Direito Eleitoral

Limites da Competência da Justiça Eleitoral Para Julgamento de Registros de Candidatura

REGINALDO GONÇALVES GOMES: Doutorado em Direito Processual pela PUC/MG (2019). Mestre em Direito pela Universidade de Itaúna (2014). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Sete Lagoas (1999), Licenciado em Letras pela Faculdade de Letras da UFMG (1992). Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano/SP. Email: regisgomes@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar a competência da Justiça Eleitoral para julgar a impugnação ao pedido de registro de candidatura em razão da rejeição de contas e condenação por improbidade administrativa, previstas no art. 1º, inciso I, alíneas “g” e “l”, da Lei Complementar n. 64/90. Para tanto, far-se-á um estudo sobre o princípio do contraditório, da ampla defesa e do juiz natural, com vistas a defender que a competência da Justiça Eleitoral, nesses casos, é para apenas verificar os requisitos objetivos previstos na própria Lei Complementar n. 64/90 ao apreciar as condenações por improbidade administrativa pela Justiça Comum Estadual ou Federal e as rejeições de contas pelas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Congresso e Tribunal de Contas do Estado e da União. Assim, a Justiça Eleitoral julgará o registro de candidatura considerando que os Tribunais e as Casas Legislativas decidiram, portanto, se no julgamento de origem não foi afirmado a ocorrência de um dos requisitos previstos na LC n. 64/90 a Justiça Eleitoral não pode reapreciar a questão, por falta de competência. Por fim, pretende-se afirmar que o Juiz Eleitoral não pode apreciar matérias alheias às suas competências sob pena de ofensa ao princípio do juiz natural, previsto na Constituição Federal de 1988.

Palavras-chave: Justiça Eleitoral. Competência. Registro de Candidatura. Rejeição de Contas. Improbidade administrativa.

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Abstract: This article has the aim to analyze the competence of the Federal Electoral Court to judge the electoral suit – candidate request of registration – due to the rejection of bills and conviction for Administrative dishonesty, provided for in article 1, item I, letters “g” and “l”, of Complementary Law n. 64/90. Therefore, it will be studied the principle of natural judge, contradictory, full defense in order to defend the competence of the Electoral Courts in these cases is just to check the objectives requirements of Complementary Law n. 64/90 itself to appreciate conducts of Administrative dishonesty judged by Federal or State Common Justice and rejections of accounts by local councils, legislative assemblies, Congress and the Court of the State and the Union. Thus, the Federal Electoral Court will judge the candidate request of registration, considering what the other Courts and the Legislative Houses decided, therefore, if in the judgment of origin was not stated the occurrence of one of the requirements of Complementary Law  n. 64/90, the Electoral Court can not review the matter for lack of competence. Finally, we intend to affirm that the Electoral Courts can not appreciate matters which not concern to its competence, under penalty of breach the principle of natural justice enshrined in Federal Constitution of Brazil/1988.

Keywords: Electoral Justice. Competence. Candidate request registration. Rejection of Accounts. Administrative dishonesty.

 

SUMÁRIO: Introdução. 1. Princípios constitucionais aplicados ao direito eleitoral. 1.1 princípio do contraditório. 1.2. Princípio da ampla defesa. 1.3 Princípio do juiz natural. 2. Competência da justiça eleitoral. 3. Considerações finais. Referências bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

O Direito Eleitoral é um dos ramos do Direito que dispõe de uma Justiça Especializada, a Justiça Eleitoral, para realizar e fiscalizar as eleições, e, ainda, processar e julgar crimes e ilícitos eleitorais que surgirem em decorrências dessas eleições.

A criação da Justiça Eleitoral ocorreu em um momento conturbado, pois nasceu com a revolução de 1930 e não sobreviveu no Estado Novo de Getúlio Vargas. A Justiça Eleitoral foi instaurada em plena Revolução de 1930 e em razão da desconfiança dos revolucionários de que o processo eleitoral, à época, era viciado, que, segundo eles, servia para manter o poder das oligarquias da chamada Primeira República – 1889-1930.

Tito Costa esclarece o seguinte:

Um dos mais importantes frutos da renovação política operadas no Brasil, como conseqüência da revolução de 1930 foi, sem dúvida, a instituição da Justiça Eleitoral. Buscou-se, com ela, alcançar um índice satisfatório de legitimidade eleitoral, no dizer de Cláudio Pacheco. E temos visto que, a partir de seu surgimento, o processo eleitoral vem ganhando cada vez mais em limpidez de resultados e na melhoria, sempre crescente, do mecanismo de seu funcionamento.[1]

Nesse ambiente, foi editado o Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932 o qual instituiu o primeiro Código Eleitoral no país. Contudo, registre-se que na Constituição de 1824 já constavam algumas normas eleitorais, podendo até dizer que o germe da Justiça Eleitoral nasceu dessa Constituição.

O Código Eleitoral de 1932[2] regulava o alistamento dos eleitores e trazia como importantes inovações a instituição do voto feminino e do voto secreto e estabelecia a criação da Justiça Eleitoral, subtraindo do Poder Legislativo o controle sobre seu próprio processo de renovação. O certo é que, com o Código Eleitoral, a Justiça Eleitoral passou a regular as eleições em todos os níveis da federação.

Criou-se também em maio de 1932 o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral. É certo que com a criação da Justiça Eleitoral houve uma verdadeira moralização nas eleições à época, uma vez que não se podia confiar nos órgãos que realizavam as eleições, que não tinham imparcialidade. O Segundo Código Eleitoral foi editado em 1935, mantendo as conquistas e avanços anteriores.

É certo que a Constituição de 16/07/1934 foi a primeira Constituição a criar o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, os Tribunais Regionais Eleitorais – TREs, os Juízes Eleitorais e as Juntas Eleitorais, passando esses órgãos a gozar de status constitucional, competindo à Justiça Eleitoral o processo das eleições federais, estaduais e municipais como esclarece Tito Costa.[3]

No entanto, no ano de 1937, com o início do Estado Novo, eminentemente ditatorial, foi extinta a Justiça Eleitoral, sem muita polêmica, segundo Costa.[4]

No ano de 1945, a Justiça Eleitoral foi restabelecida através do Decreto-Lei n. 7.586/45, regulando em todo o país o alistamento eleitoral e as eleições, conhecido como Lei Agamenon, em homenagem ao Ministro da Justiça Agamenon Magalhães, responsável por sua elaboração.

Em 1945, foi editado novamente o Código Eleitoral, que vigorou até a edição do Código Eleitoral de 1950. Em 15 de julho de 1965, editou-se novo Código Eleitoral, que se encontra em vigor atualmente.

A Constituição de 1946 recepcionou a Justiça Eleitoral, que passa a ter uma função acessória. Apenas organiza eleições para vereador, prefeito, deputado estadual e deputado federal. Esclarece Cerqueira: “A Constituição de 1934 constitucionalizou a Justiça Eleitoral; a Carta de 1937, em plena ditadura, tornou inócua a Justiça Especializada, e a Constituição de 1946 reestruturou novamente a Justiça Eleitoral.”[5]

Em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil faz renascer a Justiça Eleitoral como órgão do Poder Judiciário, com função jurisdicional, administrativa, consultiva e normativa. No ano de 1989, realiza-se a primeira eleição presidencial após a ditadura militar, sob a égide de uma Justiça Eleitoral autônoma e independente.

Ao lado do Código Eleitoral, foram editadas a lei complementar n. 64/90, lei n. 9.504/97 e, de enorme importância a inclusão do art. 14, §§10 e 11, da Constituição da República de 1988. De fato, a introdução do art. 14 da CR/88 e as legislações citadas formam um verdadeiro arcabouço jurídico cujo fim é preservar a regularidade e o equilíbrio das eleições gerais (federais, estaduais) e municipais.

Assim, tratar-se-á, neste artigo, dos limites da competência da Justiça Eleitoral: Uma análise sob o enfoque dos princípios do juiz natural, contraditório e da ampla defesa, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil.

