNSITO CULPA DO CO-RÉU CONDUTOR NÃO COMPROVADA ILEGITIMIDADE PASSIVA DA SEGURADORA CONTRATADA PELO CONDUTOR – RECURSO IMPROVIDO.” (TJSP, APELAÇÃO 9157276632008826 SP 9157276-63.2008.8.26.0000, 28ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, RELATOR DES. ALFREDO ATTIÉ, JULGADO EM 23/11/2011)
“Acidente de trânsito. Seguro. Ação movida contra seguradora. Relação jurídica com o autor. Inexistência. Ilegitimidade passiva. Ocorrência. Extinção do processo, sem julgamento do mérito. Exegese do artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil. Ônus da sucumbência pelo agravado. Necessidade. Concessão da tutela antecipada. Perda dos seus efeitos.Recurso provido.” (TJSP, Agravo de instrumento nº 0003209-94.2011.8.26.0000, 32ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, RELATOR DES. ROCHA DE SOUZA, JULGADO EM 24/03/2011)
Portanto, à luz de tal pensamento, as seguradoras poderiam – se muito – figurar no feito não como demandadas, mas como litisdenunciadas, por pleito do seu segurado, réu originário, jamais através do exercício do direito subjetivo do terceiro.
Ocorre que, a seguir tal linha, o terceiro fica à mercê do suposto autor do fato – a quem processa – efetuar a denunciação da lide a fim de trazer a seguradora à demanda.
Situação esta que pode não ser interessante ao segurado seja, por exemplo, ante um diminuto valor do dano, por convicção de ter razão na questão ou, simplesmente, por não querer perder bônus junto à sua seguradora, encarecendo uma futura renovação de seu seguro ou por descaso.
À guisa de esclarecimento, ressalte-se que tal denunciação da lide, ademais, não é obrigatória, consoante pacífico entendimento do Superior Tribunal de Justiça, exemplificada no aresto abaixo carreado:
“RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. ARTIGO 70, III, CPC. DENUNCIAÇAO FACULTATIVA. PRECEDENTES. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NAO COMPROVADO. I O prequestionamento constitui exigência inafastável da própria previsão constitucional do recurso, impondo-se como requisito primeiro do seu conhecimento (Súmulas 282 e 356/STF). II A denunciação da lide prevista nos casos do inciso III do artigo 70 do Código de Processo Civil, na linha da jurisprudência desta Corte, não é obrigatória. III – Só se conhece do recurso especial pela alínea c, se o dissídio jurisprudencial estiver comprovado nos moldes exigidos pelos artigos 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil, e 255, parágrafos 1º e 2º, do Regimento Interno desta Corte, com a descrição da similitude fática e dos pontos divergentes das decisões.Recurso especial não conhecido. (REsp 150310/SP, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/10/2002, DJ 25/11/2002 p. 228).” (g.n.)
Já ao terceiro, sem dúvida é interessante que a seguradora figure no pólo passivo do feito, ante a notória solvabilidade das companhias de seguros a fim de arcar com o pagamento de uma possível futura indenização, o que pode não acontecer com o suposto autor do dano…
De outra banda, muitos outros julgados adotam a corrente oposta, permitindo que as seguradoras figurem no pólo passivo do feito, sendo processadas, junto ao suposto autor do ato ilícito, pelo terceiro que busca a indenização dos danos sofridos.
A embasar sua pretensão, é possível arguir um alargamento da estreita via de direitos e obrigações contratadas entre seguradora-segurado usando a poderosa cunha da função social do contrato.
Com efeito, assim determina o artigo 421, do Código Civil:
“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”
Minudenciando tal conceito, nada melhor que as próprias palavras do inspirador do atual Código Civil, Miguel Reale:
“O que o imperativo da “função social do contrato” estatui é que este não pode ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou a terceiros, uma vez que, nos termos do Art. 187, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Não há razão alguma para se sustentar que o contrato deva atender tão somente aos interesses das partes que o estipulam, porque ele, por sua própria finalidade, exerce uma função social inerente ao poder negocial que é uma das fontes do direito, ao lado da legal, da jurisprudencial e da consuetudinária..” [2]
Também albergando tal raciocínio, pode-se lançar mão da analogia, usando-se para os acidentes de veículos sem vítimas fatais ou que se tornam permanentemente inválidas (cobertas pelo DPVAT) o mesmo diapasão utilizado nestas situações.
A respeito, o artigo 788, do Código Civil assim dispõe:
“Nos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios, a indenização por sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro prejudicado.
Parágrafo único. Demandado em ação direta pela vítima do dano, o segurador não poderá opor a exceção de contrato não cumprido pelo segurado, sem promover a citação deste para integrar o contraditório.”
