Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a construção da norma jurídica, à qual o legislador ordinário deve necessária observância para a criação de normas protetivas ao Trabalho Infantil. Por razões explicáveis, as atenções geralmente se voltam ao trabalho infanto-juvenil quando inserido na relação de emprego. Donde surgem duas indagações: a primeira sobre a existência de normas genéricas de proteção abrangendo algumas relações de trabalho; a segunda acerca dos pontos mais importantes e que suscitam maiores controvérsias. Considerar-se-á a idade mínima para o trabalho fixadas nas Convenções e Recomendações da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre a idade mínima e sobre as piores formas de trabalho infantil. No contexto do ordenamento jurídico interno, fora, surgiram normas especiais genéricas de tutela do trabalhador adolescente, tanto na Consolidação nas Leis do Trabalho como no Estatuto da Criança e do Adolescente. Obviamente, não perseguimos o esgotamento de todas as questões relacionadas ao trabalho adolescente, pois, para isso, seria necessário um estudo mais específico.
Abstract: The purpose of this paper is to construct the legal norm, which the ordinary legislator must observe in the order to create protective norms for Child Labor. For explanable reasons, attention is usually paid to child labor when it is inserted in the employment relationship. From which two questions arise: the first on the existence of generic norms of protection covering some labor relations; The second on the most important points and the most controversial. The minimum age for work laid down in the International Labor Organization Conventions and Recommendations on the minimum age and the worst forms of child labor shall be considered. In the context of the internal legal system, outside, special generic norms of guardianship of the adolescent worker appeared, as much in the Consolidation in the Labor Laws as in the Statute of the Child and the Adolescent. Obviously, we do not pursue the exhaustion of all issues related to adolescent work, because, for that, a more specific study would be necessary.
Sumário: 1- Direito Positivo e ciência do Direito, 2 As piores formas de Trabalho ás luz da Organização Internacional do Trabalho
1. Direito Positivo e ciência do direito
O direito positivo é produto da intervenção do homem junto ao mundo circundante, que tem por função última regrar a ação humana, valorando positiva ou negativamente a conduta intersubjetiva.
Como ensina Lourival Vila nova
O direito positivo existe como técnica de ordenação da conduta humana, numa situação global historicamente individualizada. (…) Visa a controlar a conduta, impondo formas normativas a essa conduta e, através delas, a alcançar fins, uns permanentes, outras variáveis, de acordo com o ritmo histórico e a índole própria das culturas.[1]
Como todo bem cultural, o direito positivo manifesta-se pela linguagem artificialmente elaborada. A linguagem é condição da própria existência. Não existe direito positivo fora do universo da linguagem. Por essa razão, como alerta Paulo de Barros Carvalho, “não podemos cogitar da manifestação do direito sem uma linguagem, idiomática ou não, que lhe sirva de veículo de expressão.[2]
No mesmo sentido, Clarice von Oertzen de Araújo salienta que “a linguagem inclui-se entre as instituições humanas restantes da vida da sociedade. O direito é apenas uma das formas sociais funcionais que se manifesta através da linguagem, a qual possibilita e proporciona a sua existência.[3]
Assim, o direito positivo, como corpo de linguagem, apresenta-se como um conjunto de signos,[4] empregado em função eminentemente prescritiva de condutas que se projetam sobre o plano da linguagem da realidade social. Por ser uma camada de linguagem, o direito positivo pode ser investigado sob os ângulos sintático, semântico e pragmático.
Pela análise do plano sintático do direito positivo é possível examinar as relações que os signos mantêm entre si. Como o exame do plano semântico do direito positivo é permitido verificar de que modo esses signos se relacionam com os objetos significados, com os fatos e condutas. Por essa abordagem são captadas as significações contidas nos enunciados prescritivos, [5] revelando os valores cristalizados pela sociedade, que está pretende sejam protegidos ou realizados pela sociedade.
A análise pragmática do direito positivo permite estudar as relações existentes entre os sujeitos (emissores e receptores de mensagens jurídicas) e as mensagens propriamente ditas. O fim último do direito positivo é regulamentar a ação humana, orientando-a segundo os valores que a sociedade pretende proteger e realizar. Admitindo, com Paulo de Barros Carvalho, que o direito positivo visa modificar a realidade social por meio da linguagem utilizada em função prescritiva, e que o faz, sem uma intervenção efetiva no ser da conduta, uma vez que é livre a vontade do destinatário da mensagem legislada, é forçoso concluir que lhe compete é estimular ao máximo as consciências, a fim de que as condutas que prescreva sejam cumpridas e, de conseguinte, os valores que deseja sejam realizados.
Assim, para alcançar os objetivos que dele se espera, motivando os comportamentos desejados pelo meio social, a linguagem do direito positivo conta com o emprego de uma peculiar forma de coatividade.[6]
Tratando da camada de linguagem direito positivo, está a metalinguagem consubstanciada na ciência do direito.[7] A ciência do direito constitui um corpo de linguagem descritiva do feixe, de prescrições que formam o direito positivo. Com efeito, a ciência do direito consubstancia-se uma linguagem que fala sobre o corpo de linguagem do direito positivo
Nesse contexto, importante ter presente que a linguagem do direito positivo (linguagem-objeto) é diferente da linguagem da ciência do direito (metalinguagem) pela função pragmática que desempenha no processo da comunicação. O direito positivo constitui linguagem prescritivas de condutas, dotada de coatividade, que busca alterar comportamentos humanos, estimulando seus destinatários, ao passo que a ciência do direito consubstancia-se numa linguagem descritiva[8] desta primeira.
Sob o plano sintático também são distintas a linguagem do direito positivo e a linguagem da ciência do direito. A linguagem do direito positivo é presidida pelos valores validade e invalidade, próprios da lógica deôntica. Por seu turno, a ciência do direito revela-se como uma linguagem descritiva que, por essa razão, é regida pelos valores verdade e falsidade da lógica alética. Ressalte-se que a linguagem do direito positivo não descreve as condutas, mas, sim, prescreve, ordena, comanda, a ação humana. É dizer, o direito positivo não diz como são as condutas, antes, diz como deve ser a ação humana. Assim, descumprir as prescrições do direito positivo não afeta os valores verdade/falsidade que regem a linguagem da ciência do direito.
Ressalte-se, por fim, que no plano semântico também é possível distinguir as referidas linguagens. Pelo ângulo semântico, a linguagem do direito positivo dirige-se às condutas intersubjetivas na sociedade, no intuito de regulamentá-las. A linguagem da ciência do direito, no entanto, está voltada para os enunciados linguísticos que consubstanciam o direito positivo, procurando descrevê-los.
Outrossim, importante ter presente que a descrição do direito positivo, efetuada pela ciência do direito, não tem o condão de produzir o direito positivo.
Conforme explicita Tárek Moysés Moussallem,[9] a linguagem da ciência do direito atribui sentido do direito positivo, porém, sem a via da recepção, uma vez que seus enunciados (o da ciência do direito) advêm de atividade que não introduz enunciados prescritivos no direito positivo, mas apenas textos de dogmática jurídica.
Eis o corpo de linguagem direito positivo apresentando-se como ponto de partida para o conhecimento jurídico, o que também implicará a produção de outracamada de linguagem, a da ciência do direito.
1.1. A ciência do direito
Assentado que a linguagem exerce papel constitutivo da realidade jurídica, é forçoso ressaltar que, sendo o direito objeto que se manifesta em linguagem, aquele que lhe dirija com pretensões cognoscitivas, imerso que está num universo linguístico, será capaz apenas de interpretá-lo, compreendê-lo, não sendo possível reproduzi-lo, tal como se houvesse o sentido “em si”, passível de apreensão. Conhecer o direito, portanto, é atribuir-lhe sentido, significação, o que implicará, consoante visto, a produção de outra camada de linguagem, a da ciência do direito.
É esclarecedora a lição de Paulo de Barros Carvalho, segundo o qual aquele que
“tratar o direito como algo que necessariamente se manifesta em linguagem prescritiva, inserido numa realidade recortada em textos que cumprem as mais diversas funções, abriu horizontes largos para o trabalho científico, permitindo oportuna e fecunda conciliação entre as concepções hermenêuticas e as iniciativas de cunho analítico.”[10]
Inicialmente, cumpre advertir que a expressão “conhecimento jurídico” é ambígua. É dizer, nos discursos científicos é empregada com mais de uma acepção.
O direito, como camada de linguagem objeto do conhecimento, é passível de distintas análises cognoscitivas, cada uma a partir de uma perspectiva diferente, com seus cortes metodológicos, métodos de aproximação e objetivos próprios. Dessa forma, são legitimamente consideradas ciências jurídicas a sociologia do direito, a política do direito, a dogmática jurídica, entre outras, uma vez que todas essas ciências investigam algum aspecto do complexo e multifacetado objeto do conhecimento que é o direito.
A ciência do direito em sentido estrito ou dogmática jurídica, que aqui se pretende empreender, consiste em interpretar o conjunto de textos do direito positivo para reconstruir as mensagens normativas com sentido deôntico mínimo completo, articulando-as dentro do todo sistemático, que é o ordenamento jurídico, segundo relações de coordenação ou de subordinação.[11]
Essa investigação tem por objetivo examinar o interior do direito, isto é, como as prescrições jurídicas regulam as condutas submetidas no tempo e no espaço a um ordenamento jurídico considerado, ou, ademais empreender “análise intrasistêmica, de alguém que se põe dentro do sistema e dele não sai, até que se encontre satisfeito com os motivos de sua especulação”.
Segundo pontifica Paulo de Barros Carvalho, “o direito não se esgota somente no espaço normativo, sendo, como de fato é, um fenômeno complexo, de várias faces, para a configuração do qual muitos fatores concorrem”.[12] Entretanto, sendo sua preocupação com o direito epistemológica, busca tão-somente saber como é possível um caminho para investigá-lo, que será encontrado na linguagem dos textos normativos.
Quando o jurista almeja decifrar a mensagem normativa comunicada pelos textos do direito posto, fá-lo apresentando as prescrições que entende pertinentes ao sistema normativo, entretanto essas prescrições estarão sendo “mencionadas” e não “usadas”,[13] tendo em vista não ser o intérprete-jurista autoridade credenciada pelo ordenamento jurídico para disciplinar condutas por meio da introdução de textos prescritivos. Sua missão é conhecer o direito, voltando-se para seus textos, e construir propostas interpretativas que sejam passíveis de absorção pelos seus órgãos aplicadores.
Consoante Paulo de Barros Carvalho, “conhecer o Direito é, em última análise, compreendê-lo, interpretá-lo, construindo o conteúdo, sentido e alcance da comunicação legislada”[14] missão que requer o envolvimento do intérprete com todo o sistema, sobretudo com os escalões mais altos que ditam os vetores axiológicos positivados a serem seguidos.
1.1.1. Processo de interpretação do direito – construção normativa
Sem interpretação não é possível conhecer o direito. A interpretação é tema fundamental no processo de conhecimento que aqui se persegue.
Tendo em vista a contextura linguística do direito, bem como verificado que o fenômeno jurídico apresenta, como único dado objetivo, textos, geralmente escritos, comunicativos das mensagens normativas, é forçoso admitir a utilização de instrumentos de perquirição a eles adequados, no processo de seu sentido.
A atividade intelectual é complexa, devendo o exegeta fazer uso de todos os recursos disponíveis que lhe permitam investigar os textos do direito positivo, visto que deles é que se partirá para o esforço de decodificação presente no desenvolvimento hermenêutico. Aqui serão aproveitados os ensinamentos da semiótica, bem como da chamada teoria semiótica,[15] tão bem difundida por José Luiz Fiorin.[16].
Deveras, o fato de o direito apresentar-se em linguagem pressupõe aceitar que se circunscreve em um texto, dado objetivo que nos possibilita construir o conteúdo que se busca no processo gerativo de sentido.
“Texto”, no sentido estrito, se restringe ao corpus, plano de expressão. Entretanto, não há texto sem contexto, como adverte Paulo de Barros Carvalho,[17] haja vista a série de associações linguísticas e extralinguísticas indispensáveis à compreensão da mensagem enunciada como um todo de sentido por parte do intérprete. Segundo bem evidencia José Luiz Fiorin, “o discurso não é uma grande frase, nem um aglomerado de frases, mas um todo de significação”.[18]
Os textos jurídicos só podem ser analisados sob um prisma interno, é dizer, tendo como foco temático a organização, seus procedimentos e mecanismos estruturais, que fazem de uma totalidade de sentido.[19]
Cumpre enfatizar a utilidade das categorias que a semiótica oferece para o percurso gerativo de sentido dos textos do direito positivo. Como demonstra Paulo de Barros Carvalho, “o conhecimento de toda e qualquer manifestação de linguagem pede a investigação de seus três planos fundamentais: a sintaxe, a semântica e a pragmática”.[20] Somente dessa forma, o intérprete terá condições de explorar com maior riqueza o conjunto de símbolos gráficos empregados na comunicação normativa.
Sendo assim, conforme o modelo de interpretação desenvolvido por Paulo de Barros Carvalho, o processo gerativo do sentido normativo é analiticamente dividido em quatro planos ou fases, só alcançáveis por meio da abstração, e que se mostrará adequado a qualquer ramo do direito positivo, [21]definindo o percurso a ser seguido em todos os casos.
