Resumo: O presente estudo, intitulado: Lei Maria Da Penha E Feminicídio – Mecanismos De Proteção E Reflexões, objetiva estudar os sistemas de proteção à mulher trazidos pela Lei 11.340/07 e pela Lei 13.104/2015, em especial, no tocante aos debates trazidos sobre até onde se expandirá tais proteções e os debates que surgiram ao coloca-las sobre o crivo da Constituição Federal. De modo algum é a proposta negar tais institutos ou a importância dos mesmos, ocorre que algumas mudanças legislativas geram repercussões culturais que clamam por uma análise sóbria. Até que ponto a proteção especializada poderá caminhar com a isonomia? Estaria o Direito Penal adequado para suportar políticas de ação afirmativa? Quais foram os argumentos utilizados contra a constitucionalidade dessas leis e o que podemos aprender sobre o ordenamento jurídico do raciocínio que decidiu sua constitucionalidade? O presente trabalho pretende precisamente estudar não apenas a natureza de tais institutos mas também o que eles podem dizer sobre a maneira de se pensar as proteções especiais no Direito Brasileiro.
Palavras chave: Lei Maria da Penha, Feminicídio, Constitucionalidade.
Abstract: This essay entitled “Lei Maria da Penha e Feminicídio – Mecanismos de Proteção e Reflexões”, aims to study the woman protection systems brought by Law 11,340 / 07 and Law 13,104 / 2015, in particular with regard the debates about how far will expand these protections and the debates that arose to put them on the screen of the Constitution. In no way is the proposal to deny such institutes or their importance, is that some legislative changes generate cultural repercussions that call for a sober analysis. How far the specialized protection may walk with equality? Is the criminal law adequate to support affirmative action policies? What were the arguments used against the constitutionality of these laws and what we can learn about the legal system of the way of thinking that decided its constitutionality? This study was specifically designed to study not only the nature of such institutes but also what they can say about the way of thinking of the special protections in the Brazilian law.
Keywords: Maria da Penha Law, Femicide, Constitutionality.
Sumário: 1 Introdução. 2 A proteção da mulher na ordem constitucional. 2.1 Base histórico-legal. 2.3 Base histórica – fática. 3 A Lei Maria da Penha. 3.1 Esferas de proteção – O conceito de violência doméstica ou familiar. 3.2 Da assistência e das medidas protetivas. 3.3 A proteção do homem pela Lei Maria da Penha 3.4 Organização judiciaria: 3.5 Lei Maria da Penha – discussões constitucionais. 4 Feminicídio – em busca de uma proteção maior 4.1 A tipificação legal. 4.2 Mulher como sujeito passivo: esfera de proteção versus analogia in mala parten 4.3 Causas de aumento de pena 4.4 Feminicídio como crime hediondo 4.5 A natureza da qualificadora – subjetiva ou objetiva? 5 A função simbólica da lei. 6. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO.
Ao falar sobre a lei do feminicídio surge a necessidade de procurar seus pressupostos históricos e jurídicos, a saber, A Lei Maria da Penha e outros mecanismos de proteção especiais.
O debate a respeito de proteções especiais demanda cautela: se por uma lado há situação específica que demanda proteção singular, por outro há princípios, tais quais a isonomia que requer que todos sejam tratados de igual maneira, some-se isso ao aspecto do direito penal que por sua natureza é recrudescido a novas tipificações, e como se não bastasse a quantidade de princípios sensíveis a serem respeitados há o fator social que gera comoção por parte de movimentos progressistas e preocupação por parte da ala conservadora.
Eis que a natureza deste ensaio surge para uma análise sóbria: visa explicar quais são e com quais objetivos existem na Lei Maria da Penha e o que se propõe realmente a nova lei do feminicídio.
No segundo capítulo há a explicação do surgimento da Lei 11.340/06, suas bases históricas e fáticas. No terceiro há seus institutos, seus mecanismos de proteção, sua abrangência, os casos em que pode albergar homens e seus sistemas processuais com a criação dos juizados especiais de proteção à mulher assim como as críticas a sua constitucionalidade e as respostas às mesmas.
No quarto capítulo há a explicação sobre a nova lei, a saber 13.104/15, a análise do seu tipo penal, quando se aplica, sua relação á Lei Maria da Penha, as observações pertinentes à sua técnica, seus dilemas constitucionais. Por fim, no quinto capítulo há a análise de uma crítica especial, seria a lei do feminicídio o exemplo mor do direito penal simbólico?
2 A PROTEÇÃO DA MULHER NA ORDEM CONSTITUCIONAL.
Só é possível traçar uma rota com um ponto de chegada e um ponto de partida.
O objetivo deste capítulo é analisar mecanismos legais de proteção anteriores ao feminicídio – com o foco no âmbito cível e penal – desenhando assim o cenário atual de proteção, seus fundamentos e seus alvos.
Antes de adentrar no estudo do feminicídio é necessário pormenorizar a atual proteção dada pelo ordenamento jurídico, a saber, pela Lei Maria da Penha (Lei número 11.340/2006). A referida lei trata da proteção da mulher no âmbito doméstico e familiar e estabelece elementos processuais eficazes para impedir e fazer cessar agressões contra mulheres – tem por fim o mesmo objetivo da Lei 13.104/2015 com a ressalva que esta última alberga somente e especialmente a proteção à vida.
Além disto, o conceito de violência doméstica tratado na lei do feminicídio refere-se ao elaborado pela Lei Maria da Penha. Portanto, para o pleno entendimento da Lei 13.104/2015 é necessário o estudo de conceitos criados na Lei Maria da Penha.
2.1 Base Histórico-Legal.
No início do século XX a antiga legislação brasileira, ao traduzir a idiossincrasia da época relegava à mulher à uma condição jurídica mais precária que a do homem. Podemos tomar como exemplo o código Civil de 1916 que considerava a mulher casada relativamente incapaz. Como consequência jurídica os atos praticados por esta sem autorização do marido eram nulos. O patrimônio da mulher era administrado pelo seu consorte sendo este considerado, “chefe da sociedade conjugal”.[1]
Ainda segundo o antigo código a mulher deveria está autorizada para trabalhar fora de casa, devendo seu esposo de autorizar o trabalho desta além do domicílio.
Mudanças começaram a ocorrer com Decreto n° 21.076, de 24 de fevereiro de 1932 que autorizava o voto feminino.
Então veio a Segunda Guerra Mundial, e o pós-guerra onde o direito clamava por mecanismos de proteção que evitassem uma terceira calamidade. Surgiram assim diversos tratados de direitos humanos que auxiliaram a luta feminista por uma sociedade mais isonômica.
Neste período, inicia-se e se fortalece o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que se fundamenta na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de protestar se um Estado não cumprir suas obrigações.[2] A consequência da criação desse novel ramo do Direito foi o surgimento de inúmeros documentos, em âmbito internacional, com o objetivo de proteger a dignidade da pessoa humana[3], o que refletiu na legislação nacional dos Estados, responsáveis internacionalmente na hipótese de negação dos direitos reconhecidos aos indivíduos, independentemente da nacionalidade das vítimas dessas violações.[4]
O principal documento internacional de proteção aos direitos da mulher hoje existente é a Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1979. Tal Convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro através de sua aprovação pelo Decreto Legislativo n. º 93, de 14 de novembro de 1983, e promulgação pelo Decreto n. º 89.406, de 1º de fevereiro de 1984. Os principais objetivos da referida convecção são compelir os Estados a suprimirem as formas de discriminação de gênero e ainda assegurar a igualdade de gênero.
