Resumo: O trabalho defende a descriminalização do uso de drogas no Brasil, tendo como embasamento teórico a política criminal, a doutrina e a jurisprudência sobre o tema. Demonstrar que a legislação vigente no Brasil, Lei 11.343/06 possui uma lacuna que não define quem é usuário e quem é o traficante. Outro ponto que foi demonstrado é a comprovação de que o uso de drogas é um problema de saúde publica e não de repressão policial. São investidos milhões de reais, mas o problema não é solucionado, ao contrario provoca-se mais violência gerando um ônus muito maior à população.[1]
Palavras-chaves: Brasil – Descriminalização – Drogas – Repressão.
Abstract: The paper advocates the decriminalization of drug use in Brazil, having as theoretical crime policy, doctrine and jurisprudence on the subject. Demonstrate that current legislation in Brazil, Law 11.343/06 has a gap that does not define who is a user and who is the dealer. Another point that has been demonstrated is proof that drug use is a public health issue and not a police crackdown. Are invested millions of dollars, but the problem is not solved, unlike provokes more violence is generating a much greater burden on the population.
Keywords: Brazil. Decriminalization. Drugs. Repression.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Política de drogas no Brasil. 2.1. A Criminologia na América Latina. 2.2. A construção da política de drogas no Brasil. 3. Aspectos relevantes da nova Lei de drogas e a Descriminalização do seu uso. 3.1. Aspectos relevantes da nova Lei de drogas. 3.2. A proposta de descriminalização do uso de drogas. 4. Conclusão. Referências.
Os motivos da abordagem desse tema sobre a criminalização do uso de drogas vinculam-se à ênfase no fato de que a sua criminalização não tem coibido a disseminação de seu uso. Ao contrário, a cada dia aumenta astronomicamente a quantidade de usuários e sua conseqüente dependência química, fato gerador de grande comoção social.
E é com base nesta constatação, que este trabalho embasará sua tese, de que, para o combate e a respectiva erradicação desta epidemia se faz necessário o seu tratamento como um problema de saúde pública e de falta de infra-estrutura social.
Tal infra-estrutura deve ser priorizada por todos os órgãos governamentais de saúde disponíveis, em vez de simplesmente tipificar a conduta penalmente. Isso porque a permanecer inalterada a linha de atuação das autoridades políticas o foco continuará sendo as conseqüências do problema e não a sua causa.
Observa-se que a criminalização do uso das drogas, inclusive permanece de forma indefinida, pois a Lei 11343, de 23 de agosto de 2006, mesmo tendo revogado a Lei 6368, de 21 de outubro de 1976, e a Lei 10409, de 11 de janeiro de 2002, não define quem é o usuário e quem é o traficante, deixando margens para que a autoridade policial faça essa definição arbitrariamente.
Considera-se para essa definição rotineiramente a quantidade de substância entorpecente encontrada com o portador no momento da abordagem. Assim, a argumentação da defesa do infrator ganha relevância para a decisão penal.
Outro aspecto que merece destaque é condição de vulnerabilidade social. Nas favelas da periferia das cidades as famílias de baixo poder aquisitivo com escolaridade mínima ou analfabetos funcionais são recrutadas involuntariamente por grupos de delinqüentes que assumem o controle da comunidade.
Formam um grupo de soldados a seu serviço obrigando-os a ingressar na delinqüência, principalmente no tráfico de drogas por meio de ameaças e de promessas ilusórias de enriquecimento rápido, poder pessoal e status.
Na realidade, os levam para um caminho sem volta o qual é o acesso inevitável para o cometimento de outras infrações penais como o roubo e o homicídio, além de uma provável dependência química pelo uso das drogas e um elevado percentual de morte prematura causado pelo confronto entre facções, com a polícia ou causado pela utilização das drogas.
Tudo isso por omissão da máquina estatal que não atua efetivamente nessas áreas, permitindo que esses grupos exerçam a sua função, única e exclusivamente defendendo seus interesses pessoais e ilícitos. Também será abordado que essa situação ocorre diuturnamente e tem se intensificado a cada dia mais, propiciado pela constante descoberta de novos tipos de drogas, o que é sinônimo de uma arrecadação financeira cada vez maior.
Na defesa da tese de que a criminalização do uso da droga está equivocada e que ela deve ser tratada como um problema de saúde pública e de falta de infra-estrutura social será demonstrado à deterioração da célula da sociedade, que é a família. Família esta que se inicia lá na periferia onde crianças ficam sozinhas em casa, enquanto seus pais trabalham, tornado-se vulneráveis.
Assim, permanecem a mercê da delinqüência e são obrigadas a trabalhar para esses grupos como informantes da aproximação da polícia nos locais de tráfico de drogas. Por esse motivo, abandonam a escola.
Na seqüência dessa cadeia vem a conseqüente dependência química dessas crianças propiciada pelo convívio neste ambiente, iniciando-se assim o seu ingresso definitivo no mundo do crime, pois aí terá de roubar e matar para sustentar seu vício.
Nesta fase a pessoa já está rotulada e excluída da sociedade e a tendência é que a cada dia a sua degradação aumente em termos sociais e de saúde se acentue de forma vertiginosa.
Esta degradação é outra conseqüência que vai atingir diretamente o núcleo familiar provocando a sua desestruturação, pois as instituições estatais disponíveis, nesse caso, são ineficazes e de difícil acesso porque não existem nesses locais ou são inoperantes por falta de preparo técnico-profissional de suas equipes haja visto que não há interesse político, motivo pelo qual o estado dá ênfase a criminalização das drogas e não como um problema de saúde ou inexistência de infra-estrutura social.
Para isso o trabalho foi estruturado em dois capítulos. No primeiro abordamos como a política de drogas foi construída no Brasil, destacando-se alguns aspectos criminológicos. No segundo capitulo serão pontuadas as alterações mais significativas da nova lei de drogas e desenvolvidas a tese de descriminalização do seu uso.
2.1 A CRIMINOLOGIA NA AMÉRICA LATINA
Sobre a Criminologia na América Latina é possível detectar que sua origem está vinculada à burguesia que para o enfrentamento dos problemas sociais simplesmente copiou o modelo de países mais desenvolvidos em termos capitalistas sem, no entanto, adequá-lo as necessidades locais. Conforme relata Roda Del Olmo as origens da criminologia como ciência no continente europeu, e particularmente na Itália, respondem não somente ao grande desenvolvimento que adquiriu nesta época a ciência como tal, e especialmente as “ciências do homem”, como também às necessidades da burguesia para enfrentar seus problemas sociais, e o problema do delito em particular. Este fato se concretiza no preciso momento em que o capitalismo entra em sua etapa imperialista e que o Estado começa a assumir o controle de certos aspectos da vida comum.[2]
Para Fernando Henrique Cardoso a dependência não é mais que a expressão política na periferia do modo de produção capitalista, quando este é levado à expansão internacional. Rosa Del Olmo compartilha dessa posição afirmando inclusive, que na análise do surgimento da criminologia na América Latina, deve-se levar em conta o problema da dependência dessas sociedades. Para Agustín Cueva “o desenvolvimento do capitalismo não é outra coisa que o desenvolvimento de suas contradições específicas, ou seja, de um conjunto de desigualdades. Como na América Latina esse desenvolvimento desigual adquire o caráter de uma verdadeira deformação… isto é, que o desenvolvimento latino-americano se torna somente compreensível ao ser conceituado como um processo de acumulação muito particular de contradições derivadas de elementos históricos como o prussianismo agrário, a deformação do aparelho produtivo capitalista etc., e também de uma heterogeneidade estrutural explicável em termos de modos diversos de produção”, o que para Rosa Del Olmo tem o mesmo sentido do posicionamento.[3]
Sobre a questão latino-americana, pode-se dizer que não se trata de uma relação unilateral de imposição estrangeira, como geralmente se crê. Contava-se com a aceitação das classes dominantes de cada país, que sentiam a necessidade de encontrar na Europa e nos Estados Unidos a “solução” de seus problemas locais, especialmente por sua atitude de subordinação e seu comportamento mimético. Neste aspecto, enfatizando o entendimento da autora, para Oscar Maggiolo essa aceitação da ciência se deu “em forma literária. Não se formou uma consciência propensa a assimilar o método científico que exige imperativamente a verificação experimental dos fatos. Surgia uma forma de pensar própria da América Latina: o escolasticismo cientificista… Bastava que um fato fosse afirmado por Galileu, Darwin ou Spencer para que fosse acreditado, sem necessidade de verificação experimental. As conseqüências que por raciocínio lógico surgem destes fatos eram aceitas sem qualquer discussão”.[4]
Rosa Del Olmo destaca que nas tentativas de solução do problema do delito ocorreu o mesmo. As palavras de Lombroso, Ferri ou Garofalo eram sagradas para os latino-americanos e tinham que ser assimiladas sem que se levasse em conta que a história da Itália, e, portanto da sua delinqüência, era muito distinta da nossa. Com referência a este tema a autora transcreve Jorge Abelardo Ramos que sintetiza em um parágrafo a situação:
“O nobre produto importado vinha com a garantia do selo europeu e isso era suficiente. Mas empregávamos essa superestrutura jurídica e filosófica burguesa sem realizar na América Latina a revolução burguesa que a havia gerado na Europa. Era operada uma viagem transatlântica das leis e da filosofia sem se importarem ao mesmo tempo as relações sociais, os métodos de produção, nem a estrutura de classes.”[5]
Conforme a autora é dessa forma que a criminologia chega então a América Latina depois que suas classes dominantes e “ilustradas” haviam assumido os ditames da ideologia liberal e a filosofia positivista como a melhor via para alcançar “a ordem e o progresso”; Sobretudo a “ordem”, que consideravam tão necessária, não somente pelos grandes períodos de anarquia, caudilhismo e guerras civis que caracterizaram a história do século XIX latino-americano, mas também para o processo de implantação do capitalismo como modo de produção dominante na área. Apregoava-se que seria o instrumento mais eficaz para resolver os problemas locais, mas na prática não foi assim. Examine-se, por exemplo, em nosso caso, quais eram os representantes latino-americanos nos congressos internacionais e qual era sua relação com seus respectivos países. Freqüentemente, tratava-se de diplomatas que viviam na Europa, ou de membros dessa “minoria ilustrada” que conheciam melhor a Europa que seus próprios países, e dentro dessas cidades, membros de uma classe que não estava preocupada em resolver problemas locais, a menos que estes os afetassem diretamente. Às vezes nem sequer sabiam o que ocorria em suas próprias cidades, porque isso não lhes interessava. Alguns chegavam a lamentar o fato de haverem nascido neste continente.[6]
