Súmula: O § 3º do art. 17 da Lei 8.429/92 adotou o litisconsórcio ativo necessário da pessoa jurídica interessada na ação de improbidade. O art. 11 da Lei 9.366/96 transformou-o em facultativo. Este dispositivo fere a lei complementar, que dispõe sobre a técnica legislativa. Lei nacional, federal, estadual e municipal. Distinção doutrinária. Lei federal não pode interferir na lei nacional. O art. 11 da Lei 9.366/96 padece de inconstitucionalidade formal.
redação original do § 3º do art. 17 da Lei 8.429/92 determinava que a pessoa jurídica interessada devia integrar a lide, na qualidade de litisconsorte ativa, verbis:
§ 3º. No caso da ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, a pessoa jurídica interessada integrará a lide na qualidade de litisconsorte, devendo suprir as omissões e falhas da inicial e apresentar ou indicar os meios de prova de que disponha.
Esta redação foi alterada pelo art. 11, da Lei 9.366, de 16/12/1996, que se reportou ao art. 6º. da Ação Popular, com o evidente intuito de substituir o o litisconsórcio ativo obrigatório pela mera faculdade de a pessoa jurídica interessada acolitar o Autor natural, bem ao gosto do Ministério Público. Eis seu novo enunciado:
Art. 11. O § 3o do art. 17 da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, passa a vigorar com seguinte redação:
“§ 3o No caso de a ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, aplica-se, no que couber, o disposto no § 3o do art. 6o da Lei no 4.717, de 29 de junho de 1965.”
Não deve transitar incólume a patente injuridicidade da referida modificação do texto legal.
Observe-se a ementa da Lei 9.366/96: “Dispõe sobre os quadros de cargos do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS da Advocacia-Geral da União, do Ministério da Fazenda, e dá outras providências”.
Desnecessária especial argúcia visual para se constatar a discrepância material da nova redação dada ao § 3º. da Lei 8.429/92 com a temática desenvolvida pela Lei 9.366/92. Aquela versa sobre o rito da ação de improbidade e esta cuida de cargos e salários da Administração Federal em frontal hostilidade ao art. 7º, I, II e IV, da Lei Complementar 95/1998, prevista no art. 59, parágrafo único, da Constituição da República, a saber:
Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II – a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;
IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.
É evidente que se trata de emenda aditiva, contrabandeada através dos desvãos do processo legislativo, ou como inserção de última hora na garupa da ilegítima e autoritária instituição da medida provisória.
Conquanto os mencionados preceitos legais não ofendam diretamente a Constituição, aspecto impeditivo da argüição de inconstitucionalidade, todavia o desrespeito à normas legais vinculadas diretamente ao texto constitucional deve produzir o efeito de, ao menos, colidir com o postulado magno da segurança jurídica.
Há, porém, outra impropriedade no art. 11 da Lei 9.366/92, esta sim configuradora de inconstitucionalidade formal.
Com efeito, a Lei 8.429/92 concretiza ordem de legislar contida no § 4º, do art. 37, da Constituição da República. Reveste, assim, natureza de lei nacional, que não pode ser alterada por lei federal, como a seguir se demonstra.
Vista como ato legislativo primário, no quadro da federação plasmada pela Carta de 1988, é obrigatório classificar a lei como nacional, federal, estadual e municipal. Este critério não encerra hierarquia, que não há, mas repousa na competência normativa. A lei nacional, destarte, incide no país, e sua fonte é o art. 22 – para normas gerais é o art. 14; a lei federal incide no âmbito da União e se fundamenta no art. 61, § 1º, I e II, a, b, c, e, f; a lei estadual incide sobre o território do Estado-membro e deriva do art. 25; e a lei municipal incide no quadrante do Município e tem assento no art. 29.
A pacífica doutrina abona esta classificação.
Celso Ribeiro Bastos: “Por força da discriminação constitucional de competências, a pessoa jurídica União ora legisla de molde a não colher no âmbito pessoal de suas normas as demais pessoas jurídicas de direito público em que se expressa a Federação brasileira (os Estados-Membros e os Municípios). Exemplo de tal espécie normativa seria o Estatuto dos Servidores Públicos da União, voltado à disciplinação jurídica tão-só daquela entidade com os seus servidores, sem qualquer eficácia relativamente à igual competência que a Constituição consagra a favor dos referidos Estados-Membros e Municípios. Outras vezes, contudo, a União aparentemente perde essa condição de agente emanador de regras componentes de um ordenamento geral (no sentido da territorialidade), mas parcial na acepção de que uma parte apenas da Federação á colhida pelas suas emanações legislativas. Isto se dá quando ela dita normas que obrigam a todo e qualquer sujeito descrito ou implicado pela as hipótese de incidência, ainda que tais destinatários se alcem à dignidade jurídica e à estatura política de um Estado-Membro ou de um Município, Tal se dá com a lei civil, por exemplo. Não importa quem, dentro do âmbito especial de validade da ordem jurídica brasileira, pratique um ato regido por tal disciplina jurídica; apreendido estará pela força cogente da lei da União, que, nessa hipótese, parece alçar-se à condição de editora de uma lei particular, de eficácia nacional, id est, infensa à realidade federativa do Estado brasileiro. Esta lei, assim editada no desempenho de um papel contrastante com o que seria o normal atuar da União, estaria a justificar o epíteto de nacional”. (“Lei Complementar – Teoria e Comentários”, Saraiva, 1985, p. 29).
