Wanderson Marquiori Gomes de Oliveira[1]
Resumo: O inimigo invisível que tem provocado crises de dimensões internacionais, denominado de Corona Vírus (COVID19) chegou ao Brasil, e determinou, que medidas excepcionais fossem tomadas iniciando-se pela decretação de calamidade pública através do Decreto Legislativo nº 06/2020 e emergência de saúde pública de importância internacional decretado pelo Ministro da Saúde nos termos dispostos na Lei 13.979/2020. Juntamente com o vírus, medidas de contenção da população, tais como, restrições de acesso, fechamento de estabelecimento que pressupõem a aglomeração de pessoas, fechamento de estabelecimentos que explorem atividades de natureza não essencial, impactaram toda a coletividade e principalmente as atividades empresariais, fazendo com que para evitar um colapso geral da economia, uma série de medidas provisórias fossem editadas, tratando, principalmente sobre regras trabalhistas visando diminuir os custos empresariais. No presente artigo, faremos uma análise a partir de uma visão constitucional do direito do trabalho, sobre as medidas provisórias editadas, buscando compreender as limitações constitucionais implicadas. Esse estudo é realizado após os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal sobre a temática nas ADI 6344 e ADI 6363 apresentando uma visão crítica sobre as decisões proferidas.
Palavras-chave: Corona Vírus; Calamidade Pública; Medidas Provisórias; Direito Constitucional; Direito do Trabalho.
Abstract: The invisible enemy that has provoked crises of international dimensions, Corona Virus (COVID19) arrived in Brazil, and determined, that exceptional measures be taken starting with the enactment of public calamity through Legislative Decree No. 06/2020 and public health emergency of international importance decreed by the Minister of Health in accordance with law 13.979/2020. With this virus, measures to contain the population, such as, restrictions on access, closure of establishments that presuppose the agglomeration of people, closure of establishments that exploit activities of a non-essential nature, impacted the entire collective and especially business activities, causing to avoid a general collapse of the economy, a series of provisional measures were edited, dealing mainly with labor rules aimed at reducing business costs. In this article, we will analyze from a constitutional view of labor law, on the provisional measures edited, seeking to understand the constitutional limitations involved. This study is carried out after the pronouncements of the Supreme Federal Court on the subject in ADI 6344 and ADI 6363 presenting a critical view on the decisions given.
Keywords: Corona Virus; Public Calamity; Provisional Measures; Constitutional Law; Labor Law.
Sumário: Introdução. 1. Art. 2º da MP927/2020: prevalência dos acordos individuais sobre a lei, convenções e acordos coletivos, respeitados os limites estabelecidos na constituição. 2. Art. 9º MP927/2020: consagra a possibilidade de concessão de férias ao empregado sem remuneração. 3. Art. 36 MP927/20: convalidação de medidas trabalhistas adotadas por empregadores antes da medida provisória dentro de um lapso temporal de 30 dias. 4. Art. 7º MP936/20: confere a possibilidade de redução proporcional de jornada e de salário mediante acordo individual. 5. Art. 12 MP936/20: estabelece a necessidade de negociação coletiva para redução salarial a partir do valor remuneratório do empregado. Conclusão. Referências.
Introdução
A Pandemia causada pelo vírus corona SARS-CoV-2 (COVID19) desencadeou uma crise social, humanitária, sanitária, científica, política, cultural e econômica de dimensões internacionais, fazendo com que a Organização Mundial da Saúde reconhecesse, em 11 de março de 2020, o status de pandemia (Covid-19). A situação de “emergência de saúde pública de importância internacional” bem como o avanço rápido do processo de contaminação comunitária impõem ao poder público a adoção de medidas de socorro aos enfermos e de contenção da propagação do vírus. Essas medidas geram incontáveis questionamentos que, mais cedo ou mais tarde, acabam desembocando na seara jurídica.
Como as medidas de contenção da propagação do coronavírus impactam – ainda que em diferentes graus – as atividades econômicas, sobretudo as empresas, emergem ali inevitáveis problemas, que devem ser superados pelo Direito do Trabalho, dando as respostas necessárias.
Para tanto, diversas medidas provisórias foram editadas como alternativas ao enfrentamento da crise. Contudo, ainda que sob o manto de boas finalidades, os meios e formas encontrados para superação de adversidades acabam colidindo com preceitos constitucionais, que serviram como elementos limitadores e balizares do inovar normativo.