Com relação às primeiras importações, Rosa Del Olmo salienta que a preocupação inicial esteve dirigida para o campo penitenciário, porque para as “minorias ilustradas” se a penitenciária era imposta como uma possível solução do problema nos países desenvolvidos, não havia necessidade de se criar nada novo: tratava-se simplesmente de adotar o que já existia. O que, sem dúvida, não se levou em conta foi que, nos anos 1860, a penitenciária já tinha fracassado como meio de “reabilitação institucional” nos Estados Unidos. Em estreita relação com as questões penitenciárias, surge na mesma época a preocupação com a elaboração dos códigos penais em toda a América Latina. Mas esses códigos seriam reflexo da cultura jurídica européia e não da norte-americana.[7]
Referente a antropologia criminal como resposta “científica” aos problemas sociais a autora informa que surgiu na Europa no I Congresso de Antropologia Criminal (Roma, 1855), como “a ciência do estudo do delinqüente”. A criminologia se difundiria rapidamente na América Latina. Desempenharia um papel importante para justificar o controle das manifestações de resistência da época, servindo por sua vez como resposta aos problemas locais que perturbavam o desenvolvimento adequado das forças produtivas em benefício do capital. Como a inclusão dos países latino-americanos no capitalismo mundial foi desigual, explica-se que essa antropologia criminal não fosse acolhida de modo uniforme nesses países. Adquiriria, por conseguinte características específicas em cada país e seu desenvolvimento seria desigual. Piñero e outros membros da “minoria ilustrada” argentina criaram no ano seguinte a Sociedade de Antropologia Jurídica, com a finalidade de estudar cientificamente a criminalidade, no Brasil seria criada uma instituição similar: a Associação Antropológica e de Assistência Criminal. Fundavam-se as sociedades científicas e começava-se a publicar toda uma série de livros, particularmente nos últimos quinze anos do século XIX, para difundir as doutrinas da emergente criminologia. No Brasil, Clovis Bevilacqua publicaria em 1896 seu Criminologia e Direito e, no ano seguinte, Afrânio Peixoto, seu Epilepsia e delito.[8]
Para Rosa Del Olmo enfatizando diferenças físicas e mentais entre os delinqüentes e não-delinqüentes, a antropologia criminal teve imediatamente total acolhida. Correspondia ao racismo difundido na América Latina do final do século para justificar as limitações desses países. As classes dominantes estavam percebendo a crescente distância entre o desempenho econômico de seus países e o dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, mas consideravam esse um fato inevitável devido a composição racial da população latino-americana. A antropologia criminal, com suas bases iniciais, serviria para compreender por que existiam delinqüentes nestes países. Eles pertenceriam a uma linhagem distinta e inferior que constituiria a parte patológica de nossas sociedades, mas essa parte patológica -para essas “minorias urbanas ilustradas”- estaria integrada por aqueles indivíduos que não descendiam da raça branca.[9]
Desejava-se explicar os problemas sociais em função de características individuais, daí a acolhida que tiveram -e que ainda têm- na América Latina o biologismo e o psicologismo, e a grande difusão das teorias sobre a “degeneração”. O delinqüente não seria mais que um “degenerado”, produto de suas limitações raciais ou mentais, e muitas vezes de ambas simultaneamente, devendo ser submetido a um estudo especial. Isto explica a relação tão estreita que existiu na América Latina entre a criminologia e a medicina legal, fato que persiste em alguns países até nossos dias. No caso da América Latina, para as classes dominantes a única raça capaz de obter o progresso da sociedade seria a raça branca. As outras seriam consideradas perniciosas porque levavam consigo ”elementos degenerativos”. O progresso e o desenvolvimento seria alcançado “substituindo-se a mão-de-obra mediante imigrações em massa.[10]
No entanto Rosa Del Olmo enfatiza que a prática demonstrou que essa não era a solução para o problema do delito latino-americano. Naqueles países onde se logrou essa migração européia, como na Argentina, apresentaram-se novos problemas não contemplados anteriormente. Foi preciso reformular essa concepção, já que o problema não era só racial. Esses grupos de “raças estrangeiras homogêneas” não atendiam as expectativas das classes dominantes. Sua utilização como mão-de-obra barata deu lugar a toda uma série de conflitos que rapidamente seriam qualificados como delitos. Via-se a delinqüência como resultado de uma migração indiscriminada e muito especialmente atribuída às características pessoais de certos imigrantes. A raça branca também podia ser delinqüente e perturbadora. O problema deixaria de ser o elemento racial para se converter na periculosidade do indivíduo.[11]
A criminologia teria que assumir uma posição frente a esta situação. Se as causas do delito já não eram exclusivamente raciais, tinham que ser mentais. Um indivíduo seria delinqüente por falhas em sua personalidade e muito especialmente porque era um “psicopata”. Delinqüente e psicopata se tornariam sinônimos na América Latina.[12]
Já Vera Malaguti Batista em sua obra O Medo na Cidade do Rio de Janeiro aborda esses problemas sociais em relação as características individuais como uma estetização radical. Para ela o final do século XX ilumina o nosso olhar sobre o século XIX. No limiar entre o XX e o XXI, o medo não é só uma conseqüência deplorável da radicalização da ordem econômica, o medo é um projeto estético, que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo coração. A estetização radical, que acompanha a ascensão burguesa até o capitalismo tardio que vivemos, parece com instrumento de hegemonia política, como reprodutor de uma ordem e de uma hierarquia social.[13]
A autora ao mencionar Bauman chama a atenção para a significação política e social da busca de pureza e da gravidade de suas conseqüências nas sociedades modernas, já que, em alguns momentos da história, seres humanos foram concebidos como um obstáculo à higiene, e conseqüentemente à ordem. O autor fala de um mundo em que muitos aspectos são tão óbvios que já não são conscientemente notados. O lugar do negro na sociedade brasileira é um exemplo deste processo, em que uma rígida hierarquização social é naturalizada a ponto de se tornar imperceptível.
Esta nova ordem traz estratégias de privatização e regulamentação junto à “preservação da pureza da vida consumista”, produzindo exigências políticas contraditórias, porém complementares: por um lado a exigência de incremento das liberdades do consumidor e, por outro o discurso de “lei e ordem” para as vítimas do processo de privatização e desregulamentação, os consumidores falhos. O ideal da pureza da pós-modernidade passa pela criminalização dos problemas sociais[14].
Vera Malaguti ao lado de Loïc Wacquant afirma que, com o desmantelamento do welfare State, iniciada por Reagan, começa nos EUA uma popularização de medidas policiais e jurídicas que instaura uma “caça aos pobres” e um processo de penalização da precariedade. Esta nova ordem prevê a magnificação do sistema penal e o conseqüente aumento vertiginoso das taxas de encarceramento, bem como da indústria carcerária (polícia, tribunais, advogados, fornecedores de equipamentos prisionais.[15]
A caça aos pobres nos EUA é contada na obra de Loïc Wacquant, onde relata que as prisões americanas estão repletas não de criminosos perigosos e violentos, mas de vulgares condenados pelo direito comum por negócios com drogas, furto, roubo, ou simples atentado à ordem pública, em geral oriundos das parcelas precarizadas da classe trabalhadora e, sobretudo, das famílias do subproletariado de cor das cidades antigas diretamente pela transformação conjunta do trabalho assalariado e da proteção social. De fato, em 1988, a quantidade de condenados por contenciosos não-violentos recluso nas casas de detenção e nos estabelecimentos penais dos Estados Unidos rompeu sozinha a cifra simbólica do milhão. Nas prisões dos condados, seis penitenciários em cada 10 são negros ou latinos; menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atrás das grades e dois terços provinham de famílias dispondo de uma renda inferior à metade do “limite de pobreza”.[16]
Para Birman, na passagem da modernidade para pós – modernidade “algo da ordem do sujeito e do desejo se transformou radicalmente”. Essa pós-modernidade tem como maior metáfora o desamparo no seu sentido mais amplo. “O desamparo se impõe como sintoma e como fonte permanente de produção de perturbações psíquicas, na medida em que a dor que revela contraria todas as pretensões da modernidade, aquelas em que o sujeito prometeico dominaria o mundo de uma maneira absoluta e indiscutível”. É neste cenário que surge a demanda e a oferta por drogas. A psiquiatria e a medicina às oferecem em larga escala, num processo de medicalização do sofrimento que também atinge os circuitos subterrâneos das drogas ilegais. A performance como ideal regulador dirige o olhar das pesquisas para as depressões, as síndromes de pânico e as toxicomanias. Na mesma perspectiva da religiosidade evangélica pentecostal “de resultados”, em que se Deus existe tem de funcionar, os sujeitos lançados a própria sorte no jogo do individualismo possessivo também têm que funcionar.[17]
Vera Malaguti Batista afirma que no globo da morte o Estado administrador da morte vai se transformando no Estado administrador da vida, a partir do século XVIII. Segundo Foucault, o Estado passa a se ocupar de um novo sujeito coletivo, o conjunto de súditos se transforma em sujeito coletivo.
Este processo de administração da vida cria a necessidade de distribuir as funções centralizadas antes da Inquisição entre agências especializadas. Estas burocracias regulatórias e administrativas passam historicamente por um processo de autonomização e hierarquização, dando lugar a uma gama de corporações profissionais que disputam o poder.[18]
Este processo de administração da vida se fundamenta na própria obra de Foucault vigiar e punir: nascimento da prisão, nela ele descreve a importância do corpo que é, para ele, o que leva o estado a administrar a vida. Para o autor foi durante a época clássica que houve uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Neste período, segundo o autor, encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras paginas haviam sido escrita por descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível.
E, entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. “O homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une aos corpo analisável o corpo manipulável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.[19]
Ainda, conforme relatado por Malaguti a questão criminal e a administração do perigosismo social passam a ser alvo de intensa disputa a partir da criação e autonomização das corporações no século XVIII. É por isso que o discurso jurídico-penal se adapta ao discurso biológico, quando o social-dawinismo passa a ser o discurso hegemônico. O discurso criminológico está sempre no marco histórico do poder mundial, seja na revolução mercantil, seja na revolução industrial, e depois na tecnológica exercida como globalização. Para Zaffaroni, o discurso criminológico médico-policial de natureza biológico do século XIX permaneceu hegemônico até hoje na Europa, nos Estados Unidos e principalmente na América Latina. Historicamente, a América Latina foi (como colônia) uma espécie de instituição total: apareceu como seqüestro institucionalizado de milhões de seres humanos. Assim, a prisão nas colônias seria uma instituição de seqüestro menor, dentro de outra muito maior, um apartheid criminológico natural. Em nossa região o sistema penal adquire características genocidas de contensão, diferentes das características disciplinadoras dos países centrais. Mas, historicamente a América Latina tem sempre “adaptado” os conceitos e técnicas que os especialistas dos países hegemônicos impõem. O preço tem sido muito alto.[20]
Tudo pode ser estigmatizado como crime; há uma tendência a criminalizar a precariedade, deslocando tudo que é público para o penal e reinstitucionalizando o direito penal pós-moderno na estratégia da purificação e do sacrifício. Os projetos de “tolerância zero” são exemplos dessa política ao criminalizar os pequenos delitos associados à pobreza. Os primeiros efeitos desta política em Nova York fizeram com que em um só trimestre de 1994 subisse em 38% o número de prisões de mendigos, bêbados e limpadores de pára-brisas. A partir da constatação de que a segurança pública tem um sentimento mais amplo, os republicanos, ao invés de favorecerem intervenções urbanas contra a pobreza, promoveram um colossal arrastão punitivo contra a prostituição, a mendicância, as festas de rua, os flanelinhas. O projeto prevê um esforço especial quanto às pessoas com distúrbios emocionais para aceleração de seu encaminhamento a juízes, promotores e psiquiatras do sistema penal. O poder mercadológico desse “vento punitivo que assola a América” trouxe conseqüências funestas para os pobres de muitas cidades. Em São Paulo, algum mais afoito preparou uma Operação Tolerância Zero, prendendo a população de rua. Houve um mendigo que, ao ser preso pela terceira vez no mesmo dia, perguntou se a operação não poderia manter um arquivo de fotos para não molestá-lo.[21]
No entanto, é oportuno salientar conforme relatado por Rosa del Olmo que a primeira medida prática que se tomou na América Latina para procurar resolver o problema do delito, utilizando os ensinamentos da antropologia criminal foi a criação dos gabinetes de identificação. Foram obra das mesmas “minorias ilustradas” que vinham se ocupando de difundir o positivismo criminológico, especialmente de médicos legistas. Um deles o brasileiro Leonídio Ribeiro, diz a respeito o seguinte:
“Deve-se criar em todos os países da América uma organização idêntica à que existe no FBI… Nossa legislação estabelece a identificação obrigatória de todos os cidadãos brasileiros. Os demais países americanos estão agora sentindo as necessidades de fechar suas fronteiras a elementos que nos chegam da Europa contaminados de idéias perigosas e deletéricas (leia-se anarquismo e socialismo), segundo as recentes verificações do Comitê de Defesa do Continente. É imprescindível utilizar os modernos recursos específicos que nos oferecem a ciência médico-legal se queremos impedir que indivíduos indesejáveis continuem atravessando as fronteiras do país com a intenção de perturbar nossa tranqüilidade e ameaçar a segurança nacional… Chegou o momento de decretar a legislação adequada que permita ao Estado o controle rigoroso dos numerosos súditos de países europeus que pretendem entrar clandestinamente na intimidade da vida dos povos das três Américas para exercer mais facilmente suas perigosas atividades anti-sociais ao abrigo das leis penais.”[22]
Para a autora as palavras de Leonídio Ribeiro citadas anteriormente indicam que por trás dessa preocupação com o problema do delito existia na realidade um movimento político que deve ser analisado detidamente. Essa preocupação com a criação de gabinetes intercontinentais deve ser relacionada à situação do continente americano na época. Fomentava-se o temor ao estrangeiro, especialmente às “idéias deletérias” (leia-se anarquismo e socialismo), através da reatualização da Doutrina Monroe, o que se pode observar nas palavras pronunciadas pelo presidente Theodore Roosevelt em sua mensagem de 1904: “No Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe pode obrigar os Estados Unidos, ainda que de má vontade, nos casos flagrantes de mau procedimento ou impotência, a exercer um poder policial internacional. A Doutrina Monroe tinha como meta impedir futuras colonizações na América, declarar a incompatibilidade do sistema americano com o europeu, proclamar o princípio da não-intervenção da Europa na América. No fundo, o que estava em jogo era a hegemonia norte-americana.[23]
A autora entende que ao se criarem os serviços de identificação para todo o cidadão, os gabinetes deixariam de cumprir sua função inicial para se limitarem ao estudo e classificação dos delinqüentes reclusos nos cárceres e se tornariam os embriões dos primeiros institutos de criminologia da América Latina.[24]
De acordo com o que afirma Rosa Del Olmo o primeiro instituto de Criminologia da América Latina data de 1907, na Penitenciária Nacional de Buenos Aires, dirigido por José Ingenieros. Em 1918 seria criado o Instituto Oscar Freire, em São Paulo. Estes primeiros institutos tinham como finalidade central o estudo do indivíduo delinqüente seguindo os postulados da escola positivista italiana, com as modificações introduzidas por José Ingenieros, que enfatizava o aspecto psicopatológico do delinqüente.[25]
Para a autora a influência do Instituto de Criminologia da Penitenciária de Buenos Aires é então evidente, e muito particularmente quanto à forma de estudar a personalidade do delinqüente. A história clínica criminológica (que representa um perfeccionismo do boletim médico-psicológico criado por José Ingenieros), elaborada pelo médico Oswaldo Loudet quando diretor do Instituto de Buenos Aires, entre 1927 e 1933, foi adotada em uma série de institutos de criminologia latino-americanos desde 1930.[26]
É nestes fundamentos que Del Olmo enfatiza que no começo, acolheram-se os ensinamentos da antropologia criminal surgida na Itália, mas as características próprias de nossas sociedades dependentes e subdesenvolvidas, bem como as necessidades de nossas classes dominantes, foram deformando essa antropologia criminal, institucionalizando aquilo que fosse útil e descartando o que não correspondesse á sua racionalidade histórica. Esta situação perdurou até nossos dias. Na América Latina -salvo poucas exceções- a criminologia continua sendo considerada na atualidade uma “ciência causal explicativa que estuda o delito através da personalidade do delinqüente”.[27]
Nesse sentido para Vera Malaguti Batista é impossível compreender o quadro geral dos direitos humanos no Brasil sem precisar historicamente articulação do direito penal público a um direito penal privado, a partir do regime escravocrata, na implantação de um sistema penal genocida, cúmplice das agências do Estado imperial-burocrata no processo de homicídio, mutilação e tortura da população afro brasileira.[28]
Segundo a autora a criminalidade é o tema central dos discursos de todos os candidatos políticos na América Latina e na África. Aqui no Brasil este discurso é responsável pela volta daqueles generais, ontem torturadores e assassinos de presos políticos, hoje comandantes dos esquadrões oficiais de execução de pretos e pobres nas favelas, com aplauso do público e da mídia. Segundo a America’s Watch, o número de civis mortos pela polícia militar aumentou de 3,2 ao mês, para 20,55 durante a gestão do General Cerqueira a partir de maio de 95. Somente durante a operação limpeza efetuada durante a visita do Papa ao Rio de Janeiro, em 1997, foram mortos doze suspeitos por apenas um batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A mídia monopolizada manteve fora das manchetes esse massacre silencioso e consentido, como o fez recentemente na bárbara seqüência de execuções dos suspeitos do caso Tim Lopes. As lamentações giraram mais em torno das preocupações com a “queima de arquivo” do que com as execuções em si.[29]
Uma importante característica dos sistemas penais do capitalismo tardio destacado pela autora é a sua vinculação com a mídia. É por isso que os discursos que legitimam a crença na pena como o rito sagrado da solução de conflitos são estimulados e incorporados à massa argumentativa dos editoriais e crônicas de jornal. Esses processos sincrônicos estão todos impregnados de medo. De um medo que é insegurança globalizada, mas que se desdobra em um medo cotidiano muito concreto. Esses processos se transformam assim em discursos, em teorias criminológicas baseadas num censo comum, mas que revigoram a ode ao extermínio e pedem por políticas criminais com derramamento de sangue. Como exemplo a autora analisa esse discurso em relação a questões estéticas. No dia 04 de agosto de 2000 o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), integrado por moradores de ocupações na Baixada Fluminense e na Zona Oeste, “invadiram” um shopping, uma espécie de templo do consumo no Rio de Janeiro, o Rio Sul. Na verdade era uma invasão estética já que o objetivo era passear no shopping, e não tomá-lo. As autoridades da Segurança Pública no Rio de Janeiro souberam da iniciativa e tomaram precauções: os ônibus que estavam os sem-teto foram parados na Avenida Brasil e impedidos de prosseguir por falta de documentos. Os sem-teto seguiram em ônibus comuns e encontraram o Rio Sul guardado por 40 policiais. A partir da entrada no shopping as reações convergem para um sentimento de discriminação por um lado (“já imaginava que iam tratar a gente assim como lixo humano”) e por outro lado uma imaginação de cunho estético (“aqui não é lugar de sem-teto eles têm que fazer manifestação na zona deles. Os freqüentadores do shopping são diferentes deles e isso causa má impressão”). O Diretor do Rio Sul declarou que iria entrar com uma ação cautelar, através da Associação Brasileira de Shopping Centers, para proibir esse tipo de movimento nos centros comerciais. “O que se viu hoje apesar de ser tudo pacífico é que isso atrapalha o comércio”. Mas um dos líderes do Movimento afirmou que aquele dia de luta não era importante pela moradia, mas pela auto-estima; “a discriminação da sociedade é muito pior às vezes do que as condições em que vivemos”.[30]
Outro destaque citado pela autora em relação a mídia é o de Cecília Coimbra que ao analisar os discursos de segurança pública na conjuntura da Operação Rio no período entre 1992 e 1996 denuncia a justificação das chacinas na mídia impressa e nas declarações eugenistas de “saneamento e limpeza”.[31]
2.2 A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE DROGAS NO BRASIL
Pode-se afirmar que existe uma política global de drogas, que influencia a política brasileira de repressão a esse tipo de delito. O tráfico de drogas é uma das atividades que movimenta maior contingente de recursos financeiros no mundo e só cresce diante do número progressivo de usuários de substâncias psicoativas.