Michel Temer: “A União age em nome próprio como em nome da Federação. Ora se manifesta por si, como pessoa jurídica de capacidade política, ora em nome do Estado Federal. Isto ocorre no plano interno como no internacional. No plano interno, revela a vontade da Federação quando edita leis nacionais e demonstra a sua vontade (da União quando edita leis federais). Geraldo Ataliba precisou essa distinção ao salientar que as leis nacionais são as que alcançam todos os habitantes do território nacional (leis processuais, civis, penais, trabalhistas, etc.) e as federais são aquelas que incidem apenas sobre os jurisdicionados da União (são aquelas que dizem respeito aos servidores da União e ao seu aparelho administrativo). Para fazer essa distinção o mestre paulista apoiou-se no princípio federativo”. (“Elementos de Direito Constitucional”, Edit. RT, 1990, 7ª ed., p. 77).
Adilson de Abreu Dallari: “No Estado Federal brasileiro, em função da estrutura que lhe foi data pela sua Constituição, podem conviver quatro espécies de leis (no sentido estrito de norma infraconstitucional criadora, modificadora, ou extintiva de direitos e obrigações) de igual força coercitiva, quais sejam as leis nacionais, as leis federais, as leis estaduais e as leis municipais. Destas quatro espécies, apenas as leis estaduais dispensam qualquer comentário. As duas primeiras espécies referidas, leis nacionais e leis federais, apresentam especial dificuldade para se distinguir uma da outra, pois não apresentam características diferenciadoras externas e são produzidas pelas mesmas fontes, sendo, no entanto, intrinsecamente diferentes. Geraldo Ataliba, em trabalho no qual distingue claramente as quatro espécies referidas espanca qualquer dúvida que porventura possa surgir no tocante às espécies ora em exame ao definir com precisão uma e outra. “A lei federal vincula todo o aparelho administrativo da União e todas as pessoas que a ela estejam subordinadas ou relacionadas, em grau de sujeição, na qualidade de seus administrados ou jurisdicionados. A lei nacional, categoria jurídico-positiva diversa, é o produto legislativo do Estado Nacional, todo, global. Vige no território do Estado brasileiro, vinculando todos os sujeitos à sua soberania, abstração feita de qualidade outras que possam revestir”. (“Regime constitucional dos Servidores Públicos”, Edit.RT, 1990, 2ª ed., p. 22)
Geraldo Ataliba: “Basta estar no território brasileiro, que já é obrigado a obedecer a lei nacional, lei civil, lei comercial, lei penal, norma geral, lei essa que é completamente diferente da simples lei federal. Só é obrigado a obedecer à lei federal o administrado da União, enquanto administrado da União. Só é obrigado a obedecer a lei estadual o administrado de um Estado, do Estado que fez aquela lei, e enquanto na qualidade jurídica de seu administrado. Só é obrigado a obedecer a lei do município o administrado daquele município”. (“Alcance das Disposições do Código Tributário Nacional e o Conceito de Norma Geral de Direito Tributário”, Revista de Direito Público, Edit. RT, 32/248).
Sendo assim, o art. 11 da Lei 9.366/92 – Dispõe sobre os quadros de cargos do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS da Advocacia-Geral da União, do Ministério da Fazenda, e dá outras providências, evidentemente estabelece regras de interesse restrito e exclusivo da administração federal. É que ela, ao contrário da Lei 8.429/92, não ostenta o perfil jurídico de lei nacional por falta de expressa previsão da Constituição da República.
Diante desta irretocável classificação das leis, à luz do quadro federativo em vigor, o art. 11 da Lei 9.366/92 padece de inconstitucionalidade formal e, como proclama o STF:
“Atos inconstitucionais, são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.
A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito. (…)”.
(ADIN nº. 652-MA – Rel. Min. Celso de Mello – RTJ 146/461)
Força é concluir-se que as ações civis públicas, instauradas após a vigência da Lei 9.366/92, nas quais a pessoa jurídica pública deixou de integrar a lide como litisconsorte necessária, são nulas de pleno direito, sem prejuízo da renovação dos atos a partir do termo em que a formalidade processual devia ser cumprida.
O autor é membro do Instituto dos Advogados do Paraná.
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