Seguindo tal linha de pensamento, a Constituição brasileira de 1988, que se baseia na dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso III), intenta suprimir todas as formas de preconceito ou discriminação (artigo 3°, inciso IV). Também como plano internacional a Carta Política estabelece que a República Federativa do Brasil se rege pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, também assegura a igualdade de gênero como direito fundamental do ser humano (artigo 5°, caput e inciso I).
A lei Maria da Penha, porém não surgiu apenas em virtude da luta feminista. Até o início da década de 80 a legislação brasileira tratava as formas de violência, fossem elas patrimoniais ou físicas, apenas através de um sistema comum de normas gerais disciplinadas pelo Código Civil e Penal. A partir de 1990 ocorreu um movimento legislativo de especialização da proteção.
Em 1990 surge a Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, que além de regular matérias referentes ao Direito de Família quanto à adoção, determinar bases de tratamento e obrigação de políticas dirigentes de proteção aos menores de 18 anos, estabelece mecanismos de amparo à menores em situação de risco e medidas socioeducativas e protetivas quando tais cometem ato infracional referente à crimes.
No mesmo ano surge a Lei 8072/90, a chamada Lei dos Crimes Hediondos que estipula tratamento processual diferenciado e mais rígido para apenados que estejam cumprindo pena pelos crimes indicados neste diploma.
Ainda em 1990 surge o Código de Defesa do consumidor – Lei 8078/90 – que constitui medidas rígidas de proteção à segurança e à saúde no usufruto de bens e serviços, direitos especiais ao consumidor para contrabalançar a relação consumidor-fornecedor, traz dispositivos que tipificam infrações penais contra as relações de consumo em seus Art. 61 ao 80. Também o mesmo objeto foi tratado pela lei 8137/90 que trata de crimes contra a ordem tributária e contra as relações de consumo.
Em 1995 surgem os Juizados Especiais Criminais – criados pela Lei 9099/95 estes tratam de crimes de menor potencial ofensivo – aqueles que cuja pena máxima não ultrapassariam um ano (o que mais adiante foi aumentado para dois anos), onde o autor do fato conta com diversos benefícios processuais tais quais a possibilidade de composição civil e transação penal extintivas de punibilidade além da Suspensão Condicional do Processo.
Seguindo tal movimento de “especialização do combate à violência” surge a Lei 9455/97 que define o crime de tortura entre outras providências; a lei 9503/97 – o Código de Trânsito que também indica formas de violência nas relações de trânsito, a lei 9605/98 que trata de crimes ambientais e a lei 10741/2003 – O Estatuto do Idoso – que trata, dentre outras coisas, de mecanismos de proteção ao idoso.
Por fim, surge a Lei Maria da Penha – Lei 11340/06 – fruto de tal especialização legislativa. Ela visa coibir e prevenir a violência doméstica, criar juizados especiais com competência cível e criminal para processar tais casos além de disponibilizar medidas de assistência e proteção contra mulheres em situação de violência. Tais intentos estão dispostos em seu Art. 1º.
2.3 Base histórica – fática.
O Instituto Data Popular, em conjunto com o Instituto Avon afirma que 55% dos homens admitem que já praticaram violência contra a parceira e 66% das mulheres assumiram que já sofreram controle e violência do parceiro.
Ainda na mesma pesquisa, ao serem inquiridas sobre o término do relacionamento, 51% das entrevistadas afirmaram que já sofreram ameaças, foram seguidas pelo antigo companheiro, ou o ex-parceiro costumava enviar mensagens ou ainda espalhar boatos sobre a entrevistada. Quase metade das mesmas afirmaram que tiveram que tomar alguma atitude para cortar contato com o ex-parceiro, incluindo cessar de ir a lugares aonde iam com frequência, ou mudar o número do telefone, ou parar de usar redes sociais. Destas, apenas 2% afirmaram terem ido em uma delegacia e registrado boletim de ocorrência.[5]
A mesma pesquisa trata de outras formas de violência, como feita por meio da internet onde os usuários confessaram que espalharam arquivos de mulheres nuas sem o consentimento das mesmas.
Este é o cenário brasileiro atual no qual ocorreu o emblemático caso que nomeou a lei. Em 1983, o esposo de Maria da Penha Maia, o professor universitário Marco Antônio Herredia, tentou assassiná-la duas vezes. Primeiro ele atirou nela deixando-a paraplégica. Na segunda vez, tentou eletrocutá-la. No momento ela tinha 38 anos e três filhas, a mais velha com seis anos e a mais nova com dois.
O Inquérito Policial começou em junho do mesmo ano, mas a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro de 1984. Oito anos depois, Herredia foi condenado a oito anos de prisão, mas recorreu e foi solto em dois dias.
Maria da Penha lutou e o caso chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acatou, pela primeira vez, a denúncia de um crime de violência doméstica. Herredia foi preso em 28 de outubro de 2002 e cumpriu dois anos de prisão. Hoje, está em liberdade.[6]
Em 2001, em decisão inédita, a Comissão Interamericana condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando ao Estado, dentre outras medidas, “prosseguir e intensificar o processo de reforma, a fim de romper com a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil”[7].
A lei então surge como resposta legislativa a este tipo de violência, que por ser tão comum e intensa acabou por ser tratada especialmente, tal qual ação especifica é necessária para remediar ponto gravemente prejudicado.
3 A LEI MARIA DA PENHA
Neste capítulo será posta em estudo a Lei 11.340/2006, seus institutos criados, a abrangência de suas esferas de proteção e tópicos de suas discussões constitucionais
3.1 Esferas de proteção – o conceito de violência doméstica ou familiar.
O primeiro questionamento insurge-se quanto a abrangência ou até onde se expande os limites da proteção jurídica: não são todas as mulheres que são protegidas pela lei, mas aquelas que estão em uma vulnerabilidade situacional: a violência combatida é a violência de caráter doméstico ou familiar: (Lei nº 11.340/2006, Artigo 1º):
“[…] esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar […].”[8]
Mas qual é a acepção do termo violência e o que a caracterizaria como doméstica ou familiar?
A abrangência do termo violência é delimitada pelo o art. 5ª da Lei que assim reza:
“Artigo 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – Em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”[9]
Digno de nota é que, embora seja necessário que a vítima seja uma mulher (com exceções que serão vistas a posteriori) para ser acobertada pelo manto protetivo da Lei Maria da Penha o agressor não necessariamente precisa ser um homem. Com efeito, nem a lei e nem a jurisprudência dominante excluem a hipótese de que o agressor possa ser outra mulher.
Vide jurisprudência:
“APELAÇÃO CRIMINAL – LEI Nº 11.340/06 – REQUERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA – EXTINÇÃO DO FEITO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – NÃO CABIMENTO – RELAÇÃO HOMOAFETIVA ENTRE DUAS MULHERES – POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA – RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. – Por força de exigência legal, o sujeito passivo, para fins de incidência da proteção e assistência previstas na Lei Maria da Penha, deve ser mulher. Todavia, no que tange ao agressor, isto é, ao sujeito ativo, a Lei nº 11.340/06, no parágrafo único de seu art. 5º, não repetiu o mencionado requisito, permitindo, por conseguinte, sua aplicabilidade também em hipótese de relações homoafetivas entre mulheres.”[10]
Da leitura do texto legal depreende-se que o sentido de violência apresentado não se limita a violência física. Com efeito, a Lei Maria da Penha protege a mulher não apenas em sua integridade física como também em sua integridade psicológica, moral, sexual e até patrimonial. Eis o alcance da expressão “violência”.