No processo de interpretação, o jurista inicialmente se põe em contato com a literalidade textual dos enunciados prescritivos (S1) fixados nos documentos normativos, quais sejam Constituição, emenda constitucional, lei complementar, lei ordinária, medidas provisórias, sentenças, atos administrativos, contratos, entre outro ressalvando que os enunciados não contêm em si mesmas significações. Os enunciados “são objetos percebidos pelos nossos órgãos sensoriais que, a partir de tais percepções, ensejam, intra-subjetivamente, as correspondentes significações”. É dizer, é a partir deles que se inicia o percurso gerativo de sentido normativo. Com efeito, sem as unidades enunciativas do direito posto, não há interpretação.
Em um segundo momento, entra o exegeta no plano dos conteúdos significativos dos enunciados prescritivos individualmente considerados (S2). Nesta instância, o intérprete atribuirá significação isolada ao enunciado prescritivo. É dizer, a partir da estrutura sintático-gramatical que é o enunciado, se constrói a proposição.[22]
Como se vê, enunciado e proposição representam planos distintos. Paulo Ayres Barreto bem elucida essa distinção dizendo que
“enunciados são conjuntos de palavras que cumprem, necessariamente, o requisito de expressar uma idéia. A proposição, de outra parte, é o significado de um enunciado declarativo ou descritivo, não se confunde com o enunciado mesmo, composto por palavras ordenadas segundo regras gramaticais. A proposição, como juízo significativo que é, apresenta uma forma lógica. A partir de enunciados construímos proposições jurídicas”.[23]
Somente no plano S3 é que se encontram as mensagens que contêm o mínimo necessário é regulação da conduta humana. Articulando as significações de vários enunciados prescritivos (proposições), de modo a ordená-las na forma de juízos implicacionais, ocuparão algumas o tópico de antecedente, enquanto outras o lugar de consequente. O intérprete, destarte, constrói as normas jurídicas capazes de orientar juridicamente a conduta humana (S3), “entidades mínimas e irredutíveis de manifestação do deôntico, com sentido completo”, [24]visto que “os comandos jurídicos, para terem sentido e, portanto, serem devidamente compreendidos pelo destinatário, devem revestir um quantum de estrutura formal”.
Entretanto, a significação obtida isoladamente com determinada norma não é suficiente para expressar o sentido final da orientação jurídica da conduta. Este somente é alcançado após o intérprete aperfeiçoar o seu processo exegético por intermédio de um trabalho denominado por Paulo de Barros Carvalho de “esforço de contextualização”.
Nas palavras desse mestre:
“Tendo a tarefa interpretativa caminhado pelos meandros do ordenamento, primeiramente à cata de sentidos isolados de fórmulas enunciativas, para depois agrupá-las consoante esquema lógico específico e satisfatoriamente definido, o objetivo presente é confrontar as unidades obtidas com o inteiro teor de certas orações portadoras de forte cunho axiológico, que o sistema coloca no patamar de seus mais elevados escalões, precisamente para penetrar, de modo decisivo, cada uma das estruturas mínimas e irredutíveis (vale novamente o pleonasmo) de significação deôntica, outorgando unidade ideológica à conjunção de regras que, por imposição dos próprios fins regulatórios que o direito se propõe implantar, organizam os setores mais variados da convivência social. A mencionar ser esse o apogeu da missão hermenêutica, penso não haver incorrido em qualquer excesso, pois é nesse clímax, momento de maior graduação do processo gerativo, que aparece a norma jurídica em sua pujança significativa, como microssistema, penetrada, harmonicamente, pela conjugação dos mais prestigiados valores que o ordenamento consagra”.[25]
Assim, construída a norma jurídica (S3), passa-se ao plano S4, no qual é feita a relação da norma com o todo do sistema jurídico vigente, por meio da verificação dos vínculos de coordenação e subordinação que se estabelecem entre as demais normas jurídicas.
Paulo de Barros Carvalho ensina que
“da mesma maneira que o subdomínio S3 é formado pela articulação de sentidos de enunciados, recolhidos no plano S2, o nível S4 de elaboração é estrato mais elevado, que organiza as normas numa estrutura escalonada, presentes laços de coordenação e de subordinação entre as unidades construídas. […] Enquanto, em S3, as significações se agrupam no esquema de juízos hipotéticos implicacionais (normas jurídicas), em S4 teremos o arranjo final que dá status de conjunto montado na ordem superior de sistema”.[26]
Desse modo, o S4 é o plano de interpretação em que será feito o cotejo sistemático das normas jurídicas construídas no plano S3.
Em suma, o percurso de geração de sentido normativo a ser percorrido pelo intérprete inicia-se a partir do contato com a literalidade dos enunciados prescritivos (plano de expressão); a seguir, passa pela atribuição de significações às frases isoladas dos textos legais (plano de conteúdo, das proposições) e, finalmente, ocupam esses conteúdos de significação o antecedente ou o consequente das normas jurídicas, compondo a estrutura lógica das unidades irredutíveis dotadas de sentido deôntico completo (plano das normas jurídicas suficientes para orientar juridicamente a conduta humana), que, contextualizadas, conformarão o arranjo final que dá status de conjunto montado na ordem superior de sistema.
Com efeito, durante esse processo de interpretação do discurso prescritivo do direito, haverão de ser examinados os planos sintáticos, semântico e pragmático da mensagem normativa.
Registre-se que há limites a essa atividade geradora do sentido em questão.
O processo de interpretação do direito encontra barreiras tanto na evolução semântico pragmática das palavras nos textos como na estrutura lógica que as normas jurídicas devem ostentar e, também, nas condicionantes lingüístico-culturais do intérprete.
Atento a essa circunstância, Gregório Robles Morchon assinala
“que ao operar sobre o texto jurídico bruto, que constitui o ordenamento, certamente que a dogmática se vê limitada pela existência de dito material, e nesse sentido não poderá nunca inventar” ex nihilo as normas nem o sistema. Assim, o ordenamento é o ponto de partida da interpretação, cuja fase final é a geração do sistema e das normas que o compõem”.[27]
Como visto, com o “giro linguístico”, sedimentou-se o entendimento de que não há sentido “em si” a ser alcançado pelo jurista quando diante do direito positivo com pretensões cognoscentes. Entretanto, o produto da interpretação realizada pelo sujeito cognoscente, uma vez que se trata de atividade construtiva de sentido (significação), estará, necessariamente, plasmado pela sua história, sua cultura, seus valores, condicionantes que conformam seu mundo linguístico.
Dessa forma, aquele que pretende conhecer o direito deverá, a par de vislumbrar cada possibilidade interpretativa, decidir entre as propostas interpretativas e oferecer o estudo exegético que lhe pareça melhor conforme sua comparação e sua valoração, para posterior conhecimento e crítica da comunidade científica.
Nesse contexto, busca-se, no presente trabalho, oferecer à comunidade
jurídico-científica alternativa interpretativa relacionada ao direito positivo brasileiro, ou melhor, acerca da norma que delimita atuação do legislador ordinário para a instituição dos enunciados prescritivos que comporão a legislação ordinária do Trabalho Infantil.
1.2. Norma jurídica
O que se entende por norma jurídica constitui ponto fundamental para o desenvolvimento do presente trabalho, uma vez que optamos pela análise do aspecto normativo como via de investigação do complexo e multifacetário objeto cultural que é o direito.
Consoante os três planos de interpretação do discurso prescritivo do direito positivo já analisados, a acepção de “norma jurídica” adotada no presente estudo é aquela que a vislumbra como o produto da atividade hermenêutico-analítica do estudioso do direito, processada a partir dos textos jurídicos e organizada numa estrutura lógico-sintática de significação que contém o mínimo necessário à regulação da conduta humana.
Defende-se com isso que a norma jurídica não se situa nos textos do direito positivo. Ela surge como resultado do processo de construção d desencadeado a partir do corpo dos referidos textos positivados. Como anota Gregório Robles Morchon, elas “só alcançam seu verdadeiro ser através de uma operação de construção hermenêutica”.[28]
Difere-se, por conseguinte, dos símbolos linguísticos (enunciados prescritivos) plasmados nos textos do direito positivo. É que as normas jurídicas encontram-se no plano das significações, ao passo que os enunciados prescritivos no da literalidade textual.
Ensina Paulo de Barros Carvalho que
“uma coisa são os enunciados prescritivos, isto é, usados na função pragmática de prescrever condutas; outra coisa, as normas jurídicas, como significações construídas a partir dos textos positivados e estruturadas consoante a forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas.”[29]
Nesse mesmo sentido ensina Eurico Marcos Diniz De Santi que
“norma jurídica é a proposição prescritiva que tem a forma implicacional, associando a um possível dado fáctico uma relação jurídica. A mera literalidade dos textos do direito não atinge, compartidamente, a forma proposicional de norma jurídica. A norma jurídica é norma a partir de sua imersão no todo que é o sistema de linguagem do direito positivo.”[30]
Destarte, considerando que norma jurídica é o resultado da associação dos conteúdos de significação dos enunciados prescritivos, conclui não ser cabível cogitar de normas “implícitas”, já que tais unidades “estão necessariamente na implicitude dos textos, não podendo haver, por conseguinte, ‘normas explícitas’”.[31]
Difere-se a norma jurídica, ainda, da mera significação isolada (proposição) que se produz na mente do intérprete a partir da leitura de um enunciado prescritivo ou de vários enunciados.
Entende-se que a norma jurídica é decorrência da articulação das proposições, ou seja, fruto da significação construída na mente do intérprete, com sentido dêontico completo formado por várias noções (proposições) que muitas vezes um só texto não é capaz de propiciar. Reveste-se, destarte, de uma estrutura lógico formal mínima para que a mensagem do “dever ser” seja efetivamente compreendida pelo seu destinatário, sendo suficiente, pois, para regular juridicamente a conduta humana.
O conteúdo significativo isolado (proposição) que o enunciado prescritivo expressa não permite a formulação de significação organizada na forma de juízo hipotético-condicional. Ademais disso, não se apresenta com a corresponde prescrição sancionatória, um dos traços característicos da norma jurídica, conforme será visto mais adiante.
Atenta para a distinção entre norma jurídica e significação de enunciado prescritivo (proposição), Maria Rita Ferragut anota que
“nem sempre as significações construídas a partir de um único artigo de lei são suficientes para compor a norma jurídica, unidade mínima irredutível do deôntico, devendo estar estruturadas hipotética-condicionalmente e trazer a previsão de sanção. Para isso o intérprete deverá socorrer-se de diversos textos de lei (suportes físicos), podendo o mesmo artigo, a seu turno, gerar tantas significações quantos forem o número de intérpretes, pois a norma não está no texto escrito, mas no juízo provocado no espírito do intérprete”. [32]
E conclui dizendo:
“do exposto, temos que o artigo 2.º da Constituição Federal, ao estabelecer que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, constitui-se num enunciado prescritivo, mas o significado, a partir dele construído não se configura com o conceito de norma jurídica aqui adotado, já que não é possível formular, com base unicamente em seu texto, uma significação organizada numa estrutura hipotética-condicional, nem identificar a presença da sanção.”
Destarte, o conteúdo significativo isolado do enunciado prescritivo
(proposição), por não se apresentar como uma significação estruturada numa forma de juízo hipotético-condicional, e, com efeito, por não ostentar previsão sancionatória, configura mera significação com sentido de dever ser incompleto. É, destarte, diferente da norma jurídica no sentido estrito – significação construída pelo intérprete a partir do texto positivado e organizada numa estrutura hipotético-condicional, formada pela associação de duas ou mais proposições prescritivas, esta, sim, suficiente para regular juridicamente a conduta humana.
Adotando essa concepção, cabe ter presente, portanto, a distinção entre norma jurídica no sentido estrito (estrutura hipotético-condicional de significação formada a partir da reunião de várias proposições, voltada para a regulação da conduta humana) e proposição prescritiva (mera significação isolada com conteúdo de dever ser incompleto).[33] Por precisão semântica, ao fazer referência àquelas unidades de significação, utilizaremos os simples termos “norma jurídica”, ao passo que para designar estas significações isoladas com sentido deôntico incompleto adotaremos as expressões “proposição normativa” ou “significação de enunciado prescritivo”.
Ressalte-se, ademais disso, que apenas a norma jurídica concebida em sua integridade constitutiva hipotético-condicional contém o mínimo do dever ser necessário à regulação da conduta humana. Essa é razão pela qual adotamos o chamado princípio da homogeneidade sintática das normas jurídicas.[34] Com essa premissa epistemológica, é possível vislumbrar uma estrutura lógico-formal mínima comum a todas as normas componentes do ordenamento jurídico.
O princípio da homogeneidade pragmática, bem como o da heterogeneidade semântica, figuram como outras premissas epistemológicas neste modelo de referência.
Segundo o princípio da homogeneidade pragmática, é possível afirmar que todas as normas jurídicas têm por função regrar condutas, sejam aquelas de criação, modificação ou expulsão de outras normas, seja a dos cidadãos comuns que não vislumbrem essa atividade.