Na doutrina brasileira ganhou destaque a obra de Salo de Carvalho, “A Política Criminal de Drogas no Brasil (estudo criminológico e Dogmático da Lei 11.343/06)”. O autor relata a popularização do consumo da maconha e do LSD durante a década de sessenta vinculado aos movimentos de contestação criando as primeiras dificuldades às agencias de controle penal por ganhar o espaço publico gerando o pânico moral que deflagrará intensa produção legislativa. Neste quadro, campanhas idealizadas pelos empresários morais e por movimentos sociais repressivistas aliados aos meios de comunicação justificarão os primeiros passos para a transnacionalização, sobre o controle dos entorpecentes, sendo a Convenção Única Sobre Estupefacientes, aprovada em Nova Iorque em 1961 reflexo imediato desta realidade.[32]
Nesse momento passa a ser gestado o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, fundado em duplo discurso que estabelecerá a ideologia da diferenciação cuja característica é a distinção entre consumidor (doente) e traficante (delinqüente). Assim sobre os traficantes recairia o discurso jurídico-penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médico-psiquiátrico consolidado pela perspectiva sanitarista em voga na década de cinqüenta.[33]
No entanto, esse discurso médico-psiquiátrico ainda hoje preconizado não funciona, pois conforme informação divulgada por programa televisivo o que é disponibilizado pela Saúde Pública para os usuários de drogas são os Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Esses são públicos e estão em todos os estados brasileiros, funcionando como um posto de saúde para quem é dependente químico ou tem qualquer outra doença psiquiátrica. Lá os pacientes são avaliados e tratados, sendo que os casos mais graves podem ser encaminhados para a internação. No entanto, conforme relato da mãe de um usuário, Dona Rosalina: O jovem já esteve internado mais de dez vezes e a mãe frequenta um grupo de apoio a familiares no Centro de Atenção Psicossocial, mesmo assim ela teve que internar seu filho em uma clínica particular contraindo uma dívida a qual conseguiu negociar somente através de uma conciliação.[34]
Com base nesse fato, nesta mesma reportagem, algumas autoridades no assunto emitiram seus pareceres,conforme relato abaixo: “ Não é uma população que dá pra você falar: ‘ olha, marca para daqui a uma semana ’. Ele tem que ter porta aberta e ele tem que ter um acolhimento pelo menos naquele dia ”, diz Rosângela Elias, coordenadora da área técnica de saúde mental, álcool e drogas de SP. “Se for um paciente que tem uma dependência instalada, que não consegue ficar sem a droga, a melhor chance que ele tem é se ele for internado”, explica Arthur Guerra, psiquiatra e coordenador do grupo de álcool e drogas da USP. Na única clínica municipal de São Paulo especializada no tratamento de dependentes de droga, são 80 pacientes internados que fazem atividades físicas e têm um tratamento médico e psicológico. A maioria das pessoas lá era usuária de crack. A instituição modelo foi inaugurada no ano passado em uma parceria com um hospital privado. Os pacientes ficam lá no máximo três meses. “A internação, é importante a gente ter claro, ela é uma parte do tratamento. As pessoas às vezes vêm com a expectativa: ‘ internou, saiu ótimo, está muito bem, vamos embrulhar pra presente, está bom para sair na rua ‘. Não é isto”, alerta Pedro Katz, diretor técnico do Said.[35]
Para especialistas, o mais importante e mais difícil é convencer os usuários de crack a aceitar ajuda. Quando isso acontece, todo o sistema de saúde precisa estar preparado para receber pacientes e familiares. “O problema é grave. Estamos fazendo muita coisa, mas precisamos ainda ampliar muito essa rede pelo país todo. Cada ponto da rede, onde o usuário chegar, ele vai ter orientação adequada. Pode ser na unidade básica, no Samu, no pronto-socorro geral ou no hospital psiquiátrico ou no Caps ” , afirma Helvécio Magalhães, secretário de atenção à saúde do Ministério da Saúde.[36]
Ainda sobre a política de drogas o autor descreve: “Que a atuação do Presidente Nixon dos EUA, através da representação na ONU conduziu a opinião pública a eleger as drogas inimigas internas da nação, mas em virtude da popularização do consumo, esse inimigo foi projetado ao exterior tendo este projeto norte-americano incidido diretamente nas políticas de segurança dos países da America Latina onde a institucionalização do discurso jurídico – político redundara em instauração do modelo genocida de segurança publica, pois estará voltado a situação de guerras internas. Sobre este tema Rosa Del Olmo fala que a cômoda posição das agências centrais produziu resultados desastrosos porque, sendo exportado e imposto do centro à periferia, o discurso jurídico-político estava alheio à historicidade, às questões sociais, políticas e econômicas, bem como a relação cultural entre as drogas e os grupos sociais envolvidos, Salo concorda com a opinião de Rosa.[37]
No plano político-criminal a Lei 6.368/76 manteve o histórico discurso médico-jurídico com a diferenciação tradicional entre consumidor (dependente e/ou usuário) e traficante e com a concretização moralizadora dos estereótipos consumidor-doente e traficante-delinquente. Ocorre que com a implementação gradual do discurso jurídico-político no plano da segurança pública, a figura do traficante será agregado o papel (político) do inimigo interno, justificando as exacerbações de pena, na quantidade e na forma de execução, que ocorrerão a partir do final da década de setenta.[38]
A partir do Golpe de 1964, o Brasil passou a dispor do modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação de inimigos. Ao inimigo interno político (subversivo) é acrescido o inimigo interno político-criminal (traficante) onde categorias como geopolítica (de um lado a supremacia ocidental com seus hábitos de consumo, do outro, os criminalizáveis, produtores de petróleo e cocaína, terroristas e narco-traficantes), bipolaridade, guerra total, adicionadas a noção de inimigo interno, formaram o sistema repressivo que se origina durante o regime militar e se mantém no período pós-transição democrática.[39]
Para comprovar este sistema repressivo Vera Malaguti Batista, criminologia carioca, analisando o aumento do consumo de cocaína no Rio de Janeiro a partir dos anos setenta percebe a cisão do discurso jurídico-político-médico conforme a identidade do sujeito criminalizado: “aos jovens de classe média, que a consomem, aplica-se o estereótipo médico, e aos jovens pobres, que a comercializam o estereótipo criminal”. Salo concorda com Vera e ainda destaca que é nesta complexa rede de (re)afirmação de estereótipos e de distribuição arbitrária e seletiva de etiquetas que ocorre o incremento e a densificação, na estrutura dos aparatos da segurança pública, da lógica militarizada.[40].
Salo de Carvalho demonstra a política criminal militarizada no relato da Operação Rio em 1994 onde tropas da Marinha, Exército e das Polícias Militar e Federal ocuparam sete morros cariocas objetivando a eliminação do tráfico de drogas, episódio este apoiado pelos meios de comunicação e por inúmeras instituições mas que, no entanto, conforme confissão do General Câmara Senna foi um fracasso pois, o tráfico não foi controlado e houve inúmeras lesões aos direitos fundamentais da população (detenções ilegais, busca e apreensões sem autorização judicial).[41]
Outro fracasso da atual política criminal de drogas do Brasil no que se refere a estrutura repressiva que comprovam a inoperância dos mecanismo de criminalização é o que traz recente reportagem, que revela que por meio de pequenas tiras de papel Fernandinho Beira-Mar manda, desmanda e controla o tráfico de drogas de dentro da cadeia. Apesar de estar preso há dez anos, quase sempre em presídios de segurança máxima, como o de Mossoró (RN), para onde ele foi há pouco mais de um mês, dá ordens minuciosas para sua quadrilha. Ele controla todos os detalhes. “Estoques, qual faturamento líquido semanal de cada firma e quais as despesas de cada empresa, quem são as pessoas que estão na folha de pagamento e o porquê”, aponta um bilhete. Dá ordens claras e exige obediência. “Vou lhes fazer um resumo e quero que seja feito exatamente como eu determinar”, está escrito em outro bilhete. Ele desenvolveu uma técnica para mandar suas ordens, no maior sigilo, em retalhos de papel. Conseguia escrever três ou quatro linhas no espaço de uma. Usava apenas a ponta da carga de uma caneta esferográfica. A polícia acredita que as mensagens saiam da cadeia com os visitantes, enroladas e escondidas na costura das roupas. Os bilhetes saíam do presídio e iam para as favelas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, onde foram encontrados. A polícia logo suspeitou que os textos eram dele. A prova definitiva veio com um exame grafotécnico.[42]
Ainda sobre este fracasso foi noticiado pelo Relatório da ONU, divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, que o Brasil é recordista no consumo de drogas onde só o consumo de cocaína tem 900 mil usuários. O documento, chamado de Relatório Mundial sobre Drogas 2011, foi lançado em razão do Dia Internacional contra o Abuso e o Tráfico de Drogas, dia 26 de junho.[43]
Com esse relatório divulgado pela ONU sobre o fracasso da atual política criminal de drogas no Brasil fica evidente a necessidade urgente de uma redefinição da ideologia criminológica no Brasil.
Essa proposta é o tema da obra doutrinária de Juarez Cirino dos Santos em seu livro A Criminologia Radical. A obra traz os fundamentos e os objetivos programáticos da Criminologia Radical defendidos também por outros renomados doutrinadores.
