Luís Guilherme Andrade Vieira[1]
Resumo: Com o pretexto de que o processo carecia de efetividade, deu-se especial valoração à atividade processual satisfativa no Código de Processo Civil de 2015. O tema, inclusive, tornou-se “norma fundamental do processo civil”. Diante da tutela satisfativa, surgiu o enfoque da pesquisa – as medidas coercitivas atípicas para o cumprimento da obrigação de pagar quantia certa (antes não autorizadas) – e com isso – a necessidade de uma limitação –, vez que o legislador não se preocupou com o tema, estabelecendo uma regra geral de efetivação, um poder ilimitado ao cumprimento da ordem judicial e à satisfação creditória, omitindo, todavia, na limitação normativa dos novos atributos (de poder), ou seja, nos contornos de sua aplicabilidade, em razão da limitação constitucional do poder estatal, necessária ao Estado Constitucional Democrático de Direito. Neste perigoso contexto demonstrado – que merece a nossa atenção e crítica –, inclusive em razão alta praticidade, a pesquisa se desdobrará no exame das soluções propostas de aplicabilidade dos meios coercitivos atípicos no cumprimento da obrigação de pagar quantia certa.
Palavras-chave: Direito Processual Civil. Processo de Execução. Obrigação de pagar quantia certa. Medidas coercitivas atípicas. Limites para aplicabilidade dos meios executivos atípicos.
Abstract: Under the pretext that the process lacked effectiveness, special emphasis was placed on the process of compliance in the Code of Civil Procedure of 2015. The theme also became a “fundamental norm of civil proceedings”. Faced with a satisfactory tutelage, the focus of research emerged – atypical coercive measures to fulfill the obligation to pay certain amounts (previously unauthorized) – and with this – the need for a limitation – , since the legislator did not care about the subject, establishing a general rule of effectiveness, an unlimited power to comply with the judicial order and credit satisfaction, omitting, however, in the normative limitation of the new attributes (of power), that is, in the contours of its applicability, due to the constitutional limitation of state power, necessary to the Democratic Constitutional State of Law. In this dangerous context – which deserves our attention and criticism –, even in a highly practical way, the research will unfold in the examination of the proposed solutions of applicability of the atypical coercive means in the fulfillment of the obligation to pay certain amount.
Keywords: Civil Procedural Law. Execution process. Obligation to pay certain amount. Atypical coercive measures. Limits for the applicability of atypical executive means.
Sumário: Introdução. 1. A responsabilidade patrimonial. Exclusividade das medidas sub-rogatórias. princípio da tipicidade. Surgimento do princípio da atipicidade. 2. Medidas coercitivas atípicas para o cumprimento da obrigação de pagar quantia certa. 2.1. Medidas executivas. Justificativa do art. 139, IV, do CPC/2015. Poder geral de efetivação. Aplicação no cumprimento da obrigação de pagar quantia certa. 2.2. Medidas coercitivas atípicas no Superior Tribunal de Justiça. Contornos de aplicabilidade. 3. Incompatibilidades democráticas das medidas atípicas. 3.1. Os direitos fundamentais como garantia do Estado Constitucional Democrático de Direito. 3.2. Impossibilidade da leitura do poder geral de efetivação que não seja a baseada no respeito estatal aos direitos fundamentais. 3.3. Retrocesso à conquista histórica da patrimonialidade executiva e desproporcionalidade das medidas. 3.4. Processo punitivo e princípio da legalidade. Conclusão. Referências.
Introdução
O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 dando atenção à efetividade do processo trouxe novos métodos e faculdades aos juízes, com intuito de aperfeiçoar a atividades satisfativa.
Assim, além de todas as medidas já existentes para cumprimento do dever jurídico, inovou-se no sentido de se permitir medidas coercitivas atípicas para o cumprimento da obrigação de pagar quantia certa, o que não era até então permitido.
Diante disso, meios coercitivos (execução indireta do devedor), passaram a ser utilizados de modo atípico (sem expressa previsão legal) em obrigações de pagar quantia, tais como a suspensão de CNH do devedor, retenção de passaporte do devedor, bloqueio de cartões de crédito, vedação de participação em concursos públicos, etc.