O presente artigo limitar-se-á ao estudo da competência da Justiça Eleitoral para julgamento das impugnações dos pedidos de registro de candidatura de candidatos a cargos políticos em razão de condenação transitada em julgado ou por órgão de segundo grau, de ação de improbidade administrativa.

Trataremos, ainda, dos julgamentos de rejeição de contas pelos órgãos competentes (Câmara Municipal, Assembléias Legislativas, Congresso Nacional e Tribunais de Contas).

O objetivo é investigar os limites da competência da Justiça Eleitoral dispostas na Constituição da República e Código Eleitoral para processar e julgar os registros de candidatura de candidatos a cargo político, mais precisamente, as lides referentes às inelegibilidades previstas na Lei Complementar n. 64/90, sob a égide do princípio do juiz natural. Nesse ponto, deve-se apontar um julgado do Tribunal Superior Eleitoral (Recurso Ordinário n. 380-23.2014.6.11.000) em que este Tribunal reconheceu prejuízo ao erário, enriquecimento ilícito decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, mesmo não constando na parte dispositiva da condenação na Justiça Comum Estadual. É certo que esse Acórdão do TSE afronta o princípio do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa.

 

  1. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS AO DIREITO ELEITORAL

Importa salientar que princípios, no Direito, são as linhas diretivas norteadoras da aplicação de todas as normas jurídicas. Possuem uma maior abrangência em comparação às regras do ordenamento jurídico. Como farol, eles iluminam a compreensão e auxiliam na interpretação do conteúdo das normas que estão subordinadas a eles. Hierarquicamente superiores às demais regras, proporcionam relativo caráter de unidade, pois resolvem conflitos de normas, harmonizando-as, impedindo a falta de conexão e organização do sistema normativo. A lesão a um princípio é a mais grave de todas, pois como Paulo Bonavides ensina:

A lesão a um princípio é indubitavelmente a mais grave das inconstitucionalidades, porque sem princípio não há ordem constitucional e sem ordem constitucional não há garantia para as liberdades, cujo exercício somente se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes absolutos. [6]

 

Para o processualista Sérgio Luiz de Souza Araújo:

 

A essência de um princípio, no campo do Direito, é fornecer uma diretiva jurídica para que se aplique corretamente a norma positiva. Em conseqüência, ele não possui uma normatividade própria que implique em se tornar possível a sua aplicação imediata e autônoma.[7]

 

Dessa forma, o conjunto de leis que existiam ao tempo da entrada em vigor da nova Carta Magna, e que por essa foram recepcionadas, bem como as demais leis que surgiram, têm que estar em conformidade com as diretrizes constitucionais, explícitas e implícitas. Para solucionar os possíveis conflitos de normas ocorridos após a sua promulgação, há de se valer desses princípios para que os conflitos sejam dirimidos à luz dos novos valores insculpidos na CR/88.

Os princípios, tais como as regras, são normas jurídicas, estas de menor abrangência, pois servem para regular o caso concreto, enquanto aquelas têm maior alcance por servir de parâmetro para o processo jurisdicional eleitoral.

 

1.1 Princípio do contraditório

Os princípios do contraditório e da ampla defesa estão previstos no inciso LV, art. 5º da CR/88: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios a recursos a ela inerentes.”

Nas palavras de Aroldo Plínio Gonçalves a partir da linha de raciocínio desenvolvida por Fazzalari, o processo se define pela oportunidade do contraditório como garantia de participação dos interessados no procedimento, a ser realizado pela simétrica paridade das partes, daqueles em que se destinam os efeitos da sentença.[8]

Desta feita, surge uma teoria do processo jurisdicional a partir do processo, e não pela concepção deste meramente a serviço da jurisdição. Considerando tal interpretação, jurisdição apenas concretiza-se pelo processo, resultante do procedimento que o prepara oportunizado o contraditório em simétrica paridade entre as partes.  Sendo assim, Fazzalari propõe uma distinção entre processo e procedimento, a partir da inclusão do contraditório como condição para o provimento, resultante da atuação do processo.[9]

O processo para Fazzalari, torna-se espécie de procedimento que pressupõe o contraditório entre as partes, em simétrica paridade, sendo o procedimento estrutura técnica que, sob o comando normativo legal, busca o provimento jurisdicional.  Por conseguinte, a sentença, para Fazzalari, não seria, prima facie, um provimento construído a partir do ato solitário do juiz, mas uma consequência racionalizada dos atos do procedimento em contraditório entre as partes.[10]

O contraditório[11] garante às partes em litígio o direito de se defenderem no processo, uma vez que todo ato processual deve ser de conhecimento das partes. Na técnica processual democrática, a todo ato emanado do juiz deve corresponder um ato das partes, na medida em que podem ou não se manifestar sobre os direitos alegados, ou seja, podem ficar em silêncio.

O Novo Código de Processo Civil prevê expressamente em seu art. 10 que “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”[12]

Para Dierle José Coelho Nunes:

O princípio permite que o cidadão assuma a função de autor-destinatário dos provimentos (jurisdicionais, legislativos e administrativos), cujos efeitos sofrerá.

A decisão não pode mais ser vista como expressão da vontade do decisor e sua fundamentação ser vislumbrada como mecanismo formal de legitimação de um entendimento que este possuía antes mesmo da discussão endoprocessual, mas deve buscar legitimidade na tomada de consideração dos aspectos relevantes e racionais suscitados por todos os participantes, informando razões (na fundamentação) que sejam convincentes para todos os interessados no espaço público, e aplicar a normatividade existente sem inovações solitárias e voluntarísticas.

Ademais, deve-se afastar a ideia de que a concepção pública do processo se dá tão somente pela participação dos juízes. […].[13]

Assim, para Rosemiro Pereira Leal:

[…] o princípio do contraditório é referente lógico-jurídico do processo constitucionalizado, traduzindo, em seus conteúdos, a dialogicidade necessária entre interlocutores (partes) que se postam em defesa ou disputa de direitos alegados, podendo, até mesmo, exercer a liberdade de nada dizerem (silêncio), embora tendo direito-garantia de se manifestarem.[14]

 

André Cordeiro Leal afirma que o contraditório não deve ser admitido apenas como forma de dizer e contradizer, mas deve estar adstrito com o princípio da fundamentação das decisões. Acentua o referido autor:

[…] Mais que garantia de participação das partes em simétrica paridade, portanto, o contraditório deve efetivamente ser entrelaçado com o princípio (requisito) da fundamentação das decisões de forma a gerar bases argumentativas acerca dos fatos e do direito debatido para a motivação das decisões. Uma decisão que desconsidere, ao seu embasamento, os argumentos produzidos pelas partes no iter procedimental será inconstitucional e, a rigor, não será sequer pronunciamento jurisdicional, tendo em vista que lhe faltaria a necessária legitimidade, conforme se colhe das lições de Oliveira Baracho.[15]

 

Portanto, na constitucionalidade democrática, não é papel do juiz construir uma decisão sem a simétrica participação das partes. Nas palavras de Rosemiro Pereira Leal:

O Judiciário, nas esperadas democracias plenária, não é o espaço encantado (reificado) de julgamento de casos para revelação da justiça, mas órgão de exercício judicacional segundo o modelo constitucional do processo em sua projeção atualizada e crítico-discursiva (neoinstitucionalista) de intra e infra expansividade principiológica e regradora. O Devido Processo Constitucional é que é jurisdicional, porque o processo é que cria e rege a dicção procedimental do direito, cabendo ao juízo ditar o direito pela escritura da lei no provimento judicial. […][16].