A Lei nº 11.340 aponta como formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre outras:
A violência física, que versa sobre qualquer forma de agressão quanto a integridade ou saúde anatômica da mulher: chutar, empurrar, puxar o cabelo, esbofetear, socar, queimar, cortar, entre outros;
A agressão psicológica, devidamente explicada no inciso II do Art. 7º da Lei Maria da Penha, como:
“[…] qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”;[11]
A violência sexual, também limitada pelo o inciso III do referido Art. 7º, que explica:
“[…] qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;”[12]
A violência patrimonial, explicada pelo o inciso IV do citado Art. 7º, que assim elucida:
“[…] qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;”[13]
A violência moral, que se refere a atos de calúnia, difamação ou injúria.[14]
Sobre a violência patrimonial há uma celeuma doutrinária em relação a esta e a aplicação do instituto da escusa absolutória. O Código Penal eu seus art. 181 e 182 afirma que o cônjuge, ascendente ou descendente da vítima são isentos de pena em relação a crimes patrimoniais cometidos contra a mesma, se o autor do fato for irmão ou cônjuge separado, ou ainda tio ou sobrinho com quem o autor coabite o crime se processara apenas mediante representação.
Maria Berenice Dias é contra a aplicação de tal instituto, segundo a mesma a sua aplicabilidade é inconcebível com o sistema de proteção proporcionado pela Lei Maria da Penha.[15]
Tal posicionamento não é corroborado por Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto. A alegação de tais autores se embasa na necessidade de declaração expressa no diploma legal a fim de afastar o instituto da escusa absolutória.[16] Na mesma linha de raciocínio encontra-se Wilson Lavorenti,[17] Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e Paulo Henrique Aranda Fuller.11 Para tais doutrinadores afastar a escusa absolutória – tal qual ocorreu de maneira expressa com o Estatuto do Idoso sem o aval da lei seria verdadeira analogia em mala partem, vedada no Direito Penal.[18]
Quanto ao alcance da expressão “doméstica” esta não se reduz a seu significado literal – da casa, ou do lar. Pela lei depreende-se que a violência combatida alcança a união de três conjuntos – a doméstica propriamente dita – que é aquela praticada entre os residentes, ou esporadicamente agregados de um mesmo lar; nesta acepção é exigida a convivência, mas não laços de consanguinidade.
EM relação a palavra familiar esta alberga as relações conjugais, de parentesco em linha reta e colateral incluindo a adoção. Neste caso não é necessária a partilha do mesmo lar. O inciso III surge como regra geral por albergar a relação íntima de afeto: qualquer relacionamento fundado em sentimentos íntimos, portanto, amplo o suficiente para albergar o namoro.
Depreende-se disto que a violência doméstica não depende de coabitação. Além disso a jurisprudência tem se posicionado no sentido de que a lei poderá ser aplicada mesmo quando já findo o relacionamento entre as partes, como no caso de ex maridos e de ex namorados, desde que a agressão se dê por conta deste relacionamento.
Vide jurisprudência abaixo:
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. RELAÇAO DE NAMORO. DECISAO DA 3ª SEÇAO DO STJ. AFETO E CONVIVÊNCIA INDEPENDENTE DE COABITAÇAO. CARACTERIZAÇAO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006. APLICAÇAO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL .1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei 11.340/2006, quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas por homem em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação. 2. O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica. 3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles casos concretos, a agressão não decorria do namoro.4. A Lei Maria da Penha é um exemplo de implementação para a tutela do gênero feminino, devendo ser aplicada aos casos em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete -MG"[19]
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER (LEI 11.340/06). VIAS DE FATO. JUIZADO ESPECIAL E VARA CRIMINAL. PREVISAO EXPRESSA DE AFASTAMENTO DALEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS (LEI 9.099/95). ARTS. 33 E 41 DA LEI 11.340/06. PARECER DO MPF PELA COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE. CONFLITO CONHECIDO, PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA VARA CRIMINAL DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE ITAJUBÁ/MG, O SUSCITANTE .1. A conduta atribuída ao companheiro da vítima amolda-se, em tese, ao disposto no art. 7º., inciso I da Lei 11.340/06, que visa a coibir a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher. 2. Ao cuidar da competência, o art. 41 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) estabelece que, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais). O art. 33 da citada Lei, por sua vez, dispõe que enquanto não estiverem estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as Varas Criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes de violência doméstica. 3. Afastou-se, assim, em razão da necessidade de uma resposta mais eficaz e eficiente para os delitos dessa natureza, a conceituação de crimes de menor potencial ofensivo, punindo-se mais severamente aquele que agride a mulher no âmbito doméstico ou familiar.4. A definição ou a conceituação de crimes de menor potencial ofensivo é da competência do legislador ordinário, que, por isso, pode excluir alguns tipos penais que em tese se amoldariam ao procedimento da Lei 9.099/95, em razão do quantum da pena imposta, como é o caso de alguns delitos que se enquadram na Lei 11.340/06, por entender que a real ofensividade e o bem jurídico tutelado reclamam punição mais severa.5. Parecer do MPF pelo conhecimento e declaração da competência do Juízo suscitante.6. Conflito conhecido, para declarar a competência do Juízo de Direito da Vara Criminal da Infância e Juventude de Itajubá/MG, o suscitante" [20]
3.2 Da assistência e das medidas protetivas.
O Título III da lei estabelece mecanismos de proteção e salvaguarda para mulheres em situação de violência doméstica. O primeiro capítulo trata de elencar os atores e propor ações que visem minimizar tais casos por meio de ações públicas.
Segundo o caput do Art. 8º os personagens da prevenção serão a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, não olvidando o auxilio de ações não governamentais.
Os incisos do artigo referem-se não só a medidas estatais que visem coibir a longo prazo a violência contra a mulher, como a integração entre Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública além do direito ao atendimento policial especializado – referindo-se as Delegacias da Mulher como também ações voltadas ao setor privado como respeito às mulheres nos meios de comunicação, evitando assim estereótipos de gênero, e destaque á currículos humanistas nas escolas.
Em relação ás politicas publicas a Lei Maria da Penha tem caráter dirigente: estabelece uma tríplice assistência: social, à saúde (pelo Sistema Único de Saúde) e a segurança (garantido pela Polícia Civil).
Também fica estabelecido que mulheres em situação de violência doméstica terão acesso prioritário à remoção quando servidoras públicas: sejam elas servidoras da administração direta ou indireta a circunstância de violência doméstica se sobrepõe aos critérios clássicos de antiguidade e merecimento.
Servidoras municipais poderão ser removidas pelo juiz comum, porém tal medida será prática apenas em municípios extensos para que a mudança do local de trabalho em um mesmo município seja empecilho para o agressor.
Para não deixar a trabalhadora celetista desamparada, e com a finalidade de proporcionar vantagem isonômica frente à remoção de servidoras públicas, Art. 9º, §2º, II estabelece a manutenção do vínculo trabalhista frente ao afastamento da empregada pela situação da violência doméstica. Prevalece o entendimento de que tal afastamento – que segundo a lei tem a duração máxima de 6 meses – não é remunerado e há de ser decidido pela Justiça do Trabalho: se tal caso fosse decidido pela justiça comum violar-se-ia o Art. 114 da Constituição Federal que estabelece as competências da Justiça do Trabalho.
O art. 22 estabelece medidas protetivas de urgência endereçadas ao agressor quais sejam: suspensão da posse ou restrição do porte de armas, afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; proibição de determinadas condutas como aproximar-se da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, frequentar determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida dentre outras.
O art. 23, por sua vez, endereça medidas de proteção endereçadas a mulher: como encaminhá-la a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento, determinar a recondução dos mesmos ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor, determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos e ainda determinar a separação de corpos. Em continuação o próximo artigo estabelece medidas que visam restaurar os efeitos de violência patrimonial. As medidas são:
“Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo”.[21]
As medidas de urgência deverão preencher os pressupostos tradicionais das cautelares do (antigo) Código de Processo Civil (CPC), quais sejam, o perigo da demora e a fumaça do bom direito, se necessário o magistrado poderá determinar audiência de justificação.