Além de se permitir os meios coercitivos atípicos, o legislador não fixou limites de aplicabilidade, dando ultra poderes aos magistrados, porquanto previstos em verdadeira cláusula geral, estipulada no artigo 139, IV, do CPC/2015, que dá ao juiz o poder de “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária” (BRASIL, 2015).
Diante deste contexto, surgiu a necessidade de o exame das soluções propostas, especialmente em razão da limitação constitucional do poder estatal, necessária ao Estado Constitucional Democrático de Direito, conforme ensina Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, em sua obra “Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito”.
Assim, passamos primeiramente por uma breve da evolução dos métodos executivos, para posteriormente examinarmos os meio executivos previstos no art. 139, IV, do CPC/2015, dando enfoque nas “coercitivas atípicas para a obrigação de pagar quantia certa”, expondo, após, as incompatibilidades democráticas do tema, de acordo com o marco teórico traçado, concluindo com a limitação constitucional da matéria posta em exame.
No Direito romano primitivo, baseado na Lei das XII Tábuas, a execução era privada e penal. Era privada porque efetivada pelo próprio credor e não pelo juiz. O inadimplemento da obrigação era uma ofensa, que tinha de ser punida com a marca da infâmia, da humilhação consistente na Manus Injectio, uma das mais antigas ações da lei (Legis Actiones), pela qual o devedor era privado da sua liberdade, exposto publicamente até que a dívida fosse paga, podendo ser, inclusive, vendido como escravo. Era penal, porque consistia na imposição ao devedor de castigos físicos e morais (SOARES; DIAS, 2014, p. 727).
Contudo, em 326 a.C. surge a chamada Lex Poetelia Papiria, que representou a humanização da execução, abolindo a pena capital e imposição de castigos mais vexatórios, como cadeia e correntes (GRECO, 1999, p. 14).
Após, houve a substituição da Manus Injectio pelo Actio Iudicati, de modo que, posteriormente, veio a dita “bonorum venditio”, que era utilizada, inicialmente, ao réu não localizado, e, posteriormente, estendida ao confesso e ao indefesso (SOARES; DIAS, 2014, p. 727). Foi a primeira modalidade de execução patrimonial, na qual, segundo Greco:
“[…] todos os bens do devedor eram arrecadados por autorização do magistrado, icando sob a guarda do credor exequente (missio in possessionen) até que se escoasse certo prazo, dentro do qual se aguardava o pagamento espontâneo do crédito do exequente. (GRECO, 1999, p. 18)”.
A proteção elucidada fez com que a invasão do mínimo de dignidade fosse considerada ineficaz, ou seja, de que carecia de finalidade atos pessoais para o alcance de patrimônio (GRECO, 1999, p. 20).
Por fim, no estado liberal se entendeu definitivamente que seria impossível a responsabilização pessoal por dívidas, ou, em melhores palavras, “o liberalismo plantou o princípio da intangibilidade corporal em razão de dívidas” (ASSIS, 2016, p.188).
A evolução do objeto executivo de caráter pessoal para patrimonial foi uma conquista para o próprio direito, sendo inadequada qualquer medida com viés pessoal no processo de execução (SOARES; DIAS, 2014, p. 727). É CITAÇÃO DIRETA !?
Tanto é que a responsabilidade patrimonial por dívidas fora codificada pelo ordenamento jurídico brasileiro, respectivamente pelos art. 591, do CPC/1973 e, posteriormente pelo art. 789, do CPC/2015, sendo a responsabilidade pessoal uma exceção, somente permitida na hipótese do devedor de prestação pecuniária alimentar, que funciona, segundo a doutrina, como meio coercitivo de execução, “não é uma pena, sanção ou punição, ostentando a função de medida coercitiva, destinada a forçar o cumprimento da obrigação por parte do devedor.” (DIDIER JR; CUNHA; BRAGA; OLIVEIRA, 2010, p. 698).