Quando falamos em limitações constitucionais às MPs na crise do coronavírus, reconhecemos que mesmo em períodos excepcionais – aqui nos referimos ao período de calamidade pública declarado no Decreto Legislativo nº 06/2020[2] – não se pode negar vigência à ordem constitucional configurada, que confere sustentação ao Estado Democrático de Direito.
Por tal razão, o que se propõe é a leitura dos instrumentos normativos editados a partir de uma visão constitucionalmente adequada.
Não podemos desconsiderar que em algumas circunstâncias teremos de aplicar regras de ponderação[3], para preservação de direitos em caso de “colisão” entre garantias fundamentais, como é o caso da restrição da liberdade de locomoção em prol da conservação e manutenção da saúde e vida da sociedade.
Mas, voltando o olhar especificamente para as medidas provisórias editadas, serão analisados, sob essa perspectiva constitucional, alguns pontos de grande relevância, todos eles versando sobre a temática trabalhista.
O dispositivo mencionado confere uma força normativa aos acordos individuais do trabalho celebrados entre empregado e empregador, de modo que, no período de calamidade pública, as tratativas estabelecidas possam se sobrepor à Lei, às Convenções e aos Acordos Coletivos, desde que respeitado os limites constitucionais.
Em uma leitura apressada do referido dispositivo, poderíamos chegar à conclusão de que quando o acordo individual não suprimir as garantias mínimas asseguradas ao trabalhador na Constituição, seriam esses acordos válidos, e, portanto, eles teriam sobreposição à Lei, à Convenção e aos Acordos Coletivos vigentes.
No entanto, em uma orientação constitucionalmente adequada, devemos compreender que o art. 7º, caput do Texto Constitucional consagra o Princípio da Proteção, que é viga mestra de todo o Direito do Trabalho, ou seja, o seu eixo estruturante e fundamental.
Esse princípio carrega consigo toda a carga histórica do Direito do Trabalho, reconhecendo que este advém de diversas conquistas e lutas históricas da classe trabalhadora, reconhecendo também o trabalhador como figura hipossuficiente na relação laboral. Sendo necessário o estabelecimento de um sistema protetivo, que assegure a manutenção das conquistas alcançadas.
Nesses termos, ao estabelecer que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”[4], a um só tempo determina-se que devem ser preservadas as garantias mínimas previstas no texto constitucional e confere-se limitação à liberdade de negociação individual, impedindo que as tratativas negociais sejam implementadas de modo a causar prejuízos diretos ou indiretos ao trabalhador. Em outras palavras, a novação contratual aditiva somente pode ser realiza no campo individual se tiver como objetivo a ampliação de direitos trabalhistas e a melhoria das condições sociais do trabalho, impedindo a alteração contratual lesiva[5].
Assim sendo, a tratativa negocial firmada por acordo individual somente se sobreporia diante de uma regra mais favorável e condição mais benéfica dentre as regras já vigorantes na relação de trabalho.
Diante do período em que diversos estados e municípios ordenavam o fechamento de estabelecimentos aliado à recomendação de isolamento social, a medida provisória, buscando mecanismos para o enfrentamento da crise, visa conceder a empregadores o aproveitamento desses períodos, para que se cumpram obrigações e direitos trabalhistas, na medida em que as previsões normativas vigentes criavam embaraços à concessão de férias individuais ou coletivas, como nos de prazos para marcação e comunicação ao empregado e limites anuais de concessão e comunicação ao Ministério da Economia e Sindicato, no caso de férias coletivas. A medida provisória eliminou esses entraves.
Nesse aspecto agiu bem a Medida Provisória, permitindo a concessão das férias de modo efetivo e imediato. No entanto, a medida provisória acaba ultrapassando esses limites e viola o texto constitucional ao permitir que o pagamento das férias ocorra no quinto dia útil subsequente à sua fruição[6], ou seja, autoriza a concessão de férias sem remuneração na contramão do disposto no art. 7º, XVII da CR/88 “gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal”.
As férias correspondem a um “lapso temporal remunerado, de frequência anual, constituído de diversos dias sequenciais, em que o empregado pode sustar a prestação de serviços e sua disponibilidade perante o empregador, com o objetivo de recuperação e implementação de suas energias e de sua inserção familiar, comunitária e política”[7].