Não havendo o ajuizamento da ação principal em 30 dias a doutrina divide-se:
Adeptos de uma primeira corrente afirmam que, em se tratando de medidas cautelares deve obedecer às regras dos art. 796 e seguintes do (velho) Código de Processo Civil – o que levaria à caducidade da cautelar.
A doutrina moderna, com amparo no STJ, em diverso entendimento, afirma que a medida protetiva continua produzindo efeitos independentemente do ajuizamento da ação principal bastando a presença do binômio perigo da demora e fumaça do bom direito.
Há ainda decisão controversa do TJ/RS que afirma que descabe a manutenção da medida protetiva se extinta a punibilidade do agressor, com o devido respeito à decisão, esta não se encontra com a devida sincronia técnica tendo em vista que, o que engatilha as medidas de proteção é a mera situação de violência doméstica sendo ela advinda de contravenção, crime ou até mesmo fato atípico (ofensa psicológica por conta do adultério, por exemplo).
“Extinto o processo criminal, restam prejudicadas as medidas protetivas anteriormente deferidas. Descabe a manutenção de medidas protetivas se já foi extinta a punibilidade do indiciado, eis que a própria vítima renunciou ao direito de representação, na audiência conciliatória.”[22]
O descumprimento de medidas protetivas poderá acarretar prisão preventiva. Há debates doutrinários a respeito da constitucionalidade de tal prisão. A questão gira em torno do caráter extrapenal das medidas protetivas mencionadas, o raciocínio é de que, tendo em vista que não se tratam essencialmente de providencias de caráter penal, o que tornaria tais cárceres prisões civis travestidas, ferindo assim a Constituição e o pacto de San Jose.
Outra corrente acredita na constitucionalidade mas exige um parâmetro especifico: segundo esta a prisão só é admitida caso haja pratica de nova infração penal.
A terceira, com respaldo do STJ reconhece a constitucionalidade da prisão sendo esta sempre atrelada a existência de um crime – qual seja a desobediência à ordem judicial que instaurou a medida.
Outra celeuma diz respeito ao momento em que a prisão pode ser decretada. Antes de 2006 a prisão preventiva era disposta apenas no Código de Processo Penal e a autorizava a qualquer hora, a Lei Maria da Penha ao abordar o tema em diploma especifico apenas repetiu o dispositivo, ou seja, a permitia tanto no inquérito policial quanto na ação penal.
Em 2011, porém o dispositivo do Código de Processo Penal (CPP) foi alterado em seu Art. 311. O dispositivo revogado versava que em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício. A nova letra, porém, afirma que caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal.
Uma primeira corrente, com fundamento no princípio da especialidade, defende que que o juiz ainda pode decretar a preventiva de oficio no inquérito policial.
Em pensamento diverso, outros doutrinadores acreditam que a alteração ocorreu para evitar a imparcialidade do juiz. O art. 20 é mera repetição do revogado art. 311 do CPP, não sendo norma especial; então ocorreu revogação tácita da parte do dispositivo que afirmava que o juiz poderia decretar a prisão de oficio na fase do inquérito policial.
3.3 A proteção do homem pela Lei Maria da Penha
Em primeira análise da Lei Maria da Penha pode-se chegar a equivocada conclusão de que ela apenas reconhece e protege mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Primeiro: a lei reconhece que o homem pode ser vítima. Como exemplo, no crime de lesão corporal, o §9º do art. 129 do Código Penal em redação dada pela Lei Maria da Penha não faz distinção entre os sexos. O dispositivo visa aumentar a sanção daqueles que cometem o crime em questão acobertados pelas relações familiares. As mulheres ganharão apenas um manto protetor a mais que em alguns casos poderá ser estendido a homens.
Tais casos – que permitem a aplicação de medidas protetivas para o homem – estão elucidados art. 313, III do Código de Processo Penal: poderão ser aplicadas medidas protetivas de urgência em relação a vítimas de violência contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência. Observe que o artigo não faz distinção de sexo em relação a criança, adolescente, idoso ou enfermo.
3.4 Organização Judiciaria:
A criação de uma justiça especializada faz parte do arsenal para combater a violência doméstica. Institui a Lei 11340/06 em seu art. 14 a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
“Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária”.[23]
Tais Juizados são órgãos da justiça comum e têm competência cumulativa Cível e Criminal e ocorrerão tanto processos de Conhecimento Quanto de execução.
No que tange a "competência cível" não se pode imaginar que a ação principal será manejada perante o Juizado. A competência do Juizado, em matéria cível, se restringe as medidas de urgência. A ação principal, deve ser ajuizada perante a Vara da Família ou a Vara Cível, conforme regras de organização judiciária.
Nas Comarcas em que não exista o Juizado da Violência e Doméstica a Familiar contra a Mulher, as Varas Criminais acumularão a competência cível ( em relação as medidas de urgência) e criminal. É o que reza o artigo 33 da referida lei.
“Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput”.16
Há de se ressaltar a separação entre o Juizado Especial Criminal, instituído pela lei 9099/95 e o Juizado da Violência Domestica e Familiar contra a mulher. O primeiro foi criado, instituído em rito próprio, e especializa-se em tratar crimes de menor potencial ofensivo com o objetivo de evitar a prisão do infrator. De fato, as medidas processuais que o autor do fato é agraciado nos juizados especiais criminais são incompatíveis com o sistema de proteção à mulher instituído pela Lei Maria da Penha. No art. 41 há vedação expressa do uso de tais institutos “Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.” 17
A conclusão de tal ordem é de que: não existe Termo Circunstanciado no rito dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher e sim Inquérito Policial; não se admite conciliação extintiva da punibilidade, Transação Penal, Suspensão Condicional do Processo e finalmente – no caso de Lesão Coporal Leve – dispensa Representação da Vítima.
3.5 Lei Maria Da Penha – discussões constitucionais.
A Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) não foi a primeira a levantar discussões constitucionais à respeito do princípio da isonomia. Os debates a respeito de sua constitucionalidade produziram frutos que podem ser usados para entender como a proteção feminina evoluirá na ordem jurídica. Longe de ser um ataque as instituições de apoio, o estudo de tais discussões é de grande valia para que os vindouros institutos se adequem da melhor forma possível, sem nenhum vício que venha a derrubá-los ou tirar-lhes o prestígio.
A primeira questão constitucional enfrentada pela Lei Maria da Penha dizia respeito ao seu conteúdo geral. A sua constitucionalidade negativa baseava-se no Art. 226 § 5º da CF que afirma que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. Também era fundamentada no §8º do mesmo artigo, este último traz o imperativo de tutela no qual o Estado deve coibir a violência no âmbito das relações da família.
Maria Berenice Dias denomina o princípio da dignidade da pessoa humana como um princípio maior do qual se surgem outros princípios com relação direta ao Direito De Família e reconhecendo o tratamento isonômico às variadas concepções sociais de família existentes na atualidade e às várias formas de filiação dentro das mesmas. É a isonomia aplicada nas relações familiares.
Ocorre que se há agressão vinda de irmão contra irmã a Lei Maria da Penha seria aplicada, porém, se o inverso ocorre esta não seria. Segundo tal pensamento a Lei Maria da Penha tornava-se inconstitucional por proteger apenas um polo da relação.
Tal questionamento foi resolvido pelo STF que decidiu na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 19 pela constitucionalidade positiva da Lei Maria da Penha afirmando que trata-se de política de ação afirmativa no âmbito legal – uma proteção especial do Estado que visa coibir situação desigual preexistente – e como tal é possível no sistema de proteção especial com destinatário certo – porém não no geral.