Em contrapartida, segundo o princípio da heterogeneidade semântica, sendo múltiplos os aspectos da vida humana que o direito pretende disciplinar, para que a disciplina jurídica da vida social seja a mais completa possível, o conteúdo semântico das normas jurídicas tem de ser o mais variado e heterogêneo.
Entretanto, cabe ter presente que essa necessidade não significa que inexistam limites ao conteúdo semântico das normas jurídicas. Conforme oportunamente exposto por Maria Rita Ferragut,
“as normas, ao incidirem sobre suportes factualmente possíveis, não devem prever condutas e situações jurídicas impossíveis ou necessárias, sob pena de, desde seu nascimento, estarem condenadas aos predicados de não-vigência e das ineficácias técnica, jurídica e social “[35]
1.2.1 A estrutura lógica da norma jurídica
Consoante o modelo de referência aqui adotado, as normas jurídicas do ordenamento jurídico compartilham de uma mesma estrutura lógica, independentemente do conteúdo semântico que possam carregar.[36]
A estrutura lógica das normas jurídicas, destarte, será a de um juízo hipotético-condicional, que determina a relação de implicação deôntica entre hipótese e consequência. A hipótese descreverá os critérios identificadores de um fato de possível ocorrência ou já ocorrido e funcionará como implicante da consequência, que prescreverá a disciplina de um comportamento intersubjetivo.
Para que se configure o nexo de causalidade jurídica, em que a hipótese implicará deonticamente a conseqüência, haverá dois operadores: o functor-de-functor e o functor implicacional, perfazendo a seguinte fórmula lógica: D (H → C), em que D é o functor-de-functor (dever-ser interproposicional), H é a hipótese, → é o functor implicacional e C é a consequência.
Cabe à hipótese descrever uma situação objetiva de possível ocorrência, utilizando-se, para tanto, da indicação de propriedades de alguns de seus aspectos, cuja coincidência com os caracteres apresentados em determinados fatos possibilitará seu ingresso no mundo jurídico58 ou, ainda, consignar situação que já ocorreu.59 Registre-se que a referida indicação possui caráter eminentemente axiológico, porquanto é realizada tendo em conta os valores que presidem a própria elaboração da hipótese normativa. A hipótese é, como arremata Lourival Vilanova, “construção valor ativamente tecida, com dados-de-fato, incidente na realidade e não coincidente com a realidade”.[37]
A consequência, por sua vez, prescreve condutas intersubjetivas. Apresenta-se com uma proposição relacional que enlaça dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou obrigatória. Diante da lei formal do quarto excluído, resta impossível qualquer outra modalização de conduta prescrita.
Na estrutura D estrutura D [H → R (S’, S”)], desdobramento da estrutura lógica da norma jurídica expressa pela fórmula D (H → C), R é o relacional deôntico e S’ e S” são os sujeitos de direitos, relacionados segundo aquelas modalidades deônticas (dever-ser intraproposicional).
A norma jurídica de competência tributária, bem como a regra matriz de incidência tributária, apresentam essa mesma estrutura lógica de juízo hipotético condicional, cujos componentes serão examinados mais adiante.
1.2.2 Norma geral e abstrata, norma individual e concreta
A doutrina costuma classificar as normas jurídicas entre gerais e abstratas e entre individuais e concretas.
A abstração e a concretude atribuídas às normas jurídicas designam o modo como foi descrita a situação fática que figura na hipótese normativa. A norma será abstrata quando se apresentar na forma de tipo ou categoria genérica61 e será concreta quando especificar um fato determinado no tempo e no espaço.
A generalidade e a individualidade da norma jurídica, por sua vez, referem-se ao conjunto de seus destinatários presente no consequente normativo. Geral será a norma que se dirige a conjunto de sujeitos indeterminados quanto ao número; individual, aquela voltada a certo indivíduo ou grupo identificado de pessoas.[38]
Registre-se que no sistema do direito positivo, entidade da qual nos ocuparemos mais adiante, todas as combinatórias são possíveis. Há normas gerais e abstratas (v.g., regras matrizes de incidência tributária), gerais e concretas (v.g., veículos introdutores de normas), individuais e abstratas (v.g., contratos particulares com obrigações futuras), e individuais e concretas (v.g., as normas introduzidas pelo lançamento tributário). Muito embora sejam diferentes semanticamente, apresentam aquela mesma estrutura sintática de juízos hipotéticos condicionais.
Esclareça-se, outrossim, que é por meio das normas individuais e concretas que o direito alcança seu escopo de alteração do comportamento do homem. É dizer, no momento em que as normas abstratas e gerais incidirem, ou seja, ganharem concreção por meio da edição das regras que, ao registrarem em seu antecedente a ocorrência da situação, desencadearão, por imputação deôntica, uma relação jurídica em sentido estrito.
1.2.3 Norma de estrutura e norma de conduta
Salienta Hans Kelsen que a análise do direito expõe uma peculiaridade, já que este “regula a sua própria criação, na medida em que uma norma jurídica determina o modo em que outra norma é criada e também, até certo ponto, o conteúdo dessa norma”.[39]
Compartilhando desse mesmo entendimento, Gregório Robles Morchon assevera que “todo sistema jurídico é gerado a partir de si mesmo, no sentido de que as
próprias normas que o conformam prevêem mecanismos para gerar normas e para transformar as já existentes”.[40]
Em razão dessa singularidade, as normas jurídicas são também classificadas pela doutrina em normas de conduta e em normas de estrutura ou de competência, a partir dos ensinamentos de Norberto Bobbio.66 Aquelas normas jurídicas voltadas direta e imediatamente à regulação dos comportamentos das pessoas, nas relações de intersubjetividade, são denominadas normas de conduta. As normas jurídicas dirigidas apenas indiretamente e mediatamente às condutas humanas, voltando-se mais à produção de estruturas dêontico-jurídicas, são chamadas de normas de estrutura.
1.2.3.1 Normas que regulam condutas normativas e normas que regulam condutas não-normativas
Todas as normas jurídicas se destinam, ainda que indiretamente, à regulação das condutas. É dizer, as normas jurídicas sempre são normas de conduta, ainda que a conduta regulada tenha por conteúdo a regulação do comportamento de criar normas.
Consoante explica Norberto Bobbio, “as normas de estrutura podem também ser consideradas como as normas para a produção jurídica: quer dizer, como as normas que regulam os procedimentos de regulamentação jurídica”. [41]Nesse sentido, pode-se dizer que as normas de estrutura são normas que regulam condutas normativas.
Lourival Vilanova compartilha desse mesmo entendimento. De acordo com suas palavras, “sempre a norma de direito é norma de conduta, ainda que a conduta regulada tenha por específico conteúdo o regramento dos modos de criar regras”.[42] A respeito das chamadas normas de estrutura Vanessa Nobell Garcia explica que “são normas de comportamento por regularem […] a conduta de produção de outros enunciados jurídicos – atividade humana competente”.[43]
Atento a este raciocínio, Daniel Monteiro Peixoto também nota que as denominadas normas de estrutura,
“assim entendidas aquelas que prescrevem a autoridade competente e o procedimento segundo o qual as normas devem ser produzidas (e.g., determinações da Constituição Federal relativas ao processo legislativo), bem como as que regem os limites materiais desta atividade (e.g., limitações constitucionais negativas referentes à preservação dos direitos e garantias fundamentais), regulam tanto o comportamento necessariamente adotado pelo sujeito credenciado para que novas normas sejam produzidas quanto o comportamento geral de obediência à norma produzida segundo aqueles parâmetros.”[44]
E, indo mais além, este autor assevera que as normas abstratas e gerais, tradicionalmente denominadas normas de comportamento, da mesma forma que as normas de estrutura, regulam, sob certo aspecto, a produção normativa. Para tanto, utiliza-se da regra-matriz de incidência tributária, exemplo de norma comumente aceita como norma de comportamento, para demonstrar que a atividade da autoridade administrativa, por ocasião da produção da norma individual e concreta do lançamento, está pautada pelas regras que delimitam o procedimento, bem como por aquela que demarca o conteúdo da própria regra-matriz (norma concreta e individual).
Desse modo, na esteira desse mestre, todas as normas de antecedente abstrato não são normas de comportamento, e sim normas de estrutura, visto que, ante a necessidade de serem aplicadas para que possam ser cumpridas, orientam a produção de outras unidades normativas de inferior hierarquia, quais sejam as normas concretas e individuais.
Por isso, estamos com o referido autor quando conclui que “as normas de comportamento são, tão-somente, as normas de antecedente concreto”.[45]
Como ensina Eurico Marcos Diniz De Santi,76 necessário se faz ajustar aquele critério de discrímen à conduta de produção de outras normas ou não, de modo a evidenciar a existência de normas de conduta em sentido estrito e normas de competência ou de produção normativa, conquanto seja sublinhado que tanto umas
como outras disciplinam comportamentos intersubjetivos.[46]
Nesse sentido, reformulando o critério de discrímen entre “normas de estrutura” e “normas de comportamento”, capitaneado por Noberto Bobbio, haverá no ordenamento jurídico normas que regulam condutas normativas e normas que regulam condutas não-normativas.
As normas que regulam a condutas normativas são aquelas que direcionam o exercício da competência, podendo ser denominadas normas de competência ou normas de produção normativa. Essas normas orientam o órgão credenciado, o procedimento, bem como os limites materiais para a produção de novas estruturas deôntico-jurídicas. É dizer, disciplinam o comportamento de produção normativa.
Por seu turno, as normas que regulam condutas não-normativas direcionam em termos decisivos e finais os comportamentos interpessoais, modalizando-os deonticamente como obrigatórios, proibidos ou permitidos. Atestam “denotativamente a ocorrência do fato jurídico e prescrevem, através de implicação deôntica, os comportamentos a serem seguidos, sem necessidade de interposição e outro ato de produção normativa”.[47]
Para empreender o presente trabalho partiremos da construção da norma que regula a conduta de produzir normas. Nossa intenção é, num primeiro momento, analisar a norma de competência legislativa interna do menor, veiculada por intermédio do Texto Constitucional e Convenção Internacional do Trabalho, cujo consequente normativo prescreve permissão para criação dos enunciados prescritivos que comporão os critérios da regra-matriz de incidência tributária correspondente, em consonância com um certo conjunto de limitações prescritas pelo próprio direito positivo. A partir dessa norma jurídica construiremos, com fundamento nesse conjunto de limitações que informam a conduta de criação normativa, a norma padrão do trabalho infantil e suas piores formas.
1.4 Sistema do direito positivo
Após admitir que o fenômeno jurídico é complexo e multifacetário, bem como eleger seu aspecto normativo como via de investigação das disciplinas das condutas interpessoais, necessário se faz explicitar a idéia de sistema de direito positivo ou ordenamento jurídico (nosso objeto de estudo), sobrelevando sua unidade e estrutura escalonada.
O vocábulo sistema é plurissignificativo, ou seja, apresenta-se como um daqueles termos de vários significados. Bem por isso, necessário esclarecer, desde logo, a concepção de sistema neste trabalho.
Elucidando o termo “sistema”, Lourival Vilanova salienta que “falamos de sistema onde se encontrem elementos e relações e uma forma dentro de cujo âmbito, elementos e relações se verifiquem”.79 Nesse sentido posiciona-se Paulo de Barros Carvalho, ao afirmar que “onde houver um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referência determinada, teremos a noção fundamental de sistema”.80
Tercio Sampaio Ferraz Júnior, por sua vez, entendendo tratar-se o sistema de um conjunto que se compõe de uma estrutura e de um repertório, chama de “repertório” o conjunto de elementos que integram um determinado sistema, reservando o termo “estrutura” para designar o conjunto de relações que se estabelecem entre os elementos componentes do sistema. Este autor bem elucida essa noção de sistema com o seguinte exemplo:
“uma sala de aula é um conjunto de elementos, as carteiras, a mesa do professor, o quadro-negro, o giz, o apagador, a porta etc., mas estes elementos, todos juntos, não formam uma sala de aula, pois pode tratar-se do depósito da escola; é a disposição deles, uns em relação aos outros, que nos permite identificar a sala de aula; essa disposição depende de regras de relacionamento; o conjunto dessas regras e das relações por elas estabelecidas é a estrutura. O conjunto dos elementos é apenas o repertório. Assim, quando dizemos que a sala de aula é um conjunto de relações (estrutura) e de elementos (repertório), nela pensamos como um sistema. O sistema é um complexo que se compõe de uma estrutura e um repertório”.[48]
A noção de “sistema”, portanto, nos remete a duas propriedades fundamentais: repertório (elementos) e estrutura.
Cristiano Carvalho, partindo da premissa de que haverá sistema onde houver elementos cuja inter-relação seja estabelecida por uma estrutura, esclarece que “a estrutura estabelece a relação entre os elementos e os elementos definem a estrutura a ser seguida. Não se trata de paradoxo, mas sim do modo de ser próprio dos sistemas”.[49] E completa dizendo que, no caso do sistema jurídico,
“a ordem determinará o modo como o sistema funciona, como os seus elementos são criados, ao passo que são esses mesmos elementos que ditam a ordem – normas que ditam a estrutura do sistema, ou como este se auto-regulará. Destarte, sistema é todo conjunto de elementos que se relacionam entre si segundo sua própria estrutura”.
