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Manifesto de um advogado solitário

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a problemática que envolve o acesso à Justiça e a morosidade do Poder Judiciário no atual cenário jurídico e as possíveis consequências caso não haja uma mudança de paradigma. Não tem pretensões científicas, tão-somente representa uma opinião acerca dos problemas pelos quais passam milhares de advogados brasileiros que dependem de um sistema judiciário que busque ser eficiente.

Palavras-chave: Acesso à Justiça; Advocacia; Poder Judiciário; Crise no Poder Judiciário; Mudança; Justiça; Processo Eletrônico; Virtualização do processo; Crise no Poder Judiciário.

Abstract: This paper aims to present the issues surrounding access to justice and the slowness of the judiciary in the current legal scenario and the possible consequences if there is not a paradigm shift. Has no scientific pretensions, merely represents an opinion about the problems they spend thousands of Brazilian lawyers who rely on a judiciary that seeks to be efficient.

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Keywords: Access to Justice; advocacy; Judiciary; Crisis in the Judiciary; Change; Justice; Electronic process; Process Virtualization; Crisis in the Judiciary

É difícil o mister do advogado. Dificílimo, diria eu. Muitas das vezes, ele é o profissional procurado por aqueles cujo problema já chegou ao limite, ou seja, é a última alternativa para aqueles que buscam por Justiça.

Como muitos já devem saber, o advogado é indispensável à administração da Justiça, status esse garantido pela Constituição Federal. Bonitas as palavras. Assim como é bonita toda essa pompa em torno da Justiça, dos magistrados, dos promotores; são realmente poéticas as garantias e prerrogativas de todos os operadores (ou seriam operários?) do Direito.

O que pretendo aqui apresentar é o colapso em que chegou a justiça brasileira no atual cenário. Basta sair à rua. A Justiça e o Poder Judiciário vivem um momento de crise. Chegamos ao fundo do poço, ou melhor, ao porão do poço. Simplesmente tornou-se insustentável. Dar a cada um o que é seu não existe mais nesse país. A Justiça não pode mais continuar de olhos vendados. É preciso arrancar suas vendas, para que ela enxergue com todos os olhos o que está acontecendo.

O sistema judiciário em que hoje vivemos não mais se sustenta. Basta perguntar a qualquer advogado que milita nos corredores dos fóruns (e principalmente dos JEC's). Quem dele se beneficia são os grandes escritórios, se é que realmente se beneficiam.

Com o advento do processo eletrônico e a virtualização dos atos judiciais, ao argumento de ampliação do acesso à Justiça, o que vem se apresentando é um resultado totalmente contraproducente (aquilo que traz resultado contrário ao esperado, para os leigos): cada vez mais e mais processos são protocolados todos os dias, na velocidade incrível da internet, abarrotando ainda mais as varas e juizados que não foram preparados para isso. E o resultado não é um maior acesso à Justiça mas, sim, uma sobrecarga do já combalido Poder Judiciário pois, se antes da implantação do sistema eletrônico já demorava-se meses para que uma audiência fosse marcada nos JEC's, hoje, demora-se o dobro do tempo. E o cidadão (jurisdicionado) que espere.

A finalidade desse manifesto não é a de propor soluções para o problema da crise no Poder Judiciário e na Justiça brasileira. É simplesmente expor a realidade do que acontece e as possíveis consequências se a situação continuar assim. É um desabafo de um advogado militante solitário, que, desde que se formou a cerca de 3 anos, já perdeu 3 clientes. E não foi para outro escritório. Eles morreram mesmo. E vou contar um pouco da história de cada um deles, que são exemplos póstumos do quão a nossa Justiça está à beira do abismo. Ou já foi empurrada dele.

Lembro do Sr. F. Um anistiado político, demitido na época do governo Collor de Melo, que teve seu retorno garantido através da Lei da Anistia. Com o seu retorno ao trabalho, após mais de 20 anos, não foi observado pelo seu empregador o seu correto reenquadramento salarial, motivo pelo qual fui contratado para ajuizar uma Ação na Justiça do Trabalho e buscar que fosse feita Justiça.

Na primeira audiência, a parte contrária pugnou pela "inépcia da inicial" (quando não se entende nada do que está sendo pedido pelo advogado; em outras palavras, é como se o advogado fosse um idiota completo e não soubesse sequer expor o direito do seu cliente). A juíza que presidia a audiência rechaçou o pedido, de imediato, salientando à advogada da parte contrária que, ao contrário do que ela dizia, dava para entender perfeitamente a petição, assim como seus pedidos. Nessa ocasião, nós pedimos prova pericial contábil, o que foi deferido pela magistrada que ainda por cima elaborou quesitos, enviando o processo para o perito contábil.