Ora, não há sentido em se restringir a via mais larga explanada no artigo supra, possibilitando ao prejudicado buscar um possível ressarcimento junto à seguradora, aos casos de seguro obrigatório e, quando for situação acobertada por seguro facultativo, negar-se tal caminho.
Neste sentido, deve-se, também, usar da analogia para que, em tais situações, seja aplicada tal disposição legal, viabilizando a demanda direta prejudicado-seguradora.
Confira-se, a respeito, a doutrina de Humberto Theodoro Júnior:
“O Código Civil deu nova definição ao contrato de seguro. Ao invés de conceituá-lo como causa de instituição da obrigação de indenizar o prejuízo eventualmente sofrido pelo segurado, a nova definição atribui-lhe a função de “garantir interesse legítimo do segurado” (Código Civil, art. 757). Nessa mesma perspectiva, o seguro de responsabilidade civil é visto como a garantia prestada pela seguradora, de que realizará ‘o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro’ (CC, art. 787). Em razão dessa natureza de contrato de garantia, o CC/02 prevê a obrigação da seguradora de pagar a indenização diretamente ao terceiro prejudicado, na hipótese de seguro obrigatório de responsabilidade civil (art. 788, caput). Embora não se tenha feito expressa menção a igual direito da vítima, para o seguro facultativo de responsabilidade civil, a solução não pode ser diferente, uma vez que, por definição da lei, a obrigação da seguradora, em qualquer seguro da espécie (obrigatório ou facultativo) é a de garantir ‘o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro’. A novidade, em termos processuais, está no parágrafo único do art. 788, que cogita, na ação direta da vítima contra a seguradora, da possibilidade desta promover a citação do segurado ‘para integrar o contraditório’, caso queira manejar a ‘exceção de contrato não cumprido’.[3]
Assim, a jurisprudência vem se inclinando no sentido de autorizar ao terceiro prejudicado que, lançando mão de seu direito subjetivo, processe diretamente a seguradora que assiste o suposto autor do acidente, em vez de ficar nas mãos deste, aguardando uma incerta denunciação à lide.
Veja-se, à guisa de exemplos, os seguintes julgados:
“Direito Processual Civil. Embargos de declaração. Alegação de omissão e contradição. Descabimento.Direito Civil. Acidente de trânsito. Demanda proposta em face da seguradora contratada pelo suposto causador do dano para pagar a indenização referente aos prejuízos decorrentes do sinistro. Possibilidade. Legitimidade. Indenização. Reparação de danos. Alegação de que a autora não é parente da vítima do acidente, não podendo pleitear a indenização. Cabimento. Ausência de comprovação nos autos de que a autora era companheira do falecido. Ilegitimidade ativa “ad causam”. Rejeição dos embargos.” (TJRJ. 0018633-48.2000.8.19.0004 – APELAÇÃO, Rel. Des. NAGIB SLAIBI – Julgamento: 08/06/2011 – SEXTA CAMARA CIVEL).
“ACIDENTE/SEGURO DE VEÍCULO INDENIZAÇÃO. Legitimidade da seguradora. Reconhecimento. Possibilidade de ser demandada diretamente pelos terceiros lesados. Preliminar repelida.” (TJSP. Apelação Com Revisão nº. 0000447-94.2008.8.26.0264., Rel. Des. Marcondes D’Angelo- Julgamento: 14/12/2011 – 25ª Câmara de Direito Privado).
“PROCESSO CIVIL – ACIDENTE DE TRÂNSITO – INDENIZAÇÃO – SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL FACULTATIVO – LEGITIMIDADE PASSIVA. Na ação de reparação civil, a seguradora é parte legítima para ser demandada em litisconsórcio com o segurado, pelos danos causados por este a terceiros. Com a presença dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.” (TJMG. Apelação Cível nº 1.0701.05.133305-5/001(1), 18ª Câmara Cível, Rel. Fábio Maia Viani. j. 14.08.2005, unânime, Publ. 28.08.2007).
“REPARAÇÃO DE DANOS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. POSSIBILIDADE DE A SEGURADORA FIGURAR NO PÓLO PASSIVO DA DEMANDA, SUPORTANDO A CONDENAÇÃO DE FORMA SOLIDÁRIA. JUROS DE MORA A PARTIR DA CITAÇÃO E CORREÇÃO MONETÁRIA A CONTAR O DESEMBOLSO. Legitimidade passiva da seguradora. Nos casos de acidente de trânsito com veículo segurado envolvido, cabe a demanda direta do lesado contra a seguradora do causador dos danos. Pode a seguradora ser demandada diretamente pelo veículo sinistrado, se mantém contrato de seguro com o carro causador do acidente. Juros de mora fixados em 1% ao mês que correm a partir da citação do requerido. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.” (TJRS. RECURSO INOMINADO. Nº 71003384914. Primeira Turma Recursal Cível. Rel. Juiz LEANDRO RAUL KLIPPEL, j. 10/11/2011)
No STJ, tal corrente também está firmada e consolidada, como se denota das ementas abaixo colacionadas:
RESPONSABILIDADE CIVIL. Acidente de trânsito. Atropelamento. Seguro. Ação direta contra seguradora.
