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Meus heróis eram vilões


Quando eu era criança, encantava-me com as canções que exaltavam os ideais libertários, o sonho de um país democrático, com a retomada dos direitos civis e a deposição do “rei velho e cansado que não queria o amor em seu reinado, pois, sabia, não ia ser amado”. Eu nasci e cresci na região do Araguaia, no Pará, e a guerrilha do Araguaia, baseada na Cidade de Xambioá, na época, Estado de Goiás, tinha reflexos diretos sobre mim e meus familiares, pobres camponeses e analfabetos.


Sobrevoos de helicópteros do Exército sobre o casebre onde morávamos, muitas vezes destruindo a humilde cobertura feita de palha; homens fardados e armados, invadindo nossas casas e apreendendo nossos utensílios e até ferramentas de trabalho de meus pais; humilhações, pais de família recebendo bofetes no rosto na frente dos filhos pequenos para que informassem onde estavam os “terroristas”. Estas são as lembranças daquela infância sofrida, mas sonhadora e repleta de esperança. Lembro-me, ainda, de uma severa reprimenda que recebi de um soldado idiota e analfabeto, ordenando-me a desligar a radiola a pilha e não ouvir “para não dizer que não falei das flores”, pois aquilo era música de comunista. Já quase na adolescência, entusiasmei-me com a obra Utopia, de Tomás Morus, que idealizava um Estado imaginário sem propriedade privada nem dinheiro, tendo, inclusive, inspirado a Revolução russa. Em Utopus, os utopianos desprezavam o ouro, pois, entre eles, servia para ornamentar os porcos e a estes se equiparava o homem que ostentasse ouro, por ser um sinal de desonra. Esse cenário todo fez de mim um sonhador e um árduo simpatizante de todos aqueles que se empenhavam na luta pela derrubada da ditadura militar e para instituir a democracia no Brasil. Considerava, deveras, fascinante poder existir pessoas tão desprendidas, destemidas, que, abnegadas de quaisquer interesses particulares ou patrimoniais, dedicavam-se a lutar em prol da sociedade, da coletividade, da felicidade geral do povo. Eram, para mim, não terroristas ou subversivos, como a propaganda do governo tentava estigmatizá-los, mas verdadeiros heróis. Meus heróis.


Entretanto, atualmente, ao ver-me envolto nas fantasias românticas de minhas reminiscências, percebo que os mocinhos que diziam lutar pela Pátria estavam, em verdade, defendendo seus próprios interesses, com raras exceções daqueles que, como eu, foram induzidos a erros, ou iludidos. Essa triste constatação faz reportar-me a outra obra igualmente clássica que li na minha juventude: “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, que alude aos animais que se rebelam contra seus donos e tomam posse da fazenda, com o objetivo de instituir um sistema cooperativo e igualitário. Mas não demora muito para que alguns bichos – em particular os mais inteligentes, os porcos – voltem a usufruir de privilégios, reinstituindo aos poucos um regime de opressão, desta vez inspirado pelo lema “todos os bichos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. E desta forma nos chegam os ditos “revolucionários” ou “idealistas”. Com o surgimento da democracia, uma grande legião de auto-proclamadas “vítimas” da ditadura, surrupiam os cofres públicos sob o pretexto de que devem ser indenizados por seus “ideais” (ou ambições) políticos e, como sanguessugas, vampirizam o povo brasileiro recebendo indenizações milionárias. Ora, se o regime de exceção, contra o qual tanto combateram, era ilegítimo, se os usurpadores do poder eram déspotas, impostores, porque responsabilizar o povo brasileiro? O dever de indenizar compete àquele que causou o dano. O povo brasileiro é o responsável por tão onerosos ônus advindos das milionárias indenizações? Mas, indenizar o quê? O sonho, o ideal, a consciência? Afinal, os tais revolucionários não lutaram em defesa do Brasil e de todos os brasileiros, impelidos por suas consciências e por seus ideais libertários? Com que direito grupo de artistas e intelectuais vem pleitear indenizações milionárias e altos salários vitalícios à custa da sociedade? Aliás, ouso indagar mais profundamente: a ditadura militar no Brasil foi mesmo maléficas a alguns artistas, intelectuais e políticos? Ao que me parece, muitos artistas e intelectuais só têm hoje alguma expressividade ou vendagem de suas obras por se auto-intitularem “vítimas” da ditadura. Pergunta-se: o que seria de Chico Buarque, Caetano Veloso, Carlos Heitor Cony, Ziraldo, José Genuíno (este jura que lutou na guerrilha do Araguaia, ainda que nunca tenha sido visto por lá) e tantos outros, se não fosse a “contribuição” do regime militar que, ainda que involuntariamente, dava-lhes projeção e promoção? A quase totalidade dos artistas e intelectuais no Brasil só conseguiu alguma fama e fortuna graças à bandeira do vitimismo. Muitos dos políticos de hoje, inclusive, ou principalmente, os mais corruptos e demagogos, só conservam seus projetos de poder sob o pretexto falacioso de que lutaram pela democratização e que por isso merecem respeito. Quem de nós, brasileiros, homens e mulheres, que nascemos antes de 1983 não sofremos na pele as agruras da ditadura militar? Sob esse prisma, somos todos vítimas do regime de exceção (fazemos todos jus à uma indenização milionária), mas também podemos nos considerar todos vitoriosos com a construção da democracia no nosso país.Tudo depende de qual perspectiva pretendemos para nós na construção de nossa Pátria.