Tal posicionamento da Corte Constitucional é de especial interesse por que define as justificativas da proteção especial.
Como sobrescrito, embora a Lei Maria da Penha não seja aplicada integralmente quando a vítima for do sexo masculino seus mecanismos protetivos podem sim ser aplicados a homens em situação de vulnerabilidade (menores, idosos enfermos e portadores de necessidades especiais). Nada obstante, a constitucionalidade foi decidida pelo reconhecimento de que se trata de ação afirmativa, e como tal, deve ocorrer apenas no sistema de proteção especial.
Do lado avesso ao senso comum, a LMP trata de mecanismos de proteção, embora agrave pena de delitos já tipificados sua aplicação se concentra no campo processual – não é norma penal incriminadora por que não cria novo tipo penal (e por tal motivo não deve ser usada para capitular denúncia). Isto posto, a utilização do mesmo argumento para o feminicídio não terá o mesmo encaixe.
Primeiro porque o feminicídio constitui verdadeira inovação penal pura, o Direito Penal, por ser considerado o último ramo do direito a ser usado para o controle social segue uma linha restrita de tipificar o mínimo de condutas possível – resguardando para si a proteção apenas dos valores mais comezinhos – o que o torna incompatível com institutos de política de ação afirmativa.
Outro ponto é que tais políticas, como apontadas no raciocínio do STF, não podem ser tratadas no sistema de proteção geral que é o Código Penal, devendo restringir-se à legislação especial de caráter mais específico.
Pontos específicos da Lei Maria da Penha foram discutidos, entre eles a possibilidade de prisão preventiva que surge da combinação do Art. 20 da Lei 11.340/06 com o Art. 313, III do CPP – pelo descumprimento das medidas protetivas.
A questão que surge é que, se a prisão preventiva é acessória às medidas protetivas e estas são de caráter extra penal, então não se trata de prisão civil proibida expressamente pela Constituição?
A primeira linha de raciocínio afirma que sim e por tal motivo é inconstitucional. A prisão Civil tem suas hipóteses limitadas pela Constituição Federal, em seu art. 5º LXVII e pelo Pacto de San Jose Costa Rica. Ao prever hipótese de prisão civil não penal a Lei Maria da Penha incorreria em inconstitucionalidade. Não seria possível a prisão preventiva ser usada para assegurar medida civil. [24]
A segunda linha parte do primado de que tal prisão só seria admitida casos haja a prática de infração penal no ato do descumprimento da medida protetiva. Ou seja, não seria qualquer descumprimento que ensejaria a prisão devendo o agressor praticar fato típico que ensejaria o cárcere[25]
A terceira e majoritária corrente reconhece a constitucionalidade da prisão, refutando-a como civil, pelo pensamento de que o descumprimento da medida de proteção sempre estará atrelado à prática de um crime, qual seja, a desobediência à ordem judicial.
“PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. PERICULOSIDADE DO AGENTE. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS. 1. A teor do art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva poderá ser decretada quando presentes o fumus comissi delicti, consubstanciado na prova da materialidade e na existência de indícios de autoria, bem como o periculum libertatis, fundado no risco que o agente, em liberdade, possa criar à ordem pública/econômica, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal. 2. A reiteração de condutas delituosas e o descumprimento das medidas protetivas denotam, de forma concreta, uma propensão do paciente em cometer crimes, razão pela qual a manutenção de sua prisão se mostra necessária para garantia da ordem pública e em estreita consonância com os arts. 312 e 313, III, do Código de Processo Penal. 3. As condições pessoais do acusado, tais como primariedade, bons antecedentes, residência fixa e ocupação lícita, por si sós, não são suficientes para afastar a necessidade da custódia cautelar, caso presentes os requisitos que a autorizam, como na hipótese. 4. Recurso ordinário desprovido”.[26]
4 FEMINICÍDIO – EM BUSCA DE UMA PROTEÇÃO MAIOR
As razões que levam ao surgimento de uma lei são vastas. Leis surgem para albergar situações antes não imaginadas pelo ordenamento jurídico, para sincronizar o tratamento de determinado assunto com o pensamento vigente, para administrar situações específicas etc.
Mesmo com tal variedade de pressupostos que justifiquem nova legislação a Lei nº 13.104/2015 intitulada como Lei do Feminicídio logra êxito em ser ainda mais original em suas bases, vejamos.
Lourdes Bandeira aponta o Relatório Final da Comissão Parlamentar mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher (CPMI) do Congresso Nacional.
“O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex parceiro; como subjugação de intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher; pela mutilação ou desfiguração do seu corpo como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou tratamento cruel ou degradante.”[27]
Ao longo do tempo o Direito Penal foi defendido como ramo subsidiário e mais sensível do ordenamento jurídico, primeiro pelo imperativo de usar outros ramos do direito antes do criminal, que são primeiramente preparados para solucionar lides e desavenças sociais, sem maiores traumas e evitando-se sempre a sanção penal. E segundo por que nele apenas haveria normas gerais e abstratas. A tipificação dada pelo estado deveria ser tímida, e quando o fosse seria de maneira abrangente apenas o suficiente para manter a sociabilidade.
“O Direito Penal tem por função apenas preservar as condições essenciais a uma pacífica convivência dos indivíduos cidadãos, só nesta medida, logrando, pois legitimidade a intervenção jurídico penal.”[28]
Porém, como apontado no início desse estudou houve um movimento de especialização da violência. Condutas antes atípicas passaram a ser tipificadas ou classificadas em searas especiais. Violência contra a criança e adolescente, contra o idoso, contra as relações de consumo, contra a mulher.
A Lei do Feminicídio, distanciando-se ainda mais da generalização das condutas, não tipifica nova conduta, esta já esta descrita no Código Penal, qual seja, matar alguém. Ela antes disso especializa uma conduta já tipificada.
Mas a razão de tal especialização é por ventura diferente – enquanto as formas de violência anteriores descritas surgiram como forma de prestar apoio especializado a situações classificadas como singulares a Lei do Feminicídio, além disso, tem uma carga reformada: presta-se a mudar a condutas cuja a sociedade é leniente. Nas palavras de Lourdes Bandeira:
“O feminicídio representa a última etapa de um continuum de violência que leva à morte. Precedido por outros eventos, tais como abusos físicos e psicológicos, que tentam submeter as mulheres a uma lógica de dominação masculina e a um padrão cultural que subordina a mulher e que foi apreendido ao longo de gerações, trata-se portanto de parte de um sistema de dominação patriarcal misógino.”[29]
Como depreende-se da escrita da socióloga, a especialidade decorre de uma tentativa de mudar a cultura, afirmada, segundo as palavras da mesma como parte de um sistema de dominação patriarcal e misógino.
Decerto a coerção de condutas antissociais é uma das funções do direito penal. O homicídio é crime para inibir assassinatos e punir aqueles que, mesmo diante da lei, o praticam. O caso do crime de feminicídio é uma tentativa de, não só coibir assassinatos, mas de tentar mudar uma cultura que é leniente com os mesmos. Configura-se um novo uso do Direito Penal.
Outro ponto diverso da linha natural do direito penal é o uso de que defensores da tipificação do feminicídio como fonte de dados. Neste ponto Lourdes Bandeira afirma que a dimensão desse crime é maior do que os números atuais indicam. A tipificação preencheria tal lacuna de informações e indicadores sobre o problema e poderia contribuir para a construção de políticas de enfrentamento.[30]
É o direito penal integrando-se à estatística para promoção de políticas públicas. Embora não se trate do motivo que engatilhou a proposta ou de que o Direito Penal passe a ser um mero assistente de bases de dados e que futuras leis venham tipificar condutas puramente para recenseá-las nota-se uma associação entre o direito e a elaboração de dados para uso público.