Compartilhando dessa concepção, tomamos por “estrutura” o conjunto de regras que determinam as diferentes relações de coordenação e subordinação firmadas entres os elementos, e, por “repertório”, o conjunto dos elementos que compõem o sistema. Dessa forma, por sistema queremos indicar o conjunto de elementos ordenados sob uma perspectiva unitária segundo uma determinada estrutura.[50]
Destarte, partindo dessas premissas, um conjunto de normas jurídicas agrupadas sem qualquer critério, sem algo que as relacione, nada mais é que um mero conjunto de normas. Dependendo da região material das condutas tratadas por essas normas jurídicas, esse grupamento de entidades normativas poderá representar um conjunto de normas penais, administrativas, tributárias, etc. Se, porém, não estiverem relacionadas, ou seja, não possuírem uma certa estrutura, não formarão um sistema de normas. Por outro lado, se existir uma articulação entre elas, por exemplo, se uma for fundamento das demais, existindo hierarquia,[51] revela-se aí uma estrutura entre esses elementos. Tem-se, então, um sistema de normas jurídicas. Fazemos menção à expressão “sistema de direito positivo” para se referir ao conjunto de normas jurídicas existentes em um país, num dado intervalo de tempo, também denominado “sistema jurídico”.
Um sistema de direito positivo é um conjunto de normas organizado segundo uma estrutura que lhe confere unidade. De se ter presente que são as normas jurídicas os elementos do sistema do direito positivo. Ressalte-se, no entanto, que eventual decomposição desses elementos para fins de estudo, não implica perda da identidade e integridade conceitual da norma jurídica. Com efeito, fatos jurídicos, relações jurídicas, hipóteses e consequências compõem o sistema do direito positivo como elementos integrantes das normas jurídicas. Do mesmo modo, “regras”, “comandos”, “princípios”, “imunidades” existem no direito positivo, sempre, integrados à estrutura condicional própria de uma norma jurídica.
A estrutura do sistema do direito positivo corresponde à sua organização hierárquica vertical (subordinação das normas) e horizontal (coordenação entre normas). Os elementos contidos nesse sistema aparecem em vínculos de coordenação e subordinação, tanto sob o aspecto formal como material.[52]
A unidade do sistema de direito positivo, em última análise, repousa na relação hierárquica que os elementos têm com a norma fundamental, para a qual todos os elementos do sistema convergem, dela retirando fundamento de validade.[53]
1.5 Validade
Ensina Marcelo Neves[54] que as normas jurídicas irregularmente produzidas por autoridade qualificada como competente ingressam no sistema jurídico e nele permanecem até que sejam expulsas do ordenamento, por meio do mecanismo especial de desconstituição normativa. Nesse contexto vislumbram-se duas instâncias distintas, quais sejam o ingresso da norma jurídica no ordenamento jurídico, a sua conformidade ou não perante todas as normas que disciplinam sua produção.
As normas jurídicas pertencem ao sistema e, ao mesmo tempo, presumem-se válidas, ou seja, em consonância com as regras superiores que lhes disciplinam a produção. Validade, portanto, é empregada para designar a relação de pertinencialidade com o sistema normativo, e, bem assim, sua conformidade com as regras de produção normativa.
Não obstante a inquestionável percuciência desses insignes mestres, pensamos de forma diversa. Entendemos que “pertinencialidade” e “norma em conformidade com a regra de competência ou de produção normativa” são realidades distintas. Destarte, fazemos distinção entre o fenômeno do ingresso de uma norma jurídica no sistema normativo e o da sua consonância às normas que disciplinam sua produção.
Desde já consignamos que, desde o momento da entrada de determinada norma jurídica no sistema normativo, presume-se que foi editada com observância às regras hierarquicamente superiores que disciplinam sua edição. Portanto, a efetiva confirmação ou infirmação da validade da norma só ocorrerá em posterior análise, caso venha a ser questionada em processo judicial.
Deveras, essa circunstância é indispensável ao funcionamento do sistema do direito positivo, pois, do contrário, o mesmo “fatalmente cairia no caos se os indivíduos pudessem rebelar-se contra as leis cada vez que em sua opinião se opusessem a normas constitucionais”.[55] Agirá por conta e risco aquele que, antes de declarada a invalidade de determinada norma jurídica, pretender desobedecê-la, a pretexto de entendê-la incompatível com as regras de competência.[56]
Dessa forma, designaremos “pertinência” a relação que se estabelece entre a unidade normativa e o respectivo sistema de normas em que ingressou por decisão de agente qualificado competente. Por “validade” chamaremos a expressão que denota a perfeita consonância de uma norma jurídica para com as regras de produção normativa (introdutora de limites formais e materiais).[57]
Nesse cenário, a presunção de validade que corre a favor da norma jurídica poderá ser desconfirmada por ato de agente competente, isto é, credenciado pelo próprio sistema de direito positivo. Reservado fica ao estudioso do direito tão-somente a constatação ou não da presunção de validade da norma jurídica posta.
Na lição de Marcelo Neves, o ordenamento jurídico
“tolera a incorporação irregular de normas jurídicas, que permanecerão no sistema enquanto não houver produção de ato jurídico ou norma jurídica destinada a expulsá-las, isto é, até que se manifeste o órgão competente desconstituindo-as.
Portanto […] os sistemas jurídicos, construídos e desenvolvidos através dos processos políticos e técnicos de produção-aplicação normativa, caracterizam-se por nítida distinção entre pertinência e validade das normas.”[58]
A distinção entre “pertinência” e “validade” aqui empreendida, desembocará nas mesmas consequências verificadas por aqueles autores, dado que, de qualquer forma, as normas que adentram no ordenamento jurídico ostentarão presunção de validade, até que sejam revogadas ou que o Estado-juiz, qualificado como competente, edite outras normas que declarem sua invalidade e as tornem inaplicáveis ou expulsas, conforme atue em controle difuso ou concentrado, respectivamente.[59]
Como ensina Paulo de Barros Carvalho, “uma norma só tem sua validade retirada através de outra norma que o determine”.[60]Destarte, o jurista enquanto cientista do direito, não tem permissão para decretar a invalidade de um documento normativo posto por autoridade qualificada como competente.
Por essa razão, cabe ao jurista reconhecer ou não a presunção de validade da norma jurídica, quando tenha sido produzida por órgão competente para produzi-la.
Segundo a oportuna lição de Eurico Marcos Diniz De Santi, a funcionalidade do direito não pode esperar que o Judiciário se manifeste sobre todas as leis produzidas, nem o primado da tripartição de Poderes admite tal interferência. A lei é (presume-se) válida até que se prove o contrário. Por isso, há no direito garantias para corrigir eventuais desvios, como o mandado de segurança, a declaração incidental em ação ordinária, a ação direta de inconstitucionalidade e ação direta de inconstitucionalidade etc.[61]
Sendo assim, é imperioso reconhecer que o sistema do direito positivo apresenta-se como o conjunto de normas postas por autoridades nele mesmo indicadas, de modo que ostentarão presunção de conformidade a todas as normas que disciplinam sua criação, permanecendo assim até que sejam expulsas do sistema.
2. A Convenção nº 182 e a Recomendação nº 190 da OIT Sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil
Pelo Decreto Legislativo n. 178, promulgado em 14 de dezembro de 1999, o Congresso Nacional, como lhe compete (art. 49, I, da Constituição Federal), aprovou os textos da Convenção n. 182 e da Recomendação n. 180 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a Proibição das piores formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua Eliminação, concluídas em Genebra em 17 de junho de 1999.
Em 12 de setembro de 2000, o Presidente da República baixou o Decreto n. 3.597, por meio do qual promulgou referidas Convenção e Recomendação. Na prática, os atos multilaterais citados, considerando que o Governo brasileiro depositou o Instrumento de Ratificação da referida Convenção em 2 de fevereiro de 2000, passaram a vigorar, para o Brasil, em 2 de fevereiro de 2001.
Os documentos complementam a Convenção e Recomendação sobre a idade mínima de admissão ao emprego, de 1973. Os efeitos da Convenção n. 182, o termo “criança” designa toda pessoa menor de 18 anos, no que respeita ao nosso estudo, no entanto, pelas razões já expostas, ficam mantidos os conceitos dados, sem invalidar a necessidade de adoção de providências inclusive em relação ao trabalho irregular de maiores de 16 anos.
De acordo com o art. 3º da Convenção n. 182, a expressão “as piores formas de trabalho infantil” abrange:
“a. Todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida e servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;
b. utilização, procura e oferta de crianças para fins de prostituição, de produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos;
c. utilização, procura e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes;
d. trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança.”
A convenção determina, no art. 5º, a todo país-membro que a ratificar, o desenvolvimento de programas de ação para eliminar, com prioridade, as piores formas de trabalho infantil suprarrelacionadas. E, no art. 7ª, além de preceituar a adoção de medidas assecuratórias do seu cumprimento, inclusive com a elaboração e aplicação de sanções penais, a Convenção n. 182, considerando a importância da educação para a eliminação do trabalho infantil, ordena a adoção de medidas efetivas com o fim de:
“a. impedir a ocupação de crianças nas piores formas de trabalho infantil;
b. proporcionar a necessária e apropriada assistência direta para retirar as crianças das piores formas de trabalho infantil e assegurar sua reabilitação e integração social;
c. garantir o acesso de toda criança retirada das piores formas de trabalho infantil à educação fundamental gratuita e, quando possível e conveniente, à formação profissional;
d. identificar crianças particularmente expostas a riscos e entrar em contato direto com elas; e
e. levar em consideração a situação especial das meninas.”
A Recomendação n. 190, que suplementa as disposições da Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil, 1999, exorta os países-membros a elaborar e executar em caráter de urgência os programas de ação mencionados no art. 6º da Convenção n. 182. Dentre outras sugestões contidas no documento pregam especial atenção ao problema dos trabalhos ocultos, nos quais as meninas estão particularmente expostas a riscos, e a outros grupos de crianças com vulnerabilidades ou necessidades especiais (art. 2º, “c”, III e IV).
Na parte destinada à abordagem do trabalho perigoso, a OIT recomenda que os países-membros (art. 3º), ao determinar os tipos de trabalho a que se refere o art. 3º (d) da Convenção e ao identificar sua localização, devem, entre outras coisas, levar em conta:
“a. os trabalhos que expõem as crianças a abuso físico, psicológico ou sexual;
b. os trabalhos subterrâneos, debaixo d’água, em alturas perigosas ou em espaços confinados;
c. os trabalhos com máquinas, equipamentos e instrumentos perigosos ou que envolvam manejo ou transporte manual de cargas pesadas;
d. os trabalhos em ambientes insalubres que possam, por exemplo, expor as crianças a substâncias, agentes ou processamentos perigosos, ou a temperaturas ou a níveis de barulho ou vibrações prejudiciais a saúde;
e. os trabalhos em condições particularmente difíceis, como trabalho por longas horas ou noturno, ou trabalhos em que a criança é injustificadamente confinada às dependências do empregador.”
Dentre as medidas preconizadas com vista à proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, a OIT inclui a informação, sensibilização e mobilização da opinião pública. De fato, sem que isto ocorra, nunca nos livraremos deste flagelo, presente no nosso dia-a-dia, em pleno século XXI.
2.1. Proibição de Trabalho Noturno
Também no inciso XXXIII do art. 7º, a Constituição Federal proíbe- sem defini-lo o trabalho noturno aos que ainda não completaram dezoito anos de idade. A vedação, conforme Oris de Oliveira (1993, p. 9), se justifica porque “os estudos científicos comprovam que o trabalho noturno tem como efeito um maior desgaste físico e mental, sem falar em outros de natureza diversa, como o de dificultar a convivência familiar e social”. Com efeito, se afeta o relógio biológico das pessoas, sendo prejudicial até para adultos, não deve ser permitido para adolescente.
Embora concordemos com Oris de Oliveira quando, de lege ferenda, defende que, considerando vários fatores o tempo tido como “noturno” deveria fixar-se entre 20h00 e 6h00 (1993, p. 9) ou das 20h00 às 7h00 (2002, p. 217) para o trabalho do adolescente, a verdade é que o conceito está atrelado à lei, vigente, devendo ser extraído a partir de fundamentos jurídicos e não de senso comum.
Assim, para efeitos trabalhistas, não pode ser considerado noturno, simplesmente, o tempo que medeia entre o pôr- do –sol e o alvorecer. O legislador ordinário fornece as balizas necessárias para a compreensão, pelo intérprete, da extensão da vedação sob comento.
O art. 404 da CLT, reproduzido a disposição contida no § 2ª do art. 73 do mesmo diploma, aplicável aos trabalhadores em geral, definiu, como noturno, o trabalho executado entre as 22h00 de um dia e as 5h00 do dia seguinte. Não considera, assim, as particularidades relativas ao trabalhador rural.
Adotando a mesma tendência, o ECA veda ao adolescente empregado, aprendiz, que esteja em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica ou assistido por entidade governamental, o trabalho noturno “realizado entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte”.