Entre esses doutrinadores está Taylor para quem foi a crítica sistemática dos conceitos, do método e da ideologia da criminologia tradicional que possibilitou a redefinição do objeto, dos compromissos e dos objetivos da Criminologia Radical, desde a orientação para o estudo dos criminosos reais, em posições de influência e de poder nos quadros da ordem econômica e política da sociedade capitalista, até a inserção dos grandes temas da criminologia no contexto histórico das questões política gerais: quem controla a ordem social, como é distribuído o poder e a riqueza, como pode ocorrer a transformação social, etc.[44]
Juarez Cirino salienta também que, entre outras coisas, é preciso mostrar que a definição legal de crime, base do trabalho da criminologia tradicional, está ligada à ideologia de neutralidade do Direito (apresentado como instrumento de justiça social e de interesses gerais) e atua como instrumento de controle das vítimas da exploração e da opressão social -os trabalhadores integrados no mercado de trabalho e os marginalizados sociais- cujos protestos, reivindicações e revoltas são reprimidos pelas forças da ordem e, freqüentemente, canalizados para o sistema de justiça criminal. Segundo o entendimento de Schwendingers e Platt foram as deformações ideológicas da definição legal de crime, atreladas à concepção burguesa da ordem social que induziram criminólogos radicais a formular uma definição proletária de crime, tomando como base a violação dos Direitos Humanos definidos em perspectiva socialista, sintetizados nos conceitos de igualdade social e de segurança pessoal, mas incluindo outros direitos politicamente protegidos, assim como a possibilidade de examinar práticas e relações sociais criminosas excluídas da definição legal, como o imperialismo, a exploração econômica, o racismo e outras distorções do capitalismo contemporâneo.[45]
Contrário a essas deformações Taylor afirma que o compromisso primário da Criminologia Radical é com a abolição das desigualdades sociais em riqueza e poder afirmando que a solução para o problema do crime depende da eliminação da exploração econômica e da opressão política de classe. Platt corrobora com esse entendimento destacando porem, que a condição para isso é a transformação socialista.[46]
Para Juarez Cirino é essa posição política defendida por Platt é que evita a degeneração da Criminologia Radical em mera “moralização”, ou no correcionalismo repressivo da “reabilitação pessoal”, que identifica crime com patologia e, nas posições mais liberais, propõe reformas de superfície, ou mais serviços sociais, modificando alguma coisa para deixar tudo como está, ou seja, preservando o sistema de dominação e de exploração do homem pelo homem. Ainda, conforme o autor, o compromisso da Criminologia Radical compreende as tarefas complementares de produzir teoria e de criar procedimentos capazes de ajudar a classe trabalhadora e o conjunto de setores sociais subalternos e marginalizados, no projeto político de construção e de controle de uma sociedade democrática. Nesse aspecto, Young enfatiza que é a formação da Criminologia Radical, com base nas contradições de classe das relações econômicas estruturais e das relações superestruturais de poder do Estado que evita as deformações da criminologia positivista dominante, que separa a teoria criminológica da teoria política, a teoria política da teoria econômica e exclui a categoria central da luta de classes de todas as teorias sociais.[47]
3 ASPECTOS RELEVANTES DA NOVA LEI DE DROGAS E A DESCRIMINALIZAÇÃO DO SEU USO
3.1 ASPECTOS RELEVANTES DA NOVA LEI DE DROGAS
Com referência a lei 11.343 / 06, Salo ressalta:
“Não ocorreu processo de descriminalização do porte para consumo pessoal de drogas porque o Art 28 da Lei de Drogas mantém as condutas dos usuários criminalizadas, alterando apenas sanção prevista, impedindo, mesmo em caso de reincidência (Art 28, § 3º), a pena de prisão “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido as seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.[48]
Neste aspecto Luis Flavio Gomes destaca que houve descriminalização formal, porém, sem a concomitante legalização. O Art. 16 da revogada Lei 6.368/76 foi apenas descriminalizado, mas a posse da droga não foi legalizada. Para a professora da PUC/SP e para a 6ª Câmara do TJSP, operou-se na verdade a descriminalização total.[49]
Outra informação legislativa comentada pelo autor é a previsão de tratamento para o usuário prevista no Art. 28, § 7º do novo texto legal como medida judicial-administrativa não obrigatória de acordo com a qual cabe ao juiz determinar ao Poder Público que coloque a disposição do infrator referido tratamento. Verifica-se que o tratamento deve ser oferecido e não imposto ao infrator. É da essência de todo o tratamento a adesão do sujeito. Se ele não concorda, a chance de sucesso é praticamente nula. Daí ser muito questionada a chamada “Justiça Terapêutica” que tem no tratamento compulsório uma das suas linhas de atuação. De outro lado também é questionável que o Poder Judiciário crie obrigações financeiras ao Poder Executivo.[50]
A oferta pública deve ser, ademais, gratuita. Essa medida, inteiramente administrativa, faz parte da política de redução de danos que vigora na Europa e que consiste em evitar que o dependente de drogas cause danos para terceiros ou para ele mesmo. O tratamento de outro lado, pressupõe a condição de dependente. Importante recordar que nem todo o usuário é dependente de droga.[51]
Ainda com referência a previsão do Art. 28, § 7º da Lei de Drogas o autor enfatiza que a preferência deve recair sobre o tratamento ambulatorial, o qual não implica internação. do sujeito. Há como se vê, duas formas de tratamento: Internação e ambulatorial. Esta última caracteriza-se pela não internação. O sujeito comparece, ao local indicado nos dias assinalados. É comum o não cumprimento, pelo agente de todas as medidas recomendadas pelo médico ou outro profissional da saúde. Isso faz parte do dia-a-dia do tratamento do dependente. Há evoluções e recaídas. Mas nada disso influencia no âmbito da Justiça Criminal. Remarque-se que o tratamento não configura sanção alternativa ao dependente. Constitui apenas uma oferta pública de recuperação e prevenção do uso de drogas.[52]
Vilmar Pacheco e Gilberto Thums relatam o aumento da pena do traficante que na lei revogada em seu Art. 12º previa pena de reclusão de 3 a 15 anos e pagamento de 50 a 360 dias-multa e que na lei em vigor foi alterada a pena para reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa, conforme texto do artigo 33 da Lei atual e que também as majorantes do Art. 18 da Lei anterior foram redimensionadas no Art. 40 no novo texto legal alcançando hipóteses não previstas. No inciso II, foram acrescentadas as funções de poder familiar e missão de educação; no inciso III, foram ampliados os locais do tráfico, sendo acrescentadas unidades militares ou policiais, transporte público e serviços de tratamento de dependentes de drogas; no inciso IV, a disposição é integralmente nova, quando o crime de tráfico é praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva; no inciso V, foi acrescentada disposição integralmente nova referindo-se ao tráfico entre estados; o inciso VI foi modificado, passando a nele constar a expressão criança ou adolescente em substituição ao menor de 21 anos, bem como foi suprimida a expressão ‘velho’ e acrescentada a condição da pessoa que tem diminuída sua capacidade de entendimento; e o inciso VII também é disposição nova; refere-se ao agente que financiar ou custear a pratica do crime de tráfico. Para as penas de multa, foram estabelecidos novos parâmetros, permitindo fixação em valores muito elevados. Para o usuário o Art 29 determina uma fórmula e, para o traficante, o Art. 43 define outros critérios.[53]
Um outro aspecto a ser destacado ainda é a distinção doutrinária feita entre a pena como oposição e a pena como asseguramento a qual diferencia Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo que seriam dois pólos no contexto do Direito Penal.
Günther Jakobs entende que quando se fala de Direito Penal do Cidadão e de Direito Penal do Inimigo, fala-se de dois tipos ideais, que é praticamente impossível encontrarem realizadas em suas respectivas formas puras: mesmo na apreciação de um fato cotidiano que desperte pouco mais de enfado – Direito Penal do Cidadão – imiscui-se, ao menos uma leve defesa contra perigos futuros – Direito Penal do Inimigo – e até mesmo o terrorista mais apartado do cidadão é tratado, ao menos formalmente, como pessoa, quando lhe são concedidos, no processo penal, os direitos de um acusado cidadão. Logo, não se pode tratar de contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, mas de descrever dois pólos de um único mundo ou de mostrar duas tendências opostas de um único contexto do Direito Penal. Essas tendências podem muito bem se sobrepor, isto é, uma, a do tratamento do agente enquanto pessoa; e a outra, a do tratamento do agente como fonte de perigo ou como meio de intimidação de outros.[54]
O autor busca alguns esboços Jurídicos-Filosóficos para dizer que o “Direito” é o vínculo entre pessoas que, por sua vez, são titulares de direitos e deveres, enquanto a relação com um inimigo é determinada não pelo direito, mas pela coação. Contudo todo o Direito está ligado à autorização para coagir, e a coação mais pungente é a do Direito Penal. No entanto, defende que em princípio um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também um criminoso, e isso por duas razões: o delinqüente tem um Direito, de acertar-se novamente com a sociedade e, para tanto, deve conservar seu status de pessoa, de cidadão; tem também o dever de ressarcir, e deveres pressupõem personalidade, em outras palavras, o criminoso não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu fato.[55]
Hobbes reconhecia isso, este também é o entendimento de Jakobs porque de acordo com suas proposições, Hobbes é também um teórico do contrato social, mas, na realidade, é mais um filósofo das instituições. Seu contrato de submissão junto ao qual aparece, ao mesmo título, a submissão mediante violência- deve ser entendido menos como contrato no sentido real do que como metáfora de que os futuros cidadãos não perturbem o Estado em sua auto-organização. Em absoluta conformidade com isso, Hobbes, em princípio, não retira ao criminoso seu papel de cidadão: o cidadão não pode invalidar seu status por si mesmo. Contudo, o mesmo não acontece em caso de rebelião, ou seja, de alta traição: “pois a natureza desse crime está na recusa da submissão, o que significa um retorno ao estado de guerra… E aqueles que delinqüem dessa forma são punidos não como súditos, mas sim como inimigos”. Já Kant que utiliza o modelo do contrato como idéia reguladora na justificação e delimitação do poder estatal, situa o problema no limiar entre o estado natural (fictício) e o Estado estatal. Em Kant, toda a pessoa está autorizada a coagir qualquer outra pessoa a uma constituição civil para possibilitar a proteção da propriedade, procedimentos com os quais o autor concorda plenamente.[56]
É com base nesses fundamentos que o autor afirma que Hobbes e Kant conhecem um Direito Penal do Cidadão -contra pessoas que não delinqüem de modo contumaz por princípio- e um Direito Penal do Inimigo contra aqueles que se desviam por princípio; este exclui, enquanto aquele deixa intocado o status de pessoa.[57]
3.2 A PROPOSTA DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS
Sobre a descriminalização Salo afirma: “nos debates preparatório para o XI Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em Budapeste (1974), o tema da descriminalização aparece de forma inédita como pauta orientadora da discussão político criminal sendo a mudança da programação reivindicada pelos experts das ciências criminais como alternativa à crise deflagrada pela inflação legislativa.