Registre-se que, embora as férias permitam significativa intensificação do lazer do trabalhador e sua família, elas não têm natureza de prêmio trabalhista. Desse modo, não se vinculam à conduta obreira mais ou menos positiva em face do interesse do empregador. Não são, portanto, parcela adquirida pelo empregado em função de conduta contratual especialmente favorável ao empregador. Têm, pois, as férias, efetivo caráter de direito trabalhista, inerente ao contrato de trabalho — direito a que corresponde uma obrigação empresarial.
É cediço que aquele dispositivo (art. 9º MP927/2020) foi objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal. Em julgamento do pedido liminar formulado na ADI6344 proposta em face da MP927/2020 o egrégio entendeu que a Medida Provisória não violou o texto constitucional, pois:
“diante da situação excepcional verificada no País, não se afastou o direito às férias, tampouco o gozo dessas de forma remunerada e com adicional de um terço. Apenas houve, com o intuito de equilibrar o setor econômico-financeiro, projeção do pagamento do adicional, mesmo assim impondo-se limite a data da satisfação da gratificação natalina”[8].
Ocorre que, ao contrário do que decidiu o Ministro, que se ateve ao diferimento do pagamento do adicional de férias para que se faça juntamente da gratificação natalina, a medida provisória permitiu, sim, o gozo de férias sem remuneração, pois gozar significa usufruir, satisfazer, regozijar. Isso somente pode ser exercido quando concomitantemente possibilita-se o período de descanso com o recebimento imediato da remuneração, que por vezes é utilizada, para suportar as próprias expensas decorrentes das interações sociais, familiares e prazerosas objetivadas.
Tem-se então, ao discorrer que o pagamento das férias poderá ser realizado até o quinto dia útil do mês subsequente a sua fruição, que a medida provisória permite o gozo de férias sem remuneração.
Nesse contexto, a medida provisória, sufragando o texto constitucional, confere superpoderes ao empregador para conceder ou antecipar férias, sem o custo financeiro de seu pagamento. Fazendo com que as férias originalmente destinadas ao descanso e lazer se convalidem em obrigação de ficar em casa, com redução do valor correspondente.
Associe-se isso ao fato de que, entendendo as férias como direito trabalhista do empregado, caso o empregado já tenha completado o período aquisitivo de férias, o seu direito se conformou com as regras jurídicas vigentes à época da aquisição, de modo que o empregador não tem legitimidade para dispor de direito inerente ao empregado, não podendo medida provisória prejudicar o direito adquirido[9].
Sendo assim, a orientação constitucional mais adequada seria aquela que autoriza o empregador a possibilidade de concessão de férias coletivas e individuais de forma imediata, comunicando o empregado no prazo de 48h (quarenta e oito horas), ainda que esse empregado não tenha completado seu período aquisitivo, com vistas ao aproveitamento dos períodos de suspensão de atividades com o cumprimento de obrigações trabalhistas pendentes. Porém assegurando que essas férias sejam usufruídas de forma remunerada e com o pagamento em período anterior ao gozo dessas férias.
O artigo 36[10] da Medida Provisória referenda medidas trabalhistas adotadas por empregadores à margem da legislação vigente, desde que essas medidas estejam em consonância com as regras erigidas pela Medida Provisória e implementadas no prazo não superior a 30 dias à data de vigência dela.
Esse dispositivo encontra limitação e embargo no Princípio da Irretroatividade das Leis, segundo o qual uma lei nova não pode voltar ao passado para alterar, ratificar ou referendar situações jurídicas já consolidadas na vigência da lei anterior. Principalmente, quando as medidas referendadas podem, ainda que em consonância com as novas previsões normativas, violar e restringir direitos trabalhistas.
Em um Estado de Direito não se pode referendar ações tomadas pelas partes à margem da lei, como se estivéssemos em Estado de Natureza.[11]
Mesmo diante do argumento da excepcionalidade de estado e sobre a premissa de que as medidas tomadas se faziam necessárias para o enfrentamento de momento, essas medidas não se justificam, pois não pode o empregador realizar um exercício hermenêutico de futurologia, prevendo que o Estado, ao tomar medidas de prevenção, o fará nas mesmas linhas adotadas, ainda que o direito trabalhista vigente sempre admitisse mecanismos de flexibilização, que serviram de pano de fundo das medidas provisórias adotadas, tais como a suspensão do contrato de trabalho (art. 476-A CLT); a interrupção do contrato de trabalho, mediante concessão de licença remunerada (art. 133, II, § 2º CLT), o banco de horas para o exercício de horas de recuperação (art. 61 CLT), dentre outras possibilidades.