Deve-se realizar, entretanto, uma interpretação sistemática. Os horários mencionados referem-se ao trabalho noturno urbano. No que respeita ao trabalho rural, conquanto o legislador constitucional o tenha equiparado ao urbano (art. 7º, caput, da CF), isto não afastou certas peculiaridades do campo, as quais devem ser entendidas de conformidade com o disposto na Lei n. 5.889/73, que estatui normas reguladoras específicas do trabalho rural, sendo, por isto, especial.
No seu art. 7º, a lei em questão considera noturno o trabalho executado entre as vinte e uma horas (21h00) de um dia e as cinco horas (5h00) do dia seguinte, na lavoura, e entre as vinte horas (20h00) de um dia e as quatro horas (4h00) do dia seguinte, na atividade pecuária. A nosso ver, a previsão tem inteira aplicação, mesmo quando se tratar de trabalho de adolescente[62]. Aliás, havendo o intuito de proteção, ela é até mais abrangente que a do trabalhador urbano.
Com efeito, na zona urbana, por ficção jurídica, a hora noturna tem duração de 52 minutos e 30 segundos, o que, na prática, reduz a jornada considerada noturna para sete horas corridas (das 22h00 às 5h00). Já na zona rural, como a hora noturna é contada como hora normal (de 60 minutos), o lapso temporal em que o trabalho é vedado torna-se maior: oito horas corridas.
No entanto, verificando a antinomia aparente entre as normas, Adalberto Martins (2002, p. 115-116), valendo-se dos critérios cronológico, hierárquico ou da especialidade, encontra fórmula engenhosa para solucionar a questão, defendendo a aplicação conjunta do ECA e da Lei n. 5.889/73.
A aplicação do critério cronológico nos levaria à conclusão de que deve prevalecer o ECA em detrimento da Lei n. 5.889/73 (lex posterior derogat legi priori). Neste caso, o menor de dezoito anos, que mais deve ser protegido, poderia trabalhar na pecuária, até às vinte e duas horas ou a partir das quatro horas, enquanto haveria proibição de trabalho ao maior de dezoito anos em idênticas condições, solução que nos parece inadequadas.
O critério hierárquico (lex specialis derogat legi generali) também não se revela adequado à solução de nosso problema. Isto porque, nas palavras de Maria Helena Diniz, “ uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes”, e tanto o ECA quanto a Lei n. 5.889/73 são gerais, eis que não se destinam à proteção do trabalho do menor.
Assim, entendemos que continua prevalecendo o critério da norma mais favorável, que deve ser aplicado levando-se em consideração o desmembramento do art. 67, I, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do art. 7º da Lei n. 5.889/73 em duas normas.
Impõe-se, destarte, a conclusão que, na pecuária, o menor de dezoito anos não pode trabalhar após as vinte horas (art. 7º da Lei n. 5.889/73) e também não poderá fazê-lo antes das cinco horas (art. 67, I, do ECA).
Como se vê, por vezes depara-se o intérprete com dificuldades até mesmo para definir o que seria mais favorável ao trabalhador. Adotou professor Adalberto Martins, conforme definição de Plá Rodriguez (1997) a teoria da acumulação (ou atomização), extraindo, de cada norma, as disposições que lhe pareciam mais favoráveis. Em contraposição a esta, há a teoria do conglobamento, que sustenta que as normas devem ser comparadas em seu conjunto.
Dessa forma, se descumprida a proibição, o trabalhador deve ter assegurados todos os direitos cabíveis, uma vez que as normas que visam a protegê-los não podem ser interpretadas a seu desfavor.
2.2. Proibição de Trabalho Insalubre, Perigoso e Penoso
A Constituição Federal assegura aos trabalhadores urbanos e rurais adicional de remuneração quando o exercício de atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei (art. 7º, XXII). A Lei ordinária tratou da insalubridade e da periculosidade (arts. 189 a 193, da CLT), porém até hoje não regulamentou o trabalho penoso, que carece mesmo de definição legal.
No que pertine ao adolescente, apesar de a CF, a par do trabalho noturno, ter vedado, também, o perigoso ou insalubre a menores de 18 anos, silenciou sobre o penoso. A CLT, no inciso I, do art. 405, asseverou não ser permitido ao “menor”[63] o trabalho em locais e serviços perigosos ou insalubres; porém não se reportou, igualmente, à atividade considerada penosa.
O Estatuto da Criança e Adolescente, por sua vez, referindo-se, sem distinção, ao adolescente empregado (inclusive aprendiz) e àquele que trabalhe em regime familiar ou seja aluno de escola técnica ou assistido em entidade governamental, proibiu, para todos, o trabalho perigoso, insalubre ou penoso (art. 67, II), sem oferecer todavia, conceito para este. Enquanto isso, a doutrina titubeia mas oferece indicativos do que seria trabalho penoso, “como tal o que importa maior desgaste físico ou psíquico (Oliveira, 2009, p. 217).
A exigência de serviços superiores às forças do adolescente, que autoriza inclusive a despedia indireta (art. 483, a, da CLT), constitui segundo corrente doutrinaria por nos perfilhada, uma das formas de trabalho considerado penoso[64].
A esse respeito, o art. 405, §5º, da CLT manda aplicar, ao adolescente, o disposto o art. 390 e seu parágrafo único, também do diploma consolidado, que tratam da proteção ao trabalho da mulher. Assim, tanto em relação à mulher quanto ao adolescente, é vedado ao empregador exigir serviços que demandem o emprego de força muscular superior a 20 (vinte) quilos, para o trabalho contínuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos, para o trabalho ocasional.
Assim, dúvida não há: o trabalho penoso, assim como perigoso e o insalubre, também é vedado aos que ainda não completaram dezoito anos. Segundo Oris de Oliveira (1993, p. 8), as normas que proíbem o trabalho em condições tais visam a “reaguardas a saúde, a integridade física, a segurança sobre tudo contra acidentes”. Registra o autor que estudo da Organização Mundial da Saúde (El Trabajo de lós niños: riesgos especiales para la salud, Ginebra, 1987) revela que “a criança e o adolescente sofrem mais que o adulto os efeitos nocivos dos agentes insalubres, como por exemplo, os agrotóxicos”.
2.3. Proibição de Trabalho em Locais Prejudiciais à Formação, ao Desenvolvimento Físico, Psíquico, Moral e Social do Adolescente
Tanto os incisos III e IV do art. 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto ao parágrafo único do art. 403 Consolidado proíbem que adolescentes exerçam suas atividades laborativas em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, bem como vedam os trabalhos realizados em horários e locais que permitam a frequência à escola.
O texto consolidado descreve como sendo prejudiciais à formação moral do menor, exemplificativamente, as atividades realizadas em teatros de revista, boates, cassinos, cabarés, empresas circenses, as atividades ligadas à venda a varejo de bebidas alcoólicas e à confecção e veiculação de impressos comprometedores dos bons costumes. Entretanto, poderá o juiz da infância ou da juventude autorizar o trabalho teatral ou circense, desde que a representação tenha finalidade educativa ou não venha trazer nenhum mal à formação da criança, ou ainda, se esta ocupação for primordial para a subsistência da criança ou de seus responsáveis.
Como trabalhos prejudiciais a formação social, tem-se aqueles que segregam as crianças ou adolescentes do restante da comunidade.
O §2º do art. 405 preceitua que o labor exercido nas ruas, praças e outros logradouros (tais como: Office-boy, vendedor de flores, etc.) dependerá de autorização do juiz da infância e da juventude para que possa ser realizado por menores de 18 anos[65]. Entendeu o legislador ser a rua local em que o adolescente fica exposto a males de toda a sorte, correndo riscos não apenas de sofrer acidentes de transito, mas podendo facilmente entrar em contato com pessoas ligadas a drogas, prostituição, jogos de azar etc., daí a necessidade de autorização legal.
2.4. Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescente
“A exploração Sexual Comercial de Crianças è uma violação fundamental de seus direitos. Constitui-se em uma forma de coerção e violência contra as crianças, que pode implicar em trabalho forçado e formas contemporâneas de escravidão.” (Estocolmo, 1996)
Na Agenda de Ação de Estocolmo (1996) consolidou-se o conceito de exploração sexual comercial infantil como todo tipo de atividade em que as redes e/ou pessoas usam o corpo de uma criança ou adolescente para tirar vantagens ou proveito de caráter sexual, com base numa relação de exploração comercial e de poder.
Pretende-se, com este novo conceito, substituir o de prostituição infanto-juvenil, pois que a palavra prostituição traz consigo a ideia de consentimento informado, o que coloca as crianças e os adolescentes prostituídos na situação de agentes, não de vítimas. É preciso diferenciar a exploração sexual comercial do abuso sexual que não abrange o aspecto comercial.
A Convenção n. 182 da OIT, de 1999, classifica entre as piores formas de trabalho infantil a utilização, recrutamento ou oferta de crianças para a prostituição, ou seja, a exploração sexual comercial de crianças e, também, de adolescentes, pois as normas internacionais não fazem tal distinção.
Em se tratando de crianças e adolescentes não há que se falar no consentimento. Mas em algumas situações a violência que obriga as ou os adolescentes a terem seus corpos usados sexualmente é tão dissimulada que leva à equivocada impressão de que houve destas ou destes o consentimento. Tal aparente consentimento levanta algumas questões, que trataremos a seguir.
2.4.1. Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescente e a Cultura do Consumo
Segundo a Agenda de Ação de Estocolmo:
“São vários os fatores que contribuem para a exploração sexual comercial de crianças, dentre os mais complexos temos as disparidades econômicas; as estruturas socioeconômicas injustas; a desintegração familiar; a questão da educação, consumismo; a migração rural-urbana; a discriminação de gênero; a conduta sexual masculina irresponsável; as práticas tradicionais nocivas e o tráfico de crianças. Portanto, a pobreza não pode ser considerada como o único fator determinante do fenômeno. Todos esses fatores aumentam a vulnerabilidade de meninas e meninos, frente àqueles que buscam utiliza-los para fins de exploração sexual comercial.
Existem também fatores adicionais que conduzem direta ou indiretamente à exploração sexual comercial de crianças, como: corrupção, ausência de leis ou a existência de leis inadequadas, o descumprimento da lei e a limitada sensibilidade da pessoa encarregada da aplicação dessas leis sobre os efeitos nocivos nas crianças. Isso favorece a exploração sexual comercial pelas redes criminais, por indivíduos e famílias.
A exploração sexual de crianças é um fenômeno transversal, atingindo todas as classes sociais e grupos na Sociedade, os quais podem contribuir para a exploração, através da indiferença, o desconhecimento das consequências nocivas sofridas pelas crianças e pelos valores que consideram crianças como mercadorias.”
Precisamos nos deter sobre a questão da influência da cultura do consumo, porque ela pode embaçar a percepção subjetiva da gravidade da exploração, trazendo uma superficial e enganosa noção de que a exploração beneficiaria a vítima, o que descaracterizaria a exploração. Este pensamento equivocado é revelado no trecho de um julgamento, em que se comparou a situação de adolescentes vítimas de exploração sexual com a de adolescentes estupradas:
“(…) uma das questões a ser observadas são os antecedentes da vítima, e que esta é que é que pode ter dado causa à prática do crime, consentindo no ato sexual, por ter capacidade de discernimento suficiente para esse fim”.
Esse falso consentimento, ou esta falta de percepção de que se trata de exploração, è compartilhada por membros do judiciário experientes, como os que proferiram a decisão acima mencionada, a qual voltará a ser discutida mais adiante, e por meninas vítimas da exploração, que não tem consciência da violência que estão sofrendo, como se vê neste trecho de um estudo patrocinado pela Organização Internacional do Trabalho:
“A dificuldade de identificação da situação de exploração pelo adolescente explorado já foi apontada por trabalhos anteriores. Em pesquisa realizada por Durand, Santos, Rocha e Kassar (2003), verificou-se, que muitas vezes, não havia a identificação dos jovens explorados sexualmente com a imagem da exploração sexual. Em outras palavras, muitos jovens não se percebiam como explorados, muito menos “vitimados”. Alguns viam o dinheiro ou o objeto, fruto da exploração, como um “presente” do encontro, ou algo semelhante.”
Na revista Newsweek, de 11 de agosto de 2003, na sua versão para a América Latina, foi vinculada uma reportagem com o título “This Could Be Your Kid” (Poderia Ser Sua Filha), da jornalista Suzanne Smalley. O título traz uma discriminação oculta. A matéria sobre a exploração sexual de adolescentes nos EUA, mas o que causa espanto à jornalista é que adolescente de classe média estavam aceitando serem explorados sexualmente. Há ênfase neste ponto, não se trata de adolescentes pobres, que moram em bairros pobres ou que são imigrantes ilegais. São adolescentes de classe média. A revista sabe que seu público é de classe média para cima, daí porque diz que “poderia ser sua filha”.
