Lei Maria da Penha não veda a retratação tácita da representação

Quando se discute a questão da violência doméstica
contra a mulher, importante dizer que, por obséquio, deixem para os que militam
contínua e diariamente nos Juizados de Violência Familiar, aí incluída a Equipe
Multidisciplinar formada por psicólogos e assistentes sociais, o direito de dar
a última interpretação nesse tema, tão complexo, e que desperta também tantas
opiniões e sensacionalismos da mídia, muitas vezes destoantes da realidade e
dia-a-dia da Vara Especial da Mulher.

São corriqueiros os casos em que a mulher,
abandonando o processo, desinteressando-se por completo do que ditado em sede
policial por ela, nunca mais regressa ao Juizado para reclamar de seu direito
ou questionar sobre o cabimento de medida necessária. Absolutamente, some,
desaparece de todos. E, às vezes, quando encontrada, relata ao Oficial de
Justiça que não tem mais nenhum interesse no feito, por diversos motivos
diferentes.

É claro que existe hipótese diversa, de casos em
que a mulher continua flagelada pelo seu carrasco e participa ativamente do
processo. Não me refiro, aqui, a estes casos. Não tratarei aqui desta hipótese
diversa.

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A mulher que, após a lavratura de seu Boletim de
Ocorrência, volta a se relacionar com seu agressor, retomando pacífica e
harmoniosamente seu enlace afetivo, torna a engravidar, retorna à sua vida
diária com a colaboração de seu companheiro, empreendendo-se ambos em suas
atividades diárias para sustento e guarda da prole, passando juntos festejos de
Natal, Ano Novo, entre outras datas comemorativas, fazendo apagar da memória o
lamentável episódio familiar acontecido, a toda evidência, não tem interesse em
ver seu então agressor processado criminalmente por lesão leve ou ameaça e ao
final condenado por sentença penal. Seria, por óbvio, verdadeiro contra-senso.

A Lei Maria da Penha é diploma fundamental inédito
e excepcional no arcaico e ultrapassado sistema legislativo brasileiro.
Trata-se da primeira lei a prestigiar a vitimologia
em detrimento da mera persecução e vontade punitiva do Estado, possuindo amplo
espectro cível. Ao invés de atirar o agressor à guilhotina, à forca ou ao paredão de fuzilamento – penas menos cruéis do que a
submissão ao encarceramento em nossas penitenciárias – o foco das atenções é
única e exclusivamente a proteção dos interesses da mulher ofendida, seu
bem-estar, colocando-a a salvo de toda e qualquer violência e humilhação. Para
tanto, muniu a Lei n. 11.340/2006 a mulher de importante aliado e protetor na
figura do Defensor Público, que será o instrumento de veiculação de todos os
seus pesares, aflições e pretensões, deduzindo tudo de que necessitar.

Dentro dos autos da Medida Protetiva
de Urgência o Defensor Público resgatará, a todo custo, a paz e o direito da
busca da felicidade à ofendida. A imposição compulsória de tratamento
médico-psiquiátrico para desintoxicação da cachaça e do crack,
aprender a respeitar sua mulher fazendo cessar gritos e xingamentos
costumeiros, entender que o casamento acabou e que pensão alimentícia é para
ser paga pontualmente, que os bens e aquestos comuns devem ser partilhados, que
a guarda e visitação de filhos deve ser coisa pacífica e compartilhada sem
nenhuma alienação parental, entre outras tantas inúmeras medidas conciliatórias
e de admoestação podem e devem ser tomadas neste processo cautelar, muitas pela
via impositiva. Fazendo com que, atendido este compromisso-imposição
pelo agressor, uma futura ação penal seja coisa absolutamente inapropriada,
inconveniente e em descompasso com os princípios de justiça restaurativa e
profilática.

Atingida a paz, retomam as ofendidas suas vidas,
desejando mais do que tudo e mais do que todos, esquecer o lamentável episódio
de violência sofrido. Querem voltar a cuidar de seus filhos, serem
amadas, sorrir, trabalhar, cuidar da casa ao lado do mesmo ou de um novo amor.
Convocá-las, compulsoriamente, para relembrar a tragédia familiar pessoal
vivida, depondo em processo-crime, revendo vizinhos e familiares em Audiência,
contra a expressão da sincera vontade dessas mulheres resgatadas, mesmo que
representada pelo seu silêncio, pelo seu abandono e desinteresse completo do
processo, representa, sim, pesadelo psicológico e regate de pânico superado,
volta ao cativeiro mental. Não se pode desenterrar o infortúnio doméstico
sepultado pela ofendida, superado pela retomada de sua nova vida, digna e
repleta de outras expectativas, de outros fazeres. Atestado de com parecimento à Audiência de Instrução não consola.

O Juizado de Violência Contra a Mulher não é sede
para polemizar, eternizar ou se prolongar o que a mulher já não mais deseja ou
que se apagou pela tomada célere de providências no sempre competente juízo de família
ou nos autos da Medida Protetiva. Até mesmo tornar a
procurar o Juizado de Violência para dizer que não tem mais interesse nenhum no
prosseguimento do processo representa um martírio, algo abominável. As que
encontram a paz, em verdade, querem “abandonar os papéis”, que o processo seja
arquivado pelo seu silêncio e abandono. Muitas acreditam piamente que só sua
participação efetiva e ativa no processo poderia deflagrar uma ação penal.
Consideram que o que consignado em sede policial não seria suficiente para dar
início à persecução penal estatal.

Repito. Aqui, não me refiro àquelas que não
encontraram a paz, em razão da rebeldia e recalcitrância do agressor, que se
mostra pessoa indomável nos autos da Medida Protetiva
de Urgência. A este, a única solução é mesmo a condenação criminal dura e
repressiva, na medida da gravidade do caso.

Ora, a Lei Maria da Penha, por lógico, não veda a
retratação tácita da representação, o desinteresse processual. Nem poderia,
pois, caso contrário, não seria diploma afinado aos anseios das mulheres
vítimas da violência em nosso País. O que pretende essa norma é dizer que a
vontade expressa deverá ser manifestada diante do juiz, para verificação de sua
sincera espontaneidade verbalizada. A tácita deverá ser assimilada pelo
julgador pelas máximas de experiência, no que diz respeito ao comportamento e
atitude da mulher. O que, em caso de alguma dúvida, não impedirá que o juiz
dentro de seu poder de cautela traga à sua presença a ofendida para dizer de
seu comportamento e de sua vontade. Agora, querer presumir que o abandono
processual ou o desaparecimento da mulher, em muitos casos mudando de endereço
sem comunicar ao juízo, importa no desejo deliberado e inequ
ívoco de processar o agente, isto não pode ser aceito
dentro de qualquer critério de razoabilidade e experiência. Imaginar que
ofendida possa estar amarrada ou engaiolada em algum cativeiro, malgrado tese
defensável, não é o que acontece no dia-a-dia forense dos Juizados da Mulher
nos casos de lesão leve e ameaça. Direito é bom senso, é ciência atenta à
realidade dos fatos, do que acontece, jamais suposição
ou tese a ser escolhida abandonando os seus fins sociais a que se destina.

A própria Lei Maria da Penha adverte que é diploma
que não abandona o critério teleológico em sua interpretação. Pelo que deve o
jurista de vanguarda estar atento e afinado às novas transformações do Direito,
para que este não seja instrumento de mais intensamente afligir o aflito, mas,
sim, de pacificação social, sempre deixando a imposição da pena criminal como
último remédio para solução de conflitos.


Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo Rios do Amaral

Defensor Público do Estado do Espírito Santo


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Equipe Âmbito Jurídico

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