Desse modo, o dispositivo abala as estruturas do Estado Democrático de Direito e ofende regra constitucional da irretroatividade de leis, de modo que não pode ser aplicado. Sendo que todas as alterações contratuais realizadas antes das disposições expressas das medidas provisórias somente podem ser realizadas em estreita observância ao art. 468 da CLT e ao Princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva.
A medida provisória 936/2020 estabelece medidas complementares para o enfrentamento do estado de calamidade pública, conferindo reforço às previsões legais previstas na medida provisória 927/2020.
Nesse contexto, cria o Programa Emergencial de Manutenção de Emprego e Renda, que institui o benefício emergencial a ser pago ao trabalhador como forma de recomposição financeira, diante das reduções de salário decorrentes da adesão às medidas.
O art. 7º da MP936/20 torna possível a redução de salário, na espécie de redução proporcional, mediante ajuste contratual (acordo individual) firmado entre empregado e empregador.
Art. 7º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá acordar a redução proporcional da jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa dias, observados os seguintes requisitos:
I – preservação do valor do salário-hora de trabalho;
II – pactuação por acordo individual escrito entre empregador e empregado, que será encaminhado ao empregado com antecedência de, no mínimo, dois dias corridos; e
III – redução da jornada de trabalho e de salário, exclusivamente, nos seguintes percentuais:
Parágrafo único. A jornada de trabalho e o salário pago anteriormente serão restabelecidos no prazo de dois dias corridos, contado:
I – da cessação do estado de calamidade pública;
II – da data estabelecida no acordo individual como termo de encerramento do período e redução pactuado; ou
III – da data de comunicação do empregador que informe ao empregado sobre a sua decisão de antecipar o fim do período de redução pactuado.
(BRASIL, 2020)
Essa previsão normativa foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI6363)[12] no Supremo Tribunal Federal, com pedido cautelar que inicialmente foi deferido pelo Ministro Relator. Porém a liminar concedida não foi referendada pelo Pleno do Tribunal, de modo que o texto original da MP936/2020 permanece em plena vigência, enquanto aguarda o julgamento de mérito da ADI6.363.
Não obstante conservarmos manifesto respeito pelo Supremo Tribunal Federal e por suas decisões e termos a certeza do caráter indispensável desse órgão em um Estado Democrático de Direito, temos posicionamento diverso do decidido pelo Egrégio, na medida em que essa posição nos é conferida pelo exercício fundamental do pensamento e de liberdade de expressão[13].
O Direito do Trabalho não pode ser interpretado do mesmo modo que se interpreta o Direito Civil. É certo que os contratos de trabalho são negócios jurídicos formados pelas partes a partir de sua manifestação de vontade erigida com autonomia e liberdade, pois tanto empregador quanto empregado, se dotados de capacidade civil, são aptos a compreender as tratativas negociadas. Porém, no Direito do Trabalho inexiste uma paridade de armas quando das tratativas negociais, colocando o empregado em uma situação em que ou aceita a condição proposta ou será excluído da tratativa.
O Direito Trabalhista Brasileiro, por não aderir à Convenção 158 da OIT[14], que exige para o término das relações de emprego a indicação expressa de motivo, consagra a extinção imotivada do contrato de trabalho como direito potestativo do empregador, de modo que o empregado não consegue oferecer resistência ao empregador. Assim, o que deveria ser negociado passa a ser imposto. Principalmente, em um cenário de elevado índice de desemprego e em meio às incertezas causadas pelo período de pandemia do COVID19.
Por essa razão, entendendo o caráter hipossuficiente do empregado, é que o texto constitucional deflagrou que na mutação das regras trabalhistas visando a sua flexibilização, ainda que em períodos de crise, a redução salarial somente pode ser realizada por meio de convenção ou acordo coletivo.
Essa valorização da negociação coletiva realizada pela Constituição de 1988 não se trata de mera orientação burocrática, que pode ser afastada com o fito de dispensar formalismos em tempos de crise, para prestação mais célere das medidas de contenção. A intervenção sindical é proteção jurídica social, fundada no objetivo de recompor a paridade de armas na negociação, de modo que o acordo celebrado não se afigure excessivamente oneroso a uma só das partes. Ele deve apresentar-se como melhor composição para o caso.