Na segunda audiência (agora presidida por outro juiz), comparecendo eu e o Sr. F. (que já contava com 63 anos de idade e com a saúde bastante fragilizada), fui de imediato indagado pelo excelentíssimo juiz o que eu realmente queria. Confesso que me assustei com a pergunta. Instintivamente respondi que o que queríamos constava no rol de pedidos e na resposta do perito que, inclusive, confirmou que o Sr. F. tinha direito. Ele repetiu a pergunta, mais uma vez. Percebendo que alguma coisa estava errada, eu disse que o que queríamos era a recomposição salarial, nos moldes de um Decreto nº X do qual não me lembro agora. Imediatamente, excelentíssimo Dr. Juiz me respondeu, impetuosamente: "não conheço e nunca ouvi falar desse Decreto!". Ficamos estarrecidos! Mesmo após eu ter lido o referido Decreto, e após cerca de meia hora de insultos indiretos a minha pessoa (que ali estava no exercício da minha profissão: cadê a 'dignidade' da advocacia?) por fim, o excelentíssimo Sr. Dr. Juiz bradou: "AINDA NÃO FAÇO MILAGRES! SINE DIA PARA SENTENÇA!" Meu cliente, o Sr. F., nesse momento, perguntou ao excelentíssimo magistrado se poderia lhe falar; externar o seu problema (talvez, na sua concepção, o magistrado lhe escutaria, ouviria seu suplício, clamando por justiça). De imediato o mesmo excelentíssimo Dr. Juiz lhe negou a palavra, dizendo-lhe que ele, o Sr. F. havia constituído advogado e que não lhe ouviria. Um desabafo. Uma palavra. Nada disso foi concedido. Uma voz que foi calada brutalmente por aquele que é a imagem da Justiça, do Estado. Um pobre velho teve negado o direito a se pronunciar em juízo.

Algumas semanas depois foi publicada a sentença de improcedência total dos pedidos, ao argumento de INÉPCIA DA INICIAL condenando o Sr. F., ainda, ao pagamento de honorários no valor de R$ 600,00. Nesse mesmo dia recebi uma ligação de sua esposa, informando que o Sr. F. havia falecido e que desde que chegara daquela audiência chorava copiosamente, pois já sabia de antemão que teria negado o seu pedido e que quando viu a sentença na internet começou a passar mal. Morreu angustiado, vítima de um infarto que lhe ceifou a vida injustamente, tão injustamente quanto negar a palavra a um cidadão de bem. Tão injustamente quanto cometer tamanha barbaridade com um jurisdicionado.

O problema: porque a primeira juíza negou o pedido de inépcia formulado na primeira audiência, nomeou perito e ainda elaborou quesitos? Como agora outro juiz diz estar inepta a inicial, extinguindo o processo e ainda condenando o jurisdicionado ao pagamento de custas? Como? Como podem duas pessoas pensarem de maneiras tão distintas? Na minha opinião, esse juiz ficou extremamente irritado pelo fato de o problema ali apresentado não ser uma "receita de bolo"; seria mais um processo que demandaria tempo, análise e dedicação, que provavelmente comprometeria a sua 'meta' e a sua 'produtividade'. Logo, tentou se desvencilhar do problema, ao invés de resolvê-lo, honrando a sua toga e o seu cargo, para o qual é pago com o suor de milhões de brasileiros. Exemplo disso foi o desrespeito para comigo, como profissional, em vários momentos da audiência (em que o mesmo fazia expressões dignas de um filme de comédia), me perguntando o que eu queria, que não estava entendendo nada, mesmo eu tendo lido em audiência o tal Decreto que o mesmo dissera que desconhecia. Fácil é desrespeitar um advogado na frente de seu cliente enfermo, sem qualquer motivo para tanto; difícil é ter que analisar mais um processo, cujo entendimento e alta complexidade significaria mais trabalho para ele.

O segundo caso é bem rápido. Sempre gostei de ajudar as pessoas, sempre. E com a advocacia não foi diferente. Alguns clientes que me procuravam não tinham como me pagar e eu, assim como inúmeros advogados nesse país, ajudava-os ajuizando as ações, sem cobrar nada. Se o cliente ganhasse, cobrava 20% ao final. Se ele perdesse, eu assumia o prejuízo sozinho.