A descodificação que caracterizou o direito penal do século XX e que, as propostas advindas desse Congresso pautaram os debates da década de 70 e foram recepcionados pelo Comitê Europeu sobre Problemas da Criminalidade no fórum de Estrasburgo (1980) e, com isso a idéia de minimizar/obstruir a incidência do sistema penal nas condutas de baixo potencial ofensivo ou de menor complexidade, bem como retirar do direito penal a missão de definição de padrões deontológicos (comportamentais) sustentados por pautas morais, foi introduzida como possibilidade de redefinição do direcionamento das agências criminais”. [58]
Para o mesmo autor:
“A severa crítica ao direito penal tradicional parecia estar consolidada no final da década de 70, contudo a redução do espaço de fala das correntes críticas, localizadas fundamentalmente na academia, induziu ao diagnóstico de que os postulados desconstrutores não seriam realizáveis e que, a forma de superação do espaço acadêmico foi a associação do pensamento de vanguarda com os operadores críticos do sistema – notadamente nas experiências italianas, francesa e espanhola nas décadas de setenta e oitenta, bem como no Brasil e em diversos países da América Latina, no final da década de oitenta e nos anos noventa, através da aproximação com o Movimento do Direito Alternativo e que o perfil decorrente do encontro entre os profissionais críticos das agências penais e a crítica acadêmica redirecionou as pautas de ação na busca de alternativas viáveis para a descentralização a descriminalização, a derivação e a informalização do controle estatal; a desproficionalização, a desmedicalização, a deslegalização e a eliminação dos estigmas e das etiquetas, fruto da profissionalização dos órgãos de controle; e a descarceirização, a desinstitucionalização e o controle comunitário como alternativa possível às instituições totais (prisões e manicômios) mas contudo, a principal alternativa ocorreria a partir de concretos programas de descriminalização (legal e judicial)”.[59]
No que diz respeito a descriminalização legislativa o autor cita:
“Exemplo mais significativo em sentido estrito é a Lei 11.106/05, que, ao modificar os delitos contra os costumes e contra o casamento aboliu os tipos penais de sedução (Art. 217, CP), rapto violento ou mediante fraude (Art. 219, CP), rapto consensual (Art. 220, CP), concurso de rapto com outro crime (Art. 222, CP) e adultério (Art. 240, C), bem como supriu a causa de aumento de pena do Art. 226, CP, que previa a majoração de quarta parte da pena em caso de o agente ser casado.” [60]
Sobre a descriminalização judicial o autor destaca o ensinamento de Ney Fayet de Souza para quem a aplicação de normas penais que foram superadas no processo histórico, com a decorrente punição de condutas que não merecem mais reprovação social passa a ser vista como injusta. Imprescindível, portanto,
“(…) permanente atualização do Direito Penal, com a descriminalização de comportamentos não mais considerados como desvalor capaz de ensejar a pena. Todavia, as mudanças sociais precedem às alterações legislativas, e a descriminalização de condutas não mais tidas como socialmente desvaliosas pode se processar através da redefinição que o juiz dará aos termos da lei, adequando a solução sentencial ao sentimento coletivo da época. Nesse momento, a sentença criminal surge como o mais notável instrumento descriminalizador, e o juiz como precursor de soluções jurídicas justas, equânimes e legais que recebem a aprovação do consenso social.”[61]
Esta permanente atualização do Direito Penal ensinada por de Ney Fayet de Souza foi aplicada pelo STF que decidiu em 15/06/2011 autorizar a realização das passeatas pela descriminalização da maconha ao julgar a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 ajuizada pela eminente Senhora Procuradora-Geral da República, em exercício, Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira. A subprocuradora, Deborah Duprat, argumentou que a proibição das chamadas marchas da maconha desrespeitam direitos dos cidadãos, como a liberdade de expressão e de reunião. O relator, ministro Celso de Mello, concordou com a Procuradoria:
“Nada se revela mais nocivo e mais perigoso do que a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão. Em seu relatório ele diz o constituinte brasileiro chegou a ser redundante, ao garantir a liberdade de expressão em múltiplos dispositivos (art. 5º, IV e IX e 220, CF), rejeitando peremptoriamente toda forma de censura.[62]
No voto que proferiu, o Ministro Celso de Mello assentou:
‘(…) a liberdade de reunião traduz meio vocacionado ao exercício do direito à livre expressão das idéias, configurando, por isso mesmo,um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar.Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos,normalmente temida pelos regimes despóticos que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder. O voto do ministro Celso de Mello foi aprovado por unanimidade por todos os ministros presentes na sessão.[63]
Ainda sobre o tema da descriminalização: “o autor fala sobre o projeto anti-proibissionista no Brasil destacando a Proposta Para Uma Política Nacional de Drogas elaborada pelo Conselho Federal de Entorpecentes em 1993 cujo pressuposto foi a constatação de que ‘o consumo de produtos capazes de alterar psiquismo humano faz parte da vida em sociedade. O álcool, cujo uso é permitido e até estimulado, geralmente é considerado como um ‘mediador das relações sociais’. A maconha, para muitos jovens, cumpre o papel de facilitar sua integração ao grupo, ou até esmo uma forma de transgressão e agressão ao meio no momento crítico de sua passagem à vida adulta. O abuso de determinados medicamentos pode também ter como origem a tentativa de minimizar as tensões geradas pela sociedade moderna.”[64]
Além disso é importante destacar que a Comissão Global sobre Políticas de Drogas, composta por 19 líderes mundiais, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, recomenda a descriminalização da maconha e outras drogas para enfraquecer o crime organizado e o tratamento dos dependentes como pacientes, e não criminosos. Em Nova York, eles disseram que medidas repressivas não resolvem o problema e que essa guerra não foi e nem pode ser vencida O relatório da Comissão Global argumenta sua solicitação utilizando exemplos e dados concretos de por que a guerra contra as drogas foi um fracasso e como outras abordagens (como a descriminalização do uso de todas as drogas em Portugal) que tiveram melhores resultados. Por exemplo, o documento cita cifras das Nações Unidas que indicam que o consumo de drogas aumentou entre 1998 e 2008.[65]
O relatório da Comissão Global argumenta sua solicitação utilizando exemplos e dados concretos de por que a guerra contra as drogas foi um fracasso e como outras abordagens (como a descriminalização do uso de todas as drogas em Portugal) que tiveram melhores resultados. Por exemplo, o documento cita cifras das Nações Unidas que indicam que o consumo de drogas aumentou entre 1998 e 2008. De acordo com o relatório da Comissão Global, as aparentes vitórias em eliminar uma fonte ou uma organização de narcotráfico são negadas quase instantaneamente pelo surgimento de outras fontes e traficantes.[66]
Os esforços repressivos dirigidos aos consumidores impedem a implementação de medidas de saúde pública para reduzir as infecções por HIV/AIDS, as mortes por overdose e outras conseqüências prejudiciais do uso de drogas. Os gastos governamentais com estratégias frustradas de redução da oferta e de prisões, substituem investimentos mais eficazes e baseados em evidências orientados para a redução da demanda e de danos.[67]
O relatório recomenda ainda colocar o foco das ações repressivas nas organizações criminosas violentas, mas fazê-lo de maneira a acabar com seu poder e seu alcance, enquanto se dá prioridade para a redução da violência e da intimidação. Os esforços para impor o cumprimento da lei não devem ter o foco na redução dos mercados de drogas em si, mas na redução de seus danos sobre os indivíduos, as comunidades e na segurança nacional.[68]
Da mesma forma que a Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), a Comissão Global se inspira na experiência bem-sucedida da Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia. No Brasil, a CBDD serve como difusora das idéias da Comissão Global, já que compartilha do mesmo ideal de encontrar uma política de drogas mais eficiente que atual.[69]
Também relevante sobre a descriminalização é o documentário exibido em todos os cinemas desde 03/06/2011 conduzido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso onde ele defende a descriminalização do uso de drogas e a regulação do uso da maconha. No filme "Quebrando o tabu" Fernando Henrique Cardoso e ex-presidentes do México, Ernesto Zedillo; da Colômbia, César Gaviria; e dos Estados Unidos, Jimmy Carter e Bill Clinton reconhecem: falharam em suas políticas de combate às drogas. Todos concluem que a guerra mundial contra as drogas, iniciada há 40 anos, é uma guerra fracassada.[70]
Bilhões de dólares são gastos no mundo inteiro, mas o consumo cresce, e cresce o poder do tráfico, espalhando a violência. As armas constantemente recolhidas dos traficantes no Rio de Janeiro são a prova de que a polícia trabalha enxugando gelo. É preciso ir além das apreensões de drogas e do combate aos traficantes. Para Fernando Gronstein Andrade, diretor do filme, um ponto central é questionar a lógica de guerra, não é defender o uso da droga. É apenas dizer: ‘vamos ver, vamos pensar se não existem jeitos mais inteligentes e mais eficientes de lidar com esse assunto.[71]
No Brasil, a maconha é a droga mais difundida. Mas é inofensiva a ponto de ser legalizada? De acordo Elisaldo Carlini, médico da Unifesp especializado em drogas que representa o Brasil nas comissões de drogas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das Nações Unidas, não há droga inofensiva. Qualquer coisa depende da dose, da sensibilidade do indivíduo. Agora, entre as drogas usadas sem finalidade médica para fins de divertimento, para fins de recreação, a maconha é bastante segura. No mesmo sentido, Carlini defende totalmente a descriminalização e não vê nem um sentido em criminalizar o uso e a pose dessas drogas, para ele é um caso de saúde publica e não caso de policia. Na lista das drogas mais perigosas publicada na revista médica “Lancet”, respeitada no mundo inteiro, a maconha aparece em 11º lugar, bem atrás do álcool e até mesmo do cigarro, que são vendidos legalmente.[72]
Regular não é o mesmo que legalizar. E foi isso que Fernando Henrique Cardoso descobriu indo para a Holanda. Lá a maconha é vendida em cafés. Mas o governo não legalizou o uso indiscriminado. Funciona assim: a regulamentação determina que você não pode consumir nas ruas, nem vender fora dos cafés; nos locais determinados, fuma-se maconha sem repressão policial. O consumo de maconha é tolerado e, mesmo assim, vem caindo. Desde 2006, a lei brasileira já trocou a prisão por penas alternativas para quem é pego com drogas e considerado usuário, não traficante. Mas que quantidade de drogas, que situação caracteriza o tráfico? Isso a lei deixa a critério do juiz.[73]
Em Portugal, o consumo de entorpecentes não dá mais cadeia desde 2001. Mas há uma penalidade: o usuário tem que fazer tratamento médico e prestar serviço social. O ministro da Saúde de Portugal explica que dez anos depois o tratamento é gratuito para dependência em todo tipo de droga – da maconha ao crack.[74]
Na Suíça e na Holanda, existem os projetos chamados de redução de danos: dependentes de drogas pesadas, como heroína, recebem do governo a droga e agulhas limpas.[75]
Para Fernando Henrique Cardoso, é terrível ver isso, mas você vê também que ali está um doente, não um criminoso, ele não prega isso para o Brasil, porque a situação é diferente, o nível de cultura, riqueza e violência é diferente. Cada país tem que buscar seu caminho, para ele isso é fundamental, Quebrar o Tabu, começar a discutir e ver o que nos fazemos com a droga”.[76]
Mas qual é a estrutura que o Brasil tem hoje para tratar seus dependentes? Ronaldo Laranjeira, psiquiatra da Unifesp relata que essas pessoas ficam perambulando pelo sistema de saúde ou perambulando, literalmente, pelas ruas, no caso dos usuários de crack. E você fica desassistindo ativamente essa população.