De fato os setores do Estado devem agir como apenas um em prol da comunidade mas isso não significa que tal uso passe alheio a considerações sobre a finalidade do direito penal, de seus princípios e de seu modus operandi. O uso da instancia última do Estado, conjuntamente com o aumento de pena de determinada conduta podem não ser justificativas válidas para coleta de dados, especialmente quando há outras alternativas, inclusive jurídicas para alcançar tais informações.
Entretanto é de importância inegável a percepção de que leis podem ultrapassar a esfera jurídica e servir como fontes de informação. Se tal uso pelo Direito Penal levanta dúvidas em outros ramos poderá ser uma alternativa eficaz. É uma associação que merece ser estudada.
4.1 A tipificação legal.
O delito de feminicídio trata-se de uma nova modalidade de homicídio qualificado inscrita no inciso VI, do artigo 121, parágrafo 2º do Código Penal. Trata-se também da inserção de uma nova figura incriminadora no rol dos crimes hediondos tendo em vista que o crime de homicídio quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio e o homicídio qualificado.
Eis o dispositivo na íntegra:
“Feminicídio
VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)
VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição: (Incluído pela Lei nº 13.142, de 2015)
Pena – reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)
I – violência doméstica e familiar; (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.” (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015) [31]
4.2 Mulher como sujeito passivo: esfera de proteção versus analogia in mala parten
Como anteriormente discorrido, a Lei Maria da Penha tem como objetivo proteger mulheres em situações de vulnerabilidade, a punição do infrator não é o seu objetivo último, é apenas um instrumento de alcance.
Como função de anteparo, a jurisprudência e a doutrina tem ampliado suas esferas. A própria lei constitui casos em que mesmo homens podem ser albergados por ela. A aplicação da Lei Maria da Penha para transexual masculino foi reconhecida na decisão oriunda da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis, juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães (proc. N. 201103873908, TJGO).
“[..]31.Acompanhando o raciocínio apresentado, frisa-se que embora o Estado não reconheça a união homoafetiva como entidade familiar, os Tribunais, em especial o do Rio Grande do Sul, já estão admitindo a união entre pessoas do mesmo sexo.
32.É de conhecimento dos operadores do Direito que, diante da falta de norma regulamentadora, para aplicação em um caso concreto, pode o magistrado decidir com base, por exemplo, nos princípios gerais do Direito (artigo 4º do Decreto-Lei nº 4.657/42 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
É exatamente forte nos princípios, em especial, o da dignidade humana, da liberdade e da igualdade que os magistrados vêm fundamentando suas decisões e, portanto, reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo.
33.Como já foram mencionados anteriormente, os incisos do artigo 5º da Lei Federal nº 11.340/06 enumeram o campo de abrangência da norma em comento, quais sejam: âmbito doméstico, âmbito familiar ou relação íntima de afeto.
34.É vital que se leve em consideração que, quando a lei fala de "qualquer relação íntima de afeto", ela está se referindo tanto a casais heterossexuais, quanto a casais homossexuais.
35.Nesse sentido, partindo da premissa de que o que não é proibido é permitido, do reconhecimento da união homoafetiva pelos Tribunais e do conhecimento de que, no ordenamento jurídico, o que prevalece são os princípios constitucionais, entende-se que seria inconstitucional não proteger as lésbicas, os travestis e os transexuais contra agressões praticadas pelos seus companheiros ou companheiras.”[32]
A lei do feminicídio entretanto é lei penal, ela é regida pelos princípios do direito penal tais quais a taxatividade e proibição de analogia in malam partem. Em caso de omissão do legislador quanto à determinada conduta, aplica-se a analogia, sendo que a analogia in malam partem é aquela onde adota-se lei prejudicial ao réu, reguladora de caso semelhante.
Trata-se de medida com aplicação impossível no Direito Penal moderno, pois este é defensor do Princípio da Reserva Legal, e ademais, lei que restringe direitos não admite analogia.
Logo, mesmo que se trate de leis que têm por fim último o bem estar de mulheres e o fim da violência doméstica elas obedecem critérios distintos de aplicação.
A vítima do feminicídio deve portanto ser necessariamente uma mulher. É intolerável que o sujeito passivo seja um homem, mesmo em decorrência de violência doméstica, mesmo com orientação sexual distinta.
Neste sentido é que o derrubado argumento sobre a inconstitucionalidade da LMP por albergar apenas mulheres pode ser novamente levantado em relação ao crime de feminicídio.
O referido argumento foi combatido na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 que decidiu pela constitucionalidade da Lei Maria da Penha por afirmar tratar-se de política de ação afirmativa no âmbito legal.[33]
Ações afirmativas têm natureza retributiva, sua função é proporcionar atenção especial do Estado em relação a minimizar desigualdades potencialmente concentradas em minorias. O seu uso na seara penal constitui finalidade distinta da qual foi proposta e merece cautela em sua aplicação,
A motivação é a característica definitiva do crime de feminicídio. Para que possa ser enquadrado o crime precisa advir “por razões da condição do sexo feminino”. Art 121, §2º-A do Código Penal enseja explicar o que caracterizaria tal justificativa.
O primeiro inciso do parágrafo – violência domestica e familiar – traz de volta os conceitos trabalhados na lei Maria da Penha. Como o homicídio ou tentativa são formas indubitáveis de violência o enquadramento se faz em alusão ao termo doméstica. Como conclusão única o homicídio será caracterizado como feminicídio quando se dá no mesmo leque de vulnerabilidade trabalhados na lei Maria da Penha.
O acréscimo do segundo inciso porém levanta dúvidas quanto aos seus limites e a sua taxatividade. Segundo Luís Flávio Gomes e Alice Bianchini há menosprezo quando o agente pratica o crime por nutrir pouca ou nenhuma estima ou apreço pela vítima, configurando, dentre outros, desdém, desprezo, desapreciação, desvalorização. [34]
Eis que a subsunção ao caso concreto ocorre pela motivação do crime. Diferentemente da violência doméstica que se trata de uma circunstância objetiva o segundo inciso requer análise do subjetivo do infrator. Mesmo com a respeitável explicação do professor Luís Flávio Gomes a objeção de Rudá Santos Figueiredo e Gamil Foppel quando afirmam que há tautologismo entre o verbete do parágrafo e de seu segundo inciso merecem atenção.[35] Ademais as palavras do professor Luís Flávio Gomes “desdém, desprezo, desapreciação, desvalorização” são por demais amplas e abstratas o suficiente para sua aplicação em quase todos os casos de homicídio, ferindo assim o princípio da taxatividade.
Para que a lei penal possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano, deve ser facilmente acessível a todos, não só aos juristas.
Exige-se, portanto, uma lei certa que diz respeito com a clareza dos tipos de ilícito, restringindo-se a elaboração dos tipos abertos que acarretam insegurança jurídica. Enquanto o princípio da anterioridade da lei penal se vincula às fontes do Direito Penal, o princípio da taxatividade preside a formulação técnica da lei penal e indica o dever imposto ao legislador de proceder, quando redige a norma, de maneira precisa na determinação dos tipos legais, para se saber, taxativamente, o que é penalmente ilícito e o que é penalmente admitido. A taxatividade é a garantia que haverá clareza na lei penal suficiente para saber quando determinado comportamento nela se enquadra ou não. O segundo inciso merece reforma a fim de tornar mais tangíveis os limites de sua aplicação
.