Fui procurado pela irmã do Sr. B, que teve negado seu pedido junto ao INSS do benefício concedido àqueles que, em virtude alguma doença grave e que sejam miseráveis, não possuem condições de arcar com sua própria subsistência. O Sr. B. tinha um transtorno psiquiátrico, que o impedia de falar corretamente, além de ter uma vida normal. Ele andava, balbuciava algumas palavras, tentava ter uma vida normal. Mas não tinha. Entramos com a Ação correspondente NO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL, pedindo para que o referido benefício fosse concedido. Houve a perícia médica, que realmente constatou a sua incapacidade e o seu transtorno. Só que o Sr. B. tentava sobreviver de alguma forma: fazia alguns bicos. Desde que a ação foi protocolada passou-se mais de 3 (três) anos sem nenhuma resposta. Até que então um belo dia recebi uma ligação da sua irmã: o Sr. B havia falecido, pois havia caído de uma árvore onde estava realizando uma poda, a pedido de uma vizinha que lhe daria alguns trocados. Triste.

O Problema: será que o Sr. B necessitaria subir em uma árvore em troca de alguns trocados se já estivesse recebendo o seu benefício? Será que o Sr. B. teria morrido caso já estivesse recebendo sua pensão?

O terceiro caso também é simples. Um amigo chamado Sr. I. sofria de um distúrbio chamado obesidade mórbida (pesava quase 300 quilos) e teve sua internet cortada, sem nenhuma justificativa. Entramos com a ação no Juizado Especial Cível da Capital para que o serviço fosse restabelecido e que lhe fosse paga a indenização pelos danos que estava sofrendo, pois tarefas que antes realizava pela internet (devido a sua natural dificuldade em se locomover) tinham que ser feitas na rua, obrigando-o a um esforço hercúleo para ir a bancos, etc. Foi concedida a tutela para que o serviço de internet fosse restabelecido. Mas a Ré não cumpriu a decisão. Em audiência, tive que ajudar a carrega-lo, juntamente com seu filho. Após cerca de 1 ano, a sentença foi proferida, confirmando a tutela (que mesmo assim não foi cumprida) e condenando a empresa ré ao pagamento de uma indenização no pífio e vergonhoso valor de R$ 3.000,00. Recorremos, pugnando pela majoração do vergonhoso valor de indenização. Mais 1 ano até que fosse CONFIRMADA a sentença no valor de R$ 3.000,00, e tutela de obrigação de fazer (que também não havia sido cumprida, até aquela data) mas agora condenando o Sr. I. ao pagamento de honorários no valor de 10%. Requeremos a execução do julgado (mais alguns meses até o processo voltar para a 1ª instância) e informando que não havia sido cumprida a tutela, confirmada por sentença e em segunda instância. Mais 6 meses até a manifestação do juiz para que intimasse o réu. Só que nessa época, recebi uma ligação da sua esposa informando que o Sr. I. havia falecido, justamente porque estava realizando tarefas na rua, tarefas essas que antes eram realizadas no conforto do seu lar, através do serviço de internet que lhe fora injustamente cortado. Morreu de infarto.

O problema: será que foi justa a indenização (que sequer chegou a receber, é bom salientar) para um obeso mórbido que, em virtude de ter o serviço cortado injustamente, foi obrigado a se deslocar com a saúde já fragilizada? Porque a empresa se negou a cumprir a determinação judicial de restabelecimento do serviço? Porque??? Será que se o serviço tivesse sido restabelecido ele teria que ir à rua realizar as tarefas que realizava pela internet, tendo passado mal (infartado)? Perdi não só um cliente, mas um grande amigo nesse caso.

Senhores: esses são exemplos de casos de um advogado que milita a cerca de 4 anos somente. A Justiça não é mais efetiva. Ela não funciona. Simplesmente não funciona. Tenho a impressão de que a Justiça está sentada ao lado das empresas, fumando um legítimo Cohiba e bebendo um 12 anos. Mas não ao lado de quem efetivamente precisa dela.

O problema, senhores, infelizmente é bem maior do que esses 3 exemplos que citei. Estende-se principalmente aos setores marginalizados, àqueles que mais precisam de Justiça. São as vítimas de um crime que veem a impunidade quando o criminoso continua livre; são os presos que também não tem garantido os seus mínimos direitos; são as donas de casa que suam para comprar um fogão que vem com defeito e não obtém uma solução; são os trabalhadores insultados pelos seus chefes que não obtém uma reparação, ou que são injustamente demitidos e tem que esperar anos para que a empresa libere uma guia de seguro-desemprego e efetuem o pagamento das verbas trabalhistas; é a DEMORA da Justiça em atender àqueles que mais necessitam dela.