Eu geralmente vejo e ouço falar em homenagem post-mortem. Entretanto, nos últimos tempos, tenho visto verdadeiras ofensas fúnebres. Acredito que Luiz Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, esteja se contorcendo no túmulo em razão do que vem ocorrendo ultimamente. É no mínimo esdrúxula a indenização paga ao seu filho por ter sido exilado na Rússia, justamente no país dos sonhos dos “revolucionários”, paradigma de nação que tanto queriam implantar nas terras tupiniquins. Não seria um privilégio ter ido viver lá? Miguel de Cervantes, em sua obra Don Quijote de La Mancha, ao tratar do ideal de liberdade, sentencia: non biene pro toto libertas venditur auro (a liberdade não se vende bem nem por todo o ouro do mundo). Meus “heróis”, empunhando uma falsa bandeira, sob o pretexto de terem lutado pelos ideais libertários, venderam suas histórias e, muitos deles, revelam-se meros mercenários sofistas, vendilhões das utopias e das ideologias.


Diante dessa “revolução dos bichos”, dos indignos ostentadores e adorares de ouro, não há como não transcrever um exemplo de dignidade e coerência, encontrada na carta de Anita Leocádia Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes, enviada ao jornal O Globo: “Luiz Carlos Prestes sempre se opôs à sua reintegração no Exército brasileiro, tendo duas vezes se demitido e uma vez sido expulso do mesmo. Também nunca aceitou receber qualquer indenização governamental; assim, recusou pensão que lhe fora concedida pelo então prefeito do Rio de Janeiro, Sr. Saturnino Braga. A reintegração do meu pai ao Exército no posto de coronel e a concessão de pensão à família constitui, portanto, um desrespeito à sua vontade e à sua memória. Por essa razão, recusei a parte de sua pensão que me caberia. Da mesma forma, não considerei justo receber a indenização de cem mil reais que me foi concedida pela Comissão de Anistia, quantia que doei publicamente ao Instituto Nacional do Câncer.”


Obrigado Anita! A sua carta me fez recobrar a capacidade de sonhar e de ter esperança no ser humano como protagonista na construção do seu mundo. Se antes lutávamos contra a opressão, hoje temos que lutar contra a hipocrisia e a mais valia. Meus heróis, em verdade, eram vilões, investidores, mercantilistas, oportunistas. Com exceção do seu glorioso pai e de sua heroína mãe. Por isso não vou desistir de sonhar, de ter esperança num mundo justo, solidário, fraterno, feito de pessoas verdadeiramente vocacionadas e repletas de ideais voltados à construção de um país melhor e com justiça social.


Concluo fazendo minhas as palavras de Millôr Fernandes: “eu pensava que eles estavam defendendo uma ideologia, mas estavam fazendo um investimento”.



Informações Sobre o Autor

Manoel Leonilson Bezerra Rocha

Advogado Criminalista em Goiânia (GO); Professor de Direito Penal e de Prática Jurídica Penal; Especialista em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Goiás (UFG); Mestrando em Direito pela Ecole de Criminoligie “Jean Constant” da Université de Liège, Bélgica; Pesquisa de Campo sobre Crime Organizado e Lavagem de Capitais em França, Inglaterra, Bélgica e Espanha; Pesquisa de Campo sobre Criminalidade Urbana em Paris e Inglaterra; Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Burgos, Espanha; Autor de diversos artigos.


Equipe Âmbito Jurídico

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