 

O referido autor ainda argumenta que os direitos fundamentais conformam a atuação dos sujeitos processuais e, no Estado Democrático de Direito, não se concebe mais o juiz solipsista que tudo sabe e tudo vê:

Os juízos principiológicos (regentes) e os conteúdos gerais de fundamentação (eferentes), na aplicação do direito criado pela lei, não são inventados ou encontrados fora da lei, mas segundo o proceder indicado na lei e processualizado pelos direitos fundamentais constitucionalizados da ampla defesa, contraditório, isonomia, da atuação do advogado, gratuidade postulatória, como conquistas teóricas que, transpostas para o discurso constitucional, não mais comportam interpretações de historicidade extralegal (de fundo axiológico-deontológico supletivo da lei), porque a conquista teórica do direito se faz, no plano do due process democrático pela interpretação “ao pé da letra” da conexão normativa determinante do espaço-tempo estrutural do procedimento desvelador dos atos-fatos de defesa e exercício de direitos fundamentais e não pela super visão (epoché) transcendental e primal do juiz (nous-arché-diké).[17]

 

Diz, ainda, o autor que:

[…] O juiz não é construtor do direito, mas concretizador do ato provimental de encerramento decisório do discurso estrutural do procedimento processualizado pelo due process democrático em suas incidências substancial (substantive) de garantias implantadas constitucionalmente e procedimental (procedural) do modo adequado de aplicação constitucionalmente assegurado.[18]

 

Dierle José Coelho Nunes igualmente refuta a atuação do juiz solipsista:

O juiz não pode mais constranger, subjugar e submeter as partes, advogados e órgãos de execução do Ministério Público no âmbito da discussão e do debate endoprocessual, com base em suas pré-compreensões, uma vez que não há submissão destes a sua figura.

Ao magistrado cumpre, na alta modernidade, o papel democrático de garantidor dos direitos fundamentais, não podendo ser omisso em relação à realidade social e devendo assumir sua função institucional decisória num sistema de regras e princípios, embasado no debate endoprocessual, e no espaço público processual, no qual todos os sujeitos processuais e seus argumentos são considerados e influenciam a formação dos provimentos.

Tal perspectiva não importa num esvaziamento do papel do magistrado, mas, sim, em sua redefinição[19].

 

Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias assevera que o princípio do contraditório é fruto de longas pesquisas, portanto, sua adoção pela Constituição Federal revela sua importância e imprescindibilidade na ciência processual:

[…]

Essas disposições normativas, fruto do neoconstitucionalismo surgido após o término da segunda guerra mundial, origem da constitucionalização do direito e do processo, não despontaram no texto da Constituição por acaso ou de uma hora para outra obviamente, foram antecedidas e sugeridas por notáveis e incessantes pesquisas e estudos doutrinários iniciados em torno do direito processual, que despontaram a partir do final do século XIX. E prosseguiu esse labor técnico-científico desenvolvido e aperfeiçoado intensamente após o surgimento do apontado neoconstitucionalismo, consolidando o direito processual em termos de ciência jurídica e formatando a concepção do processo constitucional.[20]

 

Então, na processualidade democrática, deve-se refutar o papel do Juiz Hércules, solipsista, densenvolvido por Ronaldo Dworkin.

Dworkin cria um juiz ideal, Hércules, a quem descreve como possuidor de uma habilidade, sabedoria, paciência e perspicácia sobre-humanas, consciente de suas responsabilidades constitucionais. O papel de Hércules é criar um esquema de princípios abstratos e concretos que possam fornecer uma justificação coerente para todos os precedentes do Common Law. Hércules, diante de casos difíceis, elabora algumas teorias políticas que poderiam servir como justificações do conjunto de regras constitucionais que são relevantes para o problema. Assim, a constatação de que duas ou mais teorias parecem adequar-se ao caso, Hércules deverá voltar-se para o conjunto remanescente de regras, práticas e princípios constitucionais a fim de criar uma teoria política da Constituição como um todo.

Segundo Dworkin, o Juiz Hércules:

 

[…] aceita as principais regras não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu Tribunal ou dos Tribunais superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo.[21]

 

Assim, para Dworkin, o veredicto do juiz – suas conclusões pós-interpretativas – deve ser extraído de uma interpretação que ao mesmo tempo se adapte aos fatos anteriores e os justifique. Hércules[22] é um Juiz capaz de gerar argumentos e princípios coerentes entre de si, evitando-se a injustiça ao analisar os casos difíceis (hard cases).

Marcelo Neves ao discorrer sobre a questão da “decisão racionalmente correta” afirma que:

 

[…] Evidentemente, na esfera pública, há atores orientados moralmente no sentido de um “auditório” universal (os que buscam a decisão racionalmente correta para todos), outros, porém, orientam-se de maneira particular na defesa dos valores do seu grupo, assim como há aqueles e – não se excluam – os que se assumem posturas expressivas, catárticas, para influenciar a concretização constitucional ou contra esta protestar. Afirmar que só é moralmente legítima na esfera pública a postura dos primeiros tem um quê de “injusto” em uma sociedade supercomplexa e uma esfera pública caracterizada pelo dissenso estrutural. Mas o ideal regulativo de Dworkin, o juiz Hércules, monológico, solipsistae, eu diria, simplista, não é o mais adequado para reconhecer os seus próprios limites.[23] (destacamos)

 

Assim, essa concepção de juiz desenvolvido por Dworkin, então, deve ser vista com reservas, considerando o modelo constitucional de processo vigente advindo do princípio do Estado Democrático de Direito preconizado pelos autores expoentes da novel processualidade democrática, como se expôs acima.

Cândido Rangel Dinamarco, et al, seguidor da escola instrumentalista do processo, admite o uso de escopos metajuridicos para o adequado cumprimento da função jurisdicional, negando ao processo exclusivamente a capacidade de assegurar os princípios constitucionais para a legitimidade decisória:

Mesmo não sendo legislador ou a ele equiparado, mesmo negando-se que o juiz seja substancialmente criador de direitos e obrigações (repúdio á teoria unitária do ordenamento jurídico), mesmo desconsiderando-se a influência que emana do “direito jurisprudencial” (Richterrecht), ainda assim sempre é preciso reconhecer que o momento de decisão de cada caso concreto é sempre um momento valorativo. Como a todo intérprete, incumbe ao juiz postar-se como canal de comunicação entre a carga axiológica atual da sociedade em que vive e os textos, de modo que estes fiquem iluminados pelos valores pelos valores reconhecidos e assim possa transparecer a realidade de norma que contem no momento presente. O juiz que não assuma essa postura perde a noção dos fins de sua própria atividade, a qual poderá ser exercida ate de modo bem mais cômodo, mas não correspondera ás exigências de justiça. Para o adequado cumprimento da função jurisdicional, é indispensável boa dose de sensibilidade do juiz aos valores sociais e as mutações axiológicas de sua sociedade. O juiz há de estar comprometido com esta e com suas preferências. Repudia-se o juiz indiferente, o que corresponde a repudiar também o pensamento do processo como instrumento meramente técnico. Ele é instrumento político, de muita conotação ética, e o juiz precisa estar consciente disso.[24]

Frise-se que, quanto ao conceito de procedimento (e não de jurisdição), também há uma diferença importante entre a teoria instrumentalista e a fazzalariana. A primeira enxerga o procedimento a partir da visão de processo, e este mero instrumento da jurisdição, que através da figura do juiz emite um juízo axiológico da sociedade para formar sua decisão. Já Fazzalari desenvolve primeiro a noção de procedimento para, só depois, conceituar processo como uma espécie de procedimento realizado em contraditório. O processo é fruto (espécie) do procedimento (gênero), e não este daquele.

No entanto, Rosemiro Leal ensina que essa função jurisdicional na busca pela justiça plena, concretiza-se apenas por meio da inafastável estrutura constitucionalizada do processo, mediante observação das garantias constitucionais do processo e do princípio da reserva legal, cujo fundamento submete os provimentos (sentenças, decisões jurídicas) ao dado prévio da lei.[25]

O princípio do contraditório deve desvelar-se em conteúdos tais como não supresa, comparticipação, colaboração, informação-reação-diálogo-influência. Igualmente, no Estado Democrático de Direito, é necessário garantir isonomia entre as partes, bem como assimetria na interpretação da lei pelas partes, no entendimento de autores já citados, tais como Rosemiro Pereira Leal, Dierle Nunes, Ronaldo Bretas de Carvalho Dias etc.