Como se mostrou, a responsabilidade patrimonial, diante dos ideais liberais, foi a garantia das liberdades individuais e da legalidade (princípio da tipicidade) dos meios executivos, o que fez com que os magistrados somente adotassem as chamadas técnicas sub-rogatórias, com restrita atuação ao patrimônio do devedor, conhecidas também por execução direta, de maneira a substituir o devedor, na qual:
“[…] o juiz age em seu nome, colocando-se em seu lugar, praticando a atividade que pelo obrigado deveria ter sido realizada. Substitui-o. O juiz propicia ao credor “o bem em substituição à atividade omitida pelo réu ou proibida a ele. (MEIRELES, 2016, p. 195)”.
Ainda, pela proteção as liberdades individuais, os juízes ficavam limitados na execução também ao princípio da tipicidade, pois “a esfera jurídica do executado somente poderá ser afetada por formas executivas taxativamente estipuladas pela norma jurídica” (ABELHA, 2016, p. 60).
Os doutrinadores Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2016, p. 763) citam que a preocupação da doutrina da época do Estado liberal era a de proteger a esfera jurídica de liberdade do cidadão contra a possibilidade de arbítrio do Estado, por isso necessário era o princípio da tipicidade (e também a exclusividade das técnicas sub-rogatórias).
O CPC/1973 foi editado ainda sob a égide dos preceitos liberais, porém com a promulgação da Lei n° 8.952/1994, que introduziu o artigo 461, surgiu a ideia de atipicidade em nosso ordenamento, a qual, inicialmente, restringiu-se ao cumprimento das obrigações de fazer e não fazer.
Após, com a promulgação da Lei nº 10.444/2002, que incluiu no CPC/1973 o dispositivo 461-A, se permitiu também a adoção de medidas atípicas nas obrigações de dar.
Isto, pois a mesma Lei nº 10.444/2002 incluiu o § 5º ao artigo 461 do CPC/1973, que estipulava uma série de medidas que poderiam ser adotadas no cumprimento da ordem judicial.
O rol exemplificativo do §5º, do art. 461 do CPC/1973 consagrou definitivamente as medidas atípicas no processo, sendo o referido artigo, para doutrina, uma “cláusula geral executiva”[1], justificando-se no princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF).
Com as normas referenciadas, houve a superação do princípio da tipicidade, sendo o princípio da atipicidade, para a doutrina, uma espécie de meio eficiente para a ineficiência das medidas típicas (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 764).
Mesmo superada a tipicidade dos meios através de sua aplicabilidade na execução de fazer, não fazer e de entrega de coisa, até então não se permitia medidas atípicas para a obrigação de pagar.
Todavia, o CPC/2015 em seu art. 139, IV[2], expressamente permitiu medidas atípicas para o cumprimento de obrigação cujo objeto seja a de prestação pecuniária, conforme se passa a analisar.
2.1 Medidas executivas. Justificativa do art. 139, IV, do CPC/2015. Poder geral de efetivação. Aplicação no cumprimento da obrigação de pagar quantia certa.
Primeiramente, antes de se passar à análise específica do art. 139, IV, do CPC/2015, é saudável rememorar a clássica classificação dos meios de execução, ou como chama a doutrina: “os tipos de técnicas usadas na função jurisdicional e executiva” (2016, p. 185), divididos em meio executivo direto (sub-rogatório) e indireto (coercitivo), como leciona Araken de Assis:
“Chegado a tal ponto, não se revela difícil agrupar os meios executórios em duas classes fundamentais: (a) a sub-rogatória, que despreza e prescinde da participação efetiva do devedor; e (b) a coercitiva, em que a finalidade precípua do mecanismo, de olho no bem, é captar a vontade do executado. (ASSIS, 2016, p.186)”.
Ainda, Araken de Assis (2016) demonstra esquematicamente as espécies dos meios executórios sub-rogatórios e coercitivos:
Figura 1 – Espécies dos meios executórios
sub-rogatórios e coercitivos
Fonte: Assis (2016, p. 186).
Como forma de privilegiar a tutela satisfativa, o CPC/2015 desprezou a definição clássica dos meios executórios acima destacada, elencando mais dois meios executivos (além dos sub-rogatórios e coercitivos) para assegurar o cumprimento da ordem judicial, que são, de acordo com o art. 139, IV, do CPC/2015, as medidas indutivas e mandamentais.