No Brasil, um estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho em Foz do Iguaçu também identifica quatro níveis de exploração sexual, do mais desorganizado e ligado à situação de miséria das vítimas, envolvendo meninos e meninas que vivem nas ruas, até a exploração de adolescentes de classe média, organizada por agenciadores, em que os clientes são ricos:
“(…) crianças e adolescentes de classe média que são explorados sexualmente em boates, grandes casas de prostituição, hotéis de médio e grande porte. São aliciadas a partir de agências de modelo e de fotografia. São solicitadas por meio de books fotográficos ou a partir de desfile para clientes. Nem sabem quem realmente fez o contato com o cliente. Não há indício de um local de agenciamento. Apenas o book concentra todas as adolescentes. Há indicação de que traficam drogas para a Europa. Seus documentos são alterados para atingirem a maioridade.
(…) Observa-se que se trata de um fenômeno complexo, de causas socioeconômicas e histórico-culturais. Dentre as principais causas socioeconômicas está a desigual distribuição de renda, a pobreza, a migração, o rápido avenço do processo de urbanização, a debilidade das políticas sociais.
Em relação às causas histórico-culturais identifica-se a visão de crianças como objeto da dominação ou mercadoria, a nova estrutura familiar e suas consequências, o consumismo, a ideologia pós-moderna do subjetivismo e do prazer, a cultura da impunidade.”
É possível afirmar que, tanto nos EUA quanto no Brasil, existem duas situações que levam à exploração sexual. Existem adolescentes de famílias tão pobres que seus pais permitem ou mesmo favorecem que sejam explorados sexualmente, para que essa atividade seja uma fonte de renda que amenize a miséria absoluta em que estão Mas existe também a situação de adolescentes que, em busca de autonomia financeira, são levados a sua própria exploração, mesmo porque comumente já houve uma desintegração familiar e os pais não são mais referências. Como dito anteriormente, não há que se falar em consentimento destes adolescentes. Mas podemos dizer que não há, muitas vezes, resistência inicial a esta forma de violência. Ao contrário, os/as adolescentes aceitam vender seus próprios corpos sob a promessa de terem acesso a bens essenciais, como alimentação, e bens simbólicos, como roupas de marca e celulares.
Aparentemente, as roupas caras que cobrem seus corpos valem mais do que seus próprios corpos. Assim, o que se dizer é que não é apenas a miséria absoluta e a falta de acesso a bens básicos como alimentação e moradia, por exemplo, que levam estes ou estas adolescentes a uma aparente complacência na própria exploração. É preciso destacar que esta complacência inicial muitas vezes acaba resultando em violência expressa quando o ou a adolescente resolve deixar de participar da atividade. Mas o que leva a esta complacência? Será que as roupas valem mesmo mais que o próprio corpo que as veste?
Podemos encontrar algumas respostas na forma que a nossa sociedade está estruturada, fundamentada no consumo. O sociólogo americano Don Slater afirma que a “cultura do consumo é singular e específica: é o modo dominante de produção cultural desenvolvido no Ocidente durante a Modernidade”. O sociólogo acrescenta que a cultura do consumo tem um alcance prático e uma profundidade ideológica que lhe permite estruturar e subordinar amplamente todas as outras. Prossegue Slater: “embora saibamos que o acesso às mercadorias é restringido pelo acesso ao dinheiro, o consumo de mercadorias é tratado, em princípio, como uma atividade da população inteira.“Assim, completa, “embora a cultura do consumo pareça universal por ser retratada como um território de liberdade onde todos podem ser consumidores, ela também é vista como universal porque todos devem ser consumidores: essa liberdade peculiar é compulsória. De modo geral, é através das mercadorias que a vida cotidiana, assim como as identidades e relações sociais que nela vivemos, são sustentadas e reproduzidas”.
O que acontece então se o consumo é atividade de todos, que devem consumir, no caso de países de profundas desigualdades sociais onde muitos não podem consumir? A resposta é a criação de um a tensão social, que frequentemente resulta em violência, tanto real quanto simbólica. Uma das formas de violência é a exploração sexual de crianças e de adolescentes. É preciso ter claro que a cultura do consumo não está baseada apenas no consumo de bens essenciais, como a alimentação. Vai muito além, permeando todas as relações sociais e interferindo na própria identidade das pessoas. Em última instância, o consumo está ligado ao direito à própria felicidade e à igualdade. Também está ligado à ideia de aceitação e de liberdade, apelos irresistíveis para os adolescentes.
O professor Mario Frota, Presidente do Centro de Estudos do Direito do Consumidor de Coimbra, em entrevista à revista Carta Capital, em outubro de 2003, também nos dá algumas pistas ao afirmar que “a publicidade deseja fidelizar o consumidor desde a tenra idade, ou seja, fazer do homem um escravo do consumo, já que nos condiciona a existência e a felicidade ao ato de consumir”.
No estudo Crianças no narcotráfico, um diagnóstico rápido, patrocinado pela OIT, tratou-se dessa questão, em relação às crianças e adolescentes no narcotráfico:
“Pode ser visto como estranho que muitos jovens estejam entrando no narcotráfico simplesmente para possuírem roupas caras e coisas similares, entretanto, é importante entender que em uma sociedade de consumo, que dá mais importância ao que alguém ‘possui’ do que ao que alguém “é”, roupas ou produtos equivalentes adquirem novo significado. Tornam-se um símbolo de poder e posses, representam uma forma importante de distinção, conforme definido por Pierre Bordieu (1994). A ilusão do consumo confere a estes adolescentes uma sensação de força; possuem algo que a desigualdade, intrínseca para a sociedade brasileira, limita.”
A professora Maria Lúcia pinto Leal trata especificamente da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e sua relação com o consumo:
“Essas crianças terminam virando presas fáceis para o mercado do crime das redes de exploração sexual. Recrutadas e aliciadas pelos exploradores, deixam-se enganar por falsas promessas e artigos de consumo, dirigidos aos desejos da infância e da adolescência. Essas crianças e adolescentes aceitam se submeterem a uma ordem perversa de trabalho, já não só pela necessidade material, mas por desejos de consumo imputados pelos meios de comunicação e pela lógica consumista da sociedade capitalista, reproduzida pelo seu grupo de pertencimento”.
A exploração sexual comercial de adolescentes está relacionada ao desejo de consumir. Não só por partes destes, mas também dos que exploram esta pior forma de trabalho infantil. Recorro novamente à reflexão de Slater:
“(…), da mesma forma, se não há um princípio restringindo quem pode consumir o quê, também na há uma restrição de princípio sobre o quê pode ser consumido: todas as atividades, objetos e relações sociais podem, em princípio, ser trocados como mercadorias.” (…) “Esse potencial que todas as coisas, atividades ou experiências têm de se tornarem mercadoria, ou serem substituídos por mercadorias, coloca perpetuamente o mundo íntimo da vida cotidiana no mundo impessoal do mercado e de seus valores.”
A professora Maria Lúcia Leal, por sua vez, afirma que “é da natureza do mercado construir estratégias de disponibilizar ao consumidor, através do comércio, uma variedade de produtos e bens de consumo, elaborados pela força de trabalho humano (seja assalariada/explorada ou escravizada) e pelo recrutamento forçado do trabalho infantil. Também disponibilizada a venda da prestação de serviços, inclusive os sexuais e, de acordo com as transformações do capital, o mercado expande–se diversificando-se”.
O que se vê é que a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes estão inseridos na forma como a nossa sociedade se organiza, baseada na cultura do consumo, na intermediação do mercado, que parece naturalizada. Muitas pessoas, sejam vítimas, exploradores e mesmo autoridades, mostram-se anestesiados para a violência, como se os sentidos que lhe permitem a percepção da realidade estivessem entorpecidos.
2.4.2. Proposta para Combater a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes com Fins Comerciais
Não é razoável nem eficaz propor uma total reestruturação da nossa sociedade para combater a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Existem medidas, algumas paliativas, outras que atuam na essência do problema, que podem ajudar a combater este mal.
Por outro lado, certamente existem, além da cultura do consumo, muitos fatores que atraem e mantêm adolescentes nas piores formas de trabalho infantil, inclusive a violência não dissimulada, não simbólica. Mas se pretende mostrar que este fator, que não é menos importante, é de difícil intervenção pelo Estado ou menos diretamente pela sociedade.
O consumo é estimulado pela publicidade e por outras formas de interação humana. Mas, sem dúvida, a publicidade é um dos meios mais importantes. O professor Mário Frota, na entrevista já citada, revela a batalha legal contra a publicidade dirigida a crianças e adolescentes, trazendo exemplos de países como a Suécia, que proibiu a publicidade dirigida aos menores de 12 anos, sendo seguido pela Dinamarca. Na Alemanha a propaganda de brinquedos é proibida e na Grécia a publicidade de brinquedos é proibida das 7 às 22 horas. Mas o próprio professor afirma que a publicidade não precisaria sofrer restrições se “desde a tenra idade, ás crianças e adolescentes fosse proporcionada educação para a sociedade de consumo. Uma educação que lhes permitisse uma postura crítica perante a própria publicidade (…) A educação pró-consumo tem de ser uma realidade confortantes para que, dentro de uma geração, possamos louvar-nos desse projeto grandioso de preparar articuladamente cidadãos, que possam sentir-se bem na própria pele e no mundo”.
Embora eu compartilhe desta ideia, que é basicamente a transformação dos valores da sociedade por meio da educação, é preciso evitar que ela se transforme em uma educação discriminadora, que ensine ao pobre que ele não deve desejar consumir e ao rico o oposto, o que certamente apenas aumentará a desigualdade social. Como já disse anteriormente, na forma pela qual nossa sociedade está estruturada, o direito de consumir é legítimo e é geral. Se houver regras estabelecendo limites ao consumo, como, por exemplo, a fim de garantir sustentabilidade e preservação do meio ambiente, elas devem ser as mesmas para ricos e pobres.
Se os mecanismos inerentes ao mercado detectarem a existência de consumidores interessados em desfrutar de serviços sexuais prestados por adolescentes, o mercado, de forma subterrânea e às vezes de forma mais explícita que se supõe, oferecerá estes serviços, ou será produzido material pornográfico, que funciona como publicidade.
Assim, em primeiro lugar, este consumo e este desejo de consumir serviços sexuais de adolescentes, bem como toda publicidade que estimule este comportamento, devem ser reprimidos por meio da ação da política, do Ministério Público e do Poder Judiciário, punindo-se clientes e intermediadores. Quanto aos clientes é preciso que eles recebam, se quiseram e se for o caso, tratamento psicológico, pois o caso também é uma questão de saúde pública.
Os mecanismos legais de repressão à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes serão analisados detalhadamente no próximo tópico. Mas a prática tem demonstrado que a repressão, isoladamente, não é eficiente.
Campanhas educativas e de conscientização são um caminho. Muitas pessoas, de diferentes classes sociais, não veem como moralmente reprovável a prática comercial de sexo com adolescentes. Apenas da importância destas campanhas, seria ingênuo supor que seriam também suficientes de forma isolada, considerando a natureza de certa forma patológica na conduta daqueles que possuem tais desejos de consumo. É que, embora perfeitamente inserida na cultura do consumo, a exploração sexual surge como subproduto desta.
Revela-se imprescindível a criação de alternativa dignas que permitam aos e às adolescentes ter acesso ao consumo ou pelo menos a perspectiva de que terão tal acesso de forma digna, de forma a serem menos vulneráveis ao induzimento ou aliciamento. A primeira alternativa é a escola pública de qualidade, acompanhada de programas como o bolsa-escola ou Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, que permita aos adolescentes ao menos vislumbrar um futuro melhor.
Aqui cabe uma consideração sobre o PETI. Seriam necessárias adaptações para atender crianças e adolescentes em situação de exploração sexual comercial, as quais são bastante complexas. Não se deveria criar nenhum tipo de diferenciação no valor pago às famílias inscritas no programa. É que não se pode criar uma hierarquia econômica entre as diversas formas de trabalho infantil, com mais valor para umas que para outras. Ademais, também não se pode rotular as crianças e adolescentes pela forma de trabalho infantil que exercem. Mas, por outro lado, precisamos considerar que o PETI não foi idealizado para atender algumas das piores formas de trabalho infantil, como a exploração sexual e o tráfico de drogas, principalmente pela complexidade decorrente da relação destas formas de trabalho com a cultura do consumo. De qualquer forma, ainda que seja possível adaptar o programa, para muitos adolescentes essa opção parece inalcançável. Para estas ou estes adolescentes, que buscam uma certa autonomia financeira, o melhor talvez seja lhes assegurar o direito à formação profissional, previsto na Convenção da ONU sobre Direitos das Crianças.
A Lei n. 10.097/00, que reformulou o conceito de aprendizagem, apesar de críticas construtivas que se pode fazer, é uma alternativa viável para, de forma digna, permitir, de imediato, que adolescentes em busca de autonomia financeira possam acessar o consumo e cria-lhes, para mais além, a real perspectiva de um emprego digno.
Por fim, defendo a regulamentação da profissão de prestador de serviço sexual como uma forma de aumentar a fiscalização estatal sobre esta atividade e, em consequência, melhor reprimir a exploração de crianças e adolescentes. Reconheço o teor polêmico desta posição, a qual envolve aspectos morais, para muitos, incontornáveis. Minha análise, contudo, fundamenta-se principalmente no que seria melhor para as crianças e adolescentes.
É de se observar que a profissão de prestador de serviços sexual é reconhecida no Código de Ocupações Brasileiro, sob o título “Profissional do Sexo”.