 

1.2. Princípio da ampla defesa

O princípio da ampla defesa[26] – inciso LV, do art. 5º da CR/88 – se traduz na colocação para as partes de todos os meios existentes na lei para assegurar a interposição de recurso, ter acesso aos autos, possibilitar a juntada de documentos, a produção de prova testemunhal, pericial, ter conhecimento das decisões proferidas no processo. As partes têm o direito de que a autoridade judicial ou administrativa respeitará as normas processuais e todos os direitos das partes.

Há de concordar com Clenderson Rodrigues Cruz que afirma que existem pouquíssimas obras que teorize o princípio da ampla defesa. Em suas palavras:

A proposta em questão mostra-se como um grande desafio, pois foram poucas as obras que trataram especificamente do princípio da ampla defesa, surgindo daí um primeiro diagnóstico: o princípio da ampla defesa foi confundido com o princípio do contraditório e com o instituto da defesa, e às vezes, voluntariamente, negligenciado.[27]

 

De fato, a maioria dos autores brasileiros tratam do direito de defesa, na prática, como ela deve ocorrer, mas não finca as bases do real exercício da ampla defesa prevista na Constituição Federal.

Luiz Guilherme Marinoni acerca do direito de defesa esclarece:

[…]

Nessa perspectiva, não há como deixar de perceber que o direito de defesa também consiste no direito de influir sobre o convencimento do juiz. E isso mediante alegações, requerimento de provas, participação na sua produção, consideração sobre os seus resultados, etc.

Ademais, assim como o direito de ação exige técnicas processuais adequadas à tutela do direito, o direito de defesa também possui como corolário o direito à pré-ordenação dos meios adequados ao exercício da defesa. A diferença é a de que o direito de defesa requer técnicas processuais adequadas à defesa, ao passo que o direito de ação necessita de técnicas processuais idôneas à obtenção da tutela do direito.[28]

 

Por sua vez, Fredie Didier Jr. afirma que existem as seguintes espécies de defesa: a) admissibilidade (ou processual) e mérito; b) direta e indireta; c) dilatória e peremptória; d) objeção e exceção (em sentido estrito); e) interna e instrumental.[29]

O direito à ampla defesa não se limita no juízo de primeiro grau, pois concebe-se no conceito de ampla defesa, o direito à apelação, ao recurso especial e/ou extraordinário, como previsto na última parte do inciso LV, art. 5º da CR/88: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios a recursos a ela inerentes.”

            Assim, não basta a ampla defesa em primeiro grau, mas as partes têm direito a exercer esse direito nos Tribunais de segundo grau e nos Tribunais Superiores. Consigne-se que as partes não apenas têm o direito de recorrer, mas, também, de exercitar a defesa perante à tribuna dos Tribunais, através de memorais ou mesmo estabelecer incidentes processuais previstos em lei nos próprios Tribunais.

Neste sentido, segundo Rosemiro Pereira Leal:

 

O princípio da ampla defesa é coextenso aos do contraditório e isonomia, porque a amplitude da defesa se faz nos limites temporais do procedimento em contraditório. A amplitude da defesa não supõe infinitude de produção da defesa a qualquer tempo, porém, que esta se produza pelos meios e elementos toais de alegações e provas no tempo processual oportunizado na lei. Há de ser ampla, porque não pode ser estreitada (comprimida) pela sumarização do tempo a tal ponto de excluir liberdade de reflexão cômoda dos aspectos fundamentais de sua produção eficiente. É por isso que, a pretexto de celeridade processual ou efetividade do processo, não se pode, de modo obcecado, suprindo deficiências de um Estado já anacrônico e jurisdicionalmente inviável, sacrificar o tempo da ampla defesa que supõe a oportunidade de exaurimento das articulações de direito e produção de prova.[30]

 

O princípio da ampla defesa, como dito, de nada vale senão correlacionados com o do contraditório, isonomia, fundantes do processo democrático. Assim, expressa-se Rosemiro Pereira Leal:

 

[…] uma Teoria da Constituição democrática, na concepção pós-moderna da falibilidade dos sistemas, há de passar pela compreensão curricular da teoria do processo como enunciativa (descritivo-argumentativa) dos direitos fundamentais (fundantes) da correlação humana contraditório-vida, ampla defesa-liberdade e isonomia-dignidade.[31]

 

Camilla Mattos Paolinelli ao tratar do tema afirma que:

 

[…]. Assim, as partes entram no processo em condições de igualmente argumentar, de forma ampla. E, por isso, têm a garantia de um tempo procedimental igual para reconstruírem o caso concreto, produzirem provas e discutirem quais são as normas aplicáveis no caso em julgamento. É justamente da ampla argumentação que decorre o direito fundamental à produção de provas, e, consequentemente, o direito das partes, de, livre e conscientemente, assumirem o ônus correspondente a sua não produção.[32]

 

Importante citar a bem elaborada pesquisa de Clenderson Rodrigues Cruz sobre o princípio da ampla defesa, na qual traz grande contribuição ao esclarecimento do alcance desse princípio e suas bases principiológicas. Veja-se:

A ampla defesa somente pode ser considerada ampla quando exercida em estrutura normativa procedimental adequada. Na contemporaneidade, a ampla defesa não significa defesa grande, mas sim forma de argumentação lógico-jurídica-processual exercida em tempo e espaço tecnicamente estruturado sob o devido processo legal.

No entanto, devemos, para caracterizar a expressão ampla, eleger o modelo procedimental adequado a regê-la, não nos valendo propostas procedimentais genéricas ou sincréticas. Portanto, podemos cogitar que somente fruímos plenamente do direito-garantia à ampla defesa por meio da procedimentalidade ordinária, sendo impossível equacioná-la a partir dos atuais procedimentos sumários ou sumaríssimos.

Isso porque, conforme Rosemiro Pereira Leal, no perfil procedimental sumário há a mistura e embutimento de fases, impedindo a distinção compartimentada dos momentos adequados para os atos processuais, em afronta ao devido processo. Já no procedimento sumaríssimo, há clara prevalência da Jurisdição em relação ao processo, confiando ao juiz a condução e regulamentação a posteriori do procedimento.400 Ambos representam restrição à cognição ampla e, consequentemente, ao exercício da ampla defesa, apresentando óbice à argumentação exauriente.

Deve-se dizer que a restrição da sumarização não se dá especificamente em razão do tempo diminuído, mas sim em razão do sincretismo das fases processuais, impedindo a construção lógico-estrutural do procedimento, acarretando prejuízo à possibilidade argumentativa.

Portanto, inacolhível o ensino de Celso Neves quando esse afirma “tanto no procedimento comum ordinário, como no sumaríssimo, a tutela jurídica processual se faz mediante cognição completa, exaurindo-se a jurisdição in casu, com a sentença de mérito”.

Ao se estabelecer uma análise acerca dos atuais modelos procedimentais sumário e sumaríssimo, podemos perceber que a sumarização não se dá primordialmente pela diminuição do espaço-tempo para a prática do ato, mas sim pela supressão de fases na ordinariedade, o que gera prejuízos gravíssimos à cognição exauriente.

Segundo Kazuo Watanabe, a economia processual e a busca da efetiva tutela do direito material justificam a adoção de técnicas de sumarização, conferindo ao processo a posição de mero instrumento da jurisdição. Para tanto, Kazuo Watanabe sugere a criação de técnicas processuais que favoreçam ao julgamento antecipado e elimine fases inteiramente inúteis. No entanto, confia o julgamento quanto às fases inúteis ao juiz. A proposta sugere a miscigenação de procedimentos, ora condensando algumas fases, ora elastecendo outras, conforme o critério do juiz.