Justiça sem rapidez, não é justiça. É um martírio, tortura. Justiça feita às pressas, sem cuidado, também é. E temo dizer que, assim como em episódios recentes, a Justiça com as próprias mãos vai se tornar moda. É o caminho natural quando um proprietário de um imóvel resolver recorrer à força bruta para retirar "na marra" um inquilino que lhe deve 2 anos de aluguel, quando a Justiça sequer analisou ainda seu pedido. É o caminho natural quando um pai de família tem sua filha estuprada e mata o estuprador quando percebe que a sua denúncia não surte nenhum efeito na delegacia. Assim como é o caminho natural que as pessoas se defendam e se protejam de toda a sorte de barbaridades, injustiças e ilegalidades perpetradas tanto por empresas, quando por pessoas físicas e partam para a agressão de um funcionário da CEDAE que, tendo que cumprir a determinação de seu chefe de cortar o fornecimento de água, é espancado por aquele que não mais acredita no Estado. Não há outro caminho, senhores, se a nossa Justiça continuar assim.

No início desse texto eu escrevi que a Justiça deveria arrancar as suas vendas; mas, além disso, deveria despir-se de seu manto suntuoso, jogar a sua espada e a sua balança fora e ver, enxergar, olhar e perceber que tudo está errado. Procurar de forma efetiva solucionar os conflitos de interesse e todas as injustiças. Não se faz Justiça de um dia para o outro, todos sabemos. Mas também não se pode dizer que a Justiça é feita após 4, 5 ou 6 anos de espera, em um sistema (o dos Juizados Especiais, principalmente) que se diz feito para solucionar causas de menor complexidade.

Fora isso, o advogado não é valorizado. Ínfimas indenizações são um preço a ser pago pelas empresas para que continuem a cometer irregularidades. Afinal, estão movimentando a economia, não é mesmo? Vergonhosas que são as condenações que não atendem ao famoso trio "indenizatório-punitivo-pedagógico". Pois não são punidas (pagam o pífio valor em que foram condenadas; que tipo de punição é essa?), não aprendem (continuam a lesar as pessoas) e o jurisdicionado não é indenizado (quem na verdade é indenizada é a empresa que comete o ato ilícito; é um prêmio conferido pelo Judiciário). Quando muito, acordos aviltantes são oferecidos: "ou é isso, ou nada!". Prefiro o 'isso', não é mesmo?

É com muita tristeza que constato: estou perdendo o amor pela Justiça. Está cada vez mais difícil exercer a advocacia nesse país. Já não pretendo mais dizer aos meus filhos e sobrinhos para que se tornem advogados. E isso dói muito, é muito, muito triste. A vontade que dá muitas vezes é desistir, mudar de área, de profissão. Dá vontade de rasgar minha carteira da OAB, conseguida após 5 longos anos e uma cruel prova. Prerrogativas? Estou me lixando, pois de nada servem se ninguém as respeita, vide o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, em episódio recente, que mandou calar um advogado, retirando-o a força do Plenário, por estar exercendo as tão afamadas 'prerrogativas'. Justiça? Também não há.

Temo que estejamos caminhando para um estado de exceção, cada cidadão com sua metralhadora em casa, para proteger o que é seu, pois como já disse, a Justiça não funciona! Ah, não, me perdoem! Ela funciona, sim! Mas só para quem talvez possa lhe oferecer um legítimo Cohiba e um bom Jack Daniel's ou Old Parr 12 anos. Não serve Passport, hem. Estes sim tem a Justiça trabalhando a seu favor, sem vendas e com a roupa da Mulher Maravilha, junto a inescrupulosos serventuários e juízes que cobram o seu preço para acelerar as coisas. Todos sabem que alguns setores do Judiciário ainda funcionam assim. Infelizmente. E o pior cego é aquele que não quer ver. Assim como a Justiça, que insiste em continuar com os olhos vendados.


Informações Sobre o Autor

Tiago de Assis Bogéa Câmara

Advogado militante no Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil e Direito Administrativo. Atua na área de Direito Público Direito Constitucional e Administrativo


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Equipe Âmbito Jurídico

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