2.4.3. Criminalização da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes
No já mencionado Congresso Mundial sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado em Estocolmo, em 1996, detectou-se como uma das causas da Exploração Sexual Comercial de Crianças E Adolescentes a ausência ou ineficiência das leis:
“Existem também fatores adicionais que conduzem direta ou indiretamente à exploração sexual comercial de crianças, como: corrupção, ausência de leis ou a existência de leis inadequadas, o descumprimento da lei e a limitada sensibilidade da pessoa encarregada da aplicação dessas leis sobre os efeitos nocivos nas crianças. Isso favorece a exploração sexual comercial pelas redes criminais, por indivíduos e famílias”.
Diante disso, no referido documento, propõe-se, entre tantas medidas:
“Examinar e Revisar, quando possível, a legislação, as políticas, os programas e as práticas vigentes com o intuito de eliminar a exploração sexual e comercial de crianças;
Aplicar a legislação, as políticas e os programas para proteger as crianças diante da exploração sexual e comercial e reforçar a comunicação e cooperação entre as autoridades encarregadas da execução da lei;
Promover a adoção, implementação e disseminação das leis, políticas e programas com o apoio dos mecanismos pertinentes em nível local, nacional e regional, contra a exploração sexual e comercial de crianças.”
A primeira tentativa no nosso país de tipificar e criminalizar especificamente a exploração sexual de crianças e adolescentes com fins comerciais materializou-se na modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao qual se acresceu o art. 244-A:
“Art. 244-A. Submeter a criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º desta lei, à prostituição ou exploração sexual:
Pena – reclusão de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no capt deste artigo.
§ 2º Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.”
Este dispositivo lega, segundo nos conta Luciana Bergano Tchorbadjian, surgiu no seguinte contexto, “O presente dispositivo legal foi acrescentado à Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) pela Lei n. 9.975, de 23 de junho de 2000”.
O projeto de lei que deu origem à Lei n. 9.975/00, de autoria da Deputada Federal Luiza Erundina, foi fruto de debate travado entre diversas organizações da sociedade civil, durante a 27º sessão do Tribunal Permanente dos Povos, ocorrida em São Paulo, no mês de março de 1999.
O Tribunal Permanente dos Povos é uma entidade internacional que investiga, julga e propõe soluções para questões de caráter mundial, relacionadas à violação aos direitos humanos. Esses Tribunal está vinculado à Fundação Internacional Lélio Basso pelos Direitos e pela Libertação dos Povos, constituída na Itália, em 1976, pelo jurista que lhe deu o nome, e tem o reconhecimento da ONU- Organização das Nações Unidas.
A sessão acima mencionada, segunda que teve como temática a infância e a juventude (a primeira ocorreu na Itália, em 1995), perseguiu dois objetivos principais: sensibilizar o Estado e a sociedade sobre a distância existente entre a realidade e as normas da Declaração Universal dos Direitos da Criança, da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente e avaliar a vinculação desta última lei referida com as políticas públicas.
Ainda na Câmara dos Deputados, o projeto de lei em questão foi enriquecido pelo substitutivo global apresentado pelos Deputados Dr. Hélio, Rita Camata, Geraldo Magela, João Fassarella, Jandira Feghali e Laura carneiro.
Bastante exemplificativa desde entendimento é a decisão proferida pelo superior Tribunal de justiça, em caso que envolveu um conhecido atleta brasileiro:
“PENAL. EXPLORAÇÃO SEXUAL. ART. 244-A DO ECA. RÉUS QUE SE APROVEITAM DOS SERVIÇOS PRESTADOS. VÍTIMAS JÁ INICIADAS NA PROSTITUIÇÃO. NÃO ENQUADRAMENTO NO TIPO PENAL. EXPLORAÇÃO POR PARTE DOS AGENTES NÃO CONFIGURADA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. O Superior Tribunal de justiça tem entendimento no sentido de que o crime previsto no art. 244-A do ECA não abrange a figura do cliente ocasional, diante da ausência de exploração sexual nos termos da definição legal. Exige-se a submissão do infante à prostituição ou à exploração sexual, o que não ocorreu no presente feito.” REsp 884.333/ SC, Rel. Min. GILSON DIPP, Quinta Turma, DJ 29.6.07. 2. Resurso especial improvido. (Recurso Especial n. 820.018 – MS (2006/ 0028401-0), publicado no DJ de 15.6.2009. Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima
Recorrente: Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul
Recorrido: Lofda A. Advogado : Kátia Maria Souza Cardoso e Outro(s). Recorrido: J L B. Advogado: Nelson Buganza Junior)
No acórdão é reproduzida decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul integralmente confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça:
“Antes de observar apenas o fato de uma adolescente ter se relacionado sexualmente com alguém, responsabilizando este último por um crime, é preciso observar os antecedentes desses adolescentes, uma vez que neste caso deve ser aplicada a mesma regra para o estupro e o atentado violento ao pudor praticado contra menores de 14 anos de idade, com violência presumida, onde uma das questões a ser observada são os antecedentes da vítima, e que esta é que pode ter dado causa à prática do crime, consentindo no ato sexual, por ter capacidade de discernimento suficiente para esse fim. O desconforto para o julgador quanto à condenação por crime deste natureza reside exatamente nessa questão dos antecedentes da ofendida, visto que quem deve responder pelo fato de uma adolescente ter se corrompido é o corruptor, não aquele que pratica fato posterior com ela, já que nesse momento pode ser a própria menor que o atraiu para essa relação sexual, e que as prostitutas esperam o cliente na rua e já não são mais pessoas que gozam de uma boa imagem perante a sociedade.
Assim, toda vez que um homem for praticar uma relação sexual com uma menor e esta já for uma prostituta, torna-se imperioso reconhecer que apenas aderiu a uma conduta que hoje não pode ser considerada como crime, até porque prostituição é uma profissão tão antiga que é considerada no meio social apenas um desregramento moral, mas jamais uma ilegalidade penal.”
Mas logo após esta decisão, que causou grande polêmica, tendo recebido atenção da mídia e dos movimentos de proteção dos direitos da criança e adolescentes, foi sancionado um projeto de lei que tramitava há vários anos no Congresso Nacional, trazendo modificações mais profundas na legislação, inclusive no Código Penal. O projeto tinha a intenção de extinguir qualquer dúvida que ainda houvesse no sentido de que é crime a prática de sexo, mediante pagamento, com crianças e adolescentes. Esta intenção é explicitada no Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes:
“Partindo dessa perspectiva, foi criado, em consórcio com a CPMI, um Grupo de Estudos de Análise Legislativa em reunião de setembro de 2003 da Comissão Intersetorial de Combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, então coordenada pela Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça. Esse Grupo produziu anteprojeto, que culminou na presente proposição, e teve representantes dos seguintes órgãos e instituições: Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e Organização Internacional do Trabalho.
È importante frisar que com a CPMI pretendeu combater especialmente redes de exploração sexual comercial, atenção foi dada à definição do crime de favorecimento à prostituição e outras formas de exploração sexual de vulneráveis. E, nesse sentido, amplia o art. 244-A do ECA, porquanto, além de “submeter”, torna também “induzir” e “atrair à prostituição” núcleos do tipo penal. Outra atenção foi dada em relação ao cliente da prostituição infantil, acrescentando-se o art. 218-B, do qual deve constar parágrafo a dispor que ocorre também no crime de favorecimento quem tem conjunção carnal ou prática outro ato libidinoso com pessoa menor de 18 anos e maior de 14 anos. Vale lembrar que alguém que mantenha relações sexuais com pessoa menor de 14 anos cometeria estupro de vulneráveis (novo art. 217), situação de prostituição ou não. Também incorre em crime quem induz pessoa menor de 14 a satisfazer a lascívia de outrem, imputado com reclusão e, se cometido para obter vantagem econômica, também com multa (art. 218).”
Foram inseridos, então, novos artigos no Código Penal, com o objetivo acima mencionado:
“Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável. (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)
§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)
§ 2ª Incorre nas mesmas penas: (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)
I- quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo: (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)
II- o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo: (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)
§ 3ª Na hipótese do inciso II do § 2ª, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento. (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)”
Não cabe aqui tratar de todas as modificações produzidas pela Lei n. 12.015, de 2009. Mas é importante mencionar que a alteração mais profunda se deu com o bem jurídico que a lei tutelava. Antes da nova lei, o bem jurídico protegido era a moral e o costume, daí porque o raciocínio desenvolvido na doutrina e na jurisprudência é que, estando o patrimônio moral da vítima já “corrompido”, não havia mais o que proteger, restando descaracterizado o crime. Foi essa a lógica que resultou no julgamento pelo STJ, mencionada acima, se bem que de forma equivocada, pois o crime de exploração sexual comercial infantil está inserido no ECA e não no Código Penal, e, portanto, mesmo antes da Lei n. 12.115/09, o bem jurídico tutelado no Código Penal também passou a ser a dignidade sexual, como revela o título VI, que antes era “ dos crimes contra os costumes” e agora é “dos crimes contra a dignidade sexual”.
2.4.4. Legitimidade do Ministério Público para Combate à Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescente
A análise da legitimidade do Ministério Público do Trabalho e competência material da Justiça do Trabalho para o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes deve, necessariamente, ter início pala leitura do art. 114 da Constituição Federal:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I- as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (grifo apócrifo) (…)
IX- outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.”
A Emenda Constitucional n. 45, de 2004, com a exclusão das expressões “empregador” e “trabalhador” se deu na direção de consolidar a competência da Justiça do Trabalho para Julgar quaisquer controvérsias decorrentes da relação de trabalho, seja qual for a sua natureza.
Há muito se percebeu o caráter multifacetado e complexo da exploração do trabalho de crianças e adolescentes e a necessidade de atuação, para o seu combate, em diversas frentes simultaneamente. O art. 227 da Constituição, ao estabelecer o dever do Estado de assegurar os direitos das crianças e adolescentes, não limita quais os setores estatais que têm tal obrigação. Pelo contrário, todos, de forma complementar, devem estar envolvidos na luta pela eficácia das garantias e direitos das crianças e adolescentes, estabelecidos na lei, na Constituição e nas normas internacionais. Entre as instituições que podem e, mais que isso, têm o dever de agir, estão o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho.
A exploração Sexual Comercial de Crianças é uma violação fundamental dos seus direitos. Constitui-se em uma forma de coerção e violência contra as crianças, que pode implicar em trabalho forçado e formas contemporâneas de escravidão. (Agenda de Ação de Estocolmo, 1996)
A Convenção n. 182 da OIT, ratificada pelo Brasil, diz expressamente que a exploração sexual é uma das piores formas de trabalho infantil:
“Art. 3º Para efeitos da presente Convenção, a expressão ‘as piores formas de trabalho infantil’ abrange: (…)
b) a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas. (ratificada pelo Decreto n. 3.597/00)”
No que se refere à legitimidade do MPT para o combate à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, o art. 127 da Constituição estabelece que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
A Lei Complementar do Ministério Público da União (LC n. 75/93) atribui ao Ministério Público do Trabalho a prerrogativa de promover a ação civil pública perante a Justiça do Trabalho (art. 83, inciso III).
O Ministério Público do Trabalho vem cumprindo sua missão constitucional e já obteve êxito na condenação ao pagamento de danos morais coletivos por exploradores sexuais pela Justiça do trabalho de Mato Grosso e da Paraíba, esta em decisão confirmada pelo Tribunal Regional do Trabalho. Chama a atenção o fato de que a condenação em segunda instância na Justiça do Trabalho acontece antes que o processo fosse julgado em primeira instância no foro criminal.
Contudo, de forma a tornar ainda mais explicitas estas legitimidades e competência e diminuir a resistência a elas, tramita no Congresso Nacional e Projeto de Lei n. 6.938/10 de autoria dos ilustres deputados Paulo Henrique Lustosa (PMDB-CE) e Maria do Rosário (PT-RS) que “Dispõe sobre a reparação civil coletiva decorrente da exploração sexual de crianças e adolescentes para fins comerciais e dá outras disposições protetivas dos direitos das crianças e dos adolescentes”. Com efeito, no projeto fica estabelecido que:
“Art. 4ª Compete ao Ministério Público do trabalho ajuizar as ações cabíveis para reparação dos danos, inclusive morais coletivos, decorrentes da exploração sexual de crianças e adolescentes para fins comerciais.
Art. 5ª Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações civis públicas decorrentes da exploração sexual de crianças e adolescentes para fins comerciais.”
Mas alguns argumentam que, em face da ilicitude da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, a proteção no âmbito da Justiça do Trabalho é impossível. Segundo este entendimento, poder-se-ia perseguir exclusivamente a responsabilidade criminal dos exploradores e a responsabilidade civil estaria limitada ao que prevê o art. 387, IV, do Código de Processo Penal- CPP.
Ora, este entendimento considera um aspecto da exploração sexual, esquecendo-se do caráter de multidisciplinaridade intrínseca ao combate efetivo desta forma de violência. Fixar-se apenas no aspecto criminal é escrever a amplitude dos direitos das crianças e adolescentes, alguns deles enumerados na Constituição:
“o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Pelo entendimento de que se trata de uma questão exclusivamente criminal, os direitos à saúde e à educação destas crianças e adolescentes explorados, inclusive o direito à formação profissional, que lhes permitissem uma perspectiva de acesso ao trabalho digno, não poderiam ser protegidos por iniciativa dos setores estatais competentes.