A ação do lesado pode ser intentada diretamente contra a seguradora que contratou com o proprietário do veículo causador do dano.Recurso conhecido e provido. (REsp. 294.057/DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2001, DJ 12/11/2001, p. 155).
“Recurso especial. Ação de indenização diretamente proposta contra a seguradora. Legitimidade. 1. Pode a vítima em acidente de veículos propor ação de indenização diretamente, também, contra a seguradora, sendo irrelevante que o contrato envolva, apenas, o segurado, causador do acidente, que se nega a usar a cobertura do seguro. 2. Recurso especial não conhecido.” (REsp. 228.840/RS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, Rel. p/ Acórdão Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/06/2000, DJ 04/09/2000, p. 150).
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. AÇÃO AJUIZADA PELA VÍTIMA CONTRA A SEGURADORA. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO. DOUTRINA E PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO. I – As relações jurídicas oriundas de um contrato de seguro não se encerram entre as partes contratantes, podendo atingir terceiro beneficiário, como ocorre com os seguros de vida ou de acidentes pessoais, exemplos clássicos apontados pela doutrina. II – Nas estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa futura e indeterminada, bastando que seja determinável, como no caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no momento do sinistro. III – O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a seguradora, para cobrar a indenização contratual prevista em seu favor.” (REsp. 401.718/PR, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 03/09/2002, DJ 24/03/2003, p. 228).
Aliás, como transcrito em ementa de recente julgado, a Ministra Nancy Andrighi, além de seguir tal corrente, assim reconheceu a preponderância da mesma no Tribunal da Cidadania:
“(…)Sobre a legitimidade da seguradora para figurar no polo passivo em ação proposta por terceiro, a Turma concluiu que a jurisprudência das duas turmas da Segunda Seção deste Superior Tribunal firmou o entendimento de que é cabível a ação direta do terceiro contra a seguradora. Assim, não obstante o contrato de seguro tenha sido celebrado apenas entre o segurado e a seguradora, dele não fazendo parte o recorrido, ele contém uma estipulação em favor de terceiro. E é em favor desse terceiro que a importância segurada será paga. Daí a possibilidade de ele requerer diretamente da seguradora o referido pagamento. O fato de o segurado não integrar o polo passivo da ação não retira da seguradora a possibilidade de demonstrar a inexistência do dever de indenizar. A interpretação do contrato de seguro dentro de uma perspectiva social autoriza e recomenda que a indenização prevista para reparar os danos causados pelo segurado a terceiro seja por esse diretamente reclamada da seguradora. A Turma, com essas e outras considerações, negou provimento ao recurso.” [4]
6. CONCLUSÃO
Em suma, data maxima venia aos defensores da já minoritária corrente, entendemos que o pensamento dominante é o correto.
Afinal, não se pode aceitar, talvez por um vetusto purismo, que uma vítima de acidente de trânsito não possa processar diretamente a seguradora que assiste ao autor de tal ato ilícito por ser terceira na relação destes.
Não é razoável determinar que aquela demande o suposto autor e dele espere uma (não obrigatória) litisdenunciação para tentar efetivamente receber a respectiva indenização pelos danos sofridos.
Assim, fica a vítima nas mãos de seu oponente, sendo infelizmente comum e corriqueiro, que os condenados a pagar as indenizações pelos danos que causaram simplesmente quedarem-se inadimplentes, seja pelo não pagamento voluntário, seja pela inexistência ou insuficiência de bens a serem constritos e alienados para tanto.
Ao passo que as seguradoras são de comprovada higidez e saúde financeira, devendo – até mesmo em homenagem aos princípios da economia e celeridade processuais (afora a função social do contrato e a analogia ao artigo 788, do Código Civil, acima mencionados) – figurarem, de plano, no pólo passivo do feito e, uma vez citadas, como rés, lançarem mão das defesas e exceções cabíveis a fim de buscar uma sentença de improcedência.
Afinal, numa sociedade que busca, cada dia mais, a efetividade das relações jurídicas e a celeridade dos feitos não há como negar a possibilidade acima aventada.
Advogado
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