4.3 Causas de aumento de pena
A primeira consideração a ser feita sobre tais casos é de que o desconhecimento do infrator das circunstâncias apontadas no artigo configura-se erro de tipo, o que exclui o referido aumento. Tais causas estão apontadas no § 7º da lei.
Em relação ao crime praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto a mensuração do aumento de pena, de 1/3 até a metade, dar-se-á pela proximidade do tempo do crime com o parto. Se for praticado durante a gestação maior será o aumento de pena quanto mais avançada estiver a gestação, se for praticada após o parto maior será quanto menor o tempo decorrido do mesmo.
Em que pese críticas em relação a discricionariedade dos 3 meses após o parto tal lapso de tempo não foi escolhido por acaso, fundamenta-se na opinião de especialistas: após os três meses o bebê já está preparado para o desmame não dependendo mais exclusivamente do leite materno. Eliminar a mãe neste período consiste em um maior grau de reprovação que requer aumento de pena.
Quando a causa de aumento fundamenta-se na idade, esta será mensurada pelo julgador, quanto menor a idade quando a vítima for menor que 14 anos, maior o aumento, quanto maior a idade quando a vítima for idosa, maior o aumento. Em relação ao princípio da especialidade aplica-se este aumento variável para casos de feminicídio praticados contra crianças ou idosos, e não o aumento fixo de 1/3 do §4º do art. 121, pelo mesmo motivo não será aplicada a agravante genérica do Art. 61, h do Código Penal.
Em relação a vítima portadora de deficiência, não se trata de um termo aberto. O que caracterizará a mulher como portadora de deficiência será o Art. 4º do Decreto 3298/99:
“Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
I – deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
II – deficiência auditiva – perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;
III – deficiência visual – cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;
IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização dos recursos da comunidade;
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências”.[36]
Em tais casos, o aumento de um terço até a metade ocorrerá proporcionalmente ao grau de limitações que a vítima possui., arbitrado pelo julgador.
O crime praticado na presença do ascendente ou descendente engatilha o aumento de pena. A conduta é assim agravada por causar danos psicológicos aos parentes da vítima que irão carregar tais marcas talvez para o resto da vida. Como o bem jurídico a ser protegido é a integridade psíquica do ascendente ou descendente não é a presença física dos mesmos que determinam a causa: a majorante pode ser aplicada em casos em que o familiar esteja vendo a morte por vídeo conferencia ou ouvindo por telefone. Porém, como sobredito, o agressor deve ter ciência da presença física ou virtual do parente da vítima.
4.4 Feminicídio como crime Hediondo
A lei do feminicídio alterou Art. 1º da Lei 8,072/90 e acrescentou o inciso VI do art. 121 no rol dos crimes hediondos eliminando qualquer duvida de que o feminicídio é um crime formalmente hediondo, (e não equiparado a hediondo como a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo): “I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º. I, II, III, IV, V e VI); (Grifo nosso)”[37]
Embora configure-se como tal a mudança no plano fático não foi grande. Isso porque a motivação do crime de feminicídio, a saber, a discriminação do gênero feminino em si já carrega torpeza capaz de qualificar o crime e elevá-lo ao status de hediondo.
Quais são as implicações de tal qualificação? Primeiramente certas hipóteses de extinção de punibilidade são inadmissíveis para tais crimes, a saber, aquelas que constam no Art. 107, II do Código Penal: a anistia – advém de ato legislativo federal (artigos 21, inciso XVII e 48, inciso VIII, da CF/88) a graça que é o indulto individual concedido por ato do Presidente da República, e o indulto, também outorgado pela presidência da república de forma coletiva. Também não é admitida a fiança nos crimes hediondos.
Os crimes hediondos também apresentam sistema diferenciado de progressão de regime: este progredirá apenas após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da penal total, 3/5 (três quintos) se reincidente – não o cumprimento de 1/6 da pena para os crimes não hediondos.
A lei surge para afastar entendimentos díspares e assim consolidar o alto nível de reprovabilidade jurídica e social de crimes que partilham desta inovação. Obviamente, em homenagem ao princípio da irretroatividade da lei penal os crimes anteriores à Lei 13.104/2015 serão enquadrados como hediondos pelo inciso I do §2º do Art. 121.
Seguindo ainda os princípios do in dubio pro reo e da proibição do bis in idem deve haver juízo de certeza sobrea motivação do agente capaz de transformar o homicídio comum em especial pelo feminicídio. Não havendo certeza não há majoração da pena, e, quando esta houver, o motivo torpe do Art., 121, §2º, inciso 1º não pode mais ser invocado.
O Juiz seja pelo o instituto da emendatio libeli, que o permite corrigir a tipificação penal quando os fatos apontados na inicial acusatória não correspondem a tipificação real (Art. 383 do Código de Processo Penal), seja pelo o princípio da economia processual que orienta que seja evitada toda uma instrução processual inexoravelmente fadada a um desfecho que poderia ter sido obtido desde o início da ação penal ou seja por que o magistrado já é capaz de absolver sumariamente o acusado conforme o Art. 397 do CPP, é capaz rejeitar a inicial acusatória parcialmente, recebendo-a como homicídio simples, e não como feminicídio.
4.5 a natureza da qualificadora – subjetiva ou objetiva?
Uma qualificadora é de natureza subjetiva quando diz respeito à motivação, são aquelas dispostas nos incisos I, II e V do §2º do Art. 121 do Código Penal, a saber, motivo fútil, torpe ou por outra motivação especial ( por promessa de recompensa, assegurar a fruição de outro crime ). Por sua vez, uma qualificadora de natureza objetiva é aquela que diz respeito ao modo de execução do delito, a saber, os incisos III e IV do §2º do sobre citado artigo que dizem respeito à emboscada, meio insidioso ou cruel.
O feminicídio é indubitavelmente caracterizado por uma qualificadora de ordem subjetiva.
Desta forma, ao ser reconhecida alguma das hipóteses do §1º do Art. 121 – motivo de relevante valor moral ou social, sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida injusta provocação da vítima, deve ser afastado o feminicídio, passando a responder o agente pelo homicídio em sua forma privilegiada.
É de irrefutável lógica a incompatibilidade entre as motivações que justificam o afastamento: não pode alguém matar alguém por relevante valor social ou moral, ou após ser injustamente provocado ao mesmo tempo que mata alguém por sentimento de posse ou por que não cumpriu corretamente com suas tarefas domésticas – tal motivação fútil ou torpe não pode carregar uma das causas do homicídio privilegiado do Art. 121 §1º.
5 A FUNÇÃO SIMBÓLICA DA LEI
Uma das críticas mais proeminentes em relação à lei do feminicídio não se deve à sua inconstitucionalidade ou à suposta ofensa ao princípio da razoabilidade. A Lei do Feminicídio estabelece divisões entre conservadores e feministas, mas há uma crítica que estabelece um ponto assaz pertinente às duas linhas de pensamento. Ela se refere à finalidade da referida lei, não como sendo a de efetivamente servir de proteção para mulheres, mas como mera medida legislativa vazia, incapaz de servir de real proteção e pior ainda: atrasar o avanço de medidas verdadeiramente proveitosas.
A crítica é de que a lei do feminicídio é mero fruto da função simbólica do direito penal.
O Direito Penal é arma jurídica mais poderosa do Estado e como tal só deve ser acionado em ultima ratio. Sua função, segundo a doutrina clássica, consiste em:
Primo: coerção – reprimir condutas que ameacem a paz social, o Estado e os bens jurídicos mais comezinhos segundo a própria lei.
Secundo: proteção – servir de salvaguarda para o indivíduo contra os efeitos do crime. – (E aqui está função na qual a Lei Maria da Penha se debruça).