Além dos direitos das crianças e adolescentes enumerados na Constituição, existem aqueles constantes de normas internacionais, como a Convenção n. 182 da OIT, bem como a correlata Recomendação n. 190, ambas da Organização Internacional do Trabalho, em vigor no território nacional, por meio do Decreto Legislativo n. 178/99. Em tais normas, considera-se como uma das piores formas de trabalho infantil “a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas”.
Há uma enorme diferença entre atuação do Estado na repressão ao trabalho ilícito no tráfico de armas, por exemplo, e a atuação na repressão à exploração do trabalho escravo ou à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. No primeiro caso, o bem jurídico tutelado, entre outros, é o direito à proteção da vida de toda a sociedade contra a ação criminosa daqueles que atuam no contrabando e comercialização de armas ilegais, sejam os líderes, sejam os que estão envolvidos diretamente nestas atividades. Estes são criminosos que merecem punição e para os quais não há qualquer tutela pelo Ministério Público do Trabalho.
No segundo caso, toda a sociedade e, principalmente, os próprios trabalhadores explorados, na qualidade de vítimas principais, merecem a proteção contra os que cometem estes crimes tipificados de exploração do trabalho escravo e de exploração sexual de crianças e adolescentes para fins comerciais. O bem jurídico tutelado é, primariamente, a dignidade do trabalhador, ameaçada pela exploração, e, de forma reflexa, a dignidade da sociedade como um todo. Em relação aos adolescentes e às crianças explorados sexualmente, o bem jurídico tutelado é a dignidade destes, e os direitos que compõe a dignidade, como o direito ao desenvolvimento sexual saudável, entre outros direitos próprios da infância. Assim, não faz o menor sentido restringir a competência da Justiça do Trabalho, como alguns defendem, e retirar a tutela coletiva e difusa destes direitos pelo Ministério Público do Trabalho, prejudicando quem merece proteção de todas as perspectivas, trabalhista, civil, penal, entre outras.
2.4.5. Obrigação de Indenizar os Danos Morais Decorrentes da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes
Antes de abordar a questão específica, a violação da dignidade em decorrência da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, se faz necessário tratar de algumas questões mais gerais, como o conceito de dignidade, do ser humano, a consequente obrigação de reparar o dano moral em caso de violação destes direitos.
O conceito de dignidade do ser humano não é facilmente obtido, nem há muito consenso na doutrina sobre este. José Cláudio Monteiro de brito filho afirma que “não é simples reduzir em palavras o significado da dignidade da pessoa humana. Como tantos outros conceitos, parece ser mais fácil identificar o que atenta contra a dignidade do que identificá-la em si mesma.” Mas, evitando este estratagema, Brito Filho apresenta definição que, no seu entender, exprime de forma completa a ideia de dignidade da pessoa humana. É a apresentada por Ingo Wolfgang Sarlet, para quem dignidade é:
“(…) a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
Se o ser humano possui a dignidade como qualidade intrínseca, o problema, do ponto de vista jurídico, surge do não reconhecimento desta qualidade. Norberto Bobbio afirmou que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. Parafraseando Bobbio, diria que o problema fundamental em relação aos direitos humanos é o seu reconhecimento, no sentido da sua admissão como legítimo e verdadeiro. A dignidade, portanto, estaria inserida neste processo de reconhecimento, eis que a palavra dignidade, pó si só, nada significa. Lembremos que a dignidade, historicamente, era reconhecida apenas aos nobres. Depois, passou-se a reconhecer este direito em relação aos trabalhadores. Benjamim Franklin dizia que a dignidade decorria de acordar cedo e dormir tarde, jamais deixar uma dívida sem pagá-la. Este princípio moral atravessou séculos e fronteiras.
A expressão dignidade ganha relevo quando relacionada aos direitos humanos universalizados. A dignidade não é, portanto, um atributo do ser humano, mas um atributo dos seres humanos nas suas inter-relações. A dignidade é, portanto, a expressão do reconhecimento: reconheço em ti a plenitude de um ser humano digno, sujeito de direitos fundamentais exigíveis perante mim e perante o Estado. Não há nada mais fundamental que a necessidade de um ser humano ser reconhecido como tal por outro ser humano. Mas esse reconhecimento não vem de graça e não é permanente, ele surge de conflito e tensão e precisa ser reafirmado a cada segundo da existência humana, em cada ambiente de relacionamento humano.
É pertinente, portanto, tecer algumas considerações sobre a ação de indenização por danos morais, um dos mecanismos legais asseguradores da dignidade. Alguns autores afirmam que dano moral é todo aquele dano que não é patrimonial. Outros enumeraram as possibilidades de dano moral, afirmando que é aquele que causa sofrimento, dor, tristeza. Buscando sintetizar tais conceitos.
Walmir Oliveira da Costa define danos morais como sendo “a lesão que alguém sofre em seus bens imateriais pela ação de outrem que lhe causa abalos a direitos personalíssimos”.
Para nosso objetivo, consideramos dano moral aquele que atinge a dignidade, no sentido que tratamos anteriormente, ou seja, incorre em dano moral aquele que não reconhece a dignidade de outro ser humano. Para este fim, não é relevante se o ato causou efetivamente sofrimento, bastará que este ato atente contra a obrigação de reconhecimento da condição de ser humano. Neste sentido, leciona Xisto Tiago de Medeiros Neto:
“A responsabilidade, portanto, tratando-se de dano moral, decorre, em Regra, do simples fato da violação (damnum in re ipsia), não se cogitando analisar-se o traço subjetivo do ofensor ou se provar a existência do prejuízo extrapatrimonial, que, por si só, já é uma evidência do próprio fato (ipso facto), salientando-se, mais a impossibilidade de, para tal fim, ingressar-se na esfera psíquica da vítima.”
A ação, que afinal importará em indenização econômica ou outra forma de reparação, busca antes obrigar o reconhecimento da dignidade. Assim, a condenação econômica deve ser suficiente para reparar o dano, mas também para desestimular este ato atentatório à dignidade. Novamente recorremos a Medeiros Neto:
“Observa-se, com, efeito, que tem concebido como dupla a natureza e a finalidade da reparação do dano moral: a de satisfazer ou compensar o lesado, de um lado, e a de sancionar o lesante, em proporção exemplar, de outro lado”.
A obrigação de reparar o dano moral decorre da responsabilidade civil em geral. Ou seja, é preciso que certa conduta cause uma lesão injusta a interesse alheio, que esta conduta efetivamente cause dano (material ou moral) e que haja um nexo casual entre a conduta e o dano. A questão da culpa do agente é, modernamente, uma questão secundária. O novo Código Civil, embora reitere a regra geral de que deve haver culpa do agente, também abre espaço para a teoria do risco, em que o agente, embora não tenha culpa, assume o risco de que sua conduta passa causar prejuízo.
Quando falamos da dignidade do ser humano sempre temos em mente o ser humano adulto. Mas, e as crianças e adolescentes? Lembremos que as crianças, historicamente, eram consideradas adultos pequenos, com direitos proporcionais. O valor que se dava às crianças era menor que o valor de um adulto. Apenas com a Declaração dos Direitos das Crianças e, muito recentemente, com a edição da Convenção dos Direitos da Criança, ratificada por quase todos os países integrantes da ONU, à exceção dos Estados Unidos da América e da Somália, é que as crianças passaram a gozar de um certo reconhecimento de sua dignidade.
Mas, o que afronta a dignidade de uma criança ou adolescente? As crianças, estas consideradas internacionalmente como todos aqueles que contam menos de dezoito anos de idade, possuem direitos humanos especiais, listados na Convenção da ONU sobre o Direito das Crianças, de 1989, na nossa Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Todos estes instrumentos reconhecem a condição das crianças de seres humanos em desenvolvimento. Tal desenvolvimento de se dar em um ambiente de felicidade, amor e compreensão. Textualmente, diz o ECA que as crianças e adolescentes têm direito ao desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Este conjunto de normas direcionadas a garantir o bem-estar das crianças e adolescentes está contido no “princípio da proteção integral”.
Assim, para o reconhecimento da dignidade das crianças e adolescentes, deve-se levar em consideração esta condição especial de ser humano em processo de formação e a obrigação da família, da sociedade e do Estado de promoverem a proteção integral das crianças e dos adolescentes. Em outras palavras, o reconhecimento da dignidade da criança e do adolescente deve abranger estas especificidades. Ao se analisar a configuração de danos morais, em razão de uma conduta antijurídica praticada contra crianças e adolescentes, tem-se que ter em conta estes princípios e normas .Um mesmo ato pode ter cunho meramente econômico, material, quando praticado contra os direitos de um adulto e configurar dano moral quando praticado contra uma criança ou adolescente.
Para exemplificar, submeter um adulto a uma jornada de trabalho excessiva pode levar a uma obrigação do pagamento de horas extras. Mas, em se tratando de criança, esta mesma prática pode levar não só à obrigação de pagar horas extras mas também de indenizar o dano moral sofrido pela frustração de outros direitos, como o direito à educação e à convivência familiar. O direito de frequentar a escola é um exemplo claro de direito de natureza moral. O direito de frequentar a escola é uma condição para a igualdade de acesso às oportunidades profissionais. Assim, não há como quantificar o prejuízo material que a frustração deste direito causa na vida profissional da criança quando esta se tornar adulta. Mas, sem dúvida, é possível vislumbrar o prejuízo moral.
Não há, portanto, que se confundir a obrigação de reparar o prejuízo causado pela eventual não observância dos direitos trabalhistas, com os reflexos desta relação de trabalho na preservação da dignidade da criança e adolescente.
Em face da natureza das atividades consideradas piores formas de trabalho, o simples fato de submeter crianças e adolescentes a estas configura dano moral, merecedor de reparo.
Por tudo isso, há de se concluir que: a) a Exploração sexual de crianças e adolescentes, para fins comerciais, é uma relação de trabalho proibido, indecente, indigna e pior forma de trabalho, conforme a Convenção n. 182 e o decreto n. 6.481/08; b) tal prática ofende a sociedade brasileira e atinge em especial a dignidade das crianças e adolescentes. Assim, além da responsabilidade criminal já defina em lei própria, incumbe ao Ministério Público do Trabalho, perante a Justiça do Trabalho, propor ação civil pública objetivando a declaração da ilicitude desta relação de trabalho e a condenação dos responsáveis em obrigações de fazer, de não fazer e de pagar os danos morais coletivos causados à sociedade brasileira; c) as normas internacionais, a Constituição e a legislação infraconstitucional já consagram a legitimidade do Ministério Público do Trabalho, para propor ação civil pública contra exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, e a competência da Justiça do Trabalho para julgar estas ações; d) a atuação do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho na repressão à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes atende aos compromissos firmados pelo Brasil ao ratificar normas internacionais protetoras das crianças e adolescentes e está em consonância com as disposições constitucionais e infraconstitucionais que tratam dos direitos das crianças e adolescentes. Mas, acima de tudo, é mais uma ferramenta na incansável luta pelo reconhecimento da dignidade da infância.
3- Conclusão
Norma jurídica é produto da atividade hermenêutico-analítica do estudioso do direito, processada a partir dos textos jurídicos e organizada numa estrutura lógico-sintática de significação, que contém o mínimo necessário à regulação da conduta humana. Não se situa no texto do direito positivo (plano da literalidade textual), e sim no plano das significações, visto que surge como resultado do processo de construção de sentido, desencadeado a partir do corpo do texto bruto (plano de expressão).
Em relação às normas especiais genéricas de tutela do trabalhador adolescente, a idade mínima de 16 (dezesseis) anos fixada para o ingresso no mercado de trabalho coincide com a recomendada pela OIT, mas é mais elevada que a prevista na Convenção n. 138, razão pela qual tem sido combatida pela doutrina.
A ratificação da Convenção n. 138 e da Recomendação n. 146, sobre a idade mínima, e, bem assim, da Convenção 182 e da Recomendação n. 190 sobre as piores formas de trabalho infantil, colocam o Brasil entre aqueles países que estão enfrentando com seriedade esta chaga mundial.
É possível arrematar que, a nulidade decorre da execução do trabalho proibido por criança e adolescente deve ser pronunciada ex tunc, ou seja, não pode retroagir, uma vez que é impossível restituir a força despendida pelo trabalhador. Não obstante, nada impede que, além dos direitos puramente trabalhistas, com base no direito civil, mas no âmbito da Justiça do Trabalho, postule a criança ou adolescente, como imperativo de ordem pública, a ausência do prazo de prescrição antes dos 18 (dezoito) anos.
A exploração do trabalho infantil tem sido combatida com crescente fôlego pela sociedade e Estado. Entretanto, sugerir que crianças e adolescente têm sido explorados em sua mão de obra e privados de seu desenvolvimento sadio quando da realização de trabalhos artísticos e esportivo, ainda, parece, aos olhos de muitos, ser um absurdo.
Advogado Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela PUC/SP Mestrando em Direito e Processo do Trabalho pela PUC/SP
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