De acordo com o Ministério da Saúde falta para tratar dependentes químicos: 3,5 mil leitos hospitalares, 900 casas de acolhimento e 150 consultórios de rua, para chegar às cracolândias, por exemplo. Mas a previsão é atingir essa meta só em 2014. Na opinião do Ministro da Saúde o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa reorganizar sua rede e ampliá-la para acolher usuários de drogas, sejam lícitas ou ilícitas.[77]
Faz-se oportuno salientar avanço brasileiro documentado em reportagem sobre a luta do Brasil conta o crak que mostra projetos que estão ajudando os usuários dessa droga terrível a retomar a vida. Um dos modelos que inspirou algumas iniciativas brasileiras veio da justiça americana onde entre as estratégias para combater o problema estavam as prisões e a destruição das “crack-houses”, território dos usuários de drogas. Mas nada disso era suficiente. Repressão não era a saída.[78]
Conforme a reportagem um dos métodos mais eficientes de combate às drogas no mundo nasceu em uma sala do Tribunal de Drogas de Miami. Desde que esse tribunal foi criado, em 1989, o número de crimes caiu 33%. Oito em cada dez dependentes que chegam ao tribunal conseguem abandonar as drogas.[79]
O método funciona assim: o usuário é flagrado com uma pequena quantidade de entorpecentes. Vai preso, porque em Miami isso é crime. Passa uma noite na cadeia e segue para o tribunal. Se não tem nenhum histórico criminal a juíza pergunta: “Você quer participar do programa?”. Dura um ano. Exigência número 1: fazer exame de urina a cada sete dias. Número 2: ir duas vezes por semana a um psicólogo. Número 3: há um encontro de narcóticos anônimos. São usuários de drogas que se reúnem para trocar experiências. Mas mais do que isso: cumprir uma determinação da Justiça.[80]
Estes encontros ocorrem duas vezes por semana. Um ajuda o outro a controlar a dependência e ainda contam ponto perante a Justiça. Aí se entra na quarta exigência do programa do Tribunal de Drogas de Miami: a prestação de contas. Uma vez por mês todos fazem fila para se apresentar à juíza. O porto-riquenho Martin Cavallero apresenta os comprovantes de que cumpriu todos os requisitos. Diz onde está morando e trabalhando e recebe os parabéns. Se não tiver uma recaída, daqui a um mês completará o programa. “O mais importante para mim é ter o nome limpo”, diz Martin. Quem cumpre o programa não se afasta apenas das drogas. Fica sem histórico criminal e apaga esse passado de entorpecentes.[81]
Quem comanda esse tribunal, todo decorado com avisos sobre o perigo das drogas, é Deborah White-Labora. “Tudo o que existe no programa está disponível na sociedade. Mas quando uma pessoa vem aqui, ela se sente motivada e percebe que está sendo monitorada”, diz a juíza.[82]
Em depoimento a reportagem o advogado Richard Baron afirmou, a dependência quase arruinou a minha vida. Graças ao programa, consegui reconquistar tudo o que tinha: a mulher, os filhos e o trabalho. “No colégio, comecei a beber e fumar maconha. Alguém disse: ‘Experimente isso’. Era crack e cocaína. Por três anos e meio eu usei essas drogas”, conta. Hoje, Richard Baron ajuda financeiramente o Tribunal de Drogas de Miami. Paga quatro advogados, que ajudam na defesa dos dependentes. Assim, o programa acaba se tornando mais eficiente do que manter qualquer pessoa na cadeia. A cada US$ 1,00 gasto no tratamento, cerca de R% 1,70, o governo economiza mais de US$ 3 em gastos com prisões.[83]
Outro depoimento de extrema relevância é o de David Kahn, ex-promotor de Justiça que trabalhou durante seis anos no Tribunal de Drogas. Ele já esteve no Brasil várias vezes para tentar implantar o programa que hoje existe em 2,5 mil cidades no mundo. Khan visitou a Cracolândia paulista e vê uma diferença simples entre o que foi feito nos Estados Unidos e o que é feito no Brasil. “Nós não nos limitamos a tirar essas pessoas daqui. Nós damos a elas uma chance de vida saudável, longe das drogas”, compara o ex-promotor David Khan. [84]
Neste aspecto a reportagem destaca que um projeto em São Paulo troca punição por tratamento, mostra como a Justiça brasileira está mudando a maneira de lidar com o usuário de drogas. Um homem tinha uma ordem de não chegar a menos de cem metros da filha por causa da dependência. “Quando eles me pegaram, fazia mais de 30 dias que eu não escovava os dentes”, revela o homem. Ele foi parar no Fórum de Santana, em São Paulo, onde funciona um projeto chamado “Justiça Terapêutica”, que dá uma chance para quem é flagrado com drogas. Se ficar claro que a pessoa estava com entorpecentes somente para consumo, ela tem a chance de trocar a punição pelo tratamento.[85]
Mário Sérgio Sobrinho, do Fórum de Santana, afirma à reportagem: Tanto a Corte americana quanto a Justiça Terapêutica brasileira trabalham no sentido de evitar que aquele que foi preso e teve problemas com drogas receba atenção na área terapêutica para evitar a repetição do uso da droga e novos crimes”.
Conforme relatado na reportagem, desde que o programa paulista começou, há dez anos, quase mil pessoas já participaram. O homem que não podia chegar perto da filha é um deles. Para ficar com a ficha limpa, ele é obrigado a frequentar o programa “Narcóticos Anônimos” e precisa comprovar a frequência. A cada sessão, recebe um carimbo na ficha. Desde que começou a participar das reuniões, largou as drogas e conseguiu ter a família de volta. “Estou vivo, ando de cabeça erguida, consigo olhar as pessoas nos olhos. Consigo ficar com a minha filha, dar um bom exemplo para ela”, diz o homem. “Se a Justiça Terapêutica não tivesse dado essa chance, hoje você estaria onde?”, indaga o repórter. “Preso ou morto”, responde o homem.[86]
A reportagem também enfatiza que a experiência da Justiça pernambucana é ainda mais radical. O foco são os bandidos que cometem outros crimes por causa do uso de tóxicos. Troca a prisão pelo compromisso de ficar longe das drogas. “Ele deve ser tratado. Tratar significa para a Justiça deixar de usar droga. Não é reduzir, mas deixar plenamente. Se ele consegue isso durante dois anos, ao final do período ele está reabilitado do uso da droga e, ao mesmo tempo, o processo dele é extinto. Ele não deve mais nada à Justiça”, explica José Marques Costa Filho, psiquiatra responsável pelo Centro de Justiça Terapêutica de Pernambuco.[87]
Segundo declarou à reportagem o Ministro da Saúde Alexandre Padilha, no fim de 2011 o governo federal lançou um plano nacional para enfrentar o problema. Liberou R$ 2 bilhões para que os municípios invistam em diferentes tipos de tratamentos. O ministro da Saúde admite que o Sistema Único de Saúde (SUS) não está pronto para lidar com o crack. “Nós temos que ter tratamento para esse caso como uma epidemia, e toda epidemia que desafia o serviço de saúde, exige que ele se reorganize”.[88]
As informações obtidas nas reportagens foram também percebidas pelo pesquisador na sua experiência de 23 anos atuando junto a Brigada Militar do RS.
Oportuno também é o posicionamento do Tribunal de Justiça/ RS em relação à descriminalização da conduta de posse de entorpecente para uso próprio, após o advento da Lei n.º 11.343/06:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PORTE DE DROGAS. ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76. DECISÃO QUE DECLAROU EXTINTA A PUNIBILIDADE DO RECORRIDO, POR ATIPICIDADE DO FATO. AFASTAMENTO. O que exsurge dos autos é que o recorrido foi abordado por policial militar quando transitava em via pública, de bicicleta, ocasião em que o agente da lei encontrou consigo aproximadamente seis gramas da substância entorpecente denominada cannabis sativa, vulgarmente conhecida como ‘maconha’. Neste contexto, o réu foi denunciado como incurso nas reprimendas do art. 16 da Lei nº 6.368/76. Ora, conquanto a nova lei antitóxicos (número 11.343/2006) preconize tratamento mais benéfico aos usuários de drogas, devendo retroagir, esta não legalizou o uso pessoal, tendo apenas operado uma descriminalização formal, visto que deixou de prever pena de prisão para tal delito. Contudo, em seu art. 28 estão previstas as penas alternativas que deverão ser aplicadas no caso de incidência de algum dos tipos objetivos elencados no mencionado dispositivo legal. Desta maneira, é impositiva a determinação do prosseguimento regular do feito, pois do contrário, a legislação vigente não estaria sendo aplicada. Recurso ministerial provido.” (Recurso em Sentido Estrito, Primeira Câmara Criminal, Nº 70021382387, Comarca de Canoas, MINISTÉRIO PÚBLICO, RECORRENTE, MAURÍCIO HÉLIO SILVA DE MEDEIROS, RECORRIDO).
Oportuno é destacar do Acórdão da referida Ementa trecho do Des. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira (RELATOR):
No relatório: “O juiz monocrático Julgador(a) de 1º Grau: CHARLES ABADIE VON AMELN declarou extinta a punibilidade do réu, por entender não ser ilícita a conduta do mero usuário de substância entorpecente. Em síntese, o magistrado alegou que a Lei nº 11.343/2006 alterou substancialmente o tratamento dispensado ao consumidor de drogas, consagrando, finalmente, a exclusão da matéria do âmbito da esfera criminal, tendo em vista que de acordo com o novel diploma legal, embora mantida a penalização não existe mais a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade, mas apenas sanções de naturezas diversas, como a advertência, a prestação de serviços à comunidade, o comparecimento a programas educativos, a admoestação verbal ou a multa (fls. 64/65).