Suprimir a exigibilidade constitucional de negociação coletiva para permitir a redução salarial é, em primeiro momento, afrontar o Estado Democrático de Direito. É permitir a violação de garantia fundamental do cidadão, por meio de medida provisória. Reportamo-nos que essa garantia constitucional foi concebida por meio de lutas de classes e valores éticos universais, afigurando-se como verdadeiro retrocesso social[15].
Em segundo momento, é estabelecer precedente legislativo e judicial perigoso apto a instituir terreno fértil para violação de outros direitos e garantias fundamentais. É como se a ordem constitucional se concebesse como uma carta de valores programáticos, que pode ser flexibilizada conforme o anseio de momento.
Não se pode conceber em um Estado Democrático de Direito a ideia de um “Direito Constitucional de Crise”, em que se assume uma regra de consequencialismo ou, em outras palavras, como os estudiosos de Maquiavel resumem seu pensamento: os fins justificam os meios[16].
É necessário fazer valer a Constituição em momentos difíceis, ainda que seja necessário defendê-la em detrimento de “ideias boas”. Qualquer atalho institucional que não seja a retomada do rumo constitucional aniquila aquilo que quer preservar.
Os atalhos institucionais, como o próprio nome sugere, são soluções que encurtam os caminhos da Constituição e ao fazê-lo minimizam seu papel. Eles fragilizam sua forma e seu conteúdo e, a um só tempo, mitigam a sua força e autoridade. Esquecem-se do futuro. Isto acarreta consequências.
Ao erigir a negociação coletiva como necessária interventora nas relações privadas de trabalho em algumas matérias, a Constituição estabeleceu uma proteção social, que se afigura como direito fundamental intransponível. Não se pode afastar sua aplicação ao fundamento de estarmos em estado de exceção, não vale o discurso de inexistência de prejuízo. Não é válido dizer que é por um bem maior. Saber e encarar os limites constitucionais aos nossos melhores impulsos é um dos mais importantes, ainda que menos apreciados, aspectos do Constitucionalismo.
Em todos estes casos, a solução é uma só. Devemos prestigiar, com cada vez mais intensidade, a Constituição. Isso, sobretudo, nos casos em que a sua aplicação possa nos causar angústias e dilemas. Ainda que nos casos mais difíceis, precisamos ter a certeza de que mesmo ações boas praticadas por pessoas boas não podem violar a Constituição.
Ainda na análise das medidas provisórias editadas diante das limitações constitucionais, nos chama atenção a regra do art. 12 da MP936/2020, que utiliza o valor remuneratório do empregado para orientar quem merece ou não a proteção social conferida pela assistência sindical, em se tratando de pactuação sobre redução de salário.
Art. 12. As medidas de que trata o art. 3º serão implementadas por meio de acordo individual ou de negociação coletiva aos empregados:
I – com salário igual ou inferior a R$ 3.135,00 (três mil cento e trinta e cinco reais); ou
II – portadores de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Parágrafo único. Para os empregados não enquadrados no caput, as medidas previstas no art. 3º somente poderão ser estabelecidas por convenção ou acordo coletivo, ressalvada a redução de jornada de trabalho e de salário de vinte e cinco por cento, prevista na alínea “a” do inciso III do caput do art. 7º, que poderá ser pactuada por acordo individual. (BRASIL, 2020)
A Constituição determina aos Poderes a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV da CR/88)[17]. Por isso, absolutamente impermissível diferenciar trabalhadores no contexto de proteção jurídica, pelo critério do salário (Art. 7º, XXX da CR/88)[18].
Diferenciar trabalhadores para permitir acordo individual, negando a necessidade de convenção coletiva para uns e mantendo para outros, utilizando como critério o valor do salário, é negar força normativa à Constituição, ofendendo-a duplamente. A proteção jurídica social trabalhista, como outras proteções jurídicas, é universal e não depende do valor do salário dos cidadãos.
A Constituição de 1988 prevê como garantia inerente à dignidade humana a irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo (art. 7º, IV CR/88). Por isso a previsão de acordos individuais viola a autonomia negocial coletiva, agredindo – primeiro – o sistema normativo que deve vincular todos os Poderes constituídos e – segundo – a Convenção 98 da OIT, que equivale à norma de patamar superior a das medidas provisórias.