Indo além, Guilherme Peres de Oliveira, apoiado em processualistas de escol como Luiz Guilherme Marinoni, Fernando Gajardoni, Freddie Didier, Galeano Lacerda, em benefício do direito material, defende a adaptabilidade procedimental pelo juiz, divulgando o princípio da elasticidade processual. A proposta se baseia em um modelo procedimental flexível que deve se amoldar à situação substancial (direito material).404

No entanto, o afã de que o processo deve servir ao direito material não mais existe, pois está superado o instrumentalismo processual. O processo é instituição constitucionalizada, produtor e regente do ordenamento legal, e não mais uma peça adjetiva da jurisdição na aplicação do direito material.

Ademais, é de se opor a tal posicionamento que se esmera em um processo instrumental de lógica social que elege o juízo do direito do juiz como órgão supremo para decisão dos rumos no processo. Como adverte José Marcos Rodrigues Vieira: “colocar-se nas mãos do magistrado, o melhor deles seja, o poder de especializar ou sumarizar o procedimento, em lide que não o reclame, é ensejar o risco de lesão grave e de difícil reparação porventura decorrente da aceleração do processo”. […].[33]

 

A ampla defesa, aliada ao contraditório e a isonomia, são os pilares estruturais do processo constitucional democrático a partir da Constituição Republicana de 1988, com feição de instrumentos garantidores para o devido debate jurídico processual na construção de um provimento com a efetiva participação das partes afetadas. Por fim, sirvo das conclusões de Clenderson Rodrigues Cruz sobre o alcance da ampla defesa no Estado Democrático de Direito:

[…] é imprescindível que a parte esteja em juízo democrático e que o desenvolvimento dos atos se dê por um modelo normativo caracterizado pela procedimentalidade ordinária e plenária, com a regência do devido processo. A partir dessas três perspectivas: o juízo democrático, a procedimentalidade ordinária e o devido processo constitucional é que se apresenta como possível a fruição do direito-garantia à ampla defesa.[34]

De toda forma, o princípio da ampla defesa previsto na Constituição de 1988 é um instituto do processo e segundo Pereira Leal esse princípio é “(…) coextenso aos do contraditório e isonomia, porque a amplitude da defesa se faz nos limites temporais do procedimento em contraditório.”[35] Assim, ampla defesa não é sinônimo de perpetuação ao infinito da defesa, mas nos limites do devido processo legal.

 

1.3 Princípio do juiz natural

O princípio constitucional do Juiz natural, direito fundamental, previsto no art. 5º, LIII, da CR/88, estabelece que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, ou seja, todas as pessoas têm o direito de ser processado e julgado por pessoa devidamente investida no cargo, tendo sua competência previamente estipulada pela Constituição Federal ou por lei, antes da ocorrência do crime, do ilícito quer administrativo quer civil.

A respeito do tema, Lúcia Valle Figueiredo faz as seguintes ilações:

Juiz natural ou administrador competente

O primeiro princípio processual que podemos inferir como pertinente ao devido processo legal – e este é constitucional – é o do juiz natural.

O que é juiz natural? É o juiz competente, o juiz que tenha competência antes do fato acontecido; não o juiz designado para determinada controvérsia. Então, juiz natural é o juiz competente para o feito. Consequentemente, também não pode haver administrador denominado ad hoc, ou órgão colegiado post facto.

Isso visa exatamente à segurança jurídica: o juiz natural, o juiz competente, deve ser aquele já designado pela norma legal, ou, como afirmamos, o administrador anteriormente já com competência para tal.

A competência deve preexistir ao fato, e não ser atribuída apenas para dada situação. Faça-se ressalva, é claro, da mudança legal de competência para situações em geral, e não para a específica. Ou, ainda, a comissões que tenha de ser formadas para situações singulares.

E só existe Estado de Direito – e aí lembramos o Prof. Geraldo Ataliba -, só existe República, quando existe juiz natural para julgar as controvérsias.

Ainda algumas garantias, necessárias ao devido processo legal e consagrada na Constituição, jamais poderiam ser suprimidas, como, por exemplo, o poder cautelar do juiz, como também do administrador, nos processos, como, v.g., para o afastamento compulsório enquanto durar o processo disciplinar.[36]

 

Reginaldo Gonçalves Gomes cita, embora não conste a proibição de instituição do juiz após ocorrência do fato, a Magna Carta como gérmen do estabelecimento do juiz natural, asseverando que:

 

A despeito da competência para julgar os “homens”, tal regra já se fazia viger no mundo jurídico desde do ano de 1215, quando da edição da Carta Magna por João Sem Terra, Rei da Inglaterra. A Carta Magna, redigida em latim bárbaro, assinada em 15 de junho de 1215 perante o alto clero e os barões do reino,  dispunha sobre as liberdades ou concórdia entre o Rei João e os Barões para outorga das liberdades da Igreja e do Rei inglês – Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae. O documento, inclusive, foi escrito em latim para nenhum inglês comum ler, e apenas foi traduzido para o inglês no século XIV.

A referida “Grande Carta” (Magna Carta, em latim) previa várias garantias aos jurisdicionados e, dentre elas, na seção 29, a garantia de que todo cidadão inglês seria julgado pelos seus pares e com a lei do país […].[37]

 

Fredie Didier Jr. esclarece que:

 

Juiz natural é o juiz devido. À semelhança do que acontece com o devido processo legal e o contraditório, o exame do direito fundamental ao juiz natural tem um aspecto objetivo, formal, e um aspecto substantivo, material.

Formalmente, juiz natural é juiz competente de acordo com as regras gerais e abstratas previamente estabelecidas. Não é possível a determinação de um juízo post facto ou ad personam. A determinação do juízo competente para a causa deve ser feita por critérios impessoais, objetivos e pré-estabelecidos. Tribunal de exceção é aquele designado ou criado, por deliberação legislativa ou não, para julgar determinado caso. Os juízes de exceção são juízes ad hoc e estão vedados. […]

Substancialmente, a garantia do juiz natural consiste na exigência da imparcialidade e da independência dos magistrados. Não basta o juízo competente, objetivamente capaz, é necessário que seja imparcial, subjetivamente capaz.[38]

 

Por sua vez, Ferrajoli esclarece pormenorizadamente como surgiu a garantia do juiz natural:

 

O nascimento do juiz moderno, como já foi dito, pode ser situado no momento em que se inverte a relação entre os velhos juízes ordinários ou delegantes e os velhos juízes delegados, quando estes últimos reivindicam, em nome da estabilidade de fato das suas funções, também a titularidade formal e exclusiva do poder jurisdicional. Esse fenômeno marca também a primeira afirmação do princípio do “juiz natural”, isto é, da terceira garantia orgânica acima identificada. Quando Sir Edward Coke negou a Jaime I a concreta potestas iuris dicundi, e os juízes franceses fizeram o mesmo com o rei da França, ou impediram o pároco de Paris de tomar o lugar em seu tribunal, eles expressaram não só uma moção de independência em relação à autoridade delegante, mas também um protesto contra a lesão dos valores de imparcialidade e certeza do juiz produzida por alterações post factum da ordem normal das competências, possivelmente interessadas no mérito do juízo.

A garantia do “juiz natural” indica essa normalidade da ordem das competências no juízo, pré-constituída da lei, entendido por competência o “limite da jurisdição” de que qualquer juiz é titular. Ela significa, precisamente, três coisas diferentes ainda que entre si conexas: a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído post factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais. No primeiro sentido, expresso por exemplo pelo art. 25 da Constituição italiana, o princípio designa o direito do cidadão a um processo não prejudicado por uma escolha do juiz posterior ao delito e portanto destinada a um resultado determinado. No segundo sentido, deduzível com alguma incerteza do mesmo art. 25 e do art. 102, par. 1º, designa a reserva absoluta da lei e a impossibilidade de alteração discricionária das competências judiciárias. No terceiro sentido, expresso pelo art. 102, par. 1º, da Constituição, mas derrogado pelas jurisdições especiais previstas pelo art. 103, como também pela justiça política reservada pelos arts. 90 e 134 aos crimes presidenciais, trata-se de um princípio de organização que postula a unidade da jurisdição e o seu monopólio conservado em uma mesma classe. Enquanto a pré-constituição legal do juiz e a inalterabilidade das competências são garantias de imparcialidade, sendo votadas a impedir intervenções instrumentais de tipo individual ou geral na formação do juiz, a proibição de juízes especiais e extraordinários é antes uma garantia de igualdade, satisfazendo o direito de todos a ter os mesmos juízes e os mesmos procedimentos.