No voto: “O réu foi denunciado como incurso nas reprimendas do art. 16 da Lei nº 6.368/76. Ora, conquanto a nova lei antitóxicos (número 11.343/2006) preconize tratamento mais benéfico aos usuários de drogas, devendo retroagir, esta não legalizou o uso pessoal, tendo apenas operado uma descriminalização formal, visto que deixou de prever pena de prisão para tal delito”.[89]
Outro avanço recente e mais abrangente e em termos de descriminalização na América Latina é a notícia* que divulga que o governo uruguaio enviou projeto ao congresso para estatizar a produção, a distribuição e venda da maconha. Lá a maconha é uma das substâncias ilegais mais consumidas, 8,3% da população admitem que fumam maconha todo dia. Isso já não é crime no país. Mas para conseguir a droga, só no mercado negro. O comércio é ilegal, violento e movimenta entre US$ 30 e US$ 40 milhões por ano, e é exatamente com isso que o governo quer acabar. O próprio Presidente José Mujica explicou que o projeto "não é para promover o consumo" e sim para "limitá-lo aos que já estão afetados, para que não caiam nas mãos do narcotráfico”. Ele crê que com políticas diferentes para as duas drogas haverá mais resultado e invoca o exemplo da Holanda, que nos anos 70 liberou o comércio da maconha para atacar o da heroína.[90]
Sobre o tema da descriminalização é imprescindível a análise sociológica feita no livro de Alba Zaluar, Drogas e Cidadania: Repressão ou Redução de Riscos. Nele a autora afirma:
“O Brasil encontra-se décadas atrasado nesta polêmica. O conhecimento divulgado pela mídia ainda é extremamente estigmatizador e preconceituoso em relação aos usuários de drogas, o que só vem a piorar a situação deles, especialmente dos que se tornaram obcecados e acabam por causa do cenário econômico, policial, social e médico extremamente hostil, envolvidos pela malha do crime organizado.”[91]
A autora fundamenta sua afirmação com base em duas pesquisas feita entre 1986 e 1991 num bairro popular do Rio com o objetivo de conhecer as idéias sobre o crime, as instituições estatais encarregadas de combatê-lo e a sociedade nesta pesquisa foram entrevistados mais ou menos setenta jovens que tinham participação em atividades criminosas. A segunda pesquisa foi feita entre 1988 e 1991 e se baseou no material escrito no verso do questionário da maior pesquisa de opinião feita no Brasil “O Rio contra o crime” Que mobilizou cerca de duzentas mil pessoas. Nestas pesquisas a população sugeria reformas institucionais de varias ordens e mudanças nas políticas governamentais que diziam respeito a educação, ao emprego, ao salário. Predominava nestes textos uma visão desencantada do mal que assinalava os aspectos sócias e institucionais da questão.[92]
Para Alba tudo leva a crer que os pobres são as principais vitimas desta onda de criminalidade violenta que assola o Rio, seja pela ação da policia ou dos próprios delinqüentes, que não tem recursos políticos e econômicos que lhe garantam acesso a justiça e a segurança. Segundo a autora a vinculação, aceita como uma verdade banal, entre pobreza e criminalidade é um dos pressuposto mais arraigados em toda a população brasileira, mas não esta permitindo atitudes mais eficazes diante do novo fenômeno da criminalidade do Brasil urbano vinculado a uma atividade empresarial organizada do crime.[93]
A autora usa como base de suas afirmações duas historia de vida:- a de Pedrinho Queimado e de Ourinho – que na pesquisa realizada contam as suas historias de como foram arrastados para a criminalidade onde o comercio das drogas florescem e que, fez Pedrinho, pelas dividas de consumo de drogas começarem a roubar cada vez mais, até da família porque tinha que pagar as dividas das drogas e das armas emprestadas que a Polícia lhe tomava. Terminou sendo preso e descobriu que a prisão estava cheio de gente inocente, consumidor apanhado em boca de fumo porque o policial não encontrava o traficante, pois tanto na Secretaria Estadual de Policia Civil como no 18º Batalhão de Policia Militar no Rio, não é feita distinção entre o traficante e usuário. Além disso, Pedrinho teve que entregar bens e permitir o assedio e sedução do policial sofridos por sua mãe e sua irmã. Já Ourinho viciou-se ao se envolver-se com traficantes porque estava revoltado com sua mãe. Ourinho também assaltou para pagar dividas e matou para mostrar coragem aos colegas e, da mesma forma que Pedrinho foi extorquido por policiais. Para não morrer nos tiroteios fez um pacto com o Diabo. [94]
Para a autora: “A historia de Pedrinho é um exemplo de trajetória induzida pelo arranjo dos poderes institucionais e do crime organização no contesto da criminalização do uso das drogas. Ilustra porque o esforço deve ser posto em deslindar o aspecto “moderno” e capitalista da organização criminosa associada a policiais corruptos que, dando tiro pela culatra na criminalização do consumidor e no conluio com os traficantes ricos, abre a caixa das maldades humanas sem conter em absoluto o consumo e comercio de drogas. A história de Ourinho fala-nos muito mais da ambivalência da natureza humana,cujo aspectos negativos adquirem um forma tão extrema que forças humanas e supra-humanas são chamadas para explicá-las. Mas nem tudo esta perdido, Pedrinho tornou-se advogado e conversa com os adolescentes do bairro afirmando que ‘o crime é ilusão. ”[95]
4 CONCLUSÃO
Como embasamento na defesa deste trabalho sobre a Descriminalização do uso de Drogas no Brasil foi utilizada a doutrina de diversos e renomados doutrinadores defensores dessa tese juntando-se a isso reportagens que abordam o mesmo tema.
Para poder chegar-se a alguma conclusão foi preciso inicialmente um estudo histórico que detectou que na América Latina a criminologia teve a sua origem vinculada a burguesia desde o século XIX que, na dependência do modo de produção capitalista levado a expansão internacional e no intuito de resolver seus problemas sentiam a necessidade de encontrar na Europa e nos Estados Unidos a solução de seus problemas, especialmente por sua atitude de subordinação, aceitando e assumindo seus ditames sem, no entanto, fazer uma verificação experimental para adequá-los aos interesses locais.
Essa é a conclusão que se extrai, a qual está fundamentada na difusão na América Latina da resposta científica aos problemas sociais que surgiu na Europa no I Congresso de Antropologia em 1855 como a ciência do estudo do delinqüente que enfatizava diferenças físicas e mentais entre delinqüentes e não-delinquentes o que correspondia, na América Latina, ao racismo difundido no final do século para justificar suas limitações, afirmando que os delinqüentes pertenciam a uma linhagem inferior que constituía a parte patológica da sociedade, o que era utilizado com o objetivo de explicar os problemas sociais da época porque, para a burguesia, que era a classe social dominante, a única raça capaz de obter o progresso era a raça branca.
No entanto foi necessário reformular essa concepção, já que o problema não era só racial conforme os resultados práticos obtidos que demostraram que essa não era a solução para resolver o problema do delito latino-americano, pois não obteve êxito.
Isso é uma prova evidente e conclusiva pois deixa transparecer nitidamente que já nesse período o Brasil se insere num processo de transnacionalização ou globalização de um controle social que está alheio a historicidade, as questões sociais, políticas e econômicas, bem como a relação cultural entre os grupos sociais envolvidos.
Com relação à Política Criminal de Drogas no Brasil, um dos marcos de destaque que delimitam os primeiros passos para a transnacionalização do controle dos entorpecentes, agora já na década de sessenta, está vinculado aos movimentos de contestação contrário ao consumo de drogas foi a intensa produção legislativa idealizada por movimentos moralistas e repressivistas aliados aos meios de comunicação porque o reflexo imediado dessa realidade foi a Convenção Única sobre estupefacientes aprovada em Nova Iorque em 1961 fazendo com que, passasse a ser gestado o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas ainda hoje preconizado mas que não funciona por causa da carência do que é disponobilizado pela Saúde Pública.
Foi o que ocorreu no Brasil que a Partir do Golpe militar de 1964 que passou a dispor do modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação de inimigos que se mantém no período pós-transiçao democrática, do que se pode concluir como uma afronta aos direitos humanos previstos na Constituição Brasileira pois, nesse sistema repressivo percebe-se a cisão do discurso jurídico-político-médico conforme a identidade do sujeito criminalizado, aos jovens de classe média aplica-se o estereótipo médico e aos jovens pobres o estereótipo criminal onde nessa rede de afirmação de estereótipos e de distribuição arbitrária de etiquetas é que ocorre a densificação na estrutura dos aparatos de segurança pública da lógica militarizada que provocam lesões aos direitos fundamentais da população como o ocorrido confessado pelo próprio comandante da Operação Rio em 1994.
Na sequência desses atos, dando prosseguimento a esse processo foi decisiva a atuação do Presidente Nixon dos EUA na ONU que conduziu a opinião pública a eleger as drogas inimigo interno da sua nação e projetando-o ao exterior, fato este que incidiu diretamente nas políticas de segurança dos países da América Latina onde a institucionalização do discurso jurídico-político, como conseqüência, redundará na instauração do modelo genocida de segurança pública.
No plano político-criminal, dando seguimento aos ditames norte americanos no Brasil, a Lei 6.368/1976 manteve o histórico discurso médico-jurídico com a diferenciação entre consumidor e traficante.
Com referência a Lei 11.343/2006 que revogou a Lei 6.368/1976, apesar da discordância de alguns doutrinadores, uns afirmando que não houve descriminalização do seu uso, mas sim alteração apenas na sanção prevista e outros afirmando que houve sim uma descriminalização formal, porém, sem a concomitante legalização nesta linha já existindo inclusive jurisprudência e com base na revolução legislativa que é possível concluir que o legislador já esta se dando conta de que a criminalização do uso de drogas não tem mais reprovação social. É preciso ainda avançar muito, pois a legislação atual não define quem é usuário ou traficante, deixa uma lacuna ficando isso a critério da autoridade policial e na fase processual ao juiz.
Em síntese este estudo demonstrou indubitavelmente que o que falta no Brasil para tratar os usuários de droga é estrutura, eles ficam perambulando pelo sistema de saúde ou pelas ruas porque impedem a implementação de medidas de saúde publica para reduzir as infecções por HIV/AIDS, as mortes por overdose e demais conseqüências prejudiciais aos usuários de droga.
Segundo entendimento pessoal os bilhões gastos com políticas governamentais de repressão mostram-se estratégias frustradas, ou seja, uma guerra fracassada, pois o consumo cresce, e cresce o poder do trafico espalhando a violência. Esses bilhões gastos na repressão é o que falta para tratar usuários de droga pois segundo declaração do ministério da saúde faltam 3,5 mil leitos hospitalares, 900 casas de acolhimento e 150 consultórios de rua para chegar as cracolândias por exemplo ao invés da repressão policial.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Metodista IPA Metodista
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