A própria vinculação de determinadas classes de empregados à negociação coletiva, para possibilitar a redução salarial, em detrimento de outras classes já implica em contradição das medidas adotadas, pautadas em justificativas de celeridade e salvaguarda imediata da economia e da força produtiva nacional.
Conforme já assinalado, o art. 7°, caput da CF de 1988 é explícito em fixar que os direitos ali previstos são mínimos. Impondo, como somente possível, a previsão de outros direitos que venham a melhorar a condição de vida dos trabalhadores, ficando reforçado o Princípio da Proibição do Retrocesso Social. Ora, a cláusula de proibição de retrocesso social, somada à positivação do princípio da norma mais favorável, é uma clara demonstração do sentido que se deu aos direitos fundamentais dos trabalhadores, não cabendo ao legislador infraconstitucional alterar tal direção[19].
Assim sendo, a deflagração discriminatória instaurada pela Medida Provisória a partir de critérios de quantitativo salarial implica em violação de bases estruturantes do Direito Constitucional vigente.
Conclusão
O Estado Democrático de Direito é uma conquista importante da sociedade, e tem a Constituição como a norma assentada em dois pilares para conter e disciplinar o avanço predatório do poder sobre a sociedade: I) A Separação de Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário); II) A afirmação dos direitos dos indivíduos (liberdades).
O Estado de Direito está longe de ser perfeito, no propósito de impedir avanços autoritários. Contudo, aqueles pilares foram absorvidos por quase todos os países que adotam constituições e funcionam como uma garantia institucional fundamental, para que o exercício do poder não fique concentrado na mão de um único governante ou de uma elite ou classe.
O Estado Social, com foco maior nos direitos coletivos, passou a fazer parte das constituições, principalmente no pós-guerra, com o objetivo de tentar reduzir as injustiças sociais, sem perder de vista as conquistas do Estado de Direito.
A Constituição brasileira de 1988 foi criada num processo de retomada democrática e com forte ênfase nos direitos sociais. Às vezes, surgem propostas de mudanças dessas garantias que prometem resolver ou amenizar crises em detrimento a sacrifício dos direitos. São denominadas de flexibilização ou adaptação aos novos tempos.
Acontece que, desde 1988, várias alterações no texto original da Constituição já foram solicitadas pelo Executivo e aprovadas pelo Congresso Nacional. Mas, mesmo reduzindo direitos, não tiveram a capacidade de melhorar substancialmente a vida dos brasileiros.
A sociedade brasileira tem um passado de muitas injustiças e um saldo enorme de desigualdades ainda por serem resolvidas em todos os planos sociais. No entanto, em tempos de crise, como a vivenciada nessa pandemia de COVID19, uma parcela significativa do povo se sente prejudicada no cenário político-econômico já caótico e agravado, tornando-se tentador alinhar-se com o clamor de caça às bruxas ou caça aos “inimigos”, aceitando discursos que recorrem ao sacrifício dos direitos para, num ato de fé, esperar por um futuro melhor ou por um salvador da pátria.
São nesses momentos que precisamos concentrar os olhos na Constituição e entender que a preservação de garantias fundamentais é o único caminho para superação das adversidades.
Nesse artigo, realizamos uma análise das medidas provisórias editadas como forma de enfrentamento do período de calamidade pública declarado pelo Estado Brasileiro, por meio do Decreto Legislativo nº 06/2020, sob o argumento da manutenção do emprego e recuperação econômica. E tentamos demonstrar que, não obstante os objetivos visados pelas medidas promulgadas, diversas violações constitucionais foram erigidas, fazendo com que seja necessária a reafirmação constitucional, a fim de salvaguardar principalmente para os mais necessitados o bem-estar presente e futuro.
A defesa constitucional deve subsistir, ainda que seja necessário defendê-la contra ideias boas, posto que qualquer atalho institucional que não seja a retomada do rumo Constitucional aniquila aquilo que quer preservar.
Referências
CABRAL, João Francisco Pereira. “Hobbes e o estado de natureza”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/hobbes-estado-natureza.htm. Acesso em 23 de abril de 2020.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ed. Almedina. 7º Ed. 2003.
DELGADO, Maurício Godinho, Curso de Direito do Trabalho, 7ª ed., Editora LTR, pág. 952.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.