Em todos os três sentidos ilustrados, a garantia do juiz natural, não diversamente da de independência, é uma conquista moderna. Resultou de fato infrutífera a tentativa de remeter suas origens à Magna Charta, pois esta, em seus arts. 20, 21, 39, 52 e 56, limita-se a estabelecer que para a condenação de qualquer cidadão é necessário um “legale iudicium parium suorum”, em que a condição de que os jurados sejam “pares”, ou “homens probos da vizinhança”, indica apenas uma qualidade dos juízes, e, no máximo, um critério de competência territorial, mas não tem nada que ver com a proibição da instituição do juiz post factum. Essa proibição se afirma só no século XVII, contemporaneamente às primeiras manifestações de independência e aos conflitos já mencionados entre juízes e soberanos. Polemizando com os abusos da justiça comissarial, os pontos 3, 7, e 9 da Petition of Rights de 1628, e ainda o art. 3 do Bill of Rights de 1689, reivindicam pela primeira vez a não derrogação da “justiça ordinária” e, com isto, a nulidade de qualquer “comissão” ou “comissário real” instituído post factum, por causa de seu caráter “ilegal e pernicioso”.[39]

 

Portanto, a garantia constitucional do juiz natural é direito impostergável, corolário do devido processo legal. Da mesma forma que nenhuma pessoa pode ser processada por juiz instituído após o fato, igualmente o juiz competente para uma causa não pode julgar causa alheia à sua competência. Explico: Juiz cível não pode julgar matéria penal e vice-versa; Juiz Eleitoral não pode julgar causas cíveis ou penais de competência do Juiz de Direito ou Federal e vice-versa.

 

  1. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL

A competência da Justiça Eleitoral está disposta no Código Eleitoral, em razão da Constituição da República de 1988, em seu art. 121[40], dispõe que Lei Complementar estabeleceria a competência desta Justiça Especializada. Assim, está escrito no art. 121: “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.”

Por sua vez, os artigos 22, 29 e 35, do Código Eleitoral, dispõem sobre a competência da Justiça Eleitoral, respectivamente, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, Tribunais Regionais Eleitorais – TREs –  e Juízes Eleitorais. Ressalte-se que nas Eleições Gerais (Federal e Estadual), compete ao TSE processar e julgar originariamente registro de candidaturas dos candidatos a cargo de Presidente e Vice-Presidente; aos TREs processar e julgar os registros de candidatura dos candidatos ao cargo de Governador, Vice-Governador, Deputados Federais e Estaduais.

Nas eleições municipais, compete ao Juízo Eleitoral processar e julgar os registros de candidatura dos candidatos ao cargo de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores. Dentre a competência da Justiça Eleitoral, insere-se o processamento e julgamento dos crimes eleitorais que estão previstos no Código Eleitoral, Lei Complementar n. 64/90, Lei n. 9.504/97 e Lei n. 6.091/74. Vê-se, portanto, que, além dos crimes, por assim dizer, cíveis-eleitorais, a Justiça Eleitoral tem competência para julgar crimes eleitorais.

A Justiça Eleitoral, sem dúvida, exorbita de suas competências, afrontando os princípios do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa, ao julgar as impugnações dos pedidos de registros de candidatura em que os candidatos foram condenados, por outro órgão de segundo grau, e.g. Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, por improbidade administrativa e, ainda, tiveram as contas rejeitadas por órgão competente, e.g. Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas e Congresso Nacional.

É de ver que estão previstas na Lei Complementar n. 64/90 que as condenações por ato de improbidade administrativa e, ainda, as rejeições de contas julgadas por órgão competente são causas de inelegibilidades.

Com relação à rejeição de contas, está previsto no art. 1º, inciso I, alínea “g”, da referida Lei Complementar que:

Art. 1° São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

[…]

  1. g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;”

 

A condenação por ato de improbidade administrativa encontra previsão no art. 1º, inciso I, alínea “l”. Veja-se:

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:[…]

  1. l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;

 

Não se insere dentre as competências da Justiça Eleitoral re-julgar a causa já julgar pelas casas legislativas, mas apenas aplicar o que foi decidido pelos parlamentares.

Edson de Resende Castro assevera que:

 

Como a inelegibilidade pressupõe decisão irrecorrível do órgão competente, necessário primeiramente verificar de que é a competência para a apreciação e julgamento das contas dos mencionados gestores. Não há dúvida de que será sempre o Poder Legislativo o órgão julgador dos atos de gestão do orçamento. Assim, o Congresso Nacional julga as contas do Presidente da República, as Assembléias Legislativas julgam as contas do Governador e as Câmaras Municipais julgam as contas do Prefeito.[…]

Em conclusão, o órgão competente, de cuja decisão irrecorrível de rejeição das contas resulta a inelegibilidade aqui examinada, é a Casa Legislativa correspondente (quanto à execução orçamentária) e o Tribunal de Contas (quanto à realização das despesas). E é bom lembrar que a execução de convênios (como também a administração de autarquias e fundações públicas) é a atividade de realização de despesas, suportadas com recursos especialmente aportados no órgão convenente, daí que o Tribunal julga as contas, e essa decisão não se submete ao Congresso Nacional, ou à Assembleia Legislativa, ou à Câmara Municipal, porque, insista-se, não se trata de parecer prévio.[41]

 

Marcos Ramayana sobre a competência da Justiça Eleitoral afirma que:

A competência da Justiça Eleitoral está cingida dentro das fases elencadas pela doutrina. A doutrina majoritária entende que à Justiça Eleitoral compete processar e julgar causas que estejam compreendidas entre o alistamento e a diplomação dos candidatos eleitos, e, por força de ação de natureza constitucional, que é a ação de impugnação ao mandato eletivo (art. 14, parágrafo 10), ainda possui competência para decidir essas ações que são ajuizadas no prazo decadencial de quinze dias, contados da diplomação. Fora desse prazo legal, não haverá mais competência da Justiça Eleitoral, devendo as questões ser dirimidas pela Justiça Comum.[42]

 

A competência da Justiça Eleitoral decorre da Constituição Federal e explicitada no Código Eleitoral. Essa competência é absoluta, posto que em razão da matéria. Da mesma forma que nenhum outro ramo da Justiça pode julgar matéria eleitoral, a Justiça Eleitoral não pode julgar matéria cível, tributária, trabalhista, previdenciária, etc.

A respeito da competência absoluta, Ovídio A. Baptista da Silva assevera que:

São casos de competência absoluta:

  1. a) a competência em razão da matéria (ratione materiae), ou seja, pela natureza da causa, e que tanto pode ser critério para determinação da justiça competente (justiça federal ou do trabalho ou militar, estadual ou eleitoral) quanto para estabelecer, depois de estabelecida a justiça competente, o juiz ou tribunal a que tenha sido conferida a respectiva competência para a causa. Assim, em comarcas de grande movimento forense, as leis de organização judiciária podem criar varas com competência exclusiva, por exemplo, para o processo e julgamento das causas cíveis ou criminais, para os processos oriundos do direito de família e sucessões, para os acidentes de trânsito, etc.[43]

 

Para Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.: “[…] A competência é o poder de exercer a jurisdição nos limites estabelecidos por lei. É o âmbito dentro do qual o juiz pode exercer a jurisdição. É a medida da jurisdição. […]”[44]

Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart sustentam que:

Assim, uma vez determinada a jurisdição nacional como habilitada para o caso e definida a “justiça” competente, cabe verificar, diante de determinado caso conflitivo concreto, qual é o órgão originariamente competente para julgar a causa, bem como qual o órgão competente para julgar eventual recurso (de acordo com as normas da Constituição Federal, das Constituições Estaduais e das leis de organização judiciária).[45]

 

É notório que os julgamentos das impugnações aos pedidos de registros de candidatura, que versam sobre condenações por ato de improbidade administrativa e rejeições de contas por órgão competente, estão adentrando na apreciação dos fatos que já foram analisados pelo Juiz competente e extraindo deles o dolo, a lesão ao patrimônio e enriquecimento ilícito, nos casos de condenações por improbidade administrativa. Em relação às rejeições de contas, julgadas por órgão competente, os juízes eleitorais têm também analisado o ato doloso de improbidade e se a irregularidade é insanável.

