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Medida Provisória do Bem e do Mal


Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de conversão da Medida Provisória nº 460, de 30 de março de 2009, que altera a redação dos arts. 4º e 8º da Lei nº 10.931/2004, a fim de reduzir a alíquota do regime especial de tributação, aplicável às incorporações imobiliárias e reduz a tributação incidente sobre receitas auferidas por empresas construtoras contratadas para construir unidades habitacionais no âmbito do “Programa minha casa, minha Vida”, além de atribuir à ANATEL a competência para constituir, fiscalizar e arrecadar a contribuição para o Fomento de Radiodifusão Pública instituída pelo art. 32 da Lei nº 11.652/2008. É o que consta da ementa respectiva.


Contudo, examinando o inteiro teor da aludida medida provisória verifica-se que o seu art. 3º concede incentivo fiscal aos titulares de registros imobiliários que investirem na informatização de seus serviços, até o exercício de 2014; que o art. 4º reduz à alíquota zero a Cofins incidente sobre receita bruta da venda, no mercado interno, de motocicletas de cilindrada igual ou inferior a 150 cm³ por importadores ou fabricantes.


Por outro lado, o art. 5º aumenta o coeficiente e o percentual aplicáveis, respectivamente, na apuração da base de cálculos da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS devidos pelos fabricantes de cigarros.


A primeira observação que se faz é a de que a medida provisória sob análise disciplina matérias não contidas em sua ementa, fato que desobedece ao comando contido na Lei Complementar nº 95/98.


A segunda irregularidade consiste na contrariedade ao contido no caput do art. 62 da Constituição, que só admite o uso deste instrumento legislativo excepcional “em caso de urgência e relevância”. Ora, essa expressão está a indicar necessidade de apontar um acontecimento fático superveniente a exigir imediata regulação normativa, incompatível com o processo legislativo regular. O Presidente da República, por deter o poder cautelar geral, é o agente público competente para aferir a urgência na expedição de instrumento normativo para disciplinar uma determinada situação anormal que surgir com determinado acontecimento no mundo fenomênico. Patente o desvio de finalidade, neste caso, como em outras vezes, pois, o que Carta Política permite é regular por medida provisória cada situação concreta.


A alteração de competência da ANATEL, por exemplo, não resultou de um acontecimento fático superveniente que tornasse urgente a modificação de sua competência. A nova disciplina surgiu por mera conveniência administrativa, a juízo do Chefe do Executivo, o que não lhe dá respaldo jurídico para deflagrar o instrumento legislativo anormal.


A terceira observação crítica é a de que a medida provisória sob exame contém quatro dispositivos que beneficiam os contribuintes. É a parte que podemos denominar de “MP do Bem”. Em contrapartida, o art. 5º dessa mesma medida provisória contém a exacerbação da carga tributária incidente sobre o cigarro. É o que podemos chamar de “MP do Mal”.


Não nos convence a justificativa contida na exposição de motivos, segundo a qual a elevação dessa imposição tributária teria por objetivo reduzir o consumo do cigarro por meio da elevação de seu preço, a fim de se ajustar à recomendação da Organização Mundial de Saúde. A verdade, é que o governo sempre contou com a fabulosa receita tributária originária do cigarro, ainda, que invocando razões de proteção da saúde da população inibindo o hábito de fumar por via de tributação escorchante. O IPI incidente sobre esse produto chega até 330%.


Outrossim, por força do disposto no art. 14, II da Lei de Responsabilidade Fiscal o governo só poderia patrocinar incentivos fiscais como os veiculados por esta medida provisória, se apresentasse proposta de compensação da queda de arrecadação decorrente de renúncias tributárias, o que mais uma vez infirma a alegação de tributação regulatória do cigarro.


O que nos chama a atenção no projeto de conversão dessa medida provisória é que, por coincidência ou não, os senhores parlamentares caroneiros apresentaram dois enxertos: o primeiro deles é beneficio  aos contribuintes, pois reconhece o crédito-prêmio do IPI colocando um ponto final nas disputas judiciárias que ainda persistem. A segunda norma contrabandeada diz respeito à alteração do Código de Defesa do Consumidor para permitir que comerciantes cobrem valor adicional pelo uso de cartões de crédito. Não se sabe como e porque alterar uma situação que está dando certo. A própria Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços é contra esse dispositivo que veio de carona.


Executivo e Legislativo agem em sintonia como de hábito. Ambos os Poderes deram uma martelada na ferradura e outra no casco. O Legislativo respeitou a dualidade original: “MP do Bem” e “MP do Mal”, ou será mera coincidência?


Ao menos no caso de crédito-prêmio do IPI, em tese, há um acontecimento no campo da realidade a ensejar situação de urgência e relevância, qual seja, a súbita alteração da jurisprudência do STJ e do STF. Todavia, essa situação passou despercebida pelo sempre arguto legislador do Palácio do Planalto, o único agente público legitimado a editar medida provisória sob alegação de urgência e relevância. Já a segunda norma, além de os parlamentares não deterem o poder cautelar geral para edição de medida provisória,  não está a regular situação de urgência, nem de relevância. Por que, pergunta-se, os comerciantes precisam auferir um plus da noite para o dia nas vendas que envolvem pagamentos com cartões se as taxas cobradas pelas financeiras já estão embutidas nos preços?


Enfim, o instrumento legislativo previsto no art. 62 da CF vem sendo utilizado como meio regular de normatização alijando a competência do Poder Legislativo. E o Congresso Nacional, que deveria coibir os abusos do Executivo, vem tirando proveito desses abusos inserindo enxertos para aprovar, a toque de caixa, matérias que nada têm de urgentes ou relevantes, mas que atendem aos interesses dos parlamentares.



Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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