STF. Min. Marco Aurélio. ADI 6344. Requerente: Rede Sustentabilidade. Interessado: Presidente da República. Relator Ministro Marco Aurélio. 30/03/2020. Decisão. Liminar Indeferida. DJE. 31/03/2020.
STF. Min. Ricardo Lewandowski. ADI 6.363. Requerente: Rede Sustentabilidade. Interessado: Presidente da Républica. Decisão: O Tribunal, por maioria, negou referendo à medida cautelar, indeferindo-a, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos o Ministro Ricardo Lewandowski (Relator), que deferia em parte a cautelar, e os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que a deferiam integralmente. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 17.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência – Resolução 672/2020/STF).
VECCHI, Ipojucan Demétrius. Noções de direito do trabalho: um enfoque constitucional. 2 ed. rev. e ampl. Passo Fundo: UPF, 2007. V 1.
[1] Advogado. Sócio da Marquiori Advocacia Sociedade de Advogados. Coordenador e Professor do curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos em Nova Lima/MG. Professor de Direito e Processo do Trabalho na Faculdade Minas Gerais – FAMIG e Professor no programa de Pós-graduação lato sensu em Direito do Trabalho da Faculdade Arnaldo Janssen.
[2] Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.
[3] “A ponderação é uma técnica de decisão empregada para solucionar conflitos normativos que envolvam valores ou opções políticas, em relação aos quais as técnicas tradicionais de hermenêutica não se mostram suficientes. É justamente o que ocorre com a colisão de normas constitucionais, pois, nesse caso, não se pode adotar nem o critério hierárquico, nem o cronológico, nem a especialidade para resolver uma antinomia de valores”. “E talvez seja justamente aí que reside o grande problema da ponderação: inevitavelmente, haverá descumprimento parcial ou total de alguma norma constitucional. Quando duas normas constitucionais colidem fatalmente o juiz decidirá qual a que “vale menos” para ser sacrificada naquele caso concreto”. MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 386/394.
[4] Art. 7º, caput da Constituição da República 1988.
[5] Art. 468 CLT – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
[6] Art. 9º MPV927/20 – O pagamento da remuneração das férias concedidas em razão do estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º poderá ser efetuado até o quinto dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias, não aplicável o disposto no art. 145 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.
[7] DELGADO, Maurício Godinho, Curso de Direito do Trabalho, 7ª ed., Editora LTR, pág. 952.
[8] STF. Min. Marco Aurélio. ADI 6344. Requerente: Rede Sustentabilidade. Interessado: Presidente da República. Relator Ministro Marco Aurélio. 30/03/2020. Decisão. Liminar Indeferida. DJE. 31/03/2020.
[9] Art. 5º, XXXVI CR/88- “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”;
[10] Art. 36 MP927/20. Consideram-se convalidadas as medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto nesta Medida Provisória, tomadas no período dos trinta dias anteriores à data de entrada em vigor desta Medida Provisória
[11] Estado de natureza, segundo Thomas Hobbes, os homens podem todas as coisas e, para tanto, utilizam-se de todos os meios para atingi-las. CABRAL, João Francisco Pereira. “Hobbes e o estado de natureza”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/hobbes-estado-natureza.htm. Acesso em 23 de abril de 2020.
[12] STF. Min. Ricardo Lewandowski. ADI 6.363. Requerente: Rede Sustentabilidade. Interessado: Presidente da Républica. Decisão: O Tribunal, por maioria, negou referendo à medida cautelar, indeferindo-a, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos o Ministro Ricardo Lewandowski (Relator), que deferia em parte a cautelar, e os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que a deferiam integralmente. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 17.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência – Resolução 672/2020/STF).
[13] Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Art. XIX – Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
[14] OIT – Convenção 158. Art. 4º – Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço.
[15] O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ed. Almedina. 7º Ed. 2003.
[16] “O sucesso de um Estado ou de uma nação é o fim supremo, quem quer que governe o Estado ou a nação a fim de realizar isso, ele não pode ser limitado pela moralidade”. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.
[17] CR/88 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[18]. CR/88 Art. 7º, XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;
[19] VECCHI, Ipojucan Demétrius. Noções de direito do trabalho: um enfoque constitucional. 2 ed. rev. e ampl. Passo Fundo: UPF, 2007. V 1. p. 47.
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