Assim, repise-se, mesmo quando o órgão competente afasta o ato doloso de improbidade administrativa, lesão ao patrimônio e/ou enriquecimento ilícito, a Justiça Eleitoral em muitos casos, julgando o pedido de registro de candidatura, faz uma apreciação do próprio mérito da ação de improbidade administrativa e do julgamento realizado pela Justiça Comum Estadual e Federal e Câmara Municipal, pelas Assembleias Legislativas, pelo Congresso Nacional e pelos Tribunais de Contas, decidindo o contrário que foi decidido pelos juízes naturais da causa.

Nesse ponto, pode-se citar o acórdão proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral no Recurso Ordinário n. 380-23.2014.6.11.000[46], em que reconheceu prejuízo ao erário, enriquecimento ilícito decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, mesmo não constando na parte dispositiva da condenação na Justiça Comum Estadual. O registro do pré-candidato foi indeferido em razão desse julgamento. Consta da ementa do referido Acórdão a seguinte premissa:

 

(…)

 

  1. Deve-se indeferir o registro de candidatura se, a partir da análise das condenações, for possível constatar que a Justiça Comum reconheceu a presença cumulativa de prejuízo ao erário e de enriquecimento ilícito decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, ainda que não conste expressamente na parte dispositiva da decisão condenatória.

 

(…)

 

As inelegibilidades previstas na Lei Complementar n. 64/90, mais precisamente as do art. 1º, inciso I, letras “g” e “l”, são conseqüências de condenações por outros órgãos (Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e Congresso Nacional) e Juízes/Tribunais, inclusive de Contas, diga-se, juízos naturais.

Portanto, a Justiça Eleitoral depende do juízo de valor acerca das condutas do candidato realizado por aquele Juízo natural, cuja competência está prevista na Constituição da República. Desse modo, o que foi decidido pelo juiz natural da causa deve prevalecer, restando à Justiça Eleitoral tão somente apreciar a questão objetivamente, sem que se faça qualquer juízo de valor, pela segunda vez, acerca da conduta do candidato. Essa, inclusive, é a dicção da Súmula 41 do Tribunal Superior Eleitoral.

A Justiça Eleitoral, ao realizar juízo de valor acerca dessas condenações, está re-julgando a lide originária, sem a devida competência e, ainda, ofendendo os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois o candidato não se defende dos fatos já apreciados pelo juiz natural, ou seja, se o ato é doloso, se houve lesão ao patrimônio, enriquecimento ilícito, se há irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, etc., mas somente da questão objetiva que é a decisão proferida por órgão de segundo grau ou por órgão competente para julgar as contas.

Deve-se ressaltar que, também na imposição de inelegibilidade por condenação por crimes previstos na Lei Complementar n. 64/90, a Justiça Eleitoral não tem competência para realizar novo julgamento acerca dos efeitos da prescrição punitiva e executória, para impor inelegibilidade ao candidato.

Assim, no âmbito da Justiça Eleitoral, faleceria competência para se reconhecer tal questão para que se imponha uma eventual inelegibilidade. A Justiça Eleitoral deve apenas verificar a existência dos requisitos previstos na Lei Complementar n. 64/90, caso haja, reconhece tais requisitos e indefere o registro de candidatura.

Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart ao discorrer sobre o tema:

 

[…] a) Princípio do juiz natural. O primeiro, e mais importante, princípio relativo à competência é o do juiz natural. Por ele, em toda estrutura jurisdicional concebida, haverá um – e apenas um – órgão jurisdicional competente para examinar cada uma das causas existentes. Mais que isso, por essa garantia exige-se que a determinação desse órgão competente se dê por critérios abstratos e previamente estabelecidos, repugnando ao direito nacional a instituição de juízos de exceção (criados para certos casos determinados e ex post facto).

Por conseqüência, cabe à lei fixar, previamente e de forma genérica, os critérios a serem utilizados para a identificação do juízo competente para o processo e julgamento dos casos eventualmente surgidos, vedada a sua fixação a posteriori, ou a tramitação e julgamento de feitos perante juízos incompetentes, em ofensa a regras processuais de cunho cogente (art. 5º, XXXVII e LIII, da CF). Portanto, de acordo com o princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, da CF), apenas a lei – geral e anterior – pode definir a competência dos órgãos jurisdicionais, sendo com base nela que se há de investigar a forma e os critérios de distribuição de competência no direito nacional. Por isso mesmo, estabelece o art. 1º do CPC, que a jurisdição (nas causas cíveis) é exercida pelos juízes, em todo território nacional, de acordo com as disposições previstas nesse diploma processual. […][47]

 

A Justiça Eleitoral não tem competência para apreciar o mérito das condenações por ato de improbidade administrativa relativamente ao ato doloso, à lesão ao patrimônio, ao enriquecimento ilícito, à insanabilidade das contas, quando do julgamento dos pedidos de registro de candidatura de candidato a cargo político.

Igualmente, não tem competência para julgar rejeição de contas feitos pelos órgãos competentes (Câmara Municipal, Assembléias Legislativas, Congresso e Tribunais de Contas).

Segundo José Jairo Gomes:

 

A competência é compreendida como medida e limite e jurisdição. Trata-se da distribuição do exercício da função jurisdicional entre os vários órgãos do Poder Judiciário, havendo delimitação do âmbito de atuação de cada um. A repartição de competência deve seguir os princípios fundamentais do juiz natural (CF, art. 5º, LIII) e de vedação de tribunal de exceção (CF, art. 5º, XXXVII), de forma que o órgão competente deve ser prévia e publicamente fixado por normas constitucionais e infraconstitucionais.[…]

A competência dos órgãos jurisdicionais eleitorais deve ser definida por lei complementar, nos termos do art. 121 da Lei Maior. Embora o Código Eleitoral tenha status de lei ordinária, quanto ao tema em apreço foi recepcionado pela Constituição de 1988 como lei complementar.[48]

 

Constitui ofensa ao juiz natural, aos princípios do contraditório, da ampla defesa, o dúplice julgamento, no aspecto meritório, da ação de improbidade administrativa, do julgamento das contas por órgão competente (Câmara Municipal, Assembléias Legislativas, Congresso e Tribunais de Contas) pela Justiça Eleitoral.

A competência da Justiça Eleitoral se limita a processar e julgar as impugnações aos pedidos de registro de candidaturas em razão das inelegibilidades previstas em lei, não podendo apreciar o mérito das condenações por ato de improbidade administrativa e rejeições de contas, devendo apenas analisar se o juiz natural condenou o candidato destacando a ocorrência do dolo, lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.

Portanto, caso não tenha condenado reconhecendo aqueles requisitos, tais premissas não devem ser extraídas da sentença/acórdão/decisão administrativa.

A Constituição da República e a Lei Complementar n. 64/90 não estabelecem competência para a Justiça Eleitoral apreciar o mérito das condenações e decisões elencadas no art. 1º, inciso I, alíneas “g” e “l”, uma vez que os órgãos competentes já realizaram o julgamento analisando o mérito das ações e contas do agente político e gestor.