Pois bem, demonstrados os meios executórios, passa-se à análise da justificativa legislativa do art. 139, IV, do CPC/2015.
Segundo dados do Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça/2018, 53% dos processos pendentes ao final de 2017 são casos de execução (CNJ, 2018).
A frustração executiva patrimonial e a “crise da execução” é objeto de estudo de processualistas há tempos:
“O Direito Processual Civil hoje está na berlinda, questionado por todos quanto à sua eficácia, como instrumento apto a assegurar a tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos. E no Processo Civil talvez não haja setor mais criticado pela sua ineficiência do que o Processo de Execução. ROGER PERROT, na França, e CALMON DE PASSOS, entre nós, são alguns dos grandes juristas de nossa época que têm dedicado estudos e reflexões sobre a crise da Execução. (GRECO, 2005, p. 7)”.
O autor Leonardo Greco (2005, p. 7), listou interessantes causas para a ineficiência da função executiva, das quais se destacam (i) o excesso de processos; (ii) o custo e a morosidade da Justiça; (iii) a inadequação dos procedimentos executórios; (iv) a ineficácia das coações processuais; e (v) um novo ambiente econômico e sociológico e a progressiva volatilização dos bens.
Diante desta problemática, que não deixa de ser verdadeira quando analisada à prática contenciosa, o CPC/2015, preocupando-se com a tutela efetiva de direitos, em sua exposição de motivos estabeleceu a efetividade como meta, sendo está a justificativa legislativa da norma:
“Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo. (BRASIL, 2010)”.
De acordo com Luiz Guilherme Marinoni, Sério Cruz Arehant e Daniel Mitidiero (2017), que fizerem parte da Consultoria Especial de Juristas para análise do CPC/2015 era necessário que a jurisdição evoluísse para a atividade satisfativa, não somente o “dizer o direito”, mas colocá-lo em execução prática.
Assim, o CPC/2015 estabeleceu a efetividade como direito fundamental da parte, que deve ser objetivada pelos sujeitos do processo, como prelecionam os arts. 4º e 6º, do CPC/2015.
E ratificando a tese abordada de preocupação com a efetividade, foi editado o enunciado 48 pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, estabelecendo que o art. 139, IV, do CPC/2015, se traduz em “poder geral de efetivação”, deixando ao arbítrio dos magistrados poderes ilimitados para o exercício da atividade satisfativa:
“O art. 139, IV, do CPC/2015 traduz um poder geral de efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos extrajudiciais. (BRASIL, 2015)”.
Lado outro, como já ressaltado quando dissertamos quanto à evolução executiva, as medidas atípicas não são novidades no sistema. Quando da vigência do CPC/73, os artigos 461 e 461-A admitiam a aplicabilidade dos meios atípicos nas obrigações de fazer, não fazer e de entrega de coisa, estabelecendo naquele momento, aliás, a “cláusula geral executiva” (§5º, do art. 461), contudo, em relação às obrigações pecuniárias, quando da vigência do CPC/73, não era permitido os meios coercitivos atípicos.
Apesar da impossibilidade (em razão da falta de previsão legal), a doutrina já via a possibilidade de sua existência. Tanto é verdade que Alexandre Freitas Câmara (2009) exemplificou medidas passíveis à época:
“Assim, por exemplo, em uma execução por quantia certa na qual não se encontram bens penhoráveis, o que normalmente levaria a que suspendesse o processo (Art.791, III, do Código de Processo Civil brasileiro), deve-se reconhecer o poder ao juiz de utilizar meios atípicos que podem levar à produção do resultado prático que a execução se dirige. Basta pensa, por exemplo, na possibilidade de o juiz determinar a utilização de meios de coerção. Figure-se, aqui, um exemplo: em um processo em que determinada pessoa jurídica foi condenada a pagar quantia em dinheiro, não havendo bens penhoráveis, o juiz poderia proibi-la de participar de licitações até a satisfação do crédito do exequente. (CÂMARA, 2009, p. 65)”.
A justificativa doutrinária de viabilidade das medidas coercitivas atípicas na obrigação de pagar quantia certa é a mesma ideia existente quando surgimento dos meios atípicos em nosso ordenamento: necessidade de o Poder Judiciário dar uma prestação jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva, para respeito além da inafastabilidade da jurisdição, para ao devido processo (DIDIER JUNIOR, 2012, p. 442).
Não obstante, o problema do art. 139, IV, do CPC/2015 é o fato de este ser uma verdadeiramente uma cláusula aberta que concede ao juiz a possibilidade de instituir medidas que vão além daquelas enumeradas na lei, de modo que, no exercício desse poder, vem sendo requeridas medidas de duvidosa legalidade, tais como a apreensão de CNH, passaporte, suspensão do direito de dirigir, proibição de participação em concurso público e licitação, as quais já eram ilustradas pela doutrina:
“Ilustrativamente, não efetuado o pagamento de dívida oriunda de multas de trânsito, e superados os expedientes tradicionais de adimplemento (penhora de dinheiro e bens), seria lícito o estabelecimento da medida coercitiva/indutiva de suspensão do direito conduzir veículo automotor até pagamento do débito (inclusive com apreensão da CNH do devedor). […] ou mesmo a participação do devedor em licitações (como de ordinário já acontece com pessoas jurídicas em débito tributário com o Poder Público); etc. (GAJARDONI, 2015, p. 1)”.
Em razão desta duvidosa legalidade, o Superior Tribunal de Justiça vem sendo corriqueiramente instado a se manifestar acerca da viabilidade de aplicabilidade destes meios executivos, conforme abaixo se exporá.
2.2 Medidas coercitivas atípicas no Superior Tribunal de Justiça. Contornos de aplicabilidade
Dentre essas medidas, a suspensão da CNH e a retenção de passaporte são os meios que já chegaram ao STJ para discussão de legalidade e possibilidade de aplicabilidade no âmbito do processo de execução, em razão da infringência ao direito de ir e vir.
O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo[3] que a suspensão da CNH não afronta o direito de ir e vir. Vejamos a justificativa do relator Ministro Luís Felipe Salomão no julgado que vem sendo utilizado como paradigma para os demais – Recurso Extraordinário em Habeas Corpus (RHC) 97.876-SP:
“Inquestionavelmente, com a decretação da medida, segue o detentor da habilitação com capacidade de ir e vir, para todo e qualquer lugar, desde que não o faça como condutor do veículo. RHC 97.876-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 05/06/2018, DJe 09/08/2018. (BRASIL, 2018)”.
Por não afetar o direito de ir e vir não é passível o manejo de Habeas Corpus, conforme ementa do RHC 97.876/SP:
“A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura ameaça ao direito de ir e vir do titular, sendo, assim, inadequada a utilização do habeas corpus, impedindo seu conhecimento. É fato que a retenção desse documento tem potencial para causar embaraços consideráveis a qualquer pessoa e, a alguns determinados grupos, ainda de forma mais drástica, caso de profissionais, que tem na condução de veículos, a fonte de sustento. É fato também que, se detectada esta condição particular, no entanto, a possibilidade de impugnação da decisão é certa, todavia por via diversa do habeas corpus, porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao direito de locomoção, mas inadequação de outra natureza. RHC 97.876-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 05/06/2018, DJe 09/08/2018 (BRASIL, 2018)”.
No mesmo caso, quanto à retenção de passaporte, o STJ entendeu que, em regra, a medida não é possível, mas que, observados os ditames de razoabilidade e proporcionalidade pode ser utilizada. Foi o que disse o ministro relator:
“Tenho por necessária a concessão da ordem, com determinação de restituição do documento a seu titular, por considerar a medida coercitiva ilegal e arbitrária, uma vez que restringiu o direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável. A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência. RHC 97.876-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 05/06/2018, DJe 09/08/2018 (BRASIL, 2018)”.
Contudo, mesmo com a formação do entendimento jurisprudencial, o STJ, reconhecendo a problemática constitucional do tema, ao julgar o Recurso Especial (REsp) 1782418/RJ (BRASIL, 2019), “definiu” contornos de aplicabilidades das medidas, não sendo julgado, todavia, vinculante, tais como os precedentes do art. 927, do, CPC/2015.
A ministra relatora do caso, Nancy Andrighi, afirmou que os meios atípicos não podem ser utilizados de maneira indiscriminada, definindo-se os seguintes requisitos de aplicabilidade: (i) existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável; (ii) tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário; (iii) por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta; e (iv) com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade.
Além disso, de maneira paradoxal, o STJ afirmou que as modernas regras das medidas coercitivas atípicas para as obrigações de pagar quantia certa não poderão se distanciar dos ditames constitucionais:
“[…] as modernas regras de processo, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. RHC 97.876-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 05/06/2018, DJe 09/08/2018. (BRASIL, 2018)”.
Os “ditames constitucionais”, todavia, não foram atingidos, pelo que deve haver nova ressignificação do conceito, de maneira que seja condizente com o Estado Constitucional Democrático de Direito, notadamente quanto ao respeito dos direitos fundamentais, conforme se demonstrará adiante.
3.1 Os direitos fundamentais como garantia do Estado Constitucional Democrático de Direito
Para este trabalho se concluir em consonância com os objetivos da pesquisa, é necessário fazer um pontual estudo sobre o Estado Constitucional Democrático de Direito, de acordo com a obra de Ronaldo Brêtas de Carvalho (2010).
Primeiramente, se pontua que Estado Democrático de Direito não é imutável, estando em reconstrução permanente, como preleciona Habermas (1997):
“O Estado Democrático de Direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim, como um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e carente de revisão, o qual tende a reatualizar, em circunstâncias precárias, o sistema de direitos, o que equivale a interpretá-los melhor e a institucionalizá-los de modos mais apropriado e esgotar de modo radical o seu conteúdo. (HABERMAS, 1997, p. 118)”.
Contudo, a reconstrução tem, no Estado Moderno, um desejo inequívoco de junção entre o Estado de Direito e o princípio democrático, conforme o ensinamento de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2010):
“Tem – se, portanto, um Estado submetido às normas do direito e estruturado por leis, sobretudo a lei constitucional, um Estado no qual se estabeleça estreita conexão interna entre dois grandes princípios jurídicos, democracia e Estado de Direito, ou seja, um Estado Constitucional Democrático de Direito. (DIAS, 2010, p. 54)”.
Explicando melhor a fusão que aqui se defende – entre princípio democrático e estado de direito –, Ronaldo Brêtas afirma que essa junção permite a limitação do poder estatal aos direitos fundamentais:
“[…] essa fusão permite criar um sistema constitucional marcado de forma preponderante pela associação do poder político legitimado do povo (democracia) com a limitação do poder estatal pelas normas constitucionais e infraconstitucionais que integram seu ordenamento jurídico (Estado de Direito), sobretudo aquelas pertinentes aos direitos fundamentais. (BRÊTAS, 2010, p. 147)”.
Dito isso, firma-se o ponto referencial deste trabalho – necessária respeitabilidade estatal aos direitos fundamentais –, não sendo estes apenas normas programáticas, meras diretrizes e promessas da Administração Pública, mas direito certo, líquido e exigível do jurisdicionado (LEAL, 2009, p. 285) no Estado Constitucional Democrático de Direito.
3.2 Impossibilidade da leitura do poder geral de efetivação que não seja a baseada no respeito estatal aos direitos fundamentais
A leitura da doutrina e da jurisprudência no sentido de que o CPC/2015 estabeleceu “novos paradigmas de abordagem do processo executivo”, dando importância especial ao direito satisfativo, não pode, de maneira alguma, ser interpretada de modo a suprimir direitos fundamentais, ainda mais por razões estritamente econômicas, sob pena de se enfraquecer o Estado Constitucional Democrático de Direito.
A concepção das medidas executivas deve ser feita a partir das premissas do Estado Constitucional Democrático de Direito, com a supremacia e respeito estatal aos direitos fundamentais. O próprio CPC/2015 estabeleceu essas premissas em sua exposição de motivos:
“A necessidade de que fique evidente a harmonia da lei ordinária em relação à Constituição Federal da República fez com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais, na sua versão processual. Por outro lado, muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que prevêem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera da pessoa jurídica, em sua versão tradicional, ou “às avessas”. […]
Hoje, costuma-se dizer que o processo civil constitucionalizou-se. Fala-se em modelo constitucional do processo, expressão inspirada na obra de Italo Andolina e Giuseppe Vignera, Il modello costituzionale del processo civile italiano: corso di lezioni (Turim, Giapicchelli, 1990). O processo há de ser examinado, estudado e compreendido à luz da Constituição e de forma a dar o maior rendimento possível aos seus princípios fundamentais. (BRASIL, 2010)”.
Percebe-se assim a importância dos direitos fundamentais na interpretação do processo e do poder geral de efetivação, concluindo-se pela inviabilidade de aplicação do art. 139, IV, do CPC/2015 mediante supressões destes, o que somente é admissível se do lado oposto houver outro direito fundamental, tal como a vida e a dignidade da pessoa humana do filho e a liberdade do pai na prisão por alimentos, devendo, neste caso, prevalecer o direito do credor de alimentos, como já exposto no tópico 5.2.
3.3 Retrocesso à conquista histórica da patrimonialidade executiva e desproporcionalidade das medidas
O STJ vem firmando entendimento de que a suspensão da CNH não viola o direito de ir e vir definindo, ainda, os contornos de aplicabilidade das medidas atípicas.
A conclusão, entretanto, é equivocada e, sobretudo inconstitucional, haja vista o fato de que, ao contrário do que foi entendido, há limitação ao direito fundamental de livre locomoção (ainda que não em totalidade).
E pior que isso. Havendo limitação a livre locomoção, se afronta a dignidade da pessoa humana, haja vista estar à dignidade intrinsicamente ligada à liberdade (SARLET, 2013, p. 121).
Diante disso, se conclui que à míngua da conquista histórica da responsabilidade patrimonial, o devedor é compelido ao adimplemento de suas obrigações às custas de sua liberdade e de sua dignidade, o que, todavia, encontra entrave na própria vedação ao retrocesso, já que é inadmissível que “diante de uma mesma situação de fato, sejam implementadas involuções desproporcionais na proteção de direitos ou que atinjam o seu núcleo essencial”, conforme se decidiu no Recurso Extraordinário (RE) STF 646.721 (BRASIL, 2017).
Não bastasse a inconstitucionalidade das medidas e o retrocesso social à luz da conquista histórica da responsabilidade patrimonial, estas não se harmonizam com o princípio constitucional da proporcionalidade e da razoabilidade.
Ora, a interpretação que tem de ser dada é a mesma que o STF deu no julgamento da prisão civil do depositário infiel RE STF 466343 (BRASIL, 2010), quando se entendeu que os fins não justificavam os meios, de maneira que os meios (poderes atípicos) e os fins (efetividade) para resultados (satisfação de crédito) são desarrazoáveis quando postos em confronto com a liberdade de locomoção e a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais, pela cabal inexistência de: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito.
3.4 Processo punitivo e princípio da legalidade
Grave do mesmo modo do que foi acima abordado, a transformação do processo civil em “processo punitivo subsidiário” é outro problema constitucional das medidas atípicas, como bem lembrou Juliana Cordeiro de Faria no “Congresso de Direito Processual”, da OAB/MG, realizado na sede da OAB Seção MG (FARIA, 2017, 10:56).
A conclusão é coerente porquanto em um diálogo das fontes com o direito penal, as medidas atípicas deferidas no juízo cível são medidas restritivas de direitos, da espécie de interdição temporária de direitos, de acordo com o art. 47, do CP.
Em sendo pena do direito penal, não podem ser do mesmo modo – a pretexto de serem medidas coercitivas, aplicadas no processo civil.
A propósito, quanto à suspensão da CNH, o próprio STJ foi omisso e malicioso, pois esta somente é admitida em decorrência de crimes culposos de trânsito, de acordo com o art. 57, do CP: “a pena de interdição, prevista no inciso III do art. 47 deste Código, aplica-se aos crimes culposos de trânsito.” (BRASIL, 1940).
Araken de Assis, em evento sobre o CPC/2015, na sede do Conselho Federal da OAB, asseverou no mesmo sentido de que as medidas atípicas redundam em arbitrariedades, não sendo nada mais do que uma punição ao devedor, desproporcionais e irrazoáveis ao objetivo executivo, ofendendo a dignidade da pessoa humana:
“É evidentemente inconstitucional diante do princípio da dignidade da pessoa humana tirar o passaporte, carteira de habilitação. Que que tem isso com dívidas? Não tem absolutamente nada. Não é a correlação instrumental entre o objetivo da execução e o meio empregado. Isso é simples vingança, simples punição. (ASSIS, 2018, 10:56)”.
Ainda na mesma palestra, Araken de Assim também manifestou o espanto com o fato de que medidas punitivas no processo civil sejam encaradas com tanta naturalidade: “numa sociedade como a nossa, sedenta por punição, não me surpreende que essas ideias sejam encaradas com naturalidade. Mas é preciso rejeitá-las em nome de princípios” (ASSIS, 2018, 10:56).
Todas essas medidas ultrajadas de legalidade pelo art. 139, IV, do CPC/2015, são inconstitucionais quando se rememora que vivemos em um Estado Constitucional Democrático de Direito, que tem a legalidade com preceito fundamental, de maneira que o estado não pode punir os jurisdicionados sem prévia previsão legal, conforme art. 5º, II, da CF, art. 5º, XXXIX, da CF e art. 1º, do CP.
Assim, não se estabelecendo qualquer limite de aplicabilidade legal das medidas atípicas, como o próprio enunciado 48, da ENFAM, dispôs ao delimitar o art. 139, IV, do CPC/2015, como um “poder geral de efetivação”, há dissonância com a garantia fundamental de legalidade, porquanto o constituinte adotou integralmente o princípio da legalidade como pressuposto da operacionalização institucional do processo (LEAL, 2018, p. 99).
Conclusão
Pelos ditames constitucionais, concluiu-se que qualquer medida atípica é inadmissível quando posto em retaliação os direitos fundamentais, tais como os que demonstrados no tópico XX (liberdade de locomoção, dignidade da pessoa humana, garantia de não retrocesso, proporcionalidade, razoabilidade e legalidade).
Ainda que o STJ tenha admitido em certo termo as medidas coercitivas atípicas para o cumprimento da obrigação de pagar quantia certa, dando inclusive contornos de aplicabilidade, estas não podem ser admitidas quando do outro lado houver um direito fundamental.
Já que o legislador não cuidou de dar limites à aplicabilidade das medidas, se infere que os limites constitucionais dos meios atípicos são os direitos fundamentais. Ou seja, toda e qualquer medida atípica que não afronte os direitos fundamentais serão legítimas. Ao contrário, a conclusão é inconstitucional, pois o limite aos direitos fundamentais é uma garantia do Estado Constitucional Democrático de Direito.
Por isso, os direitos fundamentais não podem ser suprimidos com a justificativa de “efetividade do processo”, pelo que os pilares democráticos devem se sobrepor a esta premissa.
Diante destas considerações, qualquer interpretação das medidas atípicas fora dos limites constitucionais (direitos fundamentais) é uma afronta à própria democraticidade, pelo que deve ser veementemente reprimida pelo aplicador.
Referências
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[1] Claramente, ao lançar mão dessa cláusula geral executiva, o objetivo do legislador infraconstitucional foi o de municiar o magistrado para que possa dar efetividade às suas decisões. Trata-se de noção já assente na doutrina a de que todo jurisdicionado tem o direito fundamental de obter do Poder Judiciário uma prestação jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva, seja em decorrência do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) seja em decorrência do princípio da inafastabilidade da atividade jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF). (DIDIER JUNIOR, 2012, p. 442).
[2] Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: …
IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; (BRASIL, 2015).
[3] Vide também RHC 99.606/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, terceira turma, julgado em 13/11/2018, DJe 20/11/2018. (BRASIL, 2018).
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