Tertio: proteção ao infrator – o Direito Penal e Processual Penal estabelecem regras claras de aplicação da pena de acordo com a infração praticada. Tais disciplinas, além de estabelecerem a respectiva reação do Estado frente a conduta delituosa limitam a atuação do mesmo, protegendo assim o infrator de eventuais exageros do Estado.
Mas o que ocorre com uma lei que não venha a obedecer tais funções e serve de válvula de escape à responsabilidade estatal de aplicar políticas públicas efetivas de proteção?
Esta seria uma quarta função, bastarda, que usa como combustível o medo da população para onde o legislativo cria leis que passem uma sensação de tranquilidade que não corresponde a sua real eficácia. Tal fenômeno se manifesta através da criação desenfreada de figuras penais desnecessárias, pelo aumento desarrazoado de sanções e restrição de direitos, mesmo que tal linha não seja a mais indicada para a diminuição da criminalidade.
“O que importa, para a função simbólica, é manter um nível de tranquilidade na opinião pública, fundado na impressão de que o legislador se encontra em sintonia com as preocupações que emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais, incrementam-se penas, restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais opções representem perspectivas de mudança do quadro que determinou a alteração (ou criação) legislativa.”[38]
Em pesquisa sobre o feminicídio, (termo aqui usado se a definição legal vigorasse à época da pesquisa) feita pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) revelou ponto de interesse em como tais casos são apreciados pelo Judiciário:
Entre os 96 casos de feminicídio, 61% foram sentenciados. Desse total, 97% foram condenados por homicídio doloso, com pena média de 15 anos. Para a Antropóloga Débora Diniz, coautora da pesquisa, fica claro que há punição rigorosa para esses crimes.[39] Desta forma, a impunidade albergada pelo machismo produz efeitos antes – seja por que os casos são vistos como naturais e não entregues ao judiciário, seja por coação do agressor ou pela dificuldade da vítima em denunciar alguém com quem tem relações domésticas. Mas ao entrar na esfera jurídica o entrave é processual, e não cultural – (apenas 61% dos casos foram sentenciados o que indica falta de celeridade no Judiciário).
Tal forma, Lei que venha a melhorar a situação de mulheres em situações vulneráveis deve visar soluções processuais, – tal qual a Lei Maria da Penha que cria juizados especialmente para esse fim, além de proporcionar medidas de defesa – e não de natureza penal.
Como exemplo da função simbólica do Direito Penal há a Lei de Crimes Hediondos. Em suas linhas originais o apenado que estivesse por ela alcançado cumpriria a pena integralmente sobre o regime fechado – seria então vedada a progressão de regime. Tal artigo constituía verdadeiro espancamento ao princípio da individualização da pena. Em decisão posterior o STF declarou a inconstitucionalidade de tal artigo no julgamento do Habeas Corpus nº. 111840 sendo o mesmo substituído por disposições mais rígidas em relação à progressão da pena.
Tal assincronia entre a lei e as funções legítimas do Direito Penal não podem ser consideradas como meras verborragias legislativas, a longo prazo pode causar a perda da confiança da população no Estado – que dá falsas garantias de segurança. Mais: abrir mão da isonomia e a proporcionalidade gera o sentimento de injustiça – tornando o direito autofágico.
É inegável que a função simbólica do direito penal deve ser evitada. Não se pode consertar a sociedade a golpes de Direito Penal e quando paira alertas sobre uma lei que a exercer única e exclusivamente tal função está-se diante de uma situação em que o Estado – evitando tomar medidas reais e aplicáveis – coloca um fantoche no lugar de uma ação.
A lei do feminicídio pode criar uma falsa segurança – atrasando assim o progresso na luta contra o homicídio doméstico praticado contra mulheres.
Se a lei do feminicídio tiver como esta a única função ela deve ser repensada. Porém não se trata de classificá-la como branca ou preta – se trata de editá-la e tornar seus elementos úteis.
A principal característica que pode contestar esse aspecto puramente simbólico da lei do feminicídio é – como apontada por Lourdes Bandeira de que tal lei irá eliminar o chamado “crime passional” tornando mais clara a intenção do Estado em punir o assassinato de mulheres em situação de vulnerabilidade. Outro ponto seria coibir a atitude de juízes eminentemente machistas que não consideram a conduta do agressor – no caso assassino – como injusta e deixam de condená-lo.[40] Tal justa expectativa em relação a nova lei esbarrará em dois pontos – maus juízes continuarão a em suas práticas, ocorrendo jurisprudência reacionária e, sendo crime contra vida, o julgamento nos crimes de feminicídio ocorrerá pelo tribunal do júri, conforme dispositivo constitucional (CF Art. 5º, XXXVIII, “d”) – com populares, com idiossincrasias machistas ou não, julgando o infrator.
Tais obstáculos serão ímprobos. Como aponta Luís Carvalho Filho:
“O preconceito de jurados e juízes – o que ainda permite a impunidade do homicídio contra a mulher em redutos atrasados – não desaparece por toque de mágica. Vai se abrigar em jurisprudência reacionária formada em torno da aplicabilidade da própria norma. A redução de violência contra a mulher depende de outras políticas públicas.”[41]
Em suma, políticas públicas e educação humanista nas escolas podem barrar a mentalidade leniente com a violência contra mulheres, Leis, penais por sua vez são incapazes de reformular uma idiossincrasia coletiva, e quando para isso são usadas os resultados podem ser nefastos.
6 CONCLUSÃO
A existência do direito positivo é sem dúvida alguma um grande passo no processo civilizatório. Para que situações de conflito não sejam resolvidas pela lei do mais forte – que não demora a cair por outro ainda mais poderoso que muda as regras ao seu benefício – foi necessária a criação de leis estáveis, assim ocorre a sensação de segurança: para situação específica já há uma regra, uma lei, um laço que amarra a conclusão de um problema aos que já foram resolvidos antes deles.
Porém resumir o Direito à arte de procurar a lei que se aplique a determinado caso é negar sua essência conexão com a Justiça: um direito injusto é apenas uma forma mais rebuscada de dominação pelo mais forte, um totem que não se sustenta, uma iniquidade autorizada.
Em lutas por sociedades mais justas há inegável clamor por leis que nivelem os homens à um plano comum, e pela mudança desejada acaba-se por não perceber que se trata de um grande cubo mágico – uma permuta ali para ajustar as cores pode não ser o movimento certo para fechar o cubo.
Então, na tentativa de contar além do dois – o número que divide homens em fundamentalistas e liberais – esta pesquisa foi feita para mostrar que uma crítica à mudança, sendo ela cultural ou técnica, não é prova de pensamento retrógrado averso à mudanças. Por vezes mudanças na legislação servem, mesmo que de forma indireta para barrar o progresso.
A liberdade de ultrapassar o número dois, por outro lado, trás um pensamento menos defensivo: se críticas não mais servirem como rótulo de que o crítico está do lado oposto do espectro político toda discussão transforma-se em avanço.
Ao longo da história da ciência as teorias têm trabalhado seguindo o pensamento hegeliano: dada teoria aponta em uma direção e segue-se outra que aponta na oposta, tempos depois surge uma, mais aceita, que consegue conciliar pensamentos antes díspares e mostrar que cada um tinha uma verdade: às vezes para se chegar ao 44 partindo do oito deve passar-se primeiro pelo 80.
Por esta ótica, mesmo que por agora a Lei do Feminicídio apresente todos os defeitos técnicos possíveis, mesmo que sua proteção seja desarrazoada e inconstitucional, isto na pior das hipóteses, haverá a certeza – desde que o caminho esteja aberto para a discussão – de que a legislação evoluirá pelo caminho certo.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí Pós Graduando pela Escola da Assembleia Legislativa do Piauí
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