As condenações por improbidade administrativa e o julgamento das contas de agente político e gestores pelo órgão competente não podem ser revistas pela Justiça Eleitoral, sendo que essa Justiça deve apenas se extrair os requisitos objetivos, previstos, como dito a Lei Complementar n. 64/90, das decisões dos órgãos competentes para julgar as ações originárias e contas dos agentes políticos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A competência da Justiça Eleitoral está prevista no art. 121 do Constituição Federal que remete à Lei Complementar a organização dessa competência. O Código Eleitoral, em seus artigos 22, 29 e 35, recepcionado como Lei Complementar, estabelece a competência da Justiça Eleitoral. Assim, essa Justiça Especializada somente pode julgar os crimes definidos como eleitorais e as ações cíveis-eleitorais que importem cassação de registro/diploma/mandato ou multa. Há outros diplomas eleitorais, além do Código Eleitoral, tratando dos ilícitos eleitorais, tais como a Lei n. 9.504/97, Lei Complementar n. 64/90.

A Justiça Eleitoral está impedida pela Constituição da República e Código Eleitoral para apreciar matérias alheias à sua competência.

No julgamento do pedido de registro de candidatura que envolva apreciação de rejeição de contas e improbidade administrativa, a Justiça Eleitoral somente pode analisar os requisitos objetivos da decisão da Câmara Municipal, Assembleias Legislativas e Congresso Nacional, Tribunais de Contas e da sentença e/ou Acórdão proferidos nas ações civis que discutam improbidade administrativa, ou seja, somente pode analisar se houve irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade, nos casos de rejeição de contas e o ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, nos casos de ação civil por improbidade administrativa.

A Justiça Eleitoral não tem competência para re-julgar as causas que já foram julgadas por outros ramos da Justiça, cujas decisões servem como prova de ilícito eleitoral, ou mesmo re-julgar questões já decididas pelas de Casas Legislativas, sob pena de afrontar os princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e do Juiz Natural.

 

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[1]COSTA, Tito. Recursos em matéria eleitoral. 4ª edição, ampliada e atualizada de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 28.

[2] CANDIDO, Joel J. Direito eleitoral brasileiro. 11ª ed., 3ª tiragem, revista e atualizada, Bauru, SP: EDIPRO, 2005, p. 38.

[3]COSTA, Tito. Recursos em matéria eleitoral. 4ª edição, ampliada e atualizada de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 28.

[4]COSTA, Tito. Recursos em matéria eleitoral. 4ª edição, ampliada e atualizada de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 29.

[5]CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. Preleções de Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 101.

[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª edição. São Paulo: Malheiros Editora Ltda., 2003, p. 435.

[7]ARAÚJO, Sérgio Luiz Souza. Teoria geral do processo penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999, p. 179.

[8] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1992, P. 120.

[9] Segundo André Leal: “É exatamente o enfoque do processo descolado da jurisdição legitimada a priori que permitirá a Fazzalari afastar o critério teleológico (tão caro à denominada Escola Instrumentalista do Processo) e adotar o critério que denomina lógico para a distinção entre processo e procedimento.” (LEAL, 2008, p.112)

[10] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1992, p. 131-132. “Como procedimento realizado em contraditório, o processo caracteriza-se por ser uma atividade cuja estrutura normativa (organizada por uma forma especial de conexão das normas e dos atos por elas disciplinados) exige que, na fase que precede o provimento, o ato final de caráter imperativo, seja garantida a participação daqueles que são os destinatários de seus efeitos, em contraditório, ou seja, em simétrica igualdade de oportunidades, e, pelo “dizer e contradizer”, que resulta da controvérsia sobre os atos, seja-lhes assegurado o exercício do mesmo controle sobre a atividade processual.”

[11]CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco. Teoria Geral do Processo. 19ª. ed. Revista e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2003, p. 57. In: “Em virtude da natureza constitucional do contraditório, deve ele ser observado não apenas formalmente, mas sobretudo pelo aspecto substancial, sendo de se considerar inconstitucionais as normas que não o respeitem.”

[12]BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Www.planalto.gov.br. Acesso em 2 de fevereiro de 2016.

[13]NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. 1ª edição (ano 2008), 4ª reimpressão. Curitiba: Juruá, 2012, p. 238.

[14]LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 99.

[15]LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 105.

[16]LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 44.

[17]LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 43.

[18]LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 43.

[19]NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. 1ª edição (ano 2008), 4ª reimpressão. Curitiba: Juruá, 2012, p. 256.

[20]DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 93-94.

[21] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 165.

[22]DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 166.

[23]NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: Princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 58-59.

[24] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco. Teoria Geral do Processo. 19ª. ed. Revista e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2003, p. 294-295.

[25] LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.

[26]ARAÚJO, Fabrício Simão da Cunha. A lealdade na processualidade democrática: escopos fundamentais do processo. Rio de Janeiro: Lumens Júris, 2014, p. 177. In: “Classicamente, na concepção instrumentalista do processo, o contraditório, assim como a ampla defesa, são colocados ao lado da imparcialidade do juiz, da ação, da livre investigação das provas, do impulso oficial, da oralidade, da persuasão racional, da motivação das decisões judiciais, da publicidade, da lealdade processual, da instrumentalidade das formas e do duplo grau de jurisdição.”

[27]CRUZ, Clenderson Rodrigues da. A ampla defesa em juízo no direito processual democrático: estudos críticos a partir da teoria neoinstitucionalista do processo. Belo Horizonte, 2015. 154 f. Orientador: Rosemiro Pereira Leal Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, p. 19.

[28]MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed., rev., e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 312.

[29]DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento.Vol. 1. 9ª edição. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008, p. 472.

[30]LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 100.

[31]LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013, p. 83.

[32]PAOLINELLI, Camilla Mattos. O ônus da prova no processo democrático. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2014, p. 29.

[33]CRUZ, Clenderson Rodrigues da. A ampla defesa em juízo no direito processual democrático: estudos críticos a partir da teoria neoinstitucionalista do processo. Belo Horizonte, 2015. 154 f. Orientador: Rosemiro Pereira Leal Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, p. 129-131.

[34]CRUZ, Clenderson Rodrigues da. A ampla defesa em juízo no direito processual democrático: estudos críticos a partir da teoria neoinstitucionalista do processo. Belo Horizonte, 2015. 154 f. Orientador: Rosemiro Pereira Leal Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, p. 141.

[35] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 13ª edição revista, atualizada e aumentada com remissões ao NCPC/2015. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016, p. 168.

[36] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 1ª edição. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006, p. 444.

[37]GOMES, Reginaldo Gonçalves. Direito Administrativo Disciplinar à luz da Jurisprudência dos Tribunais: Comentários aos tipos de ilícitos administrativos previstos na Lei n. 8.112/1990. 1ª edição. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2012, p. 76-77.

[38]DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento.Vol. 1. 9ª edição. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008, p. 90.

[39]FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. Tradutores: Ana Paula Zomer, Juarez Tavares, Fauzi Hassan Choukr, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2002, p. 472.

[40]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Www.planalto.gov.br. Acesso em 16 de fevereiro de 2016. In: “Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.”

[41]CASTRO, Edson de Resende. Teoria e prática do direito eleitoral. 6ª ed., rev., atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 220 e 223.

[42]RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 4ª edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 53.

[43]BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de processo civil: Processo de conhecimento. Volume1. 6ª ed., rev., e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 58.

[44]DIDIER JR., Fredie e Hermes Zaneti Jr. Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. Volume 4. 3ª edição, Salvador: Editora Jus Podivm, 2008, p. 147.

[45]MARINONI, Luiz Guilherme e Sérgio Cruz Arenhart. Processo de conhecimento. 7ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 40.

[46] BRASIL. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Recurso Ordinário n. 380-23.2014.6.11.000. Cuiabá/Mato Grosso. Relator Ministro João Otávio de Noronha. 11/09/2014. WWW.tse.jus.br. Acesso: 10 de set. 2018.

[47]MARINONI, Luiz Guilherme e Sérgio Cruz Arenhart. Manual do Processo de Conhecimento: A tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 3ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 49.

[48]GOMES, José Jairo. Crimes e processo penal eleitorais. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2015, p. 293.: